TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS POR ESTRADA - TIR
INCUMPRIMENTO
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
DOLO
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE
ÓNUS DA PROVA
Sumário

Sumário [1]:
I – Cabe ao Tribunal da Relação apreciar a matéria de facto de cuja apreciação o/a Recorrente discorde e impugne (fazendo sobre ela uma nova apreciação, um novo julgamento, após verificar a fundamentação do Tribunal a quo, os elementos e argumentos apresentados no recurso e a sua própria percepção perante a totalidade da prova produzida), continuando a ter presentes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova.
II - O Tribunal da Relação só deve alterar a matéria de facto se - após audição da prova gravada compulsada com a restante prova produzida - concluir, com a necessária segurança, no sentido de que esta aponta em direcção diversa e delimita uma conclusão diferente da que vingou na 1ª Instância, usando um critério de razoabilidade ou de aceitabilidade dessa decisão (que conduz a confirmar a decisão recorrida, não apenas quando for indiscutível que é correcta, mas também quando se reconheça situar-se numa margem de razoabilidade ou de aceitabilidade).
III - Na Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR), encontra-se regulada a responsabilidade pelo incumprimento ou pelo cumprimento defeituoso do contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, estabelecendo os artigos 17.º e 23.º, n.º 5, uma limitação da responsabilização do transportador, o que constitui um desvio relativamente ao princípio da reparação integral dos danos (que constitui um princípio de direito comum em matéria de responsabilidade contratual)
______________________________________
[1] Da responsabilidade do Relator, em conformidade com o n.º 7 do artigo 663.º do Código de Processo Civil.

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa[2]

Relatório
G, S.A. instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra A T, LDA., peticionando a condenação da Ré no pagamento “a título de indemnização, o montante total de €47.620,57 (quarenta e sete mil, seiscentos e vinte euros e cinquenta e sete cêntimos), acrescido dos juros de mora vincendos, até efetivo e integral pagamento”.

A Ré veio, em sede de Contestação, invocar a sua ilegitimidade processual, alegando que a Autora contratou com ALSB, Lda., sendo certo que a demandada e esta sociedade pertencem ao mesmo grupo, o qual se encontra organizado geograficamente por áreas de competência, em função do que requereu o chamamento a título principal de ALSB, Lda., e a sua absolvição da instância.
Por despacho de 07 de Fevereiro de 2022, foi admitida a intervenção principal provocada de ALSB, LDA..

Citada, a interveniente apresentou Contestação, alegando, em síntese, que:
- Não tem qualquer responsabilidade pelo atraso na entrega das mercadorias;
- Mesmo que fosse responsável por esse atraso, sempre se aplicariam os limites indemnizatórios previstos imperativamente na Convenção de Varsóvia; e que,
- Apesar de não assumir qualquer responsabilidade, procedeu à devolução do valor de €181,68 que a Autora havia pago pela prestação do serviço em causa.

A Autora veio a 07 de Julho de 2022 requerer a desistência da instância quanto à A T, Limitada, a qual veio – por Sentença Homologatória - a ser absolvida da instância.

Os autos prosseguiram contra a ALSB, Lda..
**
Foi realizada Audiência Prévia, foi o processo saneado, fixado o valor da acção e enumerados os temas da prova.
Realizada a Audiência de Julgamento veio a ser proferida Sentença, dela constando a seguinte parte decisória:
“De acordo com o supra exposto e de harmonia com o disposto nos preceitos legais supracitados, julgo a acção improcedente por não provada, em consequência do que:
A) Absolvo a ré, ALSB, LDA., do pedido;
B) Condeno a autora, G, S.A., no pagamento das custas do processo.
Valor da acção: o fixado no despacho saneador”.

É desta Sentença que vem pela Autora interposto Recurso de Apelação, tendo apresentado Alegações, onde lavrou as seguintes Conclusões:
“1. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pelo Tribunal a quo, que absolveu a ora Recorrida de todo o peticionado.
2. A Recorrente intentou a presente ação na sequência do incumprimento de um contrato de transporte de mercadorias por parte da Recorrida, através do qual esta se constituiu, entre outras, na obrigação de assegurar o transporte e a entrega de amostras de um lote de medicamento da Recorrente até ao local de destino por esta indicado, no prazo máximo de 2 dias úteis após o seu envio.
3. O referido incumprimento verificou-se por virtude do atraso, por parte da Recorrida, na entrega das referidas amostras de medicamento nas instalações do laboratório da "x (Malta) Ltd", localizadas em Malta, no referido prazo de 2 dias úteis a contar do dia 21 de dezembro de 2020, ou seja, até ao dia 23 de dezembro de 2020.
4. As referidas amostras de medicamento chegaram a Malta no dia 23 de dezembro de 2020, mas a sua entrega no destinatário não se verificou no prazo acordado entre as partes, sendo que as mesmas acabaram apenas por ser entregues no dia 4 de janeiro de 2021 - 9 dias úteis após o envio daquelas amostras.
5. O pedido de entrega daquelas amostras, no prazo acordado, resultou da necessidade da Recorrente obter, do referido destinatário, um certificado de conformidade daquele medicamento (a ser emitido no prazo de 7 dias a contar da receção das referidas amostras de medicamentos), de modo a poder cumprir com as encomendas promovidas junto desta por parte de entidades adjudicantes, as quais tinham de ser obrigatoriamente satisfeitas até ao dia 31 de dezembro de 2020, sob pena de perda desses negócios.
6. Com efeito, em resultado do atraso verificado, a Recorrente não recebeu em tempo o aludido certificado de conformidade e, consequentemente, não pôde satisfazer as referidas encomendas, tendo sofrido prejuízos económicos, no montante de €47.047,26 discriminado da seguinte forma:
(i) Valor da margem de lucro perdida pela Recorrente por referência às encomendas de medicamento promovidas pelas aludidas entidades adjudicantes e que não puderam ser satisfeitas em virtude do atraso verificado na entrega das amostras de medicamento, correspondente a €46.865,58; e
 (ii) Valor que a Recorrente pagou à Recorrida pelo serviço de envio, transporte e entrega das amostras de medicamento, correspondente a €181,68, sendo que sobre este valor a Recorrida emitiu a nota de crédito n.º 32110073 em 16 de abril de 2021.
7. Perante o exposto, a Recorrente pediu a condenação da Recorrida no pagamento de €47.620,57, a título de indemnização por responsabilidade civil contratual, acrescido de juros de mora vincendos, até efetivo e integral pagamento.
8. A Recorrida contestou o pedido, alegando, no essencial, não ter qualquer responsabilidade pelo atraso, e que ainda que fosse responsável por tal atraso, sempre se aplicariam os "limites indemnizatórios previstos imperativamente na Convenção de Varsóvia".
9. O Tribunal a quo decidiu, em suma, que:
i. Estamos perante um contrato de transporte de mercadorias internacional multimodal, pois o mesmo foi realizado através da utilização de 2 meios de transporte distintos (aéreo e rodoviário) e teve por objeto o transporte de mercadorias de Portugal até Malta;
ii. Na ausência de um regime jurídico que regule este tipo de contratos, existindo apenas convenções internacionais que regulam individualmente os diferentes meios de transporte individualmente considerados, a melhor solução para o regime aplicável a este tipo de contratos é encará-los como contratos mistos e recorrer à teoria da combinação para aplicar o regime próprio unimodal de transporte a cada um dos meios de transporte utilizados, designadamente nas situações em que se verifica um incumprimento contratual.
iii. A responsabilidade pelo incumprimento deve ser determinada segundo as regras do regime do meio de transporte onde ocorreu o incumprimento;
iv. No âmbito da relação contratual mantida entre as Partes foi acordado um prazo estimado de entrega de 3 dias úteis, pelo que sendo a data de envio da mercadoria a 21.12.2020, o prazo estimado de entrega terminaria a 24.12.2020. Considerando que a entrega apenas foi concretizada a 04.01.2021, verificou-se um atraso nesta;
v. Uma vez que a mercadoria chegou por via aérea a Malta a 23.12.2024 e que apenas foi entregue por via rodoviária no destino (também em Malta) a 04.01.2021, o atraso verificado na entrega da mercadoria ocorreu no transporte rodoviário a realizar em Malta e não no transporte aéreo, pelo que são aplicáveis a esse atraso as regras previstas para o transporte internacional de mercadorias rodoviário, previstas na Convenção relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR);
vi. Nos termos do Artigo 17º, n.º 1, da CMR, o transportador é responsável pela demora da entrega (quando esse atraso se verifica no transporte rodoviário realizado por si ou através de outrem), sendo que estamos perante uma presunção de responsabilidade e não perante uma mera presunção de culpa, não sendo necessária a prova de qualquer um dos requisitos da responsabilidade contratual do transportador pela demora na execução da prestação;
vii. No caso dos autos, verificou-se uma situação de demora no cumprimento da obrigação de entrega da mercadoria, nos termos do Artigo 19º da CMR, uma vez que foi largamente ultrapassado o prazo que era razoável atribuir ao transporte diligente contratado;
viii. A Recorrida não logrou provar que o atraso verificado foi devido a circunstâncias que consubstanciam causas de exclusão da responsabilidade presumida do transportador, nos termos conjugados dos Artigos 17º, n.º 2 e 18º, n.º 1, da CMR, pelo que se encontra apurada a responsabilidade da Recorrida pela demora no cumprimento da prestação por si assumida.
ix. Atenta a factualidade provada, demonstrou-se que a Recorrente sofreu um prejuízo no exercício de 2020, de €46.865,58, relativo à perda da margem de lucro perdida por referência às encomendas não realizadas do Medicamento nesse ano, em virtude do atraso ocorrido na entrega das respetivas amostras no laboratório em Malta onde a sua conformidade, necessária ao fornecimento do mesmo, ia ser certificada.
x. Relativamente ao atraso na entrega da mercadoria, o Artigo 23º, n.º 5, da CMR estabelece um limite indemnizatório que corresponde ao preço do transporte, equivalente ao preço total pago pelo carregador/expedidor ao transportador em virtude do contrato de transporte celebrado.
xi. O Artigo 29.º, n.º 1, da CMR prevê uma exceção à aplicação dos limites indemnizatórios estabelecidos no Artigo 23º, n.º 5, do mesmo diploma, estabelecendo que "O transportador não tem o direito de aproveitar-se das disposições do presente capítulo que excluem ou limitam a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo seu ou falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo.".
xii. Para efeitos de interpretação e aplicação do Artigo 29.º, n.º 1, da CMR, a negligência (incluindo a grosseira) não é equiparada ao dolo, pelo que apenas uma atuação dolosa do transportador implica que o mesmo não se possa prevalecer das disposições que excluem ou limitam a sua responsabilidade;
xiii. Atenta a factualidade provada nos autos, da mesma não resulta qualquer ocorrência de onde resulte uma conduta dolosa por parte da Recorrida que tenha provocado a demora na entrega da encomenda;
xiv. Não se encontra verificada a exceção a que alude o Artigo 29.º, n.º 1, da CMR, devendo, por
isso, ser aplicado o limite indemnizatório estabelecido no Artigo 23.º n.º 5, da CMR, que no caso vertente corresponde a €181,68;
xv. Considerando que a Recorrida emitiu a favor da Recorrente uma nota de crédito no valor de €181,68, a obrigação de indemnização constituída na esfera da Recorrida encontra-se voluntariamente cumprida, julgando, consequentemente, a ação improcedente.
10. A Recorrente não contesta a maior parte das conclusões arquitetadas pelo Tribunal a quo na sentença em crise, sendo que considera que apenas merecem censura as conclusões vertidas nos pontos (xi), (xii), (xiii) e (xiv) supra, as quais determinaram a improcedência do pedido.
11. Com efeito, como se demonstrou nas presentes alegações de recurso, o Tribunal a quo não cuidou de fazer uma correta seleção da matéria de facto, no que concerne ao acordo das partes relativamente a um prazo máximo de entrega do medicamento, nas instalações da X em Malta, no prazo máximo de dois dias úteis, e procedeu a uma incorreta aplicação do direito, naquilo que se refere à classificação da conduta da Recorrida, o que sempre ditaria o afastamento do limite indemnizatório estabelecido no Artigo 23.º, n.º 5 da CMR, concluindo-se, naturalmente, pela procedência da ação.
No que respeita à decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto,
12. O Tribunal a quo considerou erradamente como não provado no ponto b) dos factos não provados, que “No âmbito da relação contratual referida em 3., foi acordado entre as partes um prazo máximo de entrega de 3 dias úteis”.
13. A este respeito, releva o facto de à Recorrente terem sido adjudicadas diversas propostas por si apresentadas para o fornecimento do medicamento “Valganciclovir Autovitas”, a vários hospitais do SNS, durante o ano de 2020 - propostas estas cujos contratos não previam o fornecimento do medicamento após o dia 31.12.2020.
14. No final de 2020, houve uma rotura de stock do referido medicamento nos centros hospitalares, o que ditou que a Recorrente mandasse vir com urgência, da sua fábrica na Índia, através de avião, o medicamento, para fazer face à carência dos centros hospitalares que junto de si haviam colocado encomendas.
15. O medicamento foi recebido em 17 de dezembro de 2020 em Portugal, e devia ser entregue nas instalações laboratoriais da X Malta no dia 23 de dezembro de 2020 – isto porque, sendo este um medicamento proveniente de uma localização fora da União Europeia, um dos lotes deveria passar por uma testagem, para emissão de um certificado, mediante o qual seria o medicamente libertado para distribuição das encomendas pendentes junto dos centros hospitalares.
16. Sobre a testagem do lote e emissão do respetivo certificado, esclareça-se que ficou provado que a empresa contratada para este teste e libertação é a APL Malta Swift, e que este procedimento, por parte da X, costuma demorar entre 15 a 20 dias, mas que a Recorrente, perante a urgência do fornecimento deste medicamento, contactou a referida empresa, que lhe garantiu que libertaria o produto num prazo de 7 dias (cfr. facto provado n.º 41 da Sentença).
17. Isto resulta dos depoimentos das testemunhas AL e CF, que com clareza, objetividade e certeza se pronunciaram sobre a factualidade supra exposta, sendo claras as circunstâncias que envolviam a urgência na entrega do produto em Malta.
18. A matéria acima referida encontra correspondência na fundamentação da própria sentença recorrida: “os prazos limite de entrega das encomendas, no caso 31 de dezembro de 2020, eram imperativos e que esultavam de regras atinentes à contratação pública não podendo o fornecimento de medicamentos adjudicados num determinado ano transitarem para o ano seguinte, tal como evidenciado nos pontos 40. e 44. dos factos provados, incompatíveis com esta indicação”, e, bem assim, nos n.ºs 40, 41 e 44 dos factos provados da sentença.
19. Deste modo, impunha-se a contratação de um serviço de transporte, para o lote do medicamento Valaciclovir a ser testado, que garantisse a entrega do mesmo, nas instalações da XL, em Malta, no prazo máximo de 2 dias úteis, a contar da data de envio, 21 de dezembro de 2020, ou seja, até 23 de dezembro de 2020.
20. Perante tal urgência, foram promovidas as devidas diligências junto da Recorrida, a fim de garantir que o lote do medicamento chegava às instalações da X, em Malta, no prazo máximo de 2 dias úteis - só assim conseguindo a libertação do medicamento até ao dia 31.12.2020.
21. Concretamente sobre o contacto com a Recorrida e o acordo num prazo máximo de entrega de dois dias úteis para o serviço contratado com vista ao transporte do lote de medicamentos a ser testado em Malta, foi relevante o depoimento da testemunha SS.
22. Esta testemunha esclareceu, de forma assertiva e clara, que contactou diretamente a Recorrida, por via telefónica, com o intuito de aferir qual o serviço mais urgente de que aquela dispunha para entregar o lote em Malta, sendo que a mesma lhe garantiu que o serviço “Door-todoor
permitiria a entrega em dois dias úteis – sendo esta uma condição essencial e que orientou a decisão de contratar por parte da Recorrente.
23. Tendo sido expressamente confirmado, pela Recorrida, que o prazo para aquele serviço (leia-se, door-to-door) era de dois dias úteis, a testemunha instruiu a operadora logística (ID Logistics), a qual tratava da recolha de amostras, para, através da plataforma da A, e em nome da G (através dos dados de login), contratar aquele serviço (door-to-door), agendando o pedido de recolha do lote com a Recorrida, para, posteriormente, seguir para entrega em Malta.
24. Este prazo era condição essencial do contrato celebrado entre a Recorrente e a Recorrida, motivo pelo qual houve um contacto direto, por via telefónica, a fim de verificar qual a modalidade de transporte mais urgente de que dispunham para a localização da fábrica da X em Malta. A indicação da Recorrida foi no sentido de a modalidade door-to-door comportar um prazo de entrega de dois dias úteis, pelo que a Recorrente aceitou contratar com a Recorrida nesses termos.
25. Se assim não fosse, a Recorrente sempre teria contratado o transporte do lote de medicamentos, com destino final em Malta, com outra empresa.
26. O supra exposto é ainda confirmado pelo Doc. n.º 1 junto com a PI, correspondente ao tracking da encomenda, que confirma que o lote do medicamento chegou a Malta na madrugada de 23.12.2020.
27. Este acordo entre as Partes, de entrega do lote nas instalações da X, em Malta, no prazo máximo de dois dias úteis, não foi posto em causa nem abalado pelo depoimento das testemunhas GF e RD, porquanto os mesmos não participaram no processo de contratação do concreto serviço, e não responderam com a devida certeza e clareza relativamente à (in)existência de uma contratação de transporte personalizada, ou de um concreto Acordo das Partes quanto a um prazo máximo de entrega, correspondente a dois dias úteis.
28. Posto isto, é inequívoco, e resulta, de resto, de toda a prova produzida e das circunstâncias que envolveram toda a situação objeto dos autos – contrariamente ao que conclui o Tribunal a quo – que a Recorrente e a Recorrida acordaram um prazo máximo de entrega do lote, em Malta, num prazo máximo de dois dias úteis.
29. Deste modo, o facto considerado não provado b) sempre deverá passar para o elenco dos factos dados como provados (com o novo n.º 45), com uma ligeira alteração, nos seguintes termos:
No âmbito da relação contratual referida em 3., foi acordado entre as partes um prazo máximo de entrega de 2 dias úteis”.
No que respeita à decisão do douto Tribunal recorrido sobre a matéria de direito,
30. A Recorrente entende que, a conduta da Recorrida deve ser classificada como dolosa e, no mínimo, como grosseiramente negligente, sendo que para efeitos de interpretação e aplicação do Artigo 29.º, n.º 1, da CMR, a negligência (leve ou grosseira) é equiparada ao dolo, sendo esta a posição da maioria da jurisprudência portuguesa, encontrando-se verificada a exceção a que alude tal disposição legal, não devendo, por conseguinte, ser aplicado no caso vertente o limite indemnizatório estabelecido no Artigo 23.º n.º 5, da CMR.
31. Consequentemente, devia a Recorrida ter disso condenada no pagamento à Recorrente do valor correspondente ao prejuízo por esta sofrido em consequência do incumprimento verificado, no montante de €46.865,58.
32. O Tribunal recorrido considerou, e bem, que no caso dos autos verificou-se uma situação de demora no cumprimento da obrigação de entrega da mercadoria, nos termos do Artigo 19º da CMR, porquanto foi largamente ultrapassado o prazo que era razoável atribuir ao transporte diligente contratado, considerando ainda que a Recorrida não logrou provar que o atraso verificado foi devido a circunstâncias que consubstanciam causas de exclusão da responsabilidade presumida do transportador, nos termos conjugados dos Artigos 17º, n.º 2 e 18º, n.º 1, da CMR, pelo que se encontra apurada a responsabilidade da Recorrida pela demora no cumprimento da prestação por si assumida, nos termos do Artigo 17º, n.º 1, da CMR.
33. Mais considerou o Tribunal recorrido, igualmente bem, ter ficado demostrado que a Recorrente sofreu um prejuízo de €46.865,58, em virtude do atraso ocorrido na entrega da mercadoria no laboratório em Malta onde a conformidade do Medicamento, necessária ao fornecimento do mesmo pela Recorrente, ia ser certificada.
34. Não obstante, o Tribunal recorrido entendeu ser de aplicar ao caso dos autos o limite indemnizatório estabelecido no Artigo 23.º n.º 5, da CMR, correspondente a €181,68, por ter considerado não se verificar a exceção a que alude o Artigo 29.º, n.º 1, da CMR. No entender do Tribunal recorrido, a referida exceção não se verifica porque, para efeitos de interpretação e aplicação do Artigo 29.º, n.º 1, da CMR, a negligência (incluindo a grosseira) não é equiparada ao dolo e, como não se demonstrou a verificação de uma atuação dolosa por parte da Recorrida, o limite indemnizatório estabelecido no Artigo 23.º n.º 5, da CMR deve operar.
35. Acontece que, não só resulta demostrado nos autos uma conduta dolosa por parte da Recorrida, como o entendimento proposto pelo Tribunal recorrido a respeito da interpretação e aplicação do Artigo 29.º, n.º 1, da CMR, e que determinou a improcedência do pedido, não é sufragado pela maioria da Jurisprudência portuguesa, a qual tem vindo a sustentar, consistentemente, entendimento contrário, no sentido de que, para efeitos de interpretação e aplicação daquela disposição legal, a negligência (leve ou grosseira) é equiparada ao dolo, sendo esta a tese predominantemente seguida no Supremo Tribunal de Justiça.
36. Foi dado como provado que a mercadoria chegou ao aeroporto de Malta, por via aérea, no dia 23.12.2020, às 08.37h, onde devia ter sido transportada entre o aeroporto e o destinatário através de transporte rodoviário (Cfr. Factos provados 11, 24 e 26).
37. Foi dado como provado que desde o dia 23.12.2020, às 08.37h, até ao dia 04.01.2021, às 12.20h (momento em que a mercadoria saiu do aeroporto para ser entregue ao destinatário cerca de 40 minutos depois), a Recorrida não fez sequer qualquer tentativa ou diligência no sentido de concretizar o transporte da mercadoria até ao seu destinatário, inexistindo qualquer registo de uma tal tentativa ou diligência (Cfr. facto provado 26 e facto não provado d)).
38. A Recorrida sabia que a entrega da mercadoria transportada devia ser feita em 2 dias úteis a contar do seu envio e que, para concretizar a entrega contratada, teria de tomar medidas para o efeito, designadamente assegurar a disponibilização de um veículo e de um motorista para o transporte rodoviário da mercadoria do aeroporto de Malta até ao destinatário (Cfr. facto provado 11).
39. Considerando que a entrega da mercadoria transportada constituía, justamente, a obrigação principal da Recorrida no âmbito do contrato objeto dos autos e, bem assim, que, por definição, sem a tomada das necessárias medidas para o efeito a entrega contratada nunca poderia ser realizada e muito menos no prazo acordado, resulta do princípio da normalidade e da regra geral da experiência, que a Recorrida tinha conhecimento de que a sua omissão era ilícita e que determinaria o não cumprimento da obrigação de entrega no prazo acordado, o que nos convoca para a figura do dolo necessário, o qual deveria ter sido dado como verificado, por presunção judicial, nos termos do Artigo 349º do Código Civil.
40. Na certeza de que o dolo pode ser provado por presunção judicial. Nesse sentido, é ampla e clara a jurisprudência portuguesa, sendo de referir, a título de exemplo, o Acórdão da Relação de Évora, de 27-09-2011, proferido no processo 761/10.9PAOLH.E1, disponível em www.dgsi.pt.
41. Conclui-se, assim, contrariamente ao sustentado pelo Tribunal recorrido, que resulta inequivocamente dos autos a verificação de uma conduta dolosa por parte da Recorrida que provocou a demora na entrega da encomenda.
42. O que acima se disse é suficiente para determinar a aplicação ao caso vertente da exceção prevista no Artigo 29.º, n.º 1, da CMR, afastando-se assim o limite indemnizatório estabelecido no Artigo 23.º n.º 5, da CMR. Pelo que a Recorrida devia ter sido condenada no pedido.
43. Mas mesmo que assim não se entenda, o que por mero dever de patrocínio se admite, a conduta da Recorrida teria sempre de ser classificada como grosseiramente negligente.
44. Como é bom de ver, estar 9 dias úteis sem tomar uma qualquer medida para concretizar o transporte contratado, determinando o atraso verificado, consubstancia uma conduta absolutamente inenarrável, extraordinariamente censurável, que qualquer profissional de transportes, colocado na concreta situação em que a Recorrida se encontrava, jamais cometeria.
45. A negligência grosseira corresponde à falta grave e indesculpável, ou seja, à chamada culpa grave que consiste na omissão dos deveres de cuidado que só uma pessoa especialmente negligente, descuidada e incauta deixaria de observar, o que se verificou no caso vertente.
46. Pelo que, contrariamente ao sustentado pelo Tribunal recorrido na sentença em crise, ficou inquestionavelmente demostrado nos autos um “elevado grau de negligência” por parte da Recorrida
47. Acresce que não foi apresentada qualquer justificação para a omissão verificada. Mais: A Recorrida nem sequer sabe explicar por que razão o transporte da mercadoria em apreço demorou 9 dias úteis a ser concretizado, quando ficou demostrado que bastariam cerca de 40 minutos para o fazer (Cfr. Factos provados 26, 29, 31, 32, 34 e facto não provado d)).
48. Note-se que, nestes casos, a total ausência de explicação quanto ao atraso verificado deve ser equiparada a negligência indesculpável ou grosseira.
49. Com efeito, se o transportador não cumprir o dever de esclarecimento mínimo sobre o que se passou com a mercadoria, leia-se, quanto ao caso vertente, o que se passou para que a entrega contratada tenha sido promovida 9 dias úteis após o prazo acordado, tem de se concluir, por presunção judicial, que a Recorrida não cumpriu minimamente os padrões de exigência exigíveis, não podendo beneficiar do limite à sua responsabilidade (Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 27.10.2022, proferido no âmbito do processo 5366/21.6T8LSB.L1-2 e disponível em www.dgsi.pt).
50. Ora, considerando que, como acima se antecipou e infra se detalhará, para efeitos de interpretação e aplicação do Artigo 29.º, n.º 1, da CMR, a negligência (leve ou grosseira) é equiparada ao dolo e demostrada que está a conduta grosseiramente negligente da Recorrida, verifica-se, no caso dos autos, a exceção a que alude a referida disposição legal, não sendo aplicável o limite indemnizatório estabelecido no Artigo 23.º n.º 5, da CMR.
51. Contrariamente ao sustentado pelo Tribunal recorrido, para efeitos de interpretação e aplicação do Artigo 29.º, n.º 1, da CMR, a negligência (leve ou grosseira) é equiparada ao dolo sendo este o entendimento da jurisprudência maioritária. A título de exemplo vejam-se os seguintes acórdãos disponíveis em www.dgsi.pt: Acórdão do STJ de 14.06.2011, proferido no âmbito do processo 437/05.9TBANG.C1.S1; Acórdão do STJ de 05.06.2012, proferido no âmbito do processo 3303/05.4TBVIS.C2.S1; Acórdão do STJ de 15.05.2013, proferido no âmbito do processo 9268/07.0TBMAI.P1.S1; Acórdão do STJ de 12.10.2017, proferido no âmbito do processo 4858/12.2TBMAI.P1.S11; Acórdão da Relação do Porto de 26.06.2014, proferido no âmbito do processo 5403/11.2TBMAI.P1; Acórdão da Relação de Coimbra de 14.04.2015, proferido no âmbito do processo 266/11.0TBLMG.C1; Acórdão da Relação de Lisboa de 27.06.2019; Acórdão da Relação de Guimarães de 14.11.2019, proferido no âmbito do processo 6471/17.9T8BRG.G1; Acórdão da Relação de Guimarães de 10.03.2022, proferido no âmbito do processo 568/19.8T8PFR.G1; Acórdão da Relação do Porto de 22.02.2022, proferido no âmbito do processo 2462/16.5T8MTS.P1.
52. E não se diga, como faz o Tribunal recorrido, que o Artigo 29.º, n.º 1, da CMR deve ser interpretado à luz do Artigo 21º do DL n.º 239/2003, que rege os transportes nacionais. Sobre esta matéria tem vindo a jurisprudência nacional a pronunciar-se amplamente, sendo de referir, como exemplo, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27.10.2022, proferido no âmbito do processo 5366/21.6T8LSB.L1-2 e disponível em www.dgsi.pt, onde se decidiu o seguinte:“O regime jurídico português do transporte nacional, do DL 293/2003, de 04/10, que apenas prevê, no art.º 21, a exclusão da limitação em caso do dolo, não impede a equiparação da culpa grave ao dolo para efeitos do art.º 29 da CMR porque esta “não manda, em nenhum momento, considerar especificamente o regime do contrato de transporte rodoviário interno de mercadorias: a remissão para a lex fori deve entender-se em termos amplos, como sendo uma remissão para os diversos sistemas jurídicos nacionais no seu conjunto”.
53. Caso se viesse a concluir pela não aplicação da CMR ao caso dos autos, o que se admite por mero dever de patrocínio, ainda assim a Recorrida tinha de ser condenada no pedido.
54. Neste sentido, compulsada a factualidade dada como provada na douta sentença recorrida, é clara a conclusão pelo preenchimento dos pressupostos da denominada responsabilidade civil contratual da Recorrida, nos termos do artigo 798.º e seguintes do CC, recaindo sobre esta a obrigação de indemnizar a Recorrente pelos prejuízos decorrentes do incumprimento contratual verificado.
55. Dispõe o artigo 798.º do CC que “o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”, sendo pressupostos da responsabilidade civil contratual: (i) o facto ilícito, (ii) a culpa do devedor (que se presume, nos termos do artigo 799.º, n.º 1 do CC), (iii) o dano, e por último, (iv) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
56. Quanto ao facto ilícito, e nas palavras de ANTUNES VARELA, trata-se da “relação de desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado”, ou seja, na falta de cumprimento (ou cumprimento defeituoso) das obrigações previstas na relação contratual
estabelecida entre as Partes, tal como se veio a verificar no caso sub judice. Vejamos,
57. Decorre da Lei civil que o devedor tem de realizar a prestação a que está adstrito em respeito dos três princípios que enformam o cumprimento das obrigações, quais sejam, o da pontualidade, boa-fé e integralidade.
58. Em particular quanto ao princípio da pontualidade, dispõe o Artigo 406.º, n.º 1 do CC que “o contrato deve ser pontualmente cumprido…”.
59. In casu, resulta dos factos dados como provados, e do que deveria ter sido dado como provado, que a Recorrida, enquanto devedora da prestação de entrega do Medicamento no prazo máximo de 2 (dois) dias úteis após o seu envio (23.12.2020), violou o aludido princípio da pontualidade, na medida em que só a efetuou ao 9.º dia útil após o seu envio (04.01.2021), ou seja, 6 (seis) dias úteis após o termo do prazo máximo acordado entre as Partes.
60. Deste modo, e apesar de a Recorrida ter procedido à entrega do Medicamento, a prestação em apreço foi efetuada de forma inexata por ter sido em tempo distinto do acordado, o que consubstancia uma situação de cumprimento defeituoso da obrigação à qual se encontrava adstrita.
61. Neste sentido, atente-se ainda no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26.11.2019, disponível em www.dgsi.pt, citando BAPTISTA MACHADO e BRANDÃO PROENÇA: “Temos naturalmente presente a  formulação de que «por cumprimento inexato deve entender-se todo aquele em que a prestação efectuada não tem os requisitos idóneos a fazê-la coincidir com o conteúdo do programa obrigacional, tal como este resulta do contrato e do princípio geral da correção e da boa-fé.» E bem assim a de que o cumprimento defeituoso «resulta da violação dos princípios fundamentais que regem o cumprimento, ou seja, a boa-fé, a pontualidade e a integralidade, traduzindo-se na execução de prestações qualitativas e quantitativas diversas das estipuladas ou na inobservância dos chamados deveres laterais.»”.
62. Resulta assim dos factos apurados que o atraso verificado na entrega do Medicamento imputável à Recorrida preenche o primeiro pressuposto para a efetivação da responsabilidade civil contratual.
63. O mesmo se dirá quanto ao pressuposto da culpa, que muito embora aqui se presuma nos termos do Artigo 799.º, n.º 1 do CC, encontra-se também preenchido, na medida em que a Recorrida, enquanto entidade que se dedica, entre outras, à atividade de transporte de mercadorias, não atuou com a diligência necessária e exigível no âmbito da atividade exercida e da natureza das obrigações contratualmente assumidas, violando de forma clara e reiterada o critério do bom pai de família consagrado no Artigo 487.º, n.º 2 do CC.
64. No que concerne aos danos causados à Recorrente, no valor de €46.865,58, os mesmos foram dados como provados (Cfr. Facto provado 43).
65. Por último, encontra-se também verificado o pressuposto do nexo de causalidade entre o facto e o dano, na medida em que os danos supra aludidos são consequência direta, normal, típica e inevitável do umprimento defeituoso verificado e imputável à Recorrida, os quais não se teriam verificado caso a Recorrida tivesse atuado com a diligência necessária e exigível no âmbito da atividade exercida e da natureza das obrigações assumidas perante a Recorrente (Cfr. Factos provados 40 a 46).
66. Termos em que deve ser revogada a sentença recorrida, sendo esta substituída por decisão que conde a Recorrida no pedido.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO,
a) DEVE O PRESENTE RECURSO SER ADMITIDO E, EM CONSEQUÊNCIA,
b) SEREM CONSIDERADOS COMO PROVADOS O FACTO b. DA MATÉRIA DADA COMO NÃO PROVADA; E
c) SER REVOGADA A DECISÃO DO TRIBUNAL A QUO QUE JULGA TOTALMENTE IMPROCEDENTE O PEDIDO DA RECORRENTE, DEVENDO A MESMA SER SUBSTITUIDA POR UMA OUTRA QUE DETERMINE A CONDENAÇÃO DA RECORRIDA NO PEDIDO, COM AS DEMAIS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS”.

A Recorrida apresentou Contra-Alegações nas quais refere que:
- a sentença recorrida não padece de qualquer vício;
- o facto não provado b) foi correctamente apreciado;
- o Facto 2 refere que “A autora e as sociedades que operam sob a designação comercial A mantêm, pelo menos, desde 2010, uma relação contratual, através da qual a ré se constitui, entre outras, na obrigação de assegurar o transporte e a entrega de amostras de medicamentos da autora até aos locais de destino por esta indicados, em Portugal e/ou no estrangeiro no prazo estimado de 3 dias úteis” ;
- o Facto 3 refere que “No contexto da referida relação contratual, a ré enviou, em 21 de dezembro de 2020, a pedido da Autora, um lote do medicamento “Valganciclovir Aurovitas 450 mg comprimidos revistos por película” (doravante “Medicamento”), com vista à sua entrega nas instalações do laboratório da “X (Malta) Ltd.”, localizado em Malta”
- a alegação de que a Autora perante a urgência em fazer chegar os ditos medicamentes ao destinatário, em Malta, promoveu diligências junto da Recorrida a fim de garantir que os mesmos chegavam às instalações do laboratório X no prazo de 2 dias úteis, não resultou comprovada, mas apenas que tudo se passou como habitual (Facto 2);
-  a caracterização deste transporte em particular – e, de resto, à semelhança de inúmeros outros transportes adjudicados à Recorrida e às sociedades que operam sob a denominação comercial A (cfr. ponto 3 dos factos provados) – é detalhadamente descrita nos Factos 4 a 11;
- os diferentes modelos de transporte oferecidos pela Recorrida foram tema de ampla discussão no julgamento, designadamente em termos do seu nível de eficiência, como resulta do depoimento da testemunha GF (que explicou o tipo de serviços prestados, mais personalizados/diferenciados ou mais standarizados);
- os diferentes modelos de transporte oferecidos pela Recorrida diferem em função do grau de personalização que lhes é inerente (num transporte dito standard, a mercadoria expedida é transportada em conjunto com a demais mercadoria e pelos canais habituais, naturalmente com recurso a subcontratados – no caso concreto pela UPS, cfr. ponto 15. dos factos provados; noutras modalidades disponibilizadas pela Recorrida denominadas foguetes e courrier-on-board, o transporte é acompanhado em permanência por um profissional dedicado, o que era conhecido pela Recorrente que, inclusivamente, já os havia sido adjudicado noutras ocasiões para o mesmo destino em Malta – Factos 13 e 14);
- os serviços personalizados têm um acrescido nível de eficácia, sendo que, para o destino em apreço, Malta, por referência aos vários envios realizados pela autora através deste serviço, praticamente todos eles foram entregues dentro do prazo de entrega estimado (Facto 12);
- no caso dos autos, a UPS, subcontratada da Recorrida que procedeu ao transporte aéreo e terrestre da mercadoria em Malta, com entrega nas instalações do laboratório da “X (Malta) Ltd.” (Facto 15), informou que, tentada a entrega em 24/12/2020, aquele se encontrava encerrado e que só reabriria no dia útil seguinte (cfr. informação do rastreamento de envio (traking) inserto no Facto 26), sendo que a entrega só ocorreu no dia 04/01/2021 (Facto 25), ou seja, no primeiro dia útil do ano de 2021;
- a modalidade de transporte dedicada (mais cara, mas mais adequada a situações críticas), poderia ter alterado este desfecho, como resulta do depoimento da testemunha RD, sendo certo que a Recorrente era conhecedora desta diversidade de serviços (Facto 13), sendo certo, em todo o caso, que o prazo de entrega é meramente estimativo;
- ao contrário do que a Recorrente parece fazer crer nas suas alegações e conclusões de recurso, “A testemunha SS, que contratou o serviço junto da ré, não se refere a acordo expresso quanto a este prazo. A testemunha CF, remete no seu depoimento para os prazos de que dispunha e o que terá sido acordado entre SS e a ré neste pressuposto, não confirmando, pois, que tenha sido estabelecido o aludido prazo. AL e GM não referiram ter conhecimento de um tal acordo. Por seu turno, as testemunhas GF e RD, referiram que a ré trabalha com prazos de entrega estimados e que os mesmos, variam, tendo em conta o destino, o tipo de serviço contratado e até a mercadoria transportada, bem como estão sujeitos a imprevistos, como problemas com o avião ou avarias”;
- quanto à matéria de Direito, insurge-se a Recorrente quanto ao julgamento do Tribunal relativamente ao grau de culpa da Recorrida no atraso da efectiva entrega da mercadoria para além do prazo estimado, considerando-a uma actuação dolosa, o que determinaria não ser de aplicar in casu o limite indemnizatório estabelecido no artigo 29.º, n.º 1 da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, aprovada em Genebra, em 19 de Maio de 1956 (CRM.), mas sem qualquer razão;
- a questão é indissociável da respeitante às várias modalidades de transporte oferecidas pela Recorrida e, concretamente, em termos de disponibilização de um colaborador dedicado que acompanha o transporte com o propósito de intervir caso ocorram constrangimentos ao normal curso do transporte;
- não é controvertido o caminho percorrido pelo Tribunal a quo nos seguintes aspectos no contexto da fundamentação de direito:
- o contrato de transporte teve por objeto uma mercadoria através do recurso a dois meios de transporte distintos, aéreo e rodoviário, os quais integram uma prestação única, que consiste na deslocação de mercadorias das instalações da autora até ao local de destino e a subsequente entrega das mesmas ao destinatário, sendo subsumível nos denominados contratos de transporte de mercadorias multimodais, contratos estes atípicos;
- aos constrangimentos que determinaram o atraso de entrega da mercadoria, por reporte aos três dias estimados ocorreu no contexto do transporte terrestre, são aplicáveis as disposições da CMR;
- o artigo 17.º, n.º 1, da CRM estabelece uma presunção de responsabilidade do transportador – e não de culpa;
- dispõe o n.º 2 da citada norma do artigo 17.º da CMR que “O transportador fica desobrigado desta responsabilidade se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar”;
- pese embora não tenha sido convencionada a duração efectiva do transporte, a entrega nove dias após a expedição ultrapassa o tempo razoável e subsume o conceito de demora na entrega a que alude o artigo 19.º da CRM, responsabilizando a transportadora;
- o artigo 23.º n.º 5 da CMR estabelece um limite indemnizatório que corresponde ao preço do transporte;
- este limite pode ser afastado através de uma declaração de juro especial nos termos do artigo 26.º da CRM, o que não se verificou in casu;
- o artigo 29.º da CMR dispõe que: “1. O transportador não tem o direito de aproveitar-se das disposições do presente capítulo que excluem ou limitam a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo seu ou falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo. 2. Sucede mesmo se o dolo ou a falta for acto dos agentes do transportador ou de quaisquer outras pessoas a cujos serviços aquele recorre para a execução do transporte, quando esses agentes ou essas outras pessoas actuarem no exercicio das suas funções. Neste caso, esses agentes ou essas outras pessoas também não têm o direito de aproveitar- se, quanto à sua responsabilidade pessoal, das disposições do presente capítulo indicadas no parágrafo 1.”;
- a recorrente insurge-se relativamente à interpretação levada a cabo pelo Tribunal a quo da citada norma do artigo 29.º da CRM, no sentido de que, não existindo equiparação da negligência leve ou grosseira no âmbito do direito nacional aplicável (cfr. artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro), apenas uma actuação dolosa do transportador impediria que este se pudesse prevalecer das disposições da CMR que limitam a responsabilidade;
- a Recorrida adere à interpretação adoptada pelo Tribunal a quo nesta matéria, sendo escusado aqui discorrer a fundamentação melhor expressa na D. sentença recorrida, que se subscreve;
 - ainda que se entendesse que a negligência fosse equiparada ao dolo, para efeitos de interpretação da norma do artigo 29.º, n.º 1, da CRM, a matéria provada não aponta para qualquer comportamento culposo da Recorrida, ainda que negligente (Factos 12 a 14);
- a Recorrente tinha um serviço crítico e, por forma a garantir o fornecimento em questão no exercício de 2020, providenciou que os medicamentos tivessem sido transportados da Índia para Portugal por via aérea, ao invés do usual transporte marítimo, sendo que, os tempos relativos ao transporte da amostragem do medicamento para o laboratório em Malta e para a emissão do certificado eram curtíssimos e nada podia correr mal (valendo a pena ouvir o depoimento da testemunha AL);
-  estávamos em Dezembro de 2020, no decorrer da pandemia Covid19 e em época natalícia, tendo os dias 25/12/2020 e 01/01/2021 coincidido com sextas-feiras, resultando das regras da experiência comum que se tratam de alturas do ano altamente susceptíveis à existência de constrangimentos funcionais em muitos sectores e, particularmente, nos transportes;
- perante este circunstancialismo, os prazos apertados e a responsabilidade inerente, a Recorrente, ao invés de optar por adjudicar um serviço de transporte dedicado, adjudicou um serviço standard (sendo certo que o serviço standard tem um nível de eficácia elevado para o destino Malta - Facto 12), sabendo que a Recorrida disponibilizava outras modalidades de transporte e entrega, com acompanhamento permanente do transporte por profissional dedicado (Facto 13), embora mais caros (Facto 14);
 - a ter sido contratado um transporte dedicado, perante qualquer tipo de dificuldade no momento da entrega da mercadoria, teria contactado telefonicamente a pessoa responsável pela recepção indicada pelo cliente ou promovido o que de necessário se apresentasse para o efeito (o que não sucede no circuito standard);
 - caso a Recorrente tivesse adjudicado um serviço dedicado e ocorresse um atraso como o que ocorreu, sem que tivessem sido tomadas as medidas de recurso com vista à efectiva entrega atempada da mercadoria, então sim, não haveria como justificar o afastamento da culpa grosseira do transportador.
- bem andou o Tribunal a quo ao interpretar a norma do artigo 29.º da CRM, no sentido não existir equiparação da negligência leve ou grosseira no âmbito do direito nacional aplicável, donde apenas uma actuação dolosa do transportador impediria que este se pudesse prevalecer das disposições da CMR que limitam a responsabilidade;
- ainda que assim não se entendesse, não resulta da factualidade provada um grau de culpa, ainda que negligente, que justificasse o afastamento dos limites da indemnização fixados pela CRM;
 - a circunstância de a Recorrente alegar ter demonstrado um prejuízo de € 46 865,58, em virtude do atraso ocorrido na entrega da mercadoria no laboratório em Malta, esbarra na circunstância de não ter sido isso que resultou provado (cfr. Facto 43, que não corresponde a um efectivo prejuízo, pois a Recorrente ficou com o lote de medicamentos em causa na sua posse, não os tendo inutilizado);
- num juízo logico-racional, não haveria razões para não trazer aos autos a evidência do prejuízo efectivo – fosse esse o caso – resultante da destruição dos medicamentos sem terem sido comercializados;
- note-se, aliás, o cuidado com a Recorrente demonstrou a sua margem neste mesmo medicamento, sem o demonstrar para a perda definitiva de chance de negócio relativamente a este lote de medicamentos;
- o ónus da prova relativamente ao prejuízo e ao nexo de causalidade adequada entre o facto gerador da responsabilidade e o prejuízo, cabia à Recorrente, sendo que a margem esperada no negócio em apreço não constitui um prejuízo efectivo, porquanto a Recorrente não ficou impedida de comercializar aqueles medicamentos ao mesmo ou a outros clientes;
- em suma, a Recorrente não provou – e em rigor nem alegou – o dano;
- a decisão recorrida não padece, pois, dos vícios apontados pela Recorrente.
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Questões a Decidir
São as Conclusões da Recorrente que, nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, delimitam objectivamente a esfera de actuação do Tribunal ad quem (exercendo uma função semelhante à do pedido na Petição Inicial, como refere, Abrantes Geraldes[3]), sendo certo que, tal limitação, já não abarca o que concerne às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), aqui se incluindo qualificação jurídica e/ou a apreciação de questões de conhecimento oficioso.
In casu, e na decorrência das Conclusões da Recorrente, importará verificar:
I – se alguma da factualidade apurada se mostra adequadamente colocada em causa e, na afirmativa, se o Facto Não Provado b) deve passar a estar elencado nos Factos Provados;
II – se a acção se mostra correctamente decidida em função da factualidade apurada, nomeadamente quanto à classificação da conduta da Recorrida em termos de ditar o afastamento do limite indemnizatório estabelecido no artigo 23.º, n.º 5, da CMR.

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Corridos que se mostram os Vistos, cumpre decidir.
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Fundamentação de Facto
O Tribunal considerou provada a seguinte factualidade[4]:
 
1. A Autora é uma sociedade comercial que tem por objecto o exercício, entre outras, da actividade de fabrico, comercialização, importação e exportação de medicamentos.
2. A Autora e as sociedades que operam sob a designação comercial A mantêm, pelo menos, desde 2010, uma relação contratual, através da qual a Ré se constitui, entre outras, na obrigação de assegurar o transporte e a entrega de amostras de medicamentos da Autora até aos locais de destino por esta indicados, em Portugal e/ou no estrangeiro no prazo estimado de 3 dias úteis.
3. No contexto da referida relação contratual, a Ré enviou, em 21 de Dezembro de 2020, a pedido da Autora, um lote do medicamento “Valganciclovir Aurovitas 450 mg comprimidos revistos por película” (doravante “Medicamento”), com vista à sua entrega nas instalações do laboratório da “X (Malta) Ltd.”, localizado em Malta.
4. Para o serviço de transporte e entrega mencionado em 3., a Autora contratou o serviço oferecido pela Ré, denominado de Air Standard, ou AIR STD que é caracterizado por um transporte aéreo de mercadoria.
5. Concretamente, a mercadoria é recolhida pela Ré no expedidor do cliente.
6. É transportada através de transporte terrestre rodoviário para um armazém da Ré.
7. No qual é medida e pesada (auditada);
8. Sendo depois transportada para o aeroporto onde é carregada em contentores e embarcada em avião.
9. A mercadoria é transportada por via aérea para Colónia, na Alemanha, onde é efectuada a separação de todas as cargas provenientes da Europa e resto do mundo,
10. Seguindo posteriormente para os respectivos destinos através de transporte aéreo.
11. No destino final, a mercadoria é transportada entre o aeroporto e o destinatário através de transporte rodoviário.
12. Os serviços Air Standard prestados pela Ré têm um nível de eficácia elevado, sendo que, para o destino em apreço, Malta, por referência aos vários envios realizados pela Autora através deste serviço, praticamente todos eles foram entregues dentro do prazo de entrega estimado.
13. À data da contratação do referido serviço, a Autora sabia que a Ré disponibilizava outras modalidades de transporte e entrega, designadamente, os serviços denominados foguetes ou os courrier-on-board, com a possibilidade de acompanhamento permanente do transporte por profissional dedicado.
14. Os serviços referidos em 13., têm preços superiores aos praticados nos transportes standard, sendo também os mais adequados para os envios mais críticos, em termos da importância da mercadoria transportada e da urgência pretendida, tendo a Autora, adjudicado à Ré, noutras ocasiões os referidos serviços, para o mesmo destino em Malta.
15. A Ré, para a execução do contrato referido em 3., recorreu aos serviços da empresa UPS – United Parcel Services, que incluía o transporte aéreo da encomenda até Malta e o transporte terrestre da mesma, em Malta, com entrega nas instalações da destinatária.
16. A encomenda foi recolhida no expedidor da Autora I, na Azambuja, pelas 15:00h do dia 21.12.2021.
17. Pelas 17h a mercadoria chegou ao armazém da Ré, onde foi auditada.
18. Tendo sido de seguida transportada, por via terrestre, para o Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa.
19. Seguiu através de transporte aéreo, pelas 19h15m para o aeroporto Francisco Sá Carneiro no Porto.
20. E, após, para Colónia, na Alemanha, através de transporte aéreo, onde chegou pelas 00h20m.
21. Em Colónia foi efectuada a separação das cargas.
22. Seguindo a mercadoria, através de transporte aéreo, para Merignac, em França.
23. Nesse dia, 22.12.2021, o avião não seguiu para o seu destino, em Malta.
24. A saída só ocorreu em 23.12.2021, onde chegou no mesmo dia 23.12.2021.
25. A mercadoria foi entregue, por via terrestre, através de transporte rodoviário, nas instalações da “X (Malta) Ltd.”, no dia 04.01.2022;
26. Relativamente aos pormenores e timings respeitantes à execução do transporte e entrega do Medicamento, consta a seguinte informação do Rastreamento do Envio (tracking):




27. Assim que tomou conhecimento da informação constante do tracking a 24.12.2024, a Autora entrou em contacto com a destinatária do envio do Medicamento (“X (Malta) Ltd.”), tendo esta transmitido à autora que as instalações do seu laboratório (local de entrega) encontravam-se abertas no dia 24 de Dezembro de 2020 e que não tinha conhecimento de qualquer tentativa de entrega do Medicamento nessa data;
28. A Autora enviou à Ré, em 30.12.2020, um e-mail, com o seguinte teor:
“(…) Boa tarde,
Preciso saber com urgência o ponto de situação do envio ES93482OE.



Sei que houve uma tentativa de entrega no dia 24/12 sem sucesso, mas já passaram 3 dias úteis e ainda não entregaram a encomenda.
É urgente e precisamos que seja entregue ainda hoje. Podem verificar pf?
Obrigada
Com os Melhores Cumprimentos
With my Best Regards
SS
Administrative Assistant | Technical, Quality & Regulatory Affairs Department (…)”
29. Em resposta ao email referido em 28., a Ré enviou à Autora, a 31.12.2020, um e-mail com o seguinte teor:
“(…) Bom dia SS,
No dia de hoje falei com um colega seu sobre o envio em assunto, a quem transmitimos a informação de que até ao momento não dispomos de feedback dos nossos parceiros, no entanto, estamos a tomar todas as diligencias necessárias para que o envio seja entregue o mais breve possível.
Mais uma vez, as nossas desculpas pelos transtornos causados. (…)
JC
Serviço Apoio ao Cliente (…)”
30. No dia 31.12.2020, a Autora enviou um e-mail à ré, com o seguinte teor:
“(…) Exmos. Senhores,
A G, S.A. vem por este meio participar a seguinte ocorrência com os vossos serviços.
No passado dia 21/12 foi enviado um pacote com carta de porte 6072W14408 para Malta. Até ao dia de hoje (31/12) a encomenda não foi rececionada no destino.
Incluímos em baixo o registo do tracking existente no vosso site:


Apesar dos constrangimentos sentidos no dia 22/12 com condições atmosféricas severas, a entrega não concluída no dia 24 suscitou dúvidas junto do nosso parceiro, que nos garantiu que as suas instalações estariam abertas para rececionar a encomenda.
Adicionalmente a este ponto, constatamos que passaram 3 dias úteis após a primeira tentativa de entrega desta encomenda sem que tenha sido tentada outra entrega.
Ao longo desta semana foi impossível obter justificações aceitáveis da vossa parte para o atraso deste envio.
Tendo isto em conta, requeremos a abertura de um processo de investigação para averiguar os motivos que levaram a este atraso. Pedimos também que partilhem um relatório de investigação com as respetivas medidas corretivas e preventivas aplicáveis.
Finalmente, reforçamos que a G, S.A., titular de autorizações de comercialização de medicamentos, tem no seu portfolio medicamentos fulcrais para o funcionamento do Sistema Nacional de Saúde (SNS), pelo que estas ocorrências põem em risco a Saúde Pública e o acesso atempado à população de medicamentos essenciais.
Agradecemos uma resposta da vossa parte com comentários assim que possível.
Muito obrigado
Com os Melhores Cumprimentos
Kind Regards
GM
Technical & Quality Affairs Junior Officer | Technical, Quality & Regulatory Affairs Department”.
31. Em resposta ao email mencionado em 30., a Ré enviou, em 04.01.2021, um e-mail à Autora com o seguinte teor:
“(…) Bom dia Sr. G,
Desde já as nossas desculpas por esta situação, no entanto devido à época festiva e alterações nas medidas de prevenção à pandemia, existiu bastantes atrasos que poderá ter prejudicado esta entrega.
Vamos questionar os nossos parceiros de destino qual o ponto de situação do seu envio e daremos feedback no imediato.
ES93482OE
Muito obrigada!
Com os melhores cumprimentos (…)
MF
Supervisora Serviço Apoio ao Cliente (…)”
32. Em 06.01.2021, a Ré enviou novo email à Autora, com o seguinte teor:
“(…) Boa tarde G,
Espero que se encontre bem.
Antes de mais lamentar todo o incómodo causado neste transporte.
Agradecer também a sua colaboração em todo este processo, que nos permitirá certamente melhorar de futuro.
Colaboramos e realizamos várias vezes este serviço, com um grau de eficácia muito elevado cumprindo na sua maioria os timings a que nos propomos.
No entanto, não escondemos que pela altura do ano a que foi realizado o serviço, o mesmo pode sofrer alguns impactos pelos mais diversos motivos (meteorológicos, excesso de carga, mecânicos, etc..) condicionando a respetiva entrega.
Apesar de até à data termos tido uma intervenção bem sucedida deste serviço com a G nas mais diversas alturas do ano.
Em suma, a mercadoria saiu de Portugal no dia 21/12.
O atraso verificado pelo que podemos apurar, constatou-se em alguns momentos desta operação.
Numa primeira fase a mercadoria teve de ficar retida em França, por condições climatéricas adversas e o avião não poder circular.
Adicionalmente, a falta de ligações e o excesso de carga verificado que é muito propicio nesta altura do ano, promovido também pela pandemia em vigor originou um ligeiro atraso na chegada da mercadoria a Malta impossibilitando que a mesma fosse para distribuição logo no dia 23/12.
No dia 24/12 pela informação transmitida do nosso parceiro, obtivemos a informação que a empresa de destino estaria fechada nesta altura devido à época festiva. No entanto também nos foi esclarecido por vós que o mesmo não se verificava, no entanto, a empresa aberta 24h.
Por via de alguma comunicação menos elaborada entre agente e destinatário local, compreendeu-se que a entrega só deveria ser retomada no primeiro dia útil do ano onde supostamente a empresa estaria em funcionamento.
Conforme o indicado anteriormente, estamos conscientes da importância de fazer chegar ao destino a vossa mercadoria com a maior brevidade possível.
Reforço que colaboramos convosco e com várias entidades em que o seu conteúdo é imprescindível que assim o seja.
Mais uma vez lamentamos esta situação e iremos tomar medidas internamente que procurem minimizar estes impactos.
Agradecer novamente toda a colaboração demonstrada neste processo.
Muito obrigada!
Com os melhores cumprimentos, (…)
MF
Supervisora Serviço Apoio ao Cliente (…)”.
33. Por carta datada de 21 de Janeiro de 2021, a Autora comunicou à A, Lda. o seguinte:
“(…) Carta Registada.com A/R (enviada antecipadamente por e-mail
Assunto: Cumprimento defeituoso na entrega do lote do medicamento "Volganciclovir Aurevitas 450 mg comprimidos revestidos por pelicula"/ Envio N. 6072W14408
Exmos. Senhores,
Na sequência do atraso na entrega do lote do medicamento "Valganciclovir Aurovitas 450 mg comprimidos revestidos por película" no local de destino indicado pela G (Envio N.0 6072W14408), vimos pela presente informar V. Exas. do seguinte:
Entre a G e a A encontra-se estabelecida uma relação contratual, nos termos da qual V. Exas. têm assegurado o transporte e a entrega de medicamentos enviados pela G até ao local de destino, no prazo máximo de 3 (três) dias úteis após a sua receção pela A
Tal como é do V/ conhecimento, o prazo supra indicado para a entrega dos referidos produtos consubstancia uma condição essencial para a prestação dos serviços em causa, atenta a natureza da atividade profissional exercida pela G, designadamente de fabrico, comercialização, importação e exportação de medicamentos.
Em particular, e tal como tivemos oportunidade de frisar a V. Exas. através da reclamação apresentada por e-mail em 31 de dezembro de 2020, a G, enquanto titular de autorizações de comercialização de medicamentos, tem no seu portfolio medicamentos fulcrais para o funcionamento do Sistema Nacional de Saúde — tal como é o caso do medicamento "Valganciclovir Aurovitas 450 mg comprimidos revestidos por película cujo atraso no transporte e na entrega no local de destino coloca, desde logo, em risco a saúde pública e o acesso atempado à população de medicamentos essenciais, para além dos avultados prejuízos monetários que causa diretamente à G, os quais cuidaremos de referir infra.
No caso ora em crise, a A rececionou o lote do medicamento remetido pela G em 21 de dezembro de 2020, tendo aquele sido entregue no local de destino, em Malta, apenas no dia 4 de janeiro de 2021, ou seja, 9 (nove) dias úteis após a rececão do lote do medicamento pela A em vez dos referidos 3 dias úteis contratualmente estabelecidos (Cfr. Tracking do Envio N.0 6072W14408, disponível em www.a--.pt. que se junta em Anexo).
De acordo com a resposta de V. Exas. à N/ reclamação, de 6 de janeiro de 2021, na qual a A assumiu o não cumprimento do timing proposto para a entrega da encomenda (3 dias úteis após a sua receção), o atraso terá ocorrido, num primeiro momento, em virtude das "condições climatéricas adversas 'i que se verificavam em França e "pela pandemia" que terá causado um "ligeiro atraso na chegada da mercadoria a Malta impossibilitando que a mesma fosse para distribuição logo no dia 23/12. "
Sem prejuízo, certo é que o lote do medicamento apenas foi entregue no seu local de destino em 4 de janeiro de 2021, sendo certo que, tal como demonstra o Tracking do Envio N.0 6072 W 14408, nenhuma outra tentativa de entrega foi realizada após 24 de dezembro de 2020 até à data da efetiva entrega, apesar de resultar do próprio Tracking, em 24.12,2020, que "The receiving business was closed and delivery has been rescheduled for the next business day", ou seja, que iria ser promovida uma nova tentativa de entrega no dia útil seguinte (28 de dezembro 2020), o que não se verificou,
A propósito da omissão de uma nova tentativa de entrega no período acima indicado, a A refere na resposta à N/ reclamação apresentada em 31 de dezembro de 2020 que, “Por via de alguma comunicação menos elaborada entre agente e destinatário local, compreendeu-se que a entrega só deveria ser retomada no primeiro dia útil do ano onde supostamente a empresa estaria em funcionamento.”
Cumpre-nos, em primeiro lugar, salientar a este respeito, que a informação prestada pelo V/ subcontratante local acerca do funcionamento do destinatário da entrega é falsa, na medida em que este garantiu a presença permanente de, pelo menos, 1 (um) funcionário no local de destino durante o período compreendido entre 24 de dezembro de 2020 e a data da efetiva entrega, o qual se encontrava habilitado para receber o lote do medicamento.
Em qualquer caso, tal como V. Exas compreenderão, a eventual responsabilidade do V/ subcontratante local pelo atraso na entrega não consubstancia uma causa de exclusão da responsabilidade direta da A perante a G, por referência ao referido facto — leia-se, o atraso na entrega — que constitui, nos termos da Lei, um cumprimento defeituoso imputável à A no âmbito da relação contratual firmada entre as Partes,
Por fim, salientamos que, na mesma reclamação apresentada pela G a V. Exas, foi por aquela requerido um relatório de investigação com as respetivas medidas corretivas e preventivas aplicadas pela A perante o incumprimento ora em apreço, o qual, até à presente data, não foi remetido à G.
Tal como supra adiantado, o atraso na entrega do lote do medicamento em causa acarretou avultados prejuízos monetários à G, os quais ascendem ao montante de € 57.774,67 (cinquenta e sete mil, setecentos e setenta e quatro euros e sessenta e sete cêntimos), que corresponde à soma:
i (i) Do valor da margem perdida pela G por referência aos medicamentos objeto de encomendas que haviam sido promovidas junto desta até 21 de dezembro de 2020 e que foram canceladas em virtude do cumprimento defeituoso verificado elou da caducidade dos contratos celebrados pela G nos termos da legislação aplicável à contratação pública, ao abrigo do qual foram os medicamentos encomendados; e
ii (ii) Do valor que a G pagou à A pelo serviço de transporte e entrega em causa (€ 181,68).

Assim sendo, solicitamos que V, Exas. procedam ao pagamento do montante indicado no parágrafo anterior, a título de prejuízos diretos decorrentes do cumprimento defeituoso verificado, através de transferência bancária para a conta da G junto do Banco Português de Investimento, com o IBAN PT50…7, no prazo máximo de 30 (trinta) dias a contar da receção da presente carta.
Caso V. Exas, não procedam ao pagamento do valor em dívida no prazo acima indicado, sentir-nos-emos livres para desenvolver, de imediato, todas as diligências necessárias å salvaguarda dos nossos legítimos interesses e direitos.
Sem outro assunto de momento, apresentamos os N/melhores cumprimentos,
Atentamente,
(LA, CEO)
Anexo 2 (dois) documentos.”
34. Em 15.04.2021, a A enviou um e-mail à autora com o seguinte conteúdo:
“(…) Exmos. Senhores
Na sequência do vosso email, que agradecemos, comunicamos ter procedido à reabertura do processo de reclamação com vista ao apuramento de mais informações sobre o atraso verificado na entrega da vossa encomenda enviada sob a carta de porte 6072W14408.
Do novo inquérito realizado aos serviços responsáveis pela entrega em Malta recebemos as informações que, em síntese, confirmam o que já fora transmitido. Ou seja, o envio sofreu duas paragens:
1. O atraso de um dia, a 22 dezembro, na escala no aeroporto de Paris, por motivos meteorológicos – o avião não foi autorizado a descolar;
2. Na manhã do dia seguinte, já com o envio em Malta, os serviços responsáveis pela entrega (UPS Malta) confirmam terem obtido a informação às 9:55 que o destinatário estaria encerrado, devendo a encomenda ficar em armazém para ser entregue no primeiro dia útil de janeiro. O que foi cumprido, às 13:03 de segunda-feira, dia 4/1.
Apesar dos nossos serviços air standard terem um nível de eficácia elevado, superior a 97%, os tempos de trânsito são estimados. Para este destino em concreto, dos vários envios realizados pela G através deste nosso serviço, confirma-se a eficácia do serviço, com praticamente todos os envios a serem entregues dentro do prazo de entrega estimado.
Ainda assim, a A disponibiliza outros serviços com maior fiabilidade, e até com possibilidade de acompanhamento permanente por profissional dedicado. Os Foguetes, para os envios por via terrestre em carrinhas dedicadas, e, os Courier-On-Board, por via aérea, são dois tipos de serviço que correspondem a essa tipologia de transportes mais fiáveis e com possibilidade de monitorização permanente, porventura mais adequados aos vossos envios mais críticos. Este último tipo de serviço (COB), de resto, já foi utilizado pela G para o mesmo destino em Malta, no mês passado.
Gostaríamos de salientar que, atendendo à criticidade dos envios em causa, será recomendável a contratação autónoma de seguros que assegurem os riscos que não são cobertos pelos transportes e até porventura riscos de prejuízos decorrentes.
Queremos ainda comunicar-vos que, compreendemos e lamentamos a situação relatada, e, apesar do atraso verificado não configurar por lei a obrigatoriedade da devolução do preço do transporte, vamos creditar o montante total do transporte à G.
Ficamos ao dispor,
Muito obrigada!
Com os melhores cumprimentos (…)
FC
Director Serviço Apoio ao Cliente (…)”.
35. A Ré emitiu a favor da Autora a nota de crédito n.º 32110073 de 16.04.2021, no valor de 181,68 € com a descrição “carga de porte E934820E” “data 2020-12-21” “Expedidor ID Logistics Azambuja, PT” “Destinatário X (Malta) Ltd 3000 Malta, Malta” “Qtd 1” “Vol Peso 5 vols 13.776 Kg (v)” “Serviço Export Air Door-to-Door”.
36. A Autora, enquanto titular de autorizações de comercialização de medicamentos, tem no seu portfólio medicamentos fulcrais para o funcionamento do Sistema Nacional de Saúde – tal como é o caso do Medicamento dos autos.
37. Foram adjudicadas à Autora diversas propostas por si apresentadas para o fornecimento do Medicamento a vários hospitais do Sistema Nacional de Saúde durante o ano de 2020.
38. Nomeadamente, à Autora foi adjudicada a proposta para o fornecimento de 41.280 (quarenta e uma mil e duzentas e oitenta) unidades do Medicamento aos “SPMS – Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, EPE” durante o ano de 2020 no âmbito do procedimento n.º P259-2020-019.
39. Os fornecimentos dos medicamentos adjudicados a que se refere 37., foram sendo realizados pela Autora durante o ano de 2020, em função das encomendas promovidas pelas respectivas entidades adjudicantes.
40. O pedido de envio do lote do Medicamento efetuado pela Autora junto da Ré, em 21 de Dezembro de 2020, teve por base a necessidade de aquela obter o certificado de conformidade legalmente exigível à comercialização do novo lote do Medicamento em Portugal e assim realizar as últimas encomendas promovidas pelas respectivas entidades adjudicantes dentro do prazo previsto, ou seja, até 31 de Dezembro de 2020;
41. A destinatária do envio do lote do Medicamento, responsável pela análise e emissão do referido certificado de conformidade, comprometeu-se perante a autora a emiti-lo no prazo de sete dias a contar da recepção do Medicamento.
42. Na sequência da entrega a que se reporta 25. dos factos provados, o certificado de conformidade veio a ser emitido pela destinatária do envio do Medicamento a 12.01.2021.
43. A margem de lucro que a Autora obteria, em 2020, pelo fornecimento do Medicamento ao abrigo dos contratos de fornecimento celebrados era de 46 865,58 €.
44. Os contratos celebrados pela Autora referidos em 37. e 38. não previam o fornecimento do Medicamento após o dia 31 de Dezembro de 2020, pelo que a Autora não efectuou os fornecimentos do Medicamento, por falta de certificado de conformidade nessa data.
***
O Tribunal considerou Não Provados os seguintes factos com relevância para a decisão proferida:
a) No âmbito das relações contratuais entre as partes, melhor identificada em 2. dos factos provados, a Ré obrigou-se a prestar os referidos serviços, no prazo máximo de 3 dias úteis.
b) No âmbito da relação contratual referida em 3., foi acordado entre as partes um prazo máximo de entrega de 3 dias úteis;
c) No dia 22.11.2020, na escala no aeroporto em Paris, por motivos meteorológicos, o avião não foi autorizado a descolar;
d) No dia 24.12.2021 foi efectuada uma tentativa de entrega da mercadoria, por via terrestre, encontrando-se a empresa de destino encerrada para férias de Natal e Ano Novo, pelo que a encomenda só podia ser entregue no primeiro dia útil de janeiro;
e) A destinatária do envio do lote do Medicamento, responsável pela análise e emissão do referido certificado de conformidade, comprometeu-se perante a Autora a emiti-lo até ao dia 31 de dezembro de 2020, sob condição de o Medicamento lhe ser entregue no dia 24 de dezembro de 2020;
f) Parte da margem de lucro perdida pela Autora (11.635,46 € dos 46.865,58 €) poderia eventualmente ser recuperada pela autora, caso a ré tivesse procedido à entrega do Medicamento na data que a própria veio a agendar para a segunda tentativa (28.12.2020).
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Apreciação da Matéria de Facto
O artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil dispõe que o Tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em conformidade com a convicção que haja firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a lei exigir para a existência ou prova do facto jurídico qualquer formalidade especial, caso em que esta não pode ser dispensada.
Neste momento processual releva ainda o artigo 662.º do Código de Processo Civil, que começa por afirmar que a “Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”[5].
Como, aliás, assinala o Conselheiro Tomé Gomes no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07 de Setembro de 2017 (Processo n.º 959/09.2TVLSB.L1.S1) é “hoje jurisprudência corrente, mormente do STJ, que a reapreciação, por parte do tribunal da 2.ª instância, da decisão de facto impugnada não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa”.

Quando uma parte em sede de recurso pretenda impugnar a matéria de facto[6], nos termos do artigo 640.º, n.º 1, impõe-se-lhe o ónus de:
1) indicar (motivando) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (sintetizando ainda nas conclusões) – alínea a);
2) especificar os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada (indicando as concretas passagens relevantes – n.º 2, alíneas a) e b)), que impunham decisão diversa quanto a cada um daqueles factos, propondo a decisão alternativa quanto a cada um deles – n.º 1, alíneas b) e c).

Está aqui em causa, como sublinha com pertinência Abrantes Geraldes, o “princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”[7], sempre temperado pela necessária proporcionalidade e razoabilidade[8], sendo que, basicamente, o essencial que tem de estar reunido é “a definição do objecto da impugnação (que se satisfaz seguramente com a clara enunciação dos pontos de facto em causa), com a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova indicados e explicitados e com a assunção clara do resultado pretendido)”[9].
Como pano de fundo da apreciação a fazer dos factos que estejam em causa, também a circunstância de não se proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação “não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.)” (Acórdãos da Relação de Guimarães de 15 de Dezembro de 2016, Processo n.º 86/14.0T8AMR.G1-Maria João Matos[10] e da Relação de Lisboa de 26 de Setembro de 2019, Processo n.º 144/15.4T8MTJ.L1-2 - Carlos Castelo Branco).
Assim, caberá ao Tribunal da Relação apreciar a matéria de facto de cuja apreciação o/a Recorrente discorde e impugne (fazendo sobre ela uma nova apreciação, um novo julgamento, após verificar a fundamentação do Tribunal a quo, os elementos e argumentos apresentados no recurso e a sua própria percepção perante a totalidade da prova produzida), continuando a ter presentes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e que “o julgamento humano se guia por padrões de probabilidade e não de certeza absoluta”, pelo que “o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados.
Por outras palavras, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando o mesmo, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitam uma conclusão diferente daquela que vingou na 1ª Instância[11] (sublinhado e carregado nossos).
Ana Luísa Geraldes sublinha mesmo que, em “caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte»[12].
O Tribunal da Relação deve usar aquilo a que Miguel Teixeira de Sousa chama de “um critério de razoabilidade ou de aceitabilidade dessa decisão. Este critério conduz a confirmar a decisão recorrida, não apenas quando for indiscutível que a mesma é correcta, mas também quando aquela se situar numa margem de razoabilidade ou de aceitabilidade reconhecida pela Relação”[13].

Verificadas as Alegações e Conclusões da Recorrente verifica-se que esta coloca em causa apenas o facto não provado 2, pretendendo que passe a provado, nada havendo em termos formais que obste à sua apreciação.
Convém, antes de mais (e desde logo porque nenhuma da factualidade provada é impugnada), verificar o que o Tribunal a quo, de forma exaustiva, teve oportunidade de escrever na fundamentação da matéria de facto provada e não provada (desde logo porque essa apreciação concatena toda a prova produzida e faz ressaltar a análise crítica que se exigia):
“A convicção do Tribunal sobre a matéria de facto baseou-se na apreciação conjunta e crítica da prova produzida nos presentes autos, analisada à luz das regras da experiência comum.
Neste contexto, o Tribunal analisou a prova documental junta aos autos, considerando ainda os depoimentos das testemunhas AL, diretora de departamento hospitalar da autora, CF, gestor de abastecimento da autora, SS, assistente administrativa do departamento de qualidade da autora, GM, técnico de assuntos regulamentares da autora, GF, diretor de serviços/responsável unidade de negócios de uma das empresas pertencentes ao grupo a que pertence a sociedade ré, RD, supervisor ao serviço da ré e FC, responsável serviço de apoio ao cliente numa das empresas pertencentes ao grupo a que pertence a sociedade ré.
As testemunhas que tiveram, todas elas, algum contacto com a situação dos autos, umas na fase de contratação do serviço, outras na execução do serviço e, outras, na fase de reclamação, foram, no essencial, consentâneas entre si, tendo prestado depoimentos sérios, objectivos e espontâneos, pelo que os seus contributos foram, todos eles, considerados de igual forma na formação da convicção do Tribunal, de acordo com o âmbito do conhecimento que revelaram.
Neste contexto, a consideração, como provados dos factos constantes dos pontos 1. a 3. dos factos provados, funda-se na certidão permanente da autora e no acordo das partes quanto à sua verificação, bem como pela explicitação, por parte das GF e RD quanto a laborar a ré com prazos estimados de entrega, dado não ser possível prever todas as eventuais ocorrências do transporte.
No que tange à matéria dos pontos 4. a 11. e 15., 16. a 25. dos factos provados, o Tribunal fundou a sua convicção na análise da tradução do documento de rastreamento da encomenda de fls. 8 (documento junto com a petição inicial sob documento n.º 1), que refere o serviço “AIR N STD”, junto com o requerimento de 03.01.2024 sob ref.ª CITIUS 24734019, do documento de fls. 27 a 27 v (factura junta com a petição inicia sob documento n.º 11) e do documento de fls. 57 (documento n.º 2 junto com na contestação da A e invocado pela ALSB na sua contestação), aceites por ambas as partes, cujos elementos foram contextualizados pelas testemunhas GF e RD que deram nota das características do aludido serviço, também denominado de “door-to-door”, deram nota de que a alusão a “Air N Standard” no documento de tracking, fica a dever-se ao facto de a mercadoria ser objecto de uma recolha dedicada [isto é em que o motorista aguarda que as questões burocráticas associadas ai levantamento sejam tratadas] no distribuidor logístico, único aspecto em que diverge dos demais “air standard” e deram, conjugadamente nota do percurso da mercadoria desde a sua recolha no cliente até à sua entrega no destinatário, bem como da identidade do parceiro contratado para executar o transporte – UPS - nos termos refletidos nos aludidos factos provados. Também a FC (que só teve intervenção após a reclamação da autora) confirmou que o parceiro contratado pela ré para fazer o transporte foi a UPS.
Relativamente à matéria dos pontos 12. a 14., dos factos provados, o Tribunal fundou a sua convicção igualmente com base nos depoimentos das testemunhas GF e RD que deram da eficácia usual do serviço “Air Standard”, de que a autora, que já era cliente da ré, sabia da existência de outros serviços personalizados, e que já recorrera, sendo que os prazos de entrega são estimados, informação que é dada aos clientes. Deu, em particular, a testemunha GF nota da diferença de preço do serviço “air standard” – 180 € - e de um serviço personalizado – na ordem de valores de 1000 € ou superior.
A matéria do ponto 26. dos factos provados é expressão do documento de rastreamento da encomenda de fls. 8 (documento junto com a petição inicial sob documento n.º 1), traduzido no documento junto com o requerimento de 03.01.2024 sob ref.ª CITIUS 24734019, fundando-se no seu teor a convicção do Tribunal.
No que se refere à matéria do ponto 27. dos factos provados, o Tribunal fundou a sua convicção no depoimento da testemunha CF que explicou que, durante as suas férias de Natal, apercebendo-se pela troca de e-mails que as amostras do medicamento não tinham ainda sido entregues à destinatária, de forma a perceber a razão pela qual tal tinha sucedido, telefonou no dia 30 de Dezembro para a empresa destinatária em Malta, tendo lhe sido transmitido que, apesar de terem estado sempre abertos e à espera da encomenda, ninguém a tinha ido entrega. Deu nota de que o documento junto com o requerimento de 19.04.2024 (sob ref.ª CITIUS 25486293) foi emitido pela “X” a pedido da testemunha e mostra-se assinado pelo administrador desta sociedade que era. à data dos factos responsável pelas libertações de produtos.
A convicção do Tribunal relativamente à matéria dos pontos 28. a 35. dos factos provados funda-se na análise dos respectivos documentos de suporte de que são expressão e se mostram aceites por ambas as partes, juntos, respectivamente, a fls. 9 (documento n.º 2 da petição inicial), a fls. 10 (documento n.º 3 da petição inicial), a fls. 11-11v (documento n.º 4 da petição inicial), a fls. 12 (documento n.º 5 da petição inicial), a fls. 13-13v (documento n.º 6 da petição inicial), a fls. 28-29 (documento n.º 12 da petição inicial), a fls. 55 (documento n.º 1 da contestação da A invocado pela ALSB) e a fls. 57 (documento n.º 2 da contestação da A invocado pela ALSB).
No que se refere à matéria dos pontos 36. a 40. dos factos provados, a convicção do Tribunal assenta fundamentalmente no depoimento da testemunha AJ que, de forma muito detalhada deu nota da actividade da autora e, sendo a responsável pela contratação pública e colocação dos medicamentos nos hospitais, através do processamento das respetivas encomendas, explicou de uma clara e pormenorizada que foram adjudicadas à G diversas propostas por si apresentadas para o fornecimento do medicamento a vários hospitais do Sistema Nacional de Saúde durante o ano de 2020 – dando nota de que tal se mostra reflectido no documento junto com a petição inicial sob n.º 7 a fls. 14-15v (plataforma hospitalar da autora) - , e que esses contratos de fornecimento de medicamentos, feitos no âmbito da contratação pública, caducam no final do ano a que dizem respeito, no caso a 31 de dezembro de 2020, não sendo possível o fornecimento de medicamentos, ao abrigo daquele contrato, após essa data. Foi ainda explicado pela testemunha que, nos contratos celebrados pela autora, relativos ao fornecimento do medicamento dos autos em concreto, os mesmos tinham esse exacto regime, ou seja, esses medicamentos não podiam ser fornecidos às entidades hospitalares após o dia 31 de dezembro de 2020. O documento de fls. 16-24 (documento n.º 8 junto com a petição inicial) fornece ainda elementos acerca da contratação a que a testemunha se refere, militando no sentido da credibilidade do seu relato. A testemunha explicou ainda a necessidade de o lote do medicamento dos autos (produzido na India) ser submetido a análises por parte do laboratório em Malta e obter certificado de conformidade, por forma a poder ser fornecido.
No que se refere à matéria do ponto 41. dos factos provados, o Tribunal fundou a sua convicção no depoimento da testemunha CF que referiu ter sido ele a acordar expressamente, com a empresa responsável pela análise e emissão do referido certificado de conformidade, que o mesmo fosse emitido num prazo máximo de 7 dias [tendo a testemunha referido “uteis”], a contar da data de receção do medicamento, tendo ainda esclarecido que, tendo em conta o acordado com o laboratório, se o medicamento fosse recebido a 24 de Dezembro, a análise estaria efectuada a 31 de Dezembro [e não que tenha combinado com o Laboratório estas datas de entrega e análise], pelo que se entende que a testemunha se referia a sete dias e não a sete dias úteis, sendo certo que o certificado acabou por ser emitido pelo laboratório a 12.01.2021, sete dias após a recepção do medicamento a 04.01.2021 (conforme resulta dos pontos 25. e 42. dos factos provados). Também a testemunha GM refere ter-lhe sido transmitido que o prazo da análise seriam sete dias, o que milita no sentido da exposta convicção.
A convicção do Tribunal relativamente à matéria do ponto 42. dos factos provados resulta da análise do documento de fls. 25 (documento n.º 9 junto com a petição inicial) que não foi colocado em causa pela contraparte. As testemunhas AL e CF deram também nota de que a emissão do certificado foi levada a efeito em Janeiro de 2021.
No que se refere à matéria dos pontos 43. e 44. dos factos provados, o Tribunal fundou a sua convicção no depoimento da AL que suportou o seu relato nos documentos juntos com a petição inicial infra referidos e que contextualizou. Assim, a testemunha explicou o conteúdo do documento de fls. 26, junto como documento n.º 10 com a petição inicial, da sua autoria, com base no qual expôs, com recurso aos elementos desse documento extraídos da plataforma informática da autora, que tendo em conta a margem de lucro para cada unidade de medicamento e a quantidade de medicamentos que não puderam ser fornecidos após 31 de dezembro de 2020, a ré teve um prejuízo, relativamente à margem de lucro não realizada nesse ano de 2020, por impossibilidade de fornecer o medicamento até 31.12.2020 atenta a falta de certificado de conformidade, no montante de 46.865,58 €.
*
No que tange à matéria não provada, o Tribunal não logrou de formar quanto a ela a sua convicção, pelas razões que se expõem.
Relativamente aos factos constantes das alíneas a) e b) dos factos não provados, a prova produzida não permite sustentar que no âmbito das relações contratuais entre as partes, a ré se obrigou a efetuar o transporte e entrega de mercadorias no prazo máximo de 3 úteis ou que tal tenha sucedido no transporte dos autos. Com efeito, nenhum documento existe junto aos autos em que tal prazo se mostre reflectido.
A testemunha SS que contratou o serviço junto da ré, não se refere a acordo expresso quanto a este prazo. A testemunha CF, remete no seu depoimento para os prazos de que dispunha e o que terá sido acordado entre SS e a ré neste pressuposto, não confirmando, pois, que tenha sido estabelecido o aludido prazo. AL e GM não referiram ter conhecimento de um tal acordo. Por seu turno, as testemunhas GF e RD, referiram que a ré trabalha com prazos de entrega estimados e que os mesmos, variam, tendo em conta o destino, o tipo de serviço contratado e até a mercadoria transportada, bem como estão sujeitos a imprevistos, como problemas com o avião ou avarias.
Neste contexto probatório, não foi possível formar a convicção do Tribunal quanto à indicada matéria das alíneas a) e b) dos factos não provados.
No que tange ao facto constante da alínea c) dos factos não provados, não foi feita qualquer prova do alegado, que não resulta evidenciado no documento numerado como n.º 1 denominado de “Histórico de condições meteorológicas em 22 de dezembro de 2020 no Bordeaux-Mérignac Airport França”, junto com o requerimento de 03.01.2024 sob ref.ª CITIUS 24734019, não se afigurando que a indicação constante do documento de rastreamento da encomenda de fls. 8 (documento junto com a petição inicial sob documento n.º 1), cuja tradução se mostra junta com o requerimento de 03.01.2024 sob ref.ª CITIUS 24734019 seja suficiente para sustentar esta matéria até porque, como resulta desse documento, o avião terá circulado em 22.12.2020 entre França e Alemanha. Por outro lado, nenhuma testemunha soube explicar ou sustentar tal matéria, tanto por que o Tribunal não logrou de formar a sua convicção quanto à mesma.
No que diz respeito à matéria da alínea d) dos factos não provados, o Tribunal não a considerou provada tendo em conta que, pese embora do documento de rastreamento da encomenda de fls. 8 (documento junto com a petição inicial sob documento n.º 1), cuja tradução se mostra junta com o requerimento de 03.01.2024 sob ref.ª CITIUS 24734019, tal como resulta do ponto 26. dos factos provados, conste a indicação:


Tal indicação, como esclareceu a testemunha FC releva de um texto automático constante do sistema da UPS de tracking (rastreamento) da encomenda que não é redigido pelo motorista que apenas insere no sistema um código de textos pré-elaborados e que, portanto, não é esclarecedor quanto às circunstâncias em que terá sido não sucedida a entrega a 24.12.2024, sendo que nenhuma testemunha das ouvidas soube referir o que, em concreto, terá ocorrido, nem tal consta de qualquer outro elemento probatório, tendo partido do pressuposto dessa indicação, tanto as comunicações trocadas e constantes dos pontos 28. a 34. dos factos provados, como os depoimentos prestados em audiência. Acresce que, tal como consta do ponto 27. dos factos provados e pelas razões que em sede própria se aduziram quanto a esta questão e que ora se convocam, não se pode considerar assente que as instalações da X em Malta estivessem efectivamente encerradas a 24.12.2020. Por outro lado, da consulta do próprio documento de rastreamento da encomenda de fls. 8 (documento junto com a petição inicial sob documento n.º 1), cuja tradução se mostra junta com o requerimento de 03.01.2024 sob ref.ª CITIUS 24734019, não consta qualquer registo de que, no dia 24.12.2020, de que a encomenda tenha saído de Luga para Halfar [Halfar Industrial Estate B’Bugia, Malta, morada da X tal como resulta do documento junto com o requerimento de 19.04.2024 sob ref.ª CITIUS 25486293], para entrega.
No que tange ao facto constante da alínea e) dos factos não provados, apenas foi possível considerar provado o que consta do ponto 41. dos factos provados e não que tenham sido acordadas datas concretas de entrega e análise da amostra.
Relativamente ao facto constante da alínea f) dos factos não provados o Tribunal não formou a sua convicção porquanto, apesar de ter sido referido pela testemunha AL que eventualmente algumas entidades hospitalares aceitariam a realização das encomendas do medicamento até ao dia 7 de janeiro de 2021, a testemunha não demonstrou certeza nessa afirmação, tendo inclusive utilizado a expressão “eventualmente”, não tendo sido sequer alegado ou demonstrado por qualquer meio que entidades hospitalares efetivamente aceitariam o fornecimento das encomendas até dia 7 de janeiro. Aliás, foi referido, por diversas vezes, pela mesma testemunha que os prazos limite de entrega das encomendas, no caso 31 de dezembro de 2020, eram imperativos e que resultavam de regras atinentes à contratação pública não podendo o fornecimento de medicamentos adjudicados num determinado ano transitarem para o ano seguinte, tal como evidenciado nos pontos 40. e 44. dos factos provados, incompatíveis com esta indicação”.

A fundamentação é clara, é objectiva, é assertiva, é consistente e, diríamos mesmo, minuciosamente contundente.
Verificadas as divergências assumidas pela Autora, não se vê quem manchem ou afectem minimamente a apreciação feita pelo Tribunal a quo.
O facto não provado b) (No âmbito da relação contratual referida em 3., foi acordado entre as partes um prazo máximo de entrega de 3 dias úteis), depois de verificada toda a prova testemunhal e documental produzida nos autos, só podia ser apreciado desta forma.
De facto, se é verdade (e assente ficou nos Factos 2 e 3) que, no contexto da relação contratual estabelecida entre a Autora e as sociedades que operam sob a designação comercial A, desde (pelo menos) 2010 (na qual a Ré se constituia, entre outras, na obrigação de assegurar o transporte e a entrega de amostras de medicamentos da Autora até aos locais de destino por esta indicados, em Portugal e/ou no estrangeiro no prazo estimado de 3 dias úteis), a Ré enviou, em 21 de Dezembro de 2020, a pedido da Autora, um lote do medicamento “Valganciclovir Aurovitas 450 mg comprimidos revistos por película”, com vista à sua entrega nas instalações do laboratório da “X (Malta) Ltd.”, localizado em Malta, também o é que não há qualquer prova de que houvesse sido celebrado qualquer acordo para garantir que tal entrega fosse feita em dois dias úteis[14] ou mesmo num prazo máximo de três dias úteis.
Como o Tribunal a quo sublinha, nenhum desses prazos resulta de qualquer documento constante do processo, acrescendo que a testemunha AL (que a Recorrente transcreve) em nada ajuda a deduzida pretensão, pois, quanto ao que foi acordado com a Ré, nada disse!
Quanto à testemunha CF, por seu turno, refere a necessidade e a “normalidade”, mas não o acordo pelos dois ou três dias úteis…
É que a questão não é a da urgência (que se compreende e é óbvia dado o concreto circunstancialismo respeitante a este tipo de medicamentos e que a Autora conhece como poucas), a questão é mesmo o que é que foi acordado e o que é que podia ter sido.

O que parece ter acontecido é que a Autora (e isso decorre com clareza do depoimento da testemunha CF[15]), como nas situações anteriores (“nós, normalmente, portanto, nós já contratávamos este serviço já há alguns anos e o produto era sempre entregue nestas datas”), as coisas tinham corrido bem e as mercadorias tinham sido entregues a horas (como, aliás, se assentou no Facto 12), a Autora entendeu que não valia a pena apostar num serviço mais caro, mas com (muito) mais garantias de lograr que fizesse chegar os medicamentos atempadamente[16].
Os medicamentos tinham mesmo de chegar numa determinada data, nada podia falhar. Não escolher um serviço que o garantisse e não se ficasse por uma “normalidade” ou por uma simples estimativa.
É certo que a testemunha SS (que tratou em concreto da situação) fala em que apenas se falou na modalidade door to door, mas essa modalidade, para além de apenas trabalhar com prazos estimados, é simples e não personalizada, sendo que, a Autora, como consta dos Factos 13 e 14, sabia que havia outras modalidades de serviço que já havia utilizado (como os foguetes ou os courrier-on-board, com a possibilidade de acompanhamento permanente do transporte por um profissional dedicado).
Mais. A Recorrente pretende retirar do depoimento da testemunha SS, o que nele não está: um acordo entre as partes no sentido de uma entrega em dois dias úteis (pelo contrário, o que acaba por resultar é que o transporte foi contratualizado nos mesmos termos e nos mesmos moldes em que muitos outros foram contratualizados entre ambas as partes).
Isso não foi acordado e a Autora sabia perfeitamente que dentro da relação contratual que tinha estabelecida com a Ré, o prazo máximo de três dias úteis era um prazo estimado, e mais, sabia o que fazer para conseguir ter garantias de entrega atempada. E não o fez.
O Tribunal foi, por isso, absolutamente rigoroso quando afirmou que a “testemunha SS, que contratou o serviço junto da ré, não se refere a acordo expresso quanto a este prazo”.

Assim, verificada a prova produzida em audiência e compulsada a prova documental junta ao processo, não se vislumbra a necessidade de introduzir qualquer alteração ao decidido, por inexistir qualquer segurança na conclusão da existência de um erro de apreciação da prova[17], existindo uma total concordância com a apreciação feita pelo Tribunal a quo.
Como tivemos oportunidade de escrever (tendo como Adjuntos os Juízes Desembargadores Luís Filipe Pires de Sousa e José Capacete) no Acórdão desta Relação de 14 de Fevereiro de 2023 (Processo n.º 895/21.4T8FNC-B.L1-7) – valendo aqui as mesmas considerações – cabe “ao Tribunal da Relação apreciar a matéria de facto de cuja apreciação o/a Recorrente discorde e impugne (fazendo sobre ela uma nova apreciação, um novo julgamento, após verificar a fundamentação do Tribunal a quo, os elementos e argumentos apresentados no recurso e a sua própria percepção perante a totalidade da prova produzida), continuando a ter presentes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova” sendo que só se deve “alterar a matéria de facto se - após audição da prova gravada compulsada com a restante prova produzida - concluir, com a necessária segurança, no sentido de que esta aponta em direcção diversa e delimita uma conclusão diferente da que vingou na 1ª Instância”[18].
Já sabemos que, como decorre dos artigos 341.º do Código Civil e 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, as provas têm por função “a demonstração da realidade dos factos”, e que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
Daí que, nas situações – como a dos autos – em que para a prova não existe qualquer norma legal que exija formalidade especial ou prova documental específica (não se tratando de factos plenamente provados por documento, confissão ou acordo das partes), o material probatório produzido esteja sujeito ao princípio da livre apreciação por parte do Tribunal (o que não é o mesmo que arbitrariedade e, daí, a necessidade imposta pelo n.º 4, do artigo 607.º, de uma análise crítica da prova e da indicação de todos os elementos que foram decisivos, para a decisão, permitindo a sindicância da expressada convicção).
Por outro lado e como lucidamente dizia a personagem Algernon, de Oscar Wilde (em 1895, na peça The Importance of Being Earnest), a “verdade é raras vezes pura e nunca é simples”[19], pelo que faz sentido aqui assinalar quanto ao standard da prova[20], o que Luís Filipe Pires de Sousa[21] tem afirmado, no sentido de que, para chegar à verdade processual da situação jurídica que nos seja presente (e, portanto, para que um facto se possa considerar provado, no nosso processo civil), tal standard[22] seja o da “probabilidade prevalecente ou “mais provável que não””[23] consubstanciado em “duas regras fundamentais:
(i)- Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais;
 (ii)- Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa”[24].
Este “critério da probabilidade lógica prevalecente (…) não se reporta à probabilidade como frequência estatística, mas sim como grau de confirmação lógica que um enunciado obtém a partir das provas disponíveis”.
O “que o standard preconiza é que, quando sobre um facto existam provas contraditórias, o julgador deve sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis.
Todavia, pode acontecer que todas as versões dos factos tenham um nível baixo de apoio probatório e, nesse contexto, escolher a relativamente mais provável pode não ser suficiente para considerar essa versão como “verdadeira”. Pelo que para que um enunciado sobre os factos possa ser escolhido como a versão relativamente melhor é necessário que, além de ser mais provável que as demais versões, tal enunciado em si mesmo seja mais provável que a sua negação. Ou seja, é necessário que a versão positiva de um facto seja em si mesma mais provável que a versão negativa simétrica”[25].
Por outro lado, em situações de incerteza (nas quais não seja possível determinar a verdade ou a falsidade de um determinado enunciado de facto), ou “em que a verdade de um enunciado não receba uma adequada confirmação, a decisão só pode ser adotada mediante a aplicação da regra do ónus da prova objectivo”[26]. O que significa que “é sempre sobre a parte onerada com a prova dos factos a que recaem as  consequências da falta ou insuficiência de prova, ou seja, perante a dúvida irredutível sobre a realidade do facto que é pressuposto da aplicação de uma norma jurídica, o julgador decide como se estivesse provado o facto contrário (cfr. o Artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil e 414.º do Código de Processo Civil, anterior Artigo 516.º). Assim, se após a valoração da prova, o juiz entender que há factos que permanecem duvidosos e incertos (ocorre uma deficiência probatória), terá de recorrer ao ónus da prova, valorando a prova contra a parte a quem incumbia o respetivo ónus da prova, declarando como não provado o facto adrede alegado pela parte. Por isso é que as regras do ónus da prova são subsidiárias no sentido de que apenas operam, se necessário, posteriormente à valoração da prova”[27].

Ora, neste contexto de não validação das pretensões da Recorrente, há ainda que sublinhar que também os aludidos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, apontam no sentido apurado e não noutro, constatando-se a adequação das conclusões à prova e não a existência de qualquer erro de apreciação.
Naquilo que cabe neste momento a este Tribunal[28], o resultado só pode ser o desatendimento da pretensão da Recorrente, uma vez que, como resulta claro de tudo o atrás já escrito, o Tribunal da Relação só deve alterar a matéria de facto se - após audição da prova gravada compulsada com a restante prova produzida - concluir, com a necessária segurança, no sentido de que esta aponta em direcção diversa e delimita uma conclusão diferente da que vingou na 1ª Instância, usando um critério de razoabilidade ou de aceitabilidade dessa decisão (que conduz a confirmar a decisão recorrida, não apenas quando for indiscutível que é correcta, mas também quando se reconheça situar-se numa margem de razoabilidade ou de aceitabilidade).
Nada a alterar, portanto, quanto ao Facto não provado b).
*º*

Fundamentação de Direito
A Sentença recorrida assenta o decidido no seguinte processo de raciocínio:
I - A autora, que tem por objeto social o exercício, entre outras, da atividade de fabrico, comercialização, importação e exportação de medicamentos, solicitou à ré, que exerce a atividade de transporte de mercadorias, que assegurasse o transporte e entrega de um lote do medicamento “Valganciclovir Aurovitas 450 mg comprimidos revistos por película”, tendo como destino de entrega as instalações do laboratório da “X (Malta) Ltd.”, localizadas em Malta, o que foi aceite pela ré.
II - O contrato de transporte de mercadorias consiste num acordo celebrado entre o transportador e o carregador, nos termos do qual o primeiro se obriga a deslocar determinada mercadoria de um local para o outro e de a entregar ao destinatário, mediante uma retribuição paga pelo carregador.
III - Ainda que o contrato de transporte de mercadorias seja só celebrado por duas partes, existem habitualmente três intervenientes principais no contrato de transporte, que são o Carregador ou Expedidor (que encarrega outra pessoa de efetuar o transporte e entrega de determinada mercadoria), o Transportador (a pessoa que fica obrigada à realização do transporte e entrega da mercadoria) e o Destinatário (a pessoa a quem a mercadoria deve ser entregue)
IV – No âmbito de um contrato de transporte de mercadorias, o transportador obriga-se a realizar, por si ou por terceiros, a deslocação e entrega da mercadoria em causa.
V – No caso em apreço, não é pelo facto de a Ré ter recorrido, para o transporte e entrega do medicamento aos serviços da UPS – Facto 15 – que estamos perante um contrato de trânsito: a Ré obrigou-se perante a Autora a assegurar o transporte e entrega do medicamento, como era hábito acontecer (cfr. ponto 3. dos factos provados) e não a contratar uma entidade transportadora para proceder ao transporte e entrega do medicamento em nome da autora.
VI - Face ao acordado e tendo em consideração que a própria Ré realizou um dos itinerários do percurso (das instalações do expedidor ao aeroporto), o mesmo deve ser qualificado como um contrato de transporte de mercadorias, intervindo a UPS na qualidade de subtransportadora.
VII - Uma vez que a obrigação da Ré envolvia a deslocação do medicamento desde um ponto de partida, situado em Portugal, até um outro ponto de destino, situado em Malta, estamos perante um contrato de transporte de mercadorias internacional.
VIII – O contrato celebrado entre Autora e Ré caracteriza-se por ter como objecto o transporte de uma mercadoria através do recurso a dois meios de transporte distintos (aéreo e rodoviário), os quais integram uma prestação única que consiste na deslocação de mercadorias das instalações da Autora até ao local de destino e a sua subsequente entrega ao destinatário.
IX - Um contrato com estas caraterísticas é denominado como um contrato multimodal de mercadorias, sendo um negócio jurídico socialmente típico, mas juridicamente atípico, apesar das tentativas de regulá-lo através do direito convencional internacional, mormente com a Convenção Internacional das Nações Unidas sobre o Transporte Multimodal de Mercadorias, assinada em Genebra no dia 24 de Maio de 1980, mas que nunca chegou a entrar em vigor.
X - O transporte multimodal de mercadorias internacional tem como seus principais traços caracterizadores:
- o transporte realizado através de vários meios de transporte (pelo menos dois); e
- a existência de apenas um contrato de transporte – unidade contratual.
XI - O contrato de transporte de mercadorias multimodal, tal como o contrato de transporte de mercadorias, é celebrado somente entre o carregador/expedidor e o transportador (que pode subcontratar os serviços), visando a simplificação da relação contratual entre as partes, uma vez que, em vez de se realizarem dois ou mais contratos de transporte distintos, tendo por objecto comum o transporte da mesma mercadoria, apenas sendo necessária a celebração de um único contrato que abrange os diversos meios de transporte que serão utilizados na sua execução. XII - Atenta a factualidade provada – Factos 2 a 11 – resulta que, no âmbito do referido contrato de transporte de mercadorias de Portugal para Malta, foi utilizado mais que um meio de transporte (um aéreo e dois terrestres), tendo a Autora celebrado apenas um único contrato de transporte com a Ré (que subcontratou a UPS para a execução de toda a operação de transporte), razão pela qual podemos concluir que estamos perante um contrato de transporte de mercadorias internacional multimodal.
XIII - Sendo apenas celebrado um contrato entre o carregador/expedidor e o transportador, ou, neste caso, o operador de transporte multimodal (“OTM”), é este o único responsável perante o expedidor por toda a operação de transporte e entrega, independentemente da celebração de subcontratos, por parte do OTM, com diferentes transportadores, para efectuarem um determinado segmento do transporte e, independentemente do local em que um eventual incumprimento tenha ocorrido.
XIV - Não existe um regime jurídico uniforme, com carácter imperativo e de aplicação global que regule de uma forma clara e objetiva todas as especificidades deste tipo de contrato, mas apenas convenções internacionais que regulam individualmente os diferentes meios de transporte individualmente considerados (ou seja, diversas convenções internacionais unimodais).
XV - A melhor solução para o regime aplicável a este tipo de contratos é encará-los como contratos mistos e recorrer à teoria da combinação para aplicar o regime próprio unimodal de transporte a cada um dos meios de transporte utilizados, designadamente nas situações em que se verifica um incumprimento contratual.
XVI – Neste caso, a responsabilidade pelo incumprimento deve ser determinada e extraídas as respectivas consequências, segundo as regras do regime do meio de transporte onde ocorreu o incumprimento.
XVII – No caso dos autos:
- atendendo ao prazo estimado de entrega de 3 dias úteis após o envio do Medicamento e à data da sua recolha por parte da Ré, no dia 21 de Dezembro de 2020, a data estimada para a entrega, em Malta, do Medicamento era a de 24 de Dezembro de 2020 (Factos 2 e 16);
- no dia 23 de Dezembro de 2020 a encomenda chegou, via transporte aéreo a Malta (Facto 24);
- a encomenda foi entregue, via transporte rodoviário, no destinatário em Malta, no dia 4 de Janeiro de 2021 (Facto 24).
XVIII - Atento o tempo estimado, tendo a encomenda chegado, via transporte aéreo a Malta, no dia 23 de Dezembro, a mesma seria previsivelmente entregue ao destinatário, por via de transporte rodoviário, até ao final do dia 24 de Dezembro, cumprindo-se o prazo máximo estimado.
XIX - Tendo sido a entrega feita 4 de Janeiro de 2021 é seguro afirmar que o atraso verificado na entrega do medicamento ocorreu no transporte rodoviário a realizar em Malta e não no transporte aéreo.
XX - Tal conclusão releva para os efeitos da previsão do artigo 18.º, n.º 4, da Convenção de Montreal de 1999 (Convenção para Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, assinada em Montreal, em 28 de Maio de 1999), que, pese embora ainda coexista em certos aspectos com a Convenção de Varsóvia de 1929 (Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, que foi assinada em 12 de Outubro de 1929 em Varsóvia), veio substituí-la na sua generalidade por ser mais abrangente.
XXI - Tal como resulta da indicada norma do art.º 18.º, n.º 4 da Convenção de Montreal, o “período de transporte aéreo não compreende nenhum transporte terrestre, marítimo ou por via navegável interior efectuado fora de um aeroporto. No entanto, se for efectuado tal transporte no âmbito de um contrato de transporte aéreo para efeitos de carregamento, entrega ou transbordo, presume-se, salvo prova em contrário, que o dano resultou de evento ocorrido durante o transporte aéreo (…)”.
XXII - Mostrando-se provado que as circunstâncias temporais da entrega da mercadoria após a sua chegada ao aeroporto em Malta se ficaram a dever a evento relacionado com o transporte rodoviário, e fazendo apelo a quanto ficou exposto relativamente ao regime do transporte multimodal internacional de mercadorias, são aplicáveis a esse atraso as regras previstas o transporte internacional de mercadorias rodoviário.
XXIII - O transporte internacional de mercadorias rodoviário é regulado pela Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR), aprovada em Genebra, em 19 de Maio de 1956, a qual veio a ser subscrita por Portugal, tendo entrado em vigor no nosso país em 21 de Dezembro de 1969. Posteriormente, foram aprovados dois Protocolos Adicionais em 1978 e 2008, ratificados por Portugal.
XXIV - Dispõe o artigo 1.º, n.º 1, desta Convenção que a mesma se aplica “a todos os contratos de transporte de mercadorias por estrada a título oneroso por meio de veículos, quando o lugar do carregamento da mercadoria e o lugar da entrega previsto, tais como são indicados no contrato, estão situados em dois países diferentes (…)”, o que corresponde à situação dos autos.
XXV – Assim releva o que se dispõe na Convenção quanto às situações de demora na entrega das mercadorias, nomeadamente no artigo 17.º, n.º 1, que regula a responsabilidade do transportador pela demora da entrega da mercadoria: “O transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento de carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega”.
XXVI – Trata-se de uma presunção de responsabilidade e não perante uma mera presunção de culpa.
XXVII - Nesta norma não se presume uma imputação censurável do atraso ao transportador, mas sim a atribuição ope legis da responsabilidade por esse atraso, não sendo necessária a prova de qualquer um dos requisitos da responsabilidade contratual do transportador pela demora na execução da prestação.
XXVIII - Por aplicação do preceito supramencionado ao regime do contrato de transporte de mercadorias multimodal, o transportador multimodal, em princípio, é responsável pelo atraso na entrega da mercadoria quando esse atraso se verifica no transporte rodoviário por ele realizado, por si ou através de outrem.
XXIX - Para se exonerar da responsabilidade pela demora na entrega da mercadoria, o transportador multimodal terá de provar que o atraso teve origem em circunstâncias que lhe são totalmente alheias, tendo adoptado todas as medidas que podiam ter sido razoavelmente exigidas para evitar o atraso verificado.
XXX - Sobre as causas de exclusão da responsabilidade do transportador pelo atraso na entrega da mercadoria, dispõe o n.º 2 do artigo 17.º da CMR que: “ O transportador fica desobrigado desta responsabilidade se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar”.
XXXI - E, nos termos do n.º 1 do artigo 18.º da CMR, cabe ao transportador fazer a prova de que o atraso foi devido a uma das circunstâncias previstas no preceito acima transcrito.
XXXII - Ao expedidor bastará fazer a prova de que fez a entrega da mercadoria ao transportador e que este não a entregou no destino na data acordada.
XXXIII - A transportador incumbirá a prova de alguma das circunstâncias mencionadas no n.º 2 do artigo 17.º da CMR, que o isenta de responsabilidade pelo atraso ocorrido, sendo que, não o fazendo, a responsabilidade será sua.
XXXIV - Tendo-se provado que a entrega da mercadoria foi efetuada no dia 4 de Janeiro de 2021, quando o prazo estimado se concluiu no final do dia 24 de dezembro de 2020, estamos perante uma situação de demora na entrega da mercadoria ao destinatário da mesma, atento o disposto no artigo 19.º da CMR, onde se lê que “Há demora na entrega quando a mercadoria não foi entregue no prazo convencionado, ou, se não foi convencionado prazo, quando a duração efectiva do transporte, tendo em conta as circunstâncias, e em especial, no caso de um carregamento parcial, o tempo necessário para juntar um carregamento completo em condições normais, ultrapassar o tempo que é razoável atribuir a transportadores diligentes.”
XXXV - Se o tempo estimado para a entrega, de acordo com os procedimentos usuais da Ré, era de 3 dias úteis, esse era o período de tempo previsivelmente suficiente para a mercadoria ser entregue ao destinatário, esse era o prazo que, na sua perspectiva, era razoável atribuir ao transporte diligente contratado, pelo que, tendo esse prazo sido largamente ultrapassado e não tendo a Ré demonstrado que tal demora de deveu a circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar (cfr. art. 17.º, n.º 2, da CMR), estamos perante uma demora no cumprimento da obrigação que responsabiliza a transportadora pelos prejuízos que dela tenham resultado.
XXXVI - Na presente ação foi feita prova que o medicamento cujo transporte se contratou, foi entregue ao destinatário muito para além do prazo estimado, não tendo a transportadora, como se referiu, logrado provar qualquer circunstância que a isentasse da responsabilidade presumida, nos termos do n.º 2 do artigo 17.º da CMR, pelo que se encontra apurada a responsabilidade da ré pela demora no cumprimento da prestação por si assumida.
XXXVII - Por outro lado, da factualidade provada decorre que a Autora sofreu um prejuízo no exercício de 2020, de 46.865,58€, relativo à perda da margem de lucro perdida por referência às encomendas não realizadas do Medicamento nesse ano, em virtude do atraso ocorrido na sua entrega ao laboratório em Malta onde a sua conformidade, necessária ao fornecimento do mesmo, ia ser certificada.
XXXIX - Ao contrário do regime padrão que vigora no nosso direito interno, relativamente à reparação integral dos danos, de modo a reconstituir a situação existente anterior à lesão verificada, os regimes previstos na maioria das convenções internacionais sobre transporte de mercadorias, estabelecem limites máximos para a responsabilidade do transportador.
XLI - Estes limites aplicam-se quer no caso de perda ou avaria das mercadorias quer no caso de demora na sua entrega, tendo como justificação minorar os riscos do transportador, de modo a não onerar exageradamente esta actividade económica, tornando-a pouco atractiva.
XLII - Relativamente ao atraso na entrega da mercadoria, o artigo 23.º, n.º 5, da CMR estabelece um limite indemnizatório que corresponde ao preço do transporte, correspondendo este ao preço total pago pelo carregador/expedidor ao transportador em virtude do contrato de transporte celebrado.
XLIII - Tal como resulta do artigo 23.º, n.º 6, da CMR, é possível afastar este limite através de uma declaração de juro especial na entrega, nos termos previstos no artigo 26.º da CMR nos termos do qual:
- “1. O expedidor pode fixar, mencionando-o na declaração de expedição e contra pagamento de um suplemento de preço a convencionar, o valor de um juro especial na entrega para o caso de perda ou avaria e para o de ultrapassagem do prazo convencionado”;
- “2. Se houver declaração de juro especial na entrega, pode ser exigida, independentemente das Indemnizações previstas nos artigos 23, 24 e 25 e até ao valor do juro declarado, uma indemnização igual ao dano suplementar de que seja apresentada prova.”
XLIV - Na situação dos autos, não resulta que a Autora tenha emitido uma tal declaração de juro especial, a permitir, por esta via ir além dos limites de indemnização a que alude o artigo 23.º da Convenção.
XLV - O artigo 29.º da CMR prevê ainda uma outra exceção à aplicação dos limites indemnizatórios estabelecidos:
- “1. O transportador não tem o direito de aproveitar-se das disposições do presente capítulo que excluem ou limitam a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo seu ou falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo”;
- “2. Sucede mesmo se o dolo ou a falta for acto dos agentes do transportador ou de quaisquer outras pessoas a cujos serviços aquele recorre para a execução do transporte, quando esses agentes ou essas outras pessoas actuarem no exercício das suas funções. Neste caso, esses agentes ou essas outras pessoas também não têm o direito de aproveitar- se, quanto à sua responsabilidade pessoal, das disposições do presente capítulo indicadas no parágrafo 1.”
XLVI - Relativamente à interpretação e subsequente aplicação deste preceito, a jurisprudência nacional encontra-se dividida entre duas posições divergentes:
- uma que equipara a negligência ao dolo (que assenta no princípio que tanto o dolo como a negligência, ao abrigo da lei portuguesa, integram o conceito de culpa latu sensu, constituindo ambas atuações culposas ainda que com intensidades diferentes.) e que se divide numa subposição que apenas equipara a negligência grosseira ao dolo (que admite que a lei portuguesa não equipara genericamente o dolo à negligência para efeitos de cálculo de indemnização mas, uma vez que só nos casos de mera culpa é que existe possibilidade de redução da indemnização - artigo 494.º do Código Civil - , ocorre, de certa forma, uma equiparação relativa ao grau de culpabilidade do agente do dolo à negligência grosseira); e
- outra que distingue os dois conceitos e apenas considera a existência de dolo por parte do transportador, como pressuposto necessário para excluir a aplicação das causas de exclusão gerais e especiais da responsabilidade do transportador, os limites máximos de indemnização e o sistema de inversão dos ónus de prova.
XLVII - Ainda que estas correntes jurisprudenciais interpretem o n.º 1 do artigo 29.º da CMR à luz do ordenamento jurídico nacional, estão apenas a ter em conta as normas gerais relativas à culpa no âmbito da responsabilidade civil previstas no Código Civil, não levando em linha de conta a existência, no nosso ordenamento jurídico, de normas especiais aplicáveis ao contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias que versam exatamente sobre a mesma temática (isto é, sobre a exclusão da aplicação dos limites indemnizatórios previstos em caso de responsabilidade do transportador).
XLVIII - Assim, o artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro (que rege os contratos de transporte nacionais) dispõe que “Sempre que a perda, avaria ou demora resultem de actuação dolosa do transportador, este não pode prevalecer-se das disposições que excluem ou limitam a sua responsabilidade.”
XLIX - Da leitura desta norma resulta que, no âmbito do contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias, não existe equiparação da negligência (leve ou grosseira) ao dolo, pelo que apenas uma actuação dolosa do transportador, implica que o mesmo não se possa prevalecer das disposições que excluem ou limitam a sua responsabilidade.
L - Se o artigo 29.º, n.º 1, da CMR refere que se o dano provier de dolo seu ou falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo, e se o nosso ordenamento jurídico (a lei da jurisdição que julga o caso), no âmbito da legislação que regula exatamente o mesmo tipo de relação jurídica, ou seja, o transporte rodoviário de mercadorias, prevê expressamente que só a verificação de dolo por parte do transportador é que implica a não aplicação das disposições que excluem ou limitam a responsabilidade, há que concluir, necessariamente, que só uma situação de dolo é que impede a aplicação dos limites da indemnização.
LI - Não existe qualquer razão para se interpretar o disposto no artigo 29.º da CMR à luz da legislação nacional própria em igual matéria, uma vez que é nela que a equiparação exigida por aquele artigo terá que existir.
LII - Além do mais, se toda e qualquer negligência fosse equiparada ao dolo, nos termos do artigo 29.º da CMR, nunca seriam aplicáveis ao transportador todas as disposições da CMR que excluem ou limitam a sua responsabilidade, o que levaria a um total esvaziamento de conteúdo de quase todas as disposições previstas no Capítulo IV da CMR, nomeadamente em matéria relativa à limitação das indemnizações por responsabilidade do transportador.
LIV - Revertendo ao caso em apreço, atenta a factualidade provada nos Factos 15 a 25, não existe qualquer ocorrência de onde resulte uma conduta dolosa por parte da Ré que tenha provocado a demora na entrega da encomenda.
LV - Apesar da presunção de direito da responsabilidade que recai sobre a Ré ao abrigo dos artigos 17.º, n.º 1 e 18.º, n.º 1, da CMR, o dolo não se presume, cabendo o respetivo ónus da prova a quem pretende ver afastado o limite indemnizatório estabelecido no artigo 23.º n.º 5 da CMR, razão pela qual não se encontra verificada a excepção a que alude o n.º 1 do artigo 29.º da CMR.
LVI - E mesmo que se entendesse que os casos de negligência grosseira, poderiam ser equiparados às hipóteses de dolo, na previsão do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 239/2003 e, consequentemente, também abrangidos pela remissão contida no artigo 29.º da CMR, seria necessário demonstrar esse grau elevado de negligência, o que neste processo também não foi feito, tendo a responsabilidade da Ré resultado apenas de uma presunção de direito não ilidida.
LVII - Nesse sentido, é aplicável o limite indemnizatório previsto no n.º 5 do artigo 23.º da CMR, que estabelece como tecto máximo de indemnização pela demora na entrega da mercadoria o valor pago pelo transporte (ou seja, como resulta dos Factos 34 e 35, o valor de 181,68 €).
LVIII - Apesar de este valor aparentar ser irrisório perante o montante dos lucros perdidos pela Autora no exercício de 2020 (que, esclareça-se, não correspondem necessariamente a perda da possibilidade de comercialização da mercadoria noutro exercício), e que resulta, em certa medida, da baixa dos custos dos transportes, não é possível ultrapassar das razões que justificam a imposição dos limites indemnizatórios acima referidas, assim como as possibilidades não utilizadas pela Autora de contratar uma modalidade de transporte de cumprimento mais fiável ou de efetuar a declaração de juro especial de na entrega, prevista nos artigos 23.º n.º 6 e 26.º, da CMR., não havendo, por isso, fundamento para recusar a aplicação do limite previsto no artigo 23.º, n.º 5, da CMR.
LIX - Mostrando-se cumprida a formulação da reserva prevista no artigo 30.º, n.º 3, da CMR (Factos 30 a 34) será a responsabilidade da ré limitada ao valor do transporte de 181,68 €.
LX - Tal como resulta do Facto 35, a Ré emitiu - antes da propositura da acção - a favor da autora, a nota de crédito n.º 32110073 (de 16.04.2021), no valor de 181,68 € para devolução do valor do preço do transporte dos autos, pelo que, mostrando-se pré-judicial e voluntariamente cumprida essa obrigação, nada mais tem a Ré a pagar à Autora, devendo assim, a presente ação ser julgada improcedente e absolvendo-se do pedido, quer no tocante ao capital, quer no tocante aos juros dele dependentes.

A fundamentação de Direito acabada em análise tem-se como exemplar, em termos de clareza e linearidade de raciocínio, bem assim como pela sua sustentação e fundamentação jurídicas.
Assinala-se, por outro lado, que a pretensão recursória dependia também da alteração da matéria de facto, no que não logrou ter êxito, pelo que nos resta verificar se em termos de Direito há alguma falha no raciocínio e conclusões do Tribunal a quo.

A Recorrente, aliás, assume todo o percurso argumentativo da Sentença no que concerne à caracterização e qualificação do contrato, bem como à aplicação e funcionamento dos artigos 17.º, 18.º e 19.º da CMR, apenas divergindo no momento da apreciação da responsabilidade da Ré (ou da sua exclusão).
Assinala-se, no entanto, que a Recorrente afirma que o Tribunal diz que ficou demostrado que a Recorrente sofreu um prejuízo de €46.865,58, por força do atraso ocorrido na entrega do medicamento no laboratório em Malta, mas omite que esses lucros perdidos pela Autora no exercício de 2020 (Facto 43), são também apreciados – e bem – com a referência a que “não correspondem necessariamente a perda da possibilidade de comercialização da mercadoria noutro exercício), e que resulta, em certa medida, da baixa dos custos dos transportes”.
Mesmo no que concerne ao limite indemnizatório estabelecido no n.º 5 do artigo 23.º da CMR a Recorrente aceita o decidido, apenas entendendo que se verifica a excepção prevista no artigo 29.º, n.º 1, da CMR, considerando a negligência grosseira como equiparada ao dolo, mas, mais ainda, que “resulta demostrado” que existiu “uma conduta dolosa por parte da Recorrida” (carecendo em absoluto de sentido a transcrição de depoimentos testemunhais nas Alegações para defender este entendimento, como a Recorrente faz).
E é este o cerne da divergência, sendo certo que não cremos assistir razão à Recorrente.
De facto, temos por assente e assumida a existência de uma situação de negligência por parte da Recorrida, uma vez que permitiu que uma situação que em regra se estima ter uma duração de 3 dias úteis, acabou por durar nove dias úteis, sem que aquela (transportadora), tenha logrado provar – como refere o n.º 2 do artigo 17º da CMR qualquer circunstância que a isentasse da responsabilidade presumida[29].
Isso leva-nos ao n.º 5 do artigo 23.º da CMR (“No caso de demora, se o interessado provar que disso resultou prejuízo, o transportador terá de pagar por esse prejuízo uma indemnização que não poderá ultrapassar o preço do transporte”) - que cria um limite indemnizatório correspondente ao preço do transporte - sendo que a Ré assumiu a sua responsabilidade pela demora da sua prestação[30].
Ora, a Ré só não beneficiaria deste regime e deste limite, se tivesse aplicação o n.º 1 do artigo 29.º da CRM, ou seja, se “o dano provier de dolo seu ou falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo”.
Sucede que não só os factos não permitem concluir que a Ré actuou dolosamente[31],  como o regime jurídico aplicável (o do direito nacional), não equipara a negligência leve à grosseira: o artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro (que estabelece o regime jurídico do contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias)[32], estabelece com clareza meridiana que sempre “que a perda, avaria ou demora resultem de actuação dolosa do transportador, este não pode prevalecer-se das disposições que excluem ou limitam a sua responsabilidade”, assim afastando a possibilidade de situações de negligência terem efeitos no afastamento dos limites da responsabilidade (ou seja, para efeitos deste tipo de contrato, não releva considerar que a “culpa” abrange dolo e negligência).
Como assinala Mónica Soares Pereira, o que se constata é que “a C.M.R. estabelece um regime mais alargado para a exclusão da responsabilidade nos termos enunciados, na medida em que estatui a exclusão em caso de dolo e nos casos em que a lei do foro equipare o comportamento a um comportamento doloso, enquanto a lei portuguesa apenas fala em actuação dolosa sem fazer qualquer menção de um comportamento equiparável ao dolo”[33].
Trata-se de uma opção legislativa, que aqui não cabe sindicar.
De assinalar que as correntes jurisprudenciais a que a Sentença recorrida faz menção estão correctamente descritas, não se vislumbrando motivos para discordar da orientação seguida.
Continuam absolutamente válidas e pertinentes as considerações que ficaram expostas no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06 de Julho de 2006 (Processo n.º 06B1679-Oliveira Barros), no sentido de que:
- o artigo “13º CMR confere ao destinatário tanto o direito de, em caso de demora, exigir ao transportador a entrega da mercadoria não entregue, como o de indemnização fundada na responsabilidade civil emergente do incumprimento (ou do cumprimento defeituoso) desse contrato, no caso de perda (total ou parcial, ou, ainda, de avaria) da mercadoria transportada”;
- na CMR “a responsabilidade pelo incumprimento, ou pelo cumprimento defeituoso, do contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada encontra-se regulada, por forma especial ou particular, estabelecendo o seu art.º 23º desvio limitativo de princípio de direito comum em matéria de responsabilidade contratual, que é o da reparação integral dos danos”;
- “as regras gerais a que obedece o ónus da prova estabelecidas no art.º 342º C.Civ. assentam na denominada teoria das normas (Normentheorie), de Rosenberg, baseada na relação entre regra e excepção, de que resulta que cada uma das partes terá de alegar e provar os pressupostos da norma que lhe é favorável”;
- “De harmonia com esse critério, em vista do art.º 29º CMR, e no âmbito especial do contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, em que, consoante arts. 17º e 23º CMR, vigora a regra da limitação da responsabilidade do transportador, o dolo deste ou do pessoal respectivo é facto constitutivo do direito à indemnização plena que a lei geral assegura em sede de responsabilidade civil contratual (como decorre dos arts.494º, a contrario sensu, e 562º C.Civ.);
- “Para obter indemnização não sujeita aos limites estabelecidos no art. 23º CMR, é, por conseguinte, o destinatário que, conforme art.342º, nº1º, C.Civ., terá que provar que a perda ou desaparecimento de mercadoria transportada se deveu a acto voluntário do transportador ou do pessoal ao seu serviço”;
- “No nosso ordenamento jurídico, a equiparação da negligência grosseira ao dolo surgiu, pontualmente, como novidade, com a reforma processual civil operada em 1995/96, para o restrito efeito de condenação por litigância de má fé - cfr. art.456º CPC”.
Este é também o entendimento de José Luís Saragoça, quando assinala que no “nosso ordenamento jurídico, a equiparação da negligência grosseira ao dolo surgiu, inovadoramente, com a reforma processual civil de 1995/96, para o restrito efeito de condenação por litigância de má fé[34], no artº 456º do C.P.C, presentemente artº 542º do CPC de 2013”[35].
A este propósito, vale a pena recuperar o que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Setembro de 2018 (Processo n.º 4051/10.9TBPTM.E1.S1-António Joaquim Piçarra) assinalou ao dizer que “nada justifica que se estabeleça uma equiparação geral do ilícito negligente com culpa grave ou lata ao ilícito doloso, uma vez que o brocardo latino “culpa lata dolo aequiparatur” não se mantém vigente no direito actual”.
E – principalmente – não pode em caso algum esquecer-se as palavras certeiras  e críticas que Manuel Januário da Costa Gomes escreveu a propósito do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Outubro de 2017 (Processo n.º 4858/12.2TBMAI.P1.S1-Olindo Geraldes), onde se defendeu que no regime jurídico português, se “equipara o dolo e a mera culpa, para efeitos de responsabilidade civil contratual, o transportador, com comportamento meramente negligente, não beneficia da exclusão ou limitação da responsabilidade civil prevista na Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR)”:
A interpretação que o Supremo Tribunal de Justiça faz do artigo 29.º da CMR “não pode ser acompanhada, não só porque não demonstra conhecer a excecionalidade das situações de perda do direito à limitação, como também porque transpõe para o domínio de interpretação de uma convenção internacional, como é a CMR, as, digamos, especificidades do regime interno português em sede de responsabilidade civil.
Para o STJ, o facto de o transportador ter atuado com “mera culpa” ou “comportamento meramente negligente” é equivalente ao dolo para efeitos de perda do direito à limitação de responsabilidade, nos termos do artigo 29.º da CMR, uma vez que, sustenta, no regime português, “o conceito de culpa, exprimindo um juízo de reprovação pessoal da conduta do agente, baseado, nomeadamente, no nexo existente entre o facto e a vontade do agente, pode apresentar-se sob duas formas diferenciadas, como sejam o dolo e a negligência ou mera culpa”. É uma posição que vem na linha da sustentada, v. g., no Acórdão do STJ de 05.06.2012[36], em cujo sumário (ponto VI) se lê o seguinte:
“Uma falta que, segundo a lei portuguesa, seja considerada equivalente ao dolo, para efeito do artigo 29, n.º 1, da CMR, não pode deixar de ser, face à legislação nacional, enquanto elemento do nexo de imputação do facto ao agente, a negligência ou mera culpa que, conjuntamente com o dolo, faz parte da culpa em sentido lato”.
Refere, é certo, o STJ, no acórdão em comentário, o regime do artigo 494.º do Código Civil, mas reputa-o não aplicável à responsabilidade contratual. E remata: “Face ao regime jurídico português, que equipara o dolo e a mera culpa, para efeitos de responsabilidade civil contratual, o transportador, com um comportamento meramente negligente, não beneficia da exclusão ou limitação da sua responsabilidade civil prevista na CMR, estando obrigado a repor integralmente os danos sofridos pelo expedidor”.
A posição do STJ, neste particular, não pode ser acompanhada.
Na verdade, tendo o STJ concluído que o transportador teve um “comportamento meramente negligente”, não podia considerar tal comportamento equivalente ao dolo – grosso modo correspondente à wilful misconduct do sistema de common law – para efeitos de preclusão da limitação de responsabilidade ou perda do direito à limitação, já que, manifestamente, estamos perante um grau de culpa não equivalente.
O equívoco do STJ está em ter transposto para a matéria específica da perda do direito à limitação nos termos do artigo 29.º da CMR o facto de entender que, no direito português, a circunstância de o devedor ter um comportamento meramente negligente não lhe permitir limitar a responsabilidade.
Neste juízo relativo ao direito interno português, ainda que se admita como bom – o que não é seguro, uma vez que não faltam autorizados autores que sustentam a aplicação do artigo 494.º do Código Civil à responsabilidade obrigacional – o STJ, pura e simplesmente, desconsiderou o regime específico interno do transporte rodoviário de mercadorias, no qual (artigo 21.º do DL 239/2003) não se levantam dúvidas sobre a não perda do direito à limitação pelo transportador quando o seu comportamento tenha sido “meramente negligente”.[37]
Ademais, como é lógico, a remissão feita no artigo 29.º da CMR não é para os regimes internos no que tange à admissibilidade de limitação: se assim fosse, a própria uniformização que é pretendida pela CMR sofreria um rude golpe, para mais numa das matérias mais sensíveis como é a da perda do direito à limitação.
O artigo 29.º não abre mão da nevrálgica definição das situações em que o transportador “perde o direito de aproveitar-se” da limitação e não as remete para a lex fori, diversamente do que  parece sustentar o STJ: essa perda só acontece no caso de dolo ou, então, de uma “falta” que, no direito interno, esteja ao nível do dolo em termos de gravidade – uma falta que, como refere Rolf Herber, conquanto com referência ao § 435 do HGB, constitua uma “culpa especialmente qualificada” (“ein besonderes qualifi ziertes Verschulden”), ou, como referem Zunarelli/Comenale Pinto, desde que existam “condotte suscettibili di un giudizio di particolare disvalore”.
De resto, a interpretação do STJ teria, a vingar, um efeito absurdo no sistema da CMR: o de, praticamente, anular ou esvaziar a possibilidade de o transportador poder limitar a sua responsabilidade, possibilidade essa que, frisa-se de novo, faz naturalmente parte do sistema próprio de responsabilidade do transportador de mercadorias.
Tal possibilidade tem, aliás, resistido às tentativas, sobretudo tendo por objeto normas internas, de “inconstitucionalização” do direito de limitação de responsabilidade.
A lógica do artigo 29.º da CMR é, antes, que o transportador só perca o direito à limitação da responsabilidade quando tenha atuado com dolo ou quando, nos termos do direito interno, a “falta” cometida seja, como se disse, equivalente ao dolo, em termos de gravidade.
Por esta razão, Alain Sériaux – invertendo, de algum modo, os termos da questão – coloca o enfoque nas situações em que a gravidade da falta do transportador é “source d’augmentation de la réparation”.
Na doutrina portuguesa, este tema tem sido tratado em termos que, sem serem coincidentes, se apartam da posição tomada pelo STJ no acórdão em comentário”[38] (assim, Castello-Branco Bastos, Direito dos Transportes, Almedina, 2004, páginas 111 e seguintes; Adriano Marteleto Godinho, A Responsabilidade do transportador rodoviário de mercadorias, in “Temas de Direito dos Transportes”, I, Almedina, 2010, páginas 137 e seguintes; José Luís Saragoça, A responsabilidade do transportador rodoviário de mercadorias e o dolo ou falta equivalente ao dolo, in “Temas de Direito dos Transportes” III, Almedina, Coimbra, 2015, páginas 425-447; João Ricardo Branco, A conduta antijurídica do transportador e a preclusão da limitação de responsabilidade, in “Temas de Direito dos Transportes” I, Almedina, Coimbra, 2010, páginas 293-384; Ricardo Bernardes, A conduta do transportador impeditiva da limitação de responsabilidade no Direito Marítimo, in “Temas de Direito dos Transportes” II, Almedina, Coimbra, 2013, páginas 443-501).

Neste contexto, só pode afirmar-se a correcção do decidido em 1.ª Instância, acrescentando-se apenas que não há com isso qualquer desprotecção da Autora enquanto contratadora, uma vez que conhecendo esta o regime legal e sabendo que apenas o dolo do transportador relevaria para afastar a indemnização prevista no artigo 23.º da CMR, sempre poderia não apenas ter utilizado os outros serviços personalizados que a Ré disponibilizava (mais caros, mas mais seguros), como poderia ter feito a declaração a que se refere o artigo 26.º da CMR, como poderia também ter celebrado um contrato de seguro para prevenir que o contrato não corresse bem.
Contratar é sempre assumir riscos. É confiar.
Participar em relações contratuais complexas, com vários intervenientes, deveres e direitos cruzados e distintas responsabilidades e regimes jurídicos aplicáveis, é assumir riscos ainda maiores[39], é confiar em excesso e sem rede[40].
Mas essa é natureza do comércio e o que dele faz o motor do crescimento económico das sociedades.
Em concreto, as partes assumiram os seus riscos e, pelos imponderáveis que sucederam, esses riscos acabaram por se concretizar, levando a que os objectivos de cada um dos envolvidos se não concretizassem como previsto.
O que correu mal foi o que resultou expresso na factualidade apurada no processo -a verdade judiciária - e esta é a que releva (não a que estava na percepção de cada um dos intervenientes processuais).
 
Em consequência do exposto, a bem e consistentemente elaborada Sentença merece ser confirmada na íntegra, assim improcedendo o recurso.
***
Nas palavras de Eric Voegelin as “sociedades dependem para a sua génese, a sua existência harmoniosa continuada e a sobrevivência, das acções dos seres humanos componentes. A natureza do homem e a liberdade da sua acção para o bem e para o mal, são factores essenciais na estrutura da sociedade"[41].
Recorrente e Recorrida escolheram o seu caminho de actuação.
Ao Tribunal resta, no "acto de julgar", não dar razão à Autora considerando improcedente o seu recurso (tendo, na linha de Paul Ricoeur, como "horizonte um equilíbrio frágil entre os dois componentes da partilha" - "demasiado próximos no conflito e demasiado afastados um do outro na ignorância, no ódio, ou no desprezo" - mas impondo-se, "por um lado, pôr fim à incerteza, separar as partes; por outro, fazer reconhecer a cada um a parte que o outro ocupa na mesma sociedade, em virtude do que o ganhador e o perdedor do processo seriam reputados ter cada qual a justa parte no esquema de cooperação que é a sociedade"[42]).

**


DECISÃO
 Com o poder fundado no artigo 202.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, e nos termos do artigo 663.º do Código de Processo Civil, acorda-se, nesta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, face à argumentação expendida e tendo em conta as disposições legais citadas, em julgar improcedente a Apelação apresentada pela Autora e, em consequência, confirmar a Sentença recorrida.
*
Custas a cargo da Recorrente.

Notifique e, oportunamente, remeta à 1.ª Instância (artigo 669.º do Código de Processo Civil).

***

Lisboa, 11 de Março de 2025
Edgar Taborda Lopes
Ana Mónica Pavão
Luís Lameiras[43]
_______________________________________________________
[1] Da responsabilidade do Relator, em conformidade com o n.º 7 do artigo 663.º do Código de Processo Civil.
[2] Por opção do Relator, o Acórdão utilizará a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1945 (respeitando nas citações a grafia utilizada pelos/as citados/as).
A jurisprudência citada no presente Acórdão, salvo indicação expressa noutro sentido, está acessível em http://www.dgsi.pt/ e/ou em https://jurisprudencia.csm.org.pt/.
[3] António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 183.
[4] Os Factos colocados em causa pela Recorrente estão destacados com letra em carregado e de maior tamanho (e os não provados também em itálico).
[5] “O atual art. 662º representa uma clara evolução no sentido que já antes se anunciava. Como se disse, através dos n.ºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia” - Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, página 332.
[6] Por todos, vd. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6.ª edição Atualizada, Almedina, 2020, páginas 193 a 210.
[7] António Abrantes Geraldes, Recursos…, cit., página 200.
[8] António Abrantes Geraldes, Recursos…, cit., páginas 201-205.
[9] António Abrantes Geraldes, Recursos…, cit., páginas 206-207.
[10] Que acrescenta, relevantemente, que “este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10, com bold apócrifo).
Logo, «por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente» (Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo nº 1024/12, com bold apócrifo).
Por outras palavras, se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10, com bold apócrifo. No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo nº 6628/10)”.
[11] Acórdão da Relação de Guimarães de 15 de Dezembro de 2016, Processo n.º 86/14.0T8AMR.G1-Maria João Matos.
[12] Assinalando ainda que “nessa reapreciação da prova feita pela 2ª instância, não se procura obter uma nova convicção a todo o custo, mas verificar se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável, atendendo aos elementos que constam dos autos, e aferir se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto, sendo necessário, de qualquer forma, que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido” (Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, publicado nos Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, Vol I, Coimbra Editora, 2013, páginas 589 e seguintes(609), com o texto disponível on line em http://www.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf, páginas 17-18 [consultado a 30/12/2024]
[13] Blog do IPPC, 19/05/2017, Jurisprudência (623), em anotação ao Acórdão da Relação de Coimbra de 07/02/2017, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2017/05/jurisprudencia-623.html  [consultado a 21/02/2025]
Vd. também, neste sentido, o Acórdão da Relação do Porto de 14 de Dezembro de 2022 (Processo n.º 1720/20.9T8GDM.P1-Fernanda Pinheiro).
[14] O que não é, sequer alegado na Petição Inicial, apesar do que é dito no ponto 20 das Conclusões da Autora-Recorrente.
[15] Que não esteve na concreta negociação com a Ré, mas a contextualizou.
[16] É que, em concreto, nem sequer foram os prazos de transporte que falharam, mas sim a parte da entrega, em que as modalidades mais personalizadas teriam garantido a superação do problema ocorrido.
[17] Convém ter presente que, como assinala o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de Maio de 2016 (Processo n.º 1393/08.7YXLSB.L1-7 - Maria Amélia Ribeiro) é “ao impugnante que cumpre convencer o Tribunal de recurso que a primeira instância violou as regras de direito probatório aquando da apreciação dos meios de prova. Não basta uma mera contraposição de meios de prova (ainda que não constantes dos indicados na fundamentação do tribunal): é necessário que a parte que recorre proceda, ela própria, a uma análise crítica da apreciação do tribunal a quo, demonstrando em que pontos o Tribunal se afastou do juízo imposto pelas regras legais, dos princípios, das regras da racionalidade e da lógica ou da experiência comum”..
[18] Vd., na mesma linha:
- o Acórdão da Relação de Guimarães de 10 de Outubro de 2022 ( Processo n.º 2733/13.2TBVCT-A.G1 - Maria João Matos), quando escreve que o “uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1.ª Instância sobre a matéria de facto só deve ser concretizado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente por os depoimentos prestados em audiência, conjugados com a restante prova produzida, impuserem uma conclusão diferente (prevalecendo, em caso contrário, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova)”, sendo que, para demonstrar a existência de um qualquer erro “na apreciação da matéria de facto, o recorrente tem de contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo (v.g. a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário), apresentando as razões objectivas pelas quais se pode verificar que a mesma foi incorrectamente realizada, não bastando para o sucesso da sua pretensão a mera indicação, ou reprodução, dos meios de prova antes produzidos e ponderados na decisão recorrida” ;
 - o Acórdão da Relação do Porto de 21 de Junho de 2021 (Processo n.º 2479/18.5T8VLG.P1 - Pedro Damião e Cunha), quando assinala que, mantendo-se “em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados” e que “a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância”.
[19] Oscar Wilde, A Importância de Ser Earnest e outras peças, Relógio d’Água, 2003, página 289. 
[20] Ou seja, quanto ao nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa ser aceite como verdadeira.
[21] Também assinalado com mestria no Acórdão da Relação de Lisboa de 17 de Outubro de 2017 (Processo n.º 585/13.1TCFUN-A.L1-7-Luís Filipe Pires de Sousa).
[22] Que sempre leva em consideração que “a verdade apurada no processo não é uma verdade absoluta mas a verdade apurada à luz da informação disponível” (Acórdão da Relação de Lisboa de 25 de Outubro de 2016, Processo n.º 3894/05.0TVLSB.L1-7-Luís Filipe Pires de Sousa).
[23] Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal, Almedina, 2013, página 378.
[24] Luís Filipe Pires de Sousa, Prova…, página 378.
[25] Luís Filipe Pires de Sousa, Prova…, página 378-379.
[26] Luís Filipe Pires de Sousa, Prova…, páginas 380-381.
[27] Luís Filipe Pires de Sousa, Prova…, página 381 (seguindo Michele Taruffo).
[28] Apreciar a matéria de facto de cuja apreciação o/a Recorrente discorde e impugne e fazendo sobre ela uma nova apreciação, um novo julgamento, após verificar a fundamentação do Tribunal a quo, os elementos e argumentos apresentados no recurso, acrescidos da nova – e própria – percepção sobre a totalidade da prova produzida, continuando a ter presentes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova.
[29] Artigo 17.º, n.º 1: “O transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento de carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega”.
Artigo 17.º, n.º 2: “O transportador fica desobrigado desta responsabilidade se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar”.
[30] Para além de se constatar a inexistência da declaração especial a que se refere o artigo 26.º da CRM.
[31] Desde logo porque o contexto factual com que aqui trabalhamos não só nos mostra a leveza e facilidade com que a Autora tratou uma situação em que teria de tudo fazer para não correr riscos desnecessários (e tinha modalidades de serviços da Ré – personalizadas e com acompanhamento – que lhe davam essas garantias, mas que eram mais caras), como nem sequer atentou que estávamos em situação pandémica, na altura do Natal e que havia que contar com os fins de semana, preferindo confiar na sorte, ou na… normalidade.
Em caso algum a conduta da Recorrida poderia ser sequer considerada grave, consciente ou indesculpável, e susceptível de ser enquadrada como negligência grosseira (assim ficando também afastada essa possibilidade para ao caso de se adoptar esse entendimento jurisprudencial.
[32] E que, como norma especial, afasta as regras gerais do Código Civil.
[33] Mónica Soares Pereira, O Contrato de Transporte de Mercadorias Rodoviário - A Responsabilidade do Transportador, [em linha] Mestrado em Ciências Jurídico-Privatísticas na Faculdade de Direito da Universidade do Porto (com o orientação de Paulo de Tarso da Cruz Domingues), Julho de 2011, página 23, disponível em https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/66972/2/24881.pdf [consultado a 24/02/2025).
[34] Sublinhado nosso.
[35] José Luís Saragoça, O contrato internacional rodoviário de mercadorias-A Convenção CMR, Almedina, 2022, página 367.
[36] Processo n.º 3303/05.4TBVIS.C2.S1-Azevedo Ramos.
[37] Sublinhado nosso.
[38] Manuel Januário da Costa Gomes, O Acórdão de 12.10.2017 ou o persistente alheamento do STJ relativamente ao regime específico da CMR, Revista de Direito das Sociedades, no X (2018), Número 3, páginas 615-617, disponível em https://www.revistadedireitodassociedades.pt/Archive/Docs/f633716173260.pdf [consultado a 24/02/2025].
[39] Dizia Fernando Pessoa (não nas suas vestes de poeta), que “Todo o pensador de sistemas fixos, todo o organizador de conteúdos definidos, sofre fatalmente desilusões, quando não desastres. Em toda a organização prática há, pois, que contar com o inesperado e indefinido da vida. E o facto de que o organismo artificial é remodelável, e substituíveis todas as suas peças, torna possível, até certo ponto, a preparação para o inesperado, digamos mesmo a previsão do imprevisível” – Sociologia do Comércio, Colecção Antologia, C.E.P., s/data, páginas 94-95.
[40] Sobre a confiança e o seu papel no comércio, na economia e na vida social, vd. com interesse, Pierre Rosanvallon, Les Institutions Invisibles, Éditions du Seuil, Paris, 2024, páginas 31 a 50.
[41] Eric Voegelin, A Natureza do Direito e outros textos jurídicos, Vega, 1998, página 95.
[42] Paul Ricoeur, O Justo ou a Essência da Justiça, Instituto Piaget, 1997, páginas 168-169; cfr., também, com interesse, François Ost, A Natureza à Margem da Lei - A Ecologia à Prova do Direito, Instituto Piaget, 1997, páginas 19 a 24.
[43] Assinaturas digitais, cujos certificados estão visíveis no canto superior esquerdo da primeira página (artigos 132.º, n.º 2 e 153.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e 19.º, n.ºs 1 e 2, e 20.º, alínea b), da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto)