CONTRATO DE ARRENDAMENTO
RENOVAÇÃO AUTOMÁTICA
PRAZO
NATUREZA SUPLETIVA
Sumário

I – A disposição do artigo 1096º, nº 1, do Código Civil, na redacção da Lei nº 13/2019, de 12 de Fevereiro, tem, na sua íntegra, natureza supletiva.

II – Se assim não for, e à excepção de quando as partes excluem a renovação do arrendamento (início do mesmo artigo), torna-se inútil celebrar contratos, com prazo certo, inferior a três anos (artigo 1097º, nº 3, do Código Civil), que a lei parece querer possibilitar (artigo 1095º, nº 2, do Código Civil).

III – As partes não estão, portanto, inibidas, no exercício da autonomia da sua vontade privada, de poderem consensualizar um prazo sucessivo, para a renovação automática do arrendamento, que seja inferior a três anos.

IV – Só esta interpretação é, também congruente com a admissibilidade expressa desse prazo de renovação, que se contempla nas alíneas b), c) e d), do artigo 1097º, nº 1, do Código Civil.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. A instância da acção.
1.1. A Associação do Hospital Civil e Misericórdia de --- propôs acção declarativa, na forma comum, contra F---, solicitando (1) a extinção do contrato de arrendamento, para habitação, relativo à casa da Rua ---, em A---, com base na oposição à sua renovação, e a condenação da ré (2) na sua entrega imediata e (3) no pagamento das rendas vincendas até essa efectiva entrega.
Em síntese, invocou o contrato de arrendamento, entre ambas, de 3 de Julho de 2014, para habitação da ré, com início em 1 de Agosto e por cinco anos, renovável por sucessivos períodos de um ano. Que, por comunicação de 5 de Janeiro de 2023, transmitiu à ré a sua oposição à renovação do contrato, com efeitos a 31 de Julho de 2023. E que a ré não abandonou a casa.

1.2. A ré contestou; e concluiu dever ser absolvida dos pedidos.
Disse, em síntese, que o quadro normativo aplicável impõe que as renovações do contrato sejam iguais ao período da duração inicial ou, ao menos, de três anos. Por consequência, o arrendamento foi eficaz até 31 de Julho de 2024 (se a renovação for de cinco anos); ou, ao menos, até 31 de Julho de 2025 (se a renovação for de três). A oposição à renovação foi, pois, extemporânea.

1.3. A senhora juíza “a quo” conheceu imediatamente do mérito da causa.
Julgou a acção procedente, (1) declarou cessado, por oposição à renovação, o contrato de arrendamento e condenou a ré (2) a restituir à autora o locado e (2) a pagar-lhe a quantia de uma renda mensal, por cada mês, até à entrega.

Para tanto, e essencialmente, enquadrou a hipótese nas disposições dos artigos 1096º, nº 1, e 1097º, nº 1, alínea b), do Código Civil, na redacção dada pela Lei nº 13/2019, de 12.2; e, tomando partido na polémica interpretativa que vem atravessando essas normas, julgou juridicamente válido o consensual prazo de renovação, circunscrito a um ano, e eficaz a oposição à renovação, em 1 de Agosto de 2023.

2. A instância da apelação.
2.1. A ré inconformou-se; e interpôs recurso.

Apresentou a alegação; onde sumariamente concluiu assim:
i. Está em causa a interpretação do artigo 1096º, nº 1, do Código Civil, com a redacção que lhe foi dada pela Lei nº 13/2019, de 12 de Fevereiro.

ii. O contrato de arrendamento, para habitação, com termo certo, entre recorrente e recorrida, foi celebrado em 3.7.2014, com a duração inicial de cinco anos, início a 1.8.2014 e fim a 31.7.2019, tendo as partes convencionado, à época, que o contrato poderia ser renovado por períodos iguais e sucessivos de um ano.

iii. Surgiu, entretanto, a alteração legal referida; que o tribunal a quo considerou aplicável à relação contratual em crise.
iv. Considerando, porém, supletivo o novo artigo 1096º, nº 1, com total autonomia das partes a convencionarem o período de renovação; e, portanto, que a oposição à renovação, de 5.1.2023, foi plenamente válida, cessando o contrato efeitos a 31.7.2023.

v. A alteração normativa, contudo, enquadrou-se num clima de forte proteccionismo em favor dos arrendatários, teve por razão equilibrar posições com os senhorios, estabilizar o mercado do arrendamento e dar aos inquilinos a possibilidade de criarem laços com a comunidade do local da habitação, bem como ainda fazer cessar situações de abuso; quadro que apenas permite significar que a norma do artigo 1096º, nº 1, é imperativa.
vi. Impondo-se, por consequência, que a sentença tivesse considerado que o contrato se renovou por cinco anos, em 1.8.2019, com termo em 31.7.2014, e que a comunicação da oposição à renovação, para efeitos a 31.7.2023, era inválida.
vii. Ou, pelo menos, em parcial imperatividade, no que ao período mínimo de renovação respeita, que tivesse considerado o de três anos, em 1.8.2022, com termo em 31.7.2025, à mesma com a invalidade daquela comunicação.

Em síntese; a sentença deve ser alterada no sentido de considerar (1) que o arrendamento se renovou por cinco anos, com termo a 31.7.2024, e inválida a oposição à renovação, para 31.7.2023; ou, ao menos, (2) que se renovou em 1.8.2022, por três anos, por conseguinte, ainda estando em curso, só com termo em 31.7.2025 próximo, e com igual invalidade da mesma comunicação.

2.2. A autora respondeu.
No essencial, para sinalizar o objecto da controvérsia na interpretação do artigo 1096º, nº 1, do CC, na versão actual, quanto à imperatividade ou supletividade da duração mínima dos períodos de renovação e, nessa medida, aos efeitos da oposição à renovação levada a cabo.
E, em suma, para concordar com a sentença apelada; no sentido de que a norma em análise tem cariz supletivo, quer quanto à questão da renovação (permitindo a celebração de contratos não renováveis), quer quanto à questão da duração dos períodos de renovação (permitindo renovações inferiores a três anos).

3. Delimitação do objecto do recurso.

3.1. É entendimento pacífico o de que, olhado o perímetro do segmento dispositivo da sentença desfavorável ao recorrente, o objecto do recurso há-de aí ser circunscrito pelas conclusões da alegação (artigo 635º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Civil).
Assinalando-se, assim, as questões decidendas postas em equação (artigo 608º, nº 2, do Código de Processo Civil).

3.2. No caso concreto, o tema suscitado é apenas um.
Polémico e objecto de divergência e fractura; ainda (muito) actual.
E que se pode, numa síntese simples, enunciar assim:

O artigo 1096º, nº 1, do Código Civil, na redacção que lhe deu a Lei nº 13/2019, de 12 de Fevereiro, aplicável ao contrato de arrendamento para habitação, celebrado com prazo certo (inicial), permite que as partes validamente convencionem, para esse contrato, um tempo de renovação (seguinte) inferior a três anos?

Ou o período dos três anos da renovação (seguinte) se lhes impõe imperativamente?

A resposta a estas questões decidirá a sorte do recurso de apelação.

II – Fundamentos

1. Matéria de facto com relevo para a decisão de mérito.
O saneador-sentença apelado fixou os seguintes factos (plenamente) provados:

i. Em 3 de Julho de 2014, autora e ré subscreverem o escrito denominado “Contrato de arrendamento”.
ii. Pelo escrito referido em i., autora, enquanto primeira outorgante, e ré, enquanto segunda outorgante e arrendatária, declararam que:

«Estabelecem entre si o presente contrato de arrendamento para habitação, que tem por objecto a fracção autónoma ---, casa de r/c e sótão com a área total de 44,22 m2, sito na Rua ---, na freguesia de ---, concelho de V--- (…):
PRIMEIRA
O prazo de duração do arrendamento é de cinco anos, com início em 1 de Agosto de 2014, e com termo em 31 de Julho de 2019, considerando-se prorrogado por sucessivos períodos anuais caso não seja denunciado por qualquer das partes, nos termos da lei.
SEGUNDA
A denúncia do contrato de arrendamento nos termos do art.º 1055º do Código Civil deverá ser comunicada com antecedência mínima de sessenta dias.
TERCEIRA
A renda anual é de 1800,00€ (Mil e Oitocentos Euros) a pagar mensalmente em duodécimos de 150,00€ (Cento e cinquenta euros), ao senhorio, na respectiva sede, ou através de depósito ou transferência bancária (…).»

iii. A renda indicada em ii. foi actualizada para o valor de € 159,34.
iv. A autora remeteu à ré, por carta registada com AR, que esta recebeu em 19/01/2023, o escrito com o seguinte teor:

« Na qualidade de senhorio do prédio urbano sito na Rua ---, na freguesia de ---, concelho de V---, (…), da qual V.ª Ex.ª é arrendatária, venho desta forma comunicar a V. Ex.ª, nos termos e para os efeitos do art.º 1097º do Código Civil a minha intenção de não renovação do contrato de arrendamento em vigor, celebrado em 03 de Julho de 2014.
O contrato referido supra cessará os seus efeitos a partir de 31 de Julho de 2023, data em que deverá proceder à entrega do locado livre de pessoas e bens, no estado de conservação em que o mesmo se encontrava, quando o presente contrato se iniciou, bem como proceder à entrega das respectivas chaves. »

2. O mérito do recurso.

2.1. Enquadramento jurídico-normativo; comentários.

Não merece dúvida a possibilidade da celebração do contrato de arrendamento de prédio urbano, com destino a habitação, com prazo certo.
E era já assim ao tempo do ajuste entre os sujeitos, na presente hipótese (artigo 1094º, nº 1, do Código Civil; redacção da Lei nº 31/2012, de 14.8).
Importava era que o prazo constasse de cláusula, no contrato (artigo 1095º, nº 1); mas nem, então, se prevenia – ao menos, expressamente (nº 2), como antes acontecia (cinco anos), no quadro da redacção inicial da Lei nº 6/2006, de 27.2; e depois veio também a acontecer (um ano), no quadro da Lei nº 13/2019, de 12.2 – um período mínimo para esse prazo (“Código Civil anotado”, coord. Ana Prata, volume I, 2017, página 1342).
Mesmo que o contrato fosse omisso quanto à duração, era considerado de prazo certo, pelo período de dois anos (artigo 1094º, nº 3; redacção da Lei nº 31/2012)

Ao tempo da génese do arrendamento, em equação aqui, o artigo 1096º, nº 1, do Código Civil, conhecia, igualmente, a versão da Lei nº 31/2012; e estabelecia, salvo estipulação em contrário, a renovação automática no termo do contrato, celebrado com prazo certo, e por períodos sucessivos de igual duração.

Note-se que esta norma, então em vigor, não foi óbice a que fosse, no contrato entre apelada e apelante, expressamente consensualizado um prazo de renovação (um ano) distinto (no caso, inferior) ao aí (na lei) visado, e estabelecido como tempo inicial (cinco anos).
Com o significado inequívoco de que as partes terão entendido, com toda a certeza, dispor a lei de modo supletivo; que não imperativo.
E, por isso, com uma cláusula contratual diversa (!).

Entretanto, publicada a versão da Lei nº 13/2019, de 12.2, com entrada em vigor em 13.2.2019 (artigo 16º), passou esta a cobrir o contrato em causa; como resulta, de modo claro, do artigo 12º, nº 2, segundo segmento, do Código Civil; e é, aliás, incontroverso na lide presente.
O renovado artigo 1096º, nº 1, manteve a regra da renovação automática; mas agora com o aditamento de que o período sucessivo da renovação, quando a duração inicial do contrato seja inferior, não será de menos de três anos.

O caso concreto faz-nos, aqui, reflectir sobre a seguinte perplexidade.
Os sujeitos, em Julho de 2014, podiam (até) ter ajustado o arrendamento habitacional com o prazo inicial de apenas um ano. E consensualizado as renovações sucessivas ainda (apenas) pelo mesmo prazo de um ano.
Fá-lo-iam no uso soberano da sua autonomia da vontade (artigo 405º, nº 1, do Código Civil).
Porém; por força agora da mutação legislativa, imperativa (?), ficavam na contingência de uma vinculação contratual renovada, robustecida, à margem daquela (sua) liberdade de contratar, que deliberadamente haviam exercitado; e, assim, (agora) se via reconfigurada e comprimida, por uma incursão pública (de discutível aceitabilidade); que lhes passava a impor – repete-se: à margem do que livremente podiam ter fixado – uma injuntiva renovação por (sucessivos) períodos de três anos.

O artigo 1096º, nº 3, do código, permite a qualquer das partes opor-se à renovação; faculdade que o artigo 1097º, para o estatuto do senhorio, regula; ao que aqui nos importa, na sua versão (que é, ainda, a actual) de 2019.
Estabelece esta disposição, nos segmentos com mais interesse, poder o senhorio exercer o seu direito de impedir a renovação automática do arrendamento habitacional se o comunicar ao arrendatário com a antecedência mínima de 120 dias, que contam do termo do prazo da renovação, nas hipóteses em que esta seja igual ou superior a um ano, mas inferior a seis (nº 1, alínea b), e nº 2).
Era já essa a disposição essencial precedente, na versão de 2012.
Inovando, porém, a versão de 2019 com a regra, agora criada, de que essa oposição, à primeira renovação, apenas é passível de ser eficaz decorridos três anos da celebração do contrato, mantendo-se o arrendamento em vigor até essa data (nº 3).

A consequência é clara; após 13 de Fevereiro de 2019, o arrendamento a que se fixe o prazo de um ano, ou outro inferior a três anos (artigo 1095º, nº 1), não pode ser extinto, por iniciativa o senhorio, nos três anos iniciais (artigo 1097º, nº 3); mantendo-se imperativamente durante esses três anos.
Donde, o prazo consensualmente estabelecido (inferior aos três anos) apenas poderá ter impacto no tempo seguinte (após esses três anos iniciais); e, por conseguinte, tão-só como o prazo fixado para a sucessiva, subsequente, renovação.
Dado que, se assim não for, será inútil prevenir (mesmo normativamente; no citado artigo 1095º, nº 1) a hipótese de contratos, por prazo certo, inferior a três anos.
Uma inutilidade que se arrasta, e robustece, se considerarmos como (?) imperativa a renovação mínima por três anos, em face do aditamento ao artigo 1096º, nº 1 (!).

Mas já; se os sujeitos estipularem excluir a renovação automática, e optarem por fixar um termo fatal – p. ex.; arrendamento por um ano (ou inferior a três anos) e sem renovação –, opção válida por causa do segmento normativo inicial do artigo 1096º, nº 1, e sobre que é incontroversa a supletividade (!), o arrendamento finda aí irremediavelmente, à margem dos três anos (artigo 1096º, nº 1, final; artigo 1097º, nº 3).
O que, então, torna o panorama jurídico envolvido ainda de maior estranheza (!).

2.2. Análise do caso concreto; polémica associada; posição propugnada.

2.2.1. Na hipótese que aqui ocupa, os sujeitos ajustaram um contrato de arrendamento habitacional, no dia 3 de Julho de 2014, com o prazo certo de cinco anos, a partir de 1 de Agosto seguinte, e prevenindo a sua renovação sucessiva por um ano.
O arrendamento vigorou pelos cinco anos iniciais, até 31 de Julho de 2019.
E renovou-se ([…]).

Em 19 de Janeiro de 2023, a senhoria comunicou à inquilina a sua oposição à renovação, a acontecer no dia 1 de Agosto de 2023; e declarou-lhe o fim do contrato para o dia 31 de Julho de 2023.

2.2.2. A inquilina discorda da cessação do contrato, nesta data.
E defende que, após os cinco anos iniciais, a renovação terá sido por mais cinco anos (igual ao da duração inicial), até 31 de Julho de 2024; ou, pelo menos, por mais três anos, até 31 de Julho de 2022, e, a partir daqui, por mais outros três, até 31 de Julho de 2025.
Em qualquer dos, envolvendo extemporaneidade da oposição à renovação.

2.2.3. A hipótese tem por superado o tempo inicial, de cinco anos, da duração do contrato.
Centrando-se a problemática, tão-só, nas renovações a esse subsequentes.

Estas outras foram fixadas, na cláusula primeira do contrato, com duração anual.
E este é logo um ponto que impressiona.
No quadro normativo, então em vigor, as partes podiam ter estipulado o prazo certo que entendessem, quer para a duração inicial do arrendamento, quer para os períodos seguintes da renovação.
Podiam até ter excluído a renovação automática do contrato (!).
Tudo isso lhes era permitido, quer pelos artigos 1094º, nº 1, e 1095º, nº 2; quer sobretudo pelo artigo 1096º, nº 1, que, ademais da exclusão, lhes permitia fixar o período que pretendiam para a renovação, como lhes permitia, assumindo a renovação automática, não fixar prazo nenhum, caso em que era a norma que, supletivamente, o estabelecia em igual duração à do prazo certo inicial.
E tem de se sublinhar que esta norma, na versão da Lei nº 31/2012, de 14.8, não merecia, então, dúvida maior acerca da sua real supletividade; quer dizer, na redacção aí em causa era pacífica a natureza supletiva da disposição, notoriamente evidenciada pelo trecho inicial do texto, de salvaguarda de uma estipulação em contrário.

Ou seja; as partes, na sua liberdade contratual, quiseram uma determinada realidade. A sua mutação, para existir, terá de ser sustentada em razões consistentes (!).
Veja-se, na dogmática cível, a regra forte de que os contratos – quer dizer, as cláusulas livre e esclarecidamente consensualizadas; vinculativas, pois – só se podem modificar, por princípio, por mútuo consentimento dos contraentes (artigo 406º, nº 1, do Código Civil).
Devem, portanto, uma vez acordadas, serem honradas.
E, com isto, a estranheza (de princípio) de querer obter um efeito jurídico-substantivo diferente daquele que se preveniu, à volta do qual se formaram o ambiente e as expectativas legítimas, recíprocas.
E que não foi outro – foi aquele, específico e concreto, livremente assumido (!).

2.2.4. O quadro jurídico-normativo mudou, em 13 de Fevereiro de 2019.
Com impacto na situação jurídica, estabilizada, e que aqui nos ocupa.

O artigo 1096º, nº 3, aditou ao período sucessivo da renovação automática, o prazo de três anos, para a hipótese de a duração inicial do contrato ser inferior.
A mutação normativa merece-nos dois comentários iniciais.
O 1.º; no confronto com a versão de 2012, mantendo-se o segmento inicial do texto, que aponta para a supletividade, com a única diferença de se lhe ter acrescentado o trecho dos três anos, só com certa artificialidade se pode agora pugnar pela diferente natureza do preceito; isto é, que a regra, antes supletiva, passou agora (?) a ser imperativa (!).
Em 2.º; e, por outro lado, a estranheza de uma norma que, na sua redacção, inicia por inequivocamente deixar a margem à estipulação do contrário e que vem, depois, a ser interpretada, num dos seus segmentos, afinal, como impositiva e imperativa (!); ou seja, no mínimo, a perplexidade de um mesmo número de um artigo da lei ser, ao mesmo tempo, supletivo numa das suas partes integrantes, e imperativo, na outra remanescente (!).
E se; assim na forma; similarmente no conteúdo.
É que incongruente parece ser o que, assim, se pode retirar da estatuição normativa; e mais ainda num tema de tanto melindre como o do contrato de arrendamento com fins habitacionais.
O sentido útil da estipulação em contrário – que é expressa – tem de ser algum.
Se ele se cifra unicamente no segmento da possibilidade de os sujeitos poderem afastar a renovação automática, no seu termo, do arrendamento com prazo certo, arredando o período (inferior aos três anos) da renovação; então, temos a solução incoerente – designadamente com a (desejada) estabilização em contexto de arrendamento – de que os actores no mercado podem celebrar contratos inferiores a três anos (p. ex.; um ano), sem renovação, mas já não podem celebrá-los, para renovar (mesmo numa previsível sucessão de várias renovações [!]) aquém dos três anos (p. ex.; dois anos).
Ou vale aqui a regra do senso comum de que, quem pode o mais (não renovar o contrato [inicial], p. ex., de um ano) há-de poder, com toda a certeza, o menos (renovar o contrato [inicial], p. ex., de dois anos, por igual período)?

A (putativa) imperatividade da norma, a existir, tem de fundar-se em razões sólidas e consistentes.
Numa visão mais integrada, vemos que a existência de normas imperativas na ordem jurídica se sustenta – e assim tem de ser – em motivos de ordem pública, ou outros, que impelem o legislador a consagrar disposições de protecção, que aos sujeitos não é possível afastar, na configuração das suas situações jurídicas.
Nesse sentido, são regras de natureza excepcional ou, pelo menos, desviantes daquele que é o princípio basilar do direito privado, sustentado na básica autonomia da vontade das partes e que lhes permite, com a mais ampla liberdade, conformar os seus interesses e configurar os negócios jurídicos acomodados à sua situação e estatuto.
Por isso, se percebe a imperatividade associada a alguns princípios irreversíveis.
E por isso que, na dúvida, nos pareça dever sobressair a liberdade privada.

2.2.5. A norma, em quadro de arrendamento urbano (habitacional), era supletiva quando as partes contrataram, em Julho de 2014.
Tornou-se vinculística (ao menos, parcialmente), em Fevereiro de 2019?

A controvérsia instalada, na resposta a esta questão, tem tido eco acentuado na doutrina e na jurisprudência.

A tese maioritária vem sendo a da defesa da imperatividade do artigo 1096º, nº 1, na sua redacção actual; no sentido de que, optando as partes contratantes por não arredarem a renovação automática do contrato, passam a estar vinculadas a um período mínimo de três anos, para cada renovação.
As razões centram-se, em muito, no contexto associado à publicação da Lei nº 13/2019, que assumidamente visou o reforço da segurança e estabilidade no arrendamento urbano, bem como na tutela acrescida aos inquilinos.
É a tese defendida na doutrina, entre outros autores, por Maria Olinda Garcia, no texto “Alterações em matéria de Arrendamento Urbano introduzidas pela Lei nº 12/2019 e pela Lei nº 13/2019”, publicado na revista Julgar online, Março de 2019, página 12, ou por Ana Isabel Afonso, no texto “Sobre as mais recentes alterações legislativas ao regime do Arrendamento Urbano” publicado nos “Estudos de Arrendamento Urbano”, 2020, páginas 26 a 27.
É, por outro lado, a jurisprudência corrente (ainda que não incontroversa) no Supremo Tribunal de Justiça; como ilustram, entre outros, os Acórdãos de 20 de Setembro de 2023 (proc.º nº 3966/21.3T8GDM.P1.S1) ou de 13 de Fevereiro de 2025 (proc.º nº 907/24.0YLPRT.L1.S1), ainda que, um e outro, contendo votos de vencido.

A tese alternativa, em confronto, é a que vê, no mesmo artigo, uma disposição meramente supletiva, e na sua íntegra; facultando aos contratantes, além do mais, a válida opção de consensualizarem um prazo de renovação aquém dos três anos, ficando o que a norma estatui, em tema de prazo, reservado para as situações em que, fixada a renovação, se omita, para ela, um qualquer.
Argumenta-se, no essencial, com a sistemática do código, que aponta para essa solução; particularmente quando, além do mais, torna injuntiva noutras normas a vigência inicial mínima de três anos nos contratos renováveis, aqui sim, como garante da estabilidade habitacional do arrendamento.
É a tese defendida na doutrina, entre outros autores, por Jorge Pinto Furtado, em “Comentário ao Regime do Arrendamento Urbano”, 3.ª edição, 2021 (revista e actualizada), páginas 650 a 653, ou por Isabel Rocha e Paulo Estima, em “Novo Regime do Arrendamento Urbano – notas práticas e jurisprudência”, 2019, página 286.
Na jurisprudência, sobretudo dos tribunais de segunda instância, é a tese propugnada, entre outros, pelos Acórdãos das Relações do Porto de 23 de Março de 2023 (proc.º nº 3966/21.3T8GDM.P1), de Lisboa de 27 de Abril de 2023 (proc.º nº 1390/22.0YLPRT.L1-6) ou de Évora de 27 de Junho de 2024 (proc.º nº 7/24.2YLPRT.E1).
É também o entendimento propugnado na sentença, aqui, recorrida.

Que dizer, então?

A evolução do regime do arrendamento, particularmente habitacional, nas últimas décadas, habitualmente convulsa, teve como pano de fundo o afastamento de um regime vinculístico (quase) absoluto, e a passagem para um outro, mais liberalizado e melhor ajustado à modernidade.
Com essa marca de água, numa óptica mais conjuntural, condicionada por opções políticas oscilantes, as regras jurídicas foram sendo alteradas, ora acentuando a maior liberdade contratual, ora solidificando mais o estatuto do arrendatário, por modo assumido de influenciar o mercado da habitação, no sentido de garantir a maior durabilidade dos contratos.

É um quadro conflituante entre, por um lado, o programático direito constitucional à habitação, que ao Estado cumpre promover (artigo 65º da Constituição da República), com o, por outro lado, não menos relevante, direito de propriedade privada, igualmente estabelecido, como fundamental, na Constituição (artigo 62º), e a que também importa garantir consistência.

Com a alteração de 2019, foi assumida a intenção de corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e proteger arrendatários em situação de especial fragilidade.

Quadra estes objectivos uma mutação, de supletiva para imperativa, do segmento da norma do artigo 1096º, nº 1, final?

A resposta aparenta-se-nos negativa.
Temos dificuldade em ver à (nova) compressão ao conteúdo do direito de propriedade, assim significada, por via da intervenção legislativa, uma razão consistente.
O equilíbrio, nesse particular, já estava garantido no quadro jurídico pretérito.
E era nesse que os sujeitos já podiam fazer espelhar a estabilidade que entendessem para as respectivas situações jurídicas, com a maior amplitude, e fixando as cláusulas que mais lhes aprouvesse quanto à durabilidade do seu contrato.

E a intervenção normativa, quando aqui se quis inovar, foi inequívoca.
P. ex.; quando se explicitou a duração mínima do arrendamento, para um ano (artigo 1095º, nº 2); quando se evidenciou a duração inicial mínima, se renovável, de três anos (artigo 1097º, nº 3); ou ainda quando, para o que mais nos interessa, se clarificou a duração supletiva da renovação subsequente, mínima, de três anos (o artigo 1096º, nº 1, final, em causa).
E nada permite acrescentar, supor, neste último caso, ainda, uma (outra) mutação para a imperatividade (!).

A razão substantiva, e sólida, consistente, para a (nova) injunção, não existe.
Não se sustenta, nesse particular, em instabilidade do mercado que se percebesse.
Choca com a sistemática do código (artigo 9º, nº 1, do Código Civil) quando, p. ex., este permite celebrar contratos com menos de três anos (artigo 1095º, nº 2), arredar a renovação (artigo 1096º, nº 1, início); mas sobretudo quando expressamente ainda previne, e supõe, em norma intervencionada, uma renovação que possa ser inferior aos três anos (artigo 1097º, nº 1, alíneas b), c) ou d) [!]).
E vai, mesmo, ao arrepio da agilização do mercado do arrendamento, sua segurança e estabilidade, ou da protecção maior dos inquilinos, que se visou; porque, a ser assim, os senhorios teriam uma natural propensão para reduzir os contratos renováveis ou, ao invés, investir (mais) em arrendamentos de prazo certo, que se não renovam, e tendencialmente (mais) curtos.

2.2.6. Revertendo à hipótese concreta, desta apelação.

A apelante, como inquilina, e a apelada, como senhoria, em 2014, configuraram o seu estatuto jurídico e o compuseram os seus interesses substantivos, moldando um arrendamento habitacional pelo prazo (inicial) de cinco anos e subordinado (a seguir) a renovações de um ano.
Garantiram, desse jeito, a (sua) estabilidade contratual; assumiram uma situação material em inteira liberdade; e fixaram as suas expectativas associadas (e futuras).

A Lei nº 13/2019, de 12 de Fevereiro, não teve a virtualidade para alterar esse estado de coisas.

Para os objectivos que visou, veio sobretudo fixar a duração mínima para o prazo certo (de um ano); e, para os contratos renováveis, fixar a sua duração inicial mínima (de três anos).
Mas manteve a opção do contrato (irredutivelmente) não renovável.
Como (a fortiori) deixou também a escolha dos períodos subsequentes da renovação, a existir, para a autonomia das partes.
Clarificando, tão-só, supletivamente, este último prazo, para a hipótese do silêncio dos sujeitos contratantes, nesse particular respeito.
A política de arrendamento e habitação, subjacentes, não permite ir além disto.

É este, ainda, o ponto de vista que se nos afigura mais harmonioso com o estádio de evolução da sociedade, do mercado do arrendamento urbano habitacional e com o sistema normativo, para ele implantado e em vigor.

E que é, igualmente, o da sentença recorrida; cuja fundamentação é inatacável.

III – Decisão

Em face do exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em não dar provimento ao recurso de apelação interposto e:

(1.º). considerar de natureza supletiva, na sua íntegra, as normas contidas no artigo 1096º, nº 1, do Código Civil, na redacção dada pela Lei nº 13/2019, de 12 de Fevereiro;

(2.º). julgar eficaz a comunicação, efectuada pela apelada à apelante, por esta recebida em 19 de Janeiro de 2023, de oposição à renovação do contrato de arrendamento, celebrado entre ambas no dia 3 de Julho de 2014, e com efeitos extintivos para o dia 31 de Julho de 2023;

(3.º). confirmar, na sua totalidade, o saneador-sentença recorrido.

As custas do recurso são encargo (total) da apelante, que decaiu (artigo 607º, nº 6, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 11 de Março de 2025
Luís Filipe Brites Lameiras
Alexandra de Castro Rocha
Rute Alexandra da Silva Sabino Lopes