LEGITIMIDADE
ASSISTENTE
RECURSO
PENA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
Sumário

I. Urge, antes de mais, aquilatar se à recorrente/assistente assiste legitimidade para (desacompanhada do Ministério Público) interpor recurso, sabido que o mesmo se queda pela refutação da decisão de suspensão de execução da pena de prisão aplicada na primeira instância.
II. «Com a evolução jurisprudencial verificada – no STJ e no Tribunal Constitucional - e doutrinária sobre o estatuto de autêntico sujeito processual do assistente, designadamente sobre os poderes de conformação do procedimento e o interesse próprio na justa decisão da causa penal, entendemos que pode recorrer desacompanhado do MP, no que concerne à espécie e medida concreta da pena, se essa for a via de alcançar tutela judicial efetiva para as pretensões apresentadas e pelas quais pugnou ativamente na sua intervenção processual. Não mais podendo exigir-se do que evidencie não ter a decisão recorrida satisfeito as pretensões de tutela que, legalmente e na justa medida, defendeu perante o tribunal que proferiu a decisão impugnada. Se entre essas pretensões adequadas a satisfazer os seus direitos violados ou outros interesses legítimos, se incluiu pena de uma determinada espécie e/ou com uma medida concreta, sem dúvida que a decisão que assim não condenou lhe foi desfavorável».
III. Está em causa um crime de violência doméstica, o arguido esteve sujeito ininterruptamente à medida de coacção de prisão preventiva desde 11 de Janeiro de 2024 até à data da leitura da sentença revidenda e a vítima, tendo requerido e logrado intervir nos autos como assistente, coerentemente, ao longo do iter processual, maxime no julgamento, em sede de alegações finais, pugnou pela aplicação de uma pena de prisão efectiva ao arguido. E assim sendo, afigura-se que, com o fito de acolhimento da reclamada tutela judicial, lhe assiste, inequivocamente, in casu, direito ao recurso.
IV. É indiscutível, desde logo e ante a sua imensa proliferação, que os crimes de violência doméstica reclamam, por veementes razões de prevenção geral, rigor punitivo. Tanto assim é que, a par da consciencialização e da censura comunitária - nacional e internacional - a jurisprudência tem vindo, progressivamente, a realçar, neste espectro, as fortíssimas exigências de prevenção geral.
V. Se é certo, como aduz a Sra. Juíza, que o arguido confessou objectivamente a globalidade dos factos imputados, de tal (única) circunstância invocada em abono, não será simplisticamente de inferir prognose de rectidão. É que, consabidamente, a mera confissão objectiva da facticidade não equivale a uma atitude de contricção e só «Há arrependimento relevante quando o arguido mostre ter feito reflexão positiva sobre os factos ilícitos cometidos e propósito firme de, no futuro, inflectir na sua conduta anti-social, de modo a poder concluir-se pela probabilidade séria de não recair no crime. O arrependimento é um acto interior revelador de uma personalidade que rejeita o mal praticado e que permite um juízo de confiança no comportamento futuro do agente por forma a que, se vierem a deparar-se-lhe situações idênticas, não voltará a delinquir».
VI. Não será também de olvidar que, antes de ser sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, o arguido vivia na condição de sem abrigo, sem ocupação profissional, e já foi anteriormente condenado, também pela prática de um crime de violência doméstica, numa pena de 3 (três) anos de prisão, que ficou suspensa por igual período, com regime de prova, sendo certo que as condutas delituosas em apreço nestes autos foram prontamente iniciadas findo o período da suspensão de execução da pena aplicada naquele outro processo.
VII. Neste quadro de inolvidáveis fragilidades, do qual ressaltam ponderosas necessidades de prevenção especial, tendo presentes as anteriormente assinaladas fortes exigências de prevenção geral, outra solução não resta senão a de se concluir que inexistem circunstâncias que amparem um juízo de prognose favorável e que sustentem a decidida suspensão de execução da pena.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. Nos autos em referência, precedendo audiência de julgamento, a Senhora Juíza do Tribunal a quo, por sentença de 29 de Outubro de 2024, para o que ora releva, decidiu:
«Condenar o arguido AA pela prática, pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, na pessoa de BB, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 al. a) do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos, e condicionada a regime de prova, assente num plano de reintegração a elaborar pela DGRSP, e subordinada ao cumprimento das seguintes regras de conduta: i) cumprimento das pena acessória referida em B. e ii) obrigação de se submeter/manter a tratamento de alcoologia na Unidade de Alcoologia da área de residência, ou noutro estabelecimento de saúde que lhe venha a ser determinado por aquela entidade, cumprindo todas as recomendações e prescrições que lhe forem determinadas e comparecendo sempre que determinado por aqueles serviços.
Condenar o arguido na pena acessória de obrigação de frequência do Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD), a fiscalizar pela DGRSP;
Condenar o arguido na pena acessória de proibição de contacto com a vítima CC, incluindo o afastamento da residência das mesmas, pelo período de 4 anos».
2. A assistente BB interpôs recurso da sentença proferida. Aparta da motivação as seguintes conclusões:
«Vem o presente Recurso interposto da douta sentença proferida no pretérito dia 29 de outubro de 2024, na parte em que condenou o arguido AA pela prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, al. a) do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 anos, e condicionada a regime de prova, assente num plano de reintegração a elaborar pela DGRSP, e subordinada ao cumprimento das seguintes regras de conduta: i) cumprimento da pena acessória de proibição de contacto com a vítima BB, incluindo o afastamento da residência da mesma, pelo período de 4 anos; e ii) obrigação de se submeter/manter o tratamento de alcoologia na Unidade de Alcoologia da área de residência, ou noutro estabelecimento de saúde que lhe venha a ser determinado por aquela entidade, cumprindo todas as recomendações e prescrições que lhe forem determinadas e comparecendo sempre que determinado por aqueles serviços.
II. Para tanto, justifica o douto Tribunal Recorrido:
“No caso vertente, atendendo a que o arguido admitiu a quase totalidade das condutas por si perpetradas contra vítima, não obstante o antecedente criminal que regista, o Tribunal entende ser de conceder ao arguido uma última e derradeira oportunidade de permanecer em liberdade, pelo que determina a suspensão da execução da pena de prisão ora aplicada ao arguido pelo período de 4 anos.
Mais se determina, nos termos dos artigos 50.º, n.º 2, 52.º, n.º 1, alíneas b) e c), 53.º e 54.º, 152.º, n.º 4, todos do Código Penal e 34º-B, n.º 1, da Lei 112/2009, de 3 de setembro, que a suspensão seja acompanhada de regime de prova assente num plano de reintegração a elaborar pela DGRSP que inclua:
i. o cumprimento da pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica;
ii. à obrigação de se submeter/manter a tratamento de alcoologia na Unidade de Alcoologia da área de residência, ou noutro estabelecimento de saúde que lhe venha a ser determinado por aquela entidade, cumprindo todas as recomendações e prescrições que lhe forem determinadas e comparecendo sempre que determinado por aqueles serviços, atento o consentimento do arguido prestado em audiência e o disposto no artigo 52.º, n, º 1 (não taxativo) e 3 do código Penal.”
Salvo o devido respeito, que é muito pelo douto Tribunal Recorrido, não pode a Assistente concordar com tal juízo.
O tribunal Recorrido fundamenta a suspensão da execução da pena com o facto do Arguido ter confessado, quase que integralmente, os factos aduzidos nas acusações públicas.
A Assistente não se conforma com a decisão de suspender a execução da referida pena de prisão, pois que o Arguido deveria ter sido condenado a pena de prisão efetiva, pois entende-se que não existem elementos que permitam concluir que o peso da pena de prisão suspensa na sua execução, faça o Arguido voltar a não delinquir.
O pressuposto material da suspensão da execução da pena de prisão é que o Tribunal conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do Arguido, ou seja, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
São particularmente intensas as necessidades de prevenção geral, atento o número elevado de verificação de crimes desta natureza, o sentimento de relativa impunidade que ainda hoje se faz sentir, e a forte reprovação social do crime.
Não descurando as necessidades de prevenção geral, há que conciliá-las com as necessidades de prevenção especial, que se consideram também elevadas, de forma a não instrumentalizar o Arguido e evitar que a sua condenação sirva essencialmente de exemplo perante a sociedade e não vise a ressocialização do Arguido.
Ao longo de toda a audiência de julgamento, não obstante o Arguido ter confessado praticamente toda a factualidade dada como provada, de forma espontânea, objetiva e pormenorizada, este não demonstrou qualquer arrependimento, revelando uma falta de interiorização do desvalor das suas condutas, o que dilata as necessidades de prevenção especial que o caso reclama.
O Arguido teve um discurso de total desresponsabilização em relação aos factos constantes das Acusações Públicas.
Ao invés, responsabilizou o álcool pelo sucedido.
Acresce que, quando questionado sobre o facto da Assistente ter ficado com hematomas, após as agressões perpetradas pelo próprio, a resposta do mesmo é de responsabilização da vítima, afirmando “pois a BB tem a pele muito branquinha”.
O Arguido não interiorizou o desvalor, a gravidade e a censurabilidade da sua conduta.
O grau de ilicitude dos factos, pelas consequências no estado anímico da Assistente, pela gravidade e amplitude das ofensas físicas, é elevado.
O Arguido averba uma condenação pela prática em 04.10.2018, de um crime de violência doméstica (Proc. 747/18.5PDAMD), em que foi condenado na pena de 3 anos suspensa por igual período com regime de prova, por decisão transitada em 10.01.2020.
A condenação no contexto do processo 747/18.5PDAMD não serviu ao Arguido de suficiente advertência para que tomasse consciência da gravidade dos seus comportamentos e da necessidade de se afastar da prática de crimes.
O Arguido revela manifesta incapacidade (ou vontade) para entender o desvalor da ação praticada e interiorizar a necessidade da respetiva censura, de modo a conduzir a sua vida sem cometer novos crimes.
Não é possível, face ao historial do Arguido e da sua postura em sede de audiência de julgamento, fazer qualquer juízo de prognose favorável a favor dele.
Não existe fundada expetativa de que o Arguido seja considerado credor de confiança, dado que não se concede que a condenação funcione como uma advertência e que não voltará a delinquir.
Tendo decidido como decidiu, a douta sentença incumpriu os artigos 40.º, n.ºs 1 e 2, e 71.º, n.ºs 1 e 2, e violou o disposto no artigo 50.º, todos do Código Penal, pelo que deverá ser proferido douto Acórdão que condene o Arguido numa pena de prisão efetiva situada entre os 2 anos e 6 meses e 2 anos e 8 meses.
Nestes termos e nos mais de direito que V. Exªs doutamente suprirão deverá proceder o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que condene o Arguido numa pena de prisão efetiva situada entre os 2 anos e 6 meses e 2 anos e 8 meses».
3. O recurso foi admitido, por despacho de 11 de Novembro de 2024.
4. O arguido AA não respondeu ao recurso interposto.
5. A Ex.ma Magistrada do Ministério Público em 1.ª instância propugna pela confirmação do julgado. Extrai da motivação as seguintes conclusões:
«O arguido AA foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, na pessoa de BB, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 (quatro) anos, sujeita a regime de prova e subordinada ao cumprimento das penas acessórias e da obrigação de se submeter/manter a tratamento de alcoologia.
Nenhuma censura nos merece a sentença recorrida quanto à determinação da medida concreta da pena principal aplicada ao arguido, pena que, mostrando-se situada ligeiramente abaixo do terço da moldura penal abstrata aplicável, não viola o princípio da culpa subjacente à pluralidade dos factos praticados pelo arguido, afigurando-se ajustada à gravidade do ilícito global, devendo ser consequentemente mantida.
O tribunal a quo atendeu à colaboração do arguido com a Justiça, confessando grande parte dos factos, revelando um sentido crítico quanto à sua conduta, bem como à ilicitude da conduta do recorrido, reportando-a de moderada.
Por outro lado, o tribunal a quo atendeu, ao grau elevado da culpa, na medida em que os factos praticados revelam um desprezo considerável pelos bens jurídicos protegidos pela norma incriminadora, ao dolo direto com que o arguido atuou, aos antecedentes criminais pela prática de crime idêntico, bem como à situação familiar e profissional do mesmo, o qual não se encontra inserido, considerando as necessidades de prevenção geral elevadas e as exigências de prevenção especial não especialmente acentuadas
A aplicação da pena prisão próxima do limite mínimo, situada no primeiro terço, não se mostra reduzida face à conduta do recorrido, revelando-se, justa proporcional e suficiente, e realizando cabalmente os fins das penas.
O tribunal a quo entendeu, e bem, suspender a pena de prisão na sua execução pelo período de 4 (quatro) anos, por entender que a circunstância de o arguido ter admitido quase a totalidade das condutas por si perpetradas contra a vítima, permite, apesar dos antecedentes criminais que regista, formular um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do mesmo, por forma a, numa última e derradeira oportunidade, acreditar na sua capacidade de, no futuro, ter comportamentos normativos e socialmente relevantes, ficando, consequentemente, asseguradas as finalidades de punição.
Face a tudo o exposto, entendemos que o tribunal a quo ponderou assertivamente, o facto de o recorrido ter atuado com dolo direto, a culpa elevada, a existência de antecedentes criminais por crime idêntico, a ausência de inserção familiar e profissional, bem como, por outro lado, a sua conduta posterior, o espírito crítico demonstrado, face à confissão quase integral dos factos, bem como o grau moderado de ilicitude da sua conduta, adotando o procedimento correto na quantificação das penas e observando as exigências de fundamentação consubstanciadas na formulação expressa das razões específicas que o levaram à suspensão da sua execução, não merecendo as mesmas quaisquer reparos, procedendo à aplicação correta das normas constantes nos artigos 40º, 50 e 71º, do Código Penal.
Deverá, pois, ser mantida a sentença recorrida».
6. Nesta instância, a Sra. Procuradora Geral Adjunta é de parecer que o recurso deve ser julgado procedente.
Pondera, ademais e em síntese, nos seguintes termos: «(…) tendo em consideração a personalidade do agente, as condições da sua vida anterior à prática do crime e as circunstâncias deste, os seus antecedentes criminais, concordamos com a posição da assistente e ora recorrente no sentido que não é possível fazer um juízo de prognose positiva tendo em vista a suspensão da execução da pena de prisão, sendo no caso concreto desadequada a aplicação da pena de substituição não detentiva, nomeadamente a suspensão da sua execução.
Estabelece o artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, que “o Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
O citado preceito legal representa, pois, um poder-dever, estando o juiz obrigado a suspender a execução da pena de prisão, sempre que os respetivos pressupostos se verifiquem (acórdão do STJ, de 04.07.96, in CJSTJ, tomo II, p.225; no mesmo sentido
Figueiredo Dias, “Velhas e novas questões sobre a pena de suspensão da execução da pena”, Rev. de Leg. e Jur. ano 124.º, pág. 68).
Como se salientou no acórdão do STJ, de 08.05.97 (in www.dgsi.pt), “factor essencial à filosofia do instituto da suspensão da execução da pena é a capacidade da medida para apontar ao próprio arguido o rumo certo no domínio da valoração do seu comportamento de acordo com as exigências do direito penal, impondo-se-lhe como factor pedagógico de contestação e auto-responsabilização pelo comportamento posterior; para a sua concessão é necessária a capacidade do arguido de sentir essa ameaça, a exercer sobre si o efeito contentor, em caso de situação parecida, e a capacidade de vencer a vontade de delinquir”.
Como referem Simas Santos e Leal-Henriques, “na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável ao arguido, ou seja, a esperança de que ele sentirá a condenação como uma advertência e que não voltará a delinquir. O tribunal deverá correr um risco prudente - esperança não é seguramente certeza, mas se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do arguido para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa” -cfr. Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, Noções de Direito Penal, ed., Rei dos Livros, 2016, Pá9,210.
É assim necessário, para aplicação desta pena de substituição, que se possa concluir que o arguido, presumivelmente, não voltará a cometer um novo crime.
Ora, como bem anota a recorrente, o arguido foi condenado no Proc.nº 747/18.5PDAMD do JL Criminal de Amadora do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, por sentença transitada em julgado em 10.01.2020, por um crime de violência doméstica p.p. pelo art.º 152º, nº 1, al. a), do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova e ainda nas penas acessórias de frequência de programas específicos de prevenção violência doméstica e de proibição de contacto com a vítima. Esta pena foi declarada extinta em 10.01.2023.
E como se constata, voltou a praticar crime de idêntica natureza, agora na pessoa de distinta vítima.
É, pois, manifestamente inconsequente considerar-se que o arguido após voltar a delinquir em crime de idêntica natureza depois ter sido condenado numa pena de prisão, ainda que suspensa na sua execução, se mostra merecedor de um juízo de prognose favorável, em ordem a que se acredite bastarem a censura do facto e a ameaça da pena para o afastar da criminalidade.
Antes pelo contrário, o que resulta é que o arguido é portador de uma clara propensão para a prática de crimes, considerando a conduta posterior ao facto (marcada por nova condenação pelo mesmo tipo de crime – violência doméstica), pelo que sempre se oporiam, assim, à concessão de tal benefício, fortes razões de reprovação e prevenção especial.
O arguido revela com a conduta julgada nos presentes autos uma personalidade indiferente ao direito e com total desaproveitamento da pena criminal anterior.
E não pode ser a confissão dos factos o crédito da confiança, o factor determinante a favor do arguido, aliás a confiança que ele não soube aproveitar com a anterior suspensão da execução da pena a que foi condenado e que frustrou com a prática do atual crime.
A sua confissão dos factos não pode ser avaliada isoladamente, sem ser conjugada com as demais circunstâncias a sopesar: a existência de um antecedente criminal por crime de idêntica natureza; a falta de inserção familiar e profissional; a elevada, intensidade do dolo direto; o hiato de tempo em que os factos ocorreram, assim como a reiteração das condutas.
E verdade, o caso sub Judice é um caso paradigmático de que a pena de prisão suspensa na sua execução não foi suficiente para dissuadir o arguido de voltar a delinquir.
Temos, assim, que no caso vertente e na nossa humilde opinião, se mostra plenamente justificada a não opção pela suspensão da respetiva execução, porquanto as elevadas exigências de prevenção especial não permitem efetuar um juízo de prognose favorável à socialização em liberdade.
Acresce que, e apresentando-se a prevenção geral positiva como finalidade primordial a prosseguir com as penas, há que referir que o sentimento jurídico da comunidade na validade e na força de vigência das normas penais violadas numa situação como a presente, de sucessiva condenação penal, pelo mesmo tipo de crime - violência doméstica , em que já beneficiou por uma vez da suspensão de execução da pena de prisão, e ficaria afectado por mais uma substituição da pena de prisão pela suspensão da sua execução, mesmo que sujeita a condições ou regime de prova.
Temos, assim, que a comunidade não consideraria reposta a confiança na validade da norma violada com o sancionamento do arguido através da pretendida pena de substituição.
Conforme entendimento do Prof. Figueiredo Dias, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada, mesmo em caso de conclusão do tribunal por um prognóstico favorável ( à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização) , se a ela se opuserem as finalidades da punição (art.50º, nº1 e 40º, nº1 , n.ºl do Código Penal), nomeadamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigência mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento Jurídico, pois que “ só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre- o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto” Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, as Consequências do Crime”, pag., Pág. 344.
E no caso concreto
Ignorou, também, o Tribunal a quo que nos crimes de violência doméstica se acentuam as necessidades de prevenção geral face ao flagelo associado a esta problemática e à necessidade de combate nacional a este tipo de crime que passa também pela refirmação da norma Jurídica violada, exigindo a sociedade neste tipo de criminalidade grande rigor punitivo.
E em consequência, não podemos deixar de concordar com a Recorrente que o Tribunal a quo, ao optar pela suspensão da execução da pena de em que condenou o arguido não fez uma correta interpretação dos critérios contidos nas disposições conjugadas dos arts. 40º nº 1 e 50º, do Código Penal, e incorreu em erro de julgamento, quanto ao juízo de prognose do comportamento futuro do arguido e ao suspender a execução da pena.
Assim, razões de prevenção especial e também de prevenção geral impedem, pois, a subsunção da pena de prisão imposta pela suspensão da respectiva execução, mostrando-se esta incapaz de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Deste modo, concluindo-se, pois, pela inadequação de aplicação de tal pena de substituição, por a ela se sobreporem as expostas necessidades de reprovação e prevenção do crime (artigos 40.º, n.º 1, 50º e 70.º, do Código Penal), só resta o caminho do cumprimento efectivo da pena de prisão fixada.
A ressocialização que se impõe, em ordem a uma verdadeira reinserção, só se realiza pela efectiva privação da liberdade.
Como bem anota o recorrente.
Tendo decidido como decidiu, a douta sentença incumpriu os artigos 40.º, n.ºs 1, 70º, e violou o disposto no artigo 50.º, todos do Código Penal, pelo que deverá ser proferido douto Acórdão que condene o Arguido numa pena de prisão efetiva».
7. Cumprido o artigo 417.º, n.º 2 do C.P.P., respondeu apenas a assistente/recorrente que manifestou adesão ao parecer da Sra. Procuradora-Geral Adjunta.
8. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.
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Da questão prévia da admissibilidade do recurso
Pese embora se trate de questão que não foi suscitada, quer no Tribunal a quo, quer neste Tribunal, urge, antes de mais, aquilatar se à recorrente/assistente assiste legitimidade para (desacompanhada do Ministério Público) interpor recurso, sabido, nos termos já acima enunciados, que o mesmo se queda pela refutação da decisão de suspensão de execução da pena de prisão aplicada na primeira instância.
Tal como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3 de Fevereiro de 2021, processo n.º 4038/18.3JAPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt., trata-se de controvérsia que tem determinado ampla discussão e que, ademais, despoletou fixação/uniformização de jurisprudência por três vezes: «A primeira, no assento n.º 8/99 (assim então se titulava as decisões daquela natureza), estabelecendo: "O assistente não tem legitimidade para recorrer desacompanhado do MP relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir".
A segunda, no AUJ n.º 5/2011, estabeleceu "em processo por crime público ou semipúblico, o assistente que não deduziu acusação autónoma nem aderiu à acusação pública pode recorrer da decisão de não pronúncia em instrução requerida pelo arguido, e da sentença absolutória, mesmo não havendo recurso do Ministério Público"
A terceira, no recente AUJ n.º 2/2020, estabelecendo: “o assistente, ainda que desacompanhado do Ministério Público, pode recorrer para que a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado fique condicionada ao pagamento, dentro de certo prazo, da indemnização que lhe foi arbitrada”.
No último acórdão uniformizador – tirado por coletivo constituído pela maioria dos atuais juízes Conselheiros das secções criminais -, ademais de notar a evolução da jurisprudência do STJ no sentido de ampliar a intervenção efetiva do assistente na conformação e desenvolvimento do processo penal, enfatiza-se a tendência legiferante no sentido do reforço do estatuto da vítima com a expansão dos direitos de intervenção ativa e autónoma no processual penal, expendendo: “Refira-se, sumariamente, que por força do direito comunitário (16) a Lei n.º 130/2015, de 04.09, ao transpor a Directiva 2012/29/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25.10.2012, deu foros de cidadania à "vítima", aprovando o respectivo Estatuto e aditando à sistemática do CPP um novo título sob a epígrafe "vítima" composto pelo artigo 67.º-A (artigo 4.º, n.º 2) em cujo n.º 4, além do mais, se afirma o direito de "participação activa no processo penal", o que vai de encontro à possibilidade de o assistente enquanto vítima/lesado/ofendido poder, sem peias, lançar mão do recurso, em situações como a que” ali se uniformizou.
A legitimidade do assistente para interpor recurso de decisões judiciais, desacompanhado do Ministério Público, não suscita especiais dificuldades interpretativas. Está linearmente estabelecida nos arts. 69º n.º 2 al.ª c), 401º n.º 1 al.ª b), 437º n.º 5 e 450º n.º 1 al.ª b), todos do CPP. Da formulação normativa resulta desde logo que o assistente pode acompanhar o recurso do Ministério Público, desde que não seja em favor do arguido. Não é este, evidentemente, o caso dos autos. Quando o Ministério Público não recorre, o assistente pode impugnar qualquer decisão judicial que afete os seus direitos ou interesses legítimos, contanto seja recorrível.
A questão centra-se em determinar que decisões judiciais afetam o assistente ou, na outra formulação legal, que foram contra ele proferidas. Percurso que nos transporta para a finalidade do processo penal e, no termo da vereda, nos conduz ao interesse em agir dos sujeitos processuais. Ministério Público incluído, a quem a lei confere amplos poderes de recurso – “de quaisquer decisões ainda que no interesse da defesa” - mas que não pode furtar-se ao verdadeiro pressuposto processual que é o interesse em agir no caso concreto, como resulta da norma do art. 401º n.º 3, na interpretação fixada no AUJ n.º 2/2011: “Em face das disposições conjugadas dos artigos 48.º a 53.º e 401.º do Código de Processo Penal, o Ministério Público não tem interesse em agir para recorrer de decisões concordantes com a sua posição anteriormente assumida no processo”.
Assentes nestes parâmetros, o direito ao recurso do assistente, desacompanhado do Ministério Público haverá de buscar-se por um lado na finalidade do processo penal e, concomitantemente, na definição do interesse em agir, ou numa formulação mais consentânea à tutela judicial efetiva, até onde vão os direitos ou interesses legítimos do assistente na realização do direito no caso concreto.
Quanto à finalidade do processo penal têm-se por redutora a tradicionalmente aceite, conceção de que visa efetivar o direito exclusivo do Estado de punir, condenando os culpados e absolvendo os inocentes. De que a relação jurídica fundamental que se estabelece no processo penal é, tão-somente entre o Estado e o arguido. Cabendo ao tribunal dirimi-la.
O Estado, sem dúvida interessado em exercer aquele seu direito exclusivo, através das regras adjetivas estabelecidas, todavia não pode considerar que fica, plena e justamente cumprido com a condenação do culpado numa qualquer espécie de pena e/ou com uma qualquer medida concreta. O Estado de Direito Democrático só pode querer que o arguido culpado de ter cometido um crime, seja condenado na justa medida – art.º 18º da Constituição da República –, naturalmente decorrente da acertada interpretação e aplicação das regras que comandam a escolha e a individualização da pena. Dimensão que não será alcançada tanto por uma pena excessiva e desproporcionada como, - pode que com menor gravidade, mas ainda assim injustamente e de modo a fomentar desigualdade de tratamento intolerável -, por uma pena que, principalmente na espécie, mas também na medida concreta peca por manifesta escassez à luz daqueles critérios legais e da aplicação prática que a jurisprudência maioritariamente tenha vindo a adotar. O interesse do moderno Estado de Direito Democrático é, sobretudo, de que o processo penal realize justamente o direito substantivo, o direito criminal. Justiça que tem de materializar-se não somente no sentido da decisão, mas também, em caso de condenação, essencialmente, ao nível da justeza das concretas consequências jurídicas do crime. Atualização da finalidade do processo penal que se repercute, necessariamente, na expansão da intervenção de outros sujeitos processuais na realização material e juridicamente fundada do direito criminal. No direito criminal a escolha e a individualização da pena pautam-se por regras que estabelecem critérios estritos. O recurso, especialmente o recurso do assistente, destinado a contestar a espécie e/ou a medida da pena tem de respeitar aqueles critérios, sob pena de rejeição liminar e condenação em sanção processualmente prevista.
Depois, não pode desconsiderar-se que o legislador, confere legitimidade ao assistente para, sem nenhuma exigência adicional relativamente aos outros sujeitos processuais, interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência. Sendo este um recurso “normativo” destinado estabelecer a certeza e a igualdade na aplicação do direito, que visa solucionar um conflito jurisprudencial, mas com eficácia “prospetiva”, através da fixação de uma determinada interpretação do direito material ou adjetivo, só pode conceber-se como expressão da aceitação da sua contribuição para a melhor realização do direito.
Jurisprudência e doutrina mais recentes manifestam-se contra a visão tradicional que restringe o estatuto de sujeito processual do assistente, circunscrevendo os seus poderes processuais à de mero colaborador da atividade do Ministério Público, a quem, no fim de contas, tinha de subordinar a sua atuação. Nessa conceção, a relevância do papel do assistente “na promoção de uma aplicação correta do direito” resume-se ao controlo da atuação do Ministério Público. Sustenta que “sendo o Ministério Público o único titular do direito de acção penal — nos crimes públicos —, a posição processual do assistente tem natureza ancilar, não podendo ver‑se nela uma posição de titularidade plena de um direito fundamental (afirmação diferente se terá de fazer quanto ao arguido e quanto às partes civis). E mesmo tratando‑se de crimes dependentes de acusação particular, a natureza pública do processo não põe irremediavelmente em crise esta concepção da figura do assistente” – Apud acórdão n.º 254/98 do Tribunal Constitucional.
Na jurisprudência, aos AUJ citados, acrescenta-se o entendimento largamente maioritário no sentido de que o assistente pode recorrer mesmo que do provimento do recurso advenha alteração da espécie e medida da pena sempre que ao longo do processo tenha pugnado ativamente por uma determinada solução jurídico-criminal que a decisão final não consagrou.
Assim,- e sem ir mais atrás - no acórdão de 27/05/2015 deste Supremo Tribunal (e secção), sustentou-se que “tem legitimidade processual e interesse em agir, a assistente que recorre do acórdão da 1.ª instância, que desqualificou o homicídio, adoptando solução diversa da defendida pela assistente que aderiu à acusação pública (que imputava ao arguido a prática de um homicídio qualificado), lançando mão da forma de impugnação mais ampla e abrangente, nos termos do art. 412.°, n.º 3 e 4, do CPP, e igualmente, com invocação de vícios decisórios - als. a) e c) do n.º 2 do art. 410.° do CPP -, com vista à modificação da factualidade dada por provada e não provada na primeira instância e da qualificação do homicídio como qualificado e da medida da pena”. “Atendendo à intervenção processual pretérita da assistente, considera-se preenchido o pressuposto da legitimidade e do interesse em agir, não sendo caso de rejeição do recurso “.
No Ac. STJ de 25/11/2015, (também desta secção) expendeu-se; “A aferição da legitimidade e interesse em agir dos recorrentes terá de ancorar-se na atitude assumida no processo”.
Entendimento mais amplo seguiu-se no acórdão de 22/1/2015, deste STJ (5ª secção) segundo o qual: “o assistente, que viu os seus bens jurídicos lesados com a prática do crime, tem também um interesse próprio na resposta punitiva dada pelo Estado: há um interesse concreto do assistente em uma resposta punitiva que entenda como justa tendo em conta os bens jurídicos que foram ofendidos
No Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 205/2001 – incidente sobre questão similar à dos autos -, expendeu-se: “não se pode aceitar uma concepção tão redutora; o assistente surge como um verdadeiro sujeito processual, com atribuições próprias, permitindo-lhe a lei, pelo menos em determinadas situações, agir sozinho ou até contra o Ministério Público [cf., por exemplo, os artigos 69.º, n.º 2, 287.º, n.º 1, alínea b), e 401.º, n.º 1, alínea b), do CPP]. Ainda que com limites, é certo, os assistentes, pelo menos nessa medida, não subordinam totalmente a sua actuação à do MP. Certo que ao MP compete o exercício da acção penal, colaborando com o tribunal na descoberta da verdade e na valorização do direito (cf. o artigo 53.º, n.º 1, do CPP). Mas, nos casos referentes a crimes particulares, a sua actividade encontra-se desde logo condicionada pela apresentação da queixa e constituição como assistente pelo ofendido, e nos crimes semipúblicos, depende também da formalização da queixa pelo ofendido. É nos crimes públicos - como o dos autos - que o MP não se encontra já condicionado por qualquer actividade do ofendido, passando a ser a intervenção do assistente / desnecessária para desencadear ou prosseguir o processo; a intervenção do ofendido (ou seus representantes ou sucessores) passa a ser uma faculdade, na discricionariedade deste. Mas não fica como tal eliminada ou descaracterizada; como no próprio preâmbulo do CPP se pode ler, 'o reforço da consistência do estatuto do assistente, com a intenção manifesta de consolidar o papel de um dos protagonistas no campo da conflitualidade real', foi uma das tónicas deste sistema processual."
Também ao assistente é reconhecido o direito de interpor recurso das decisões que o afectem, mesmo que o Ministério Público não o tenha feito, nos termos dos artigos 69.º, n.º 2, alínea c), e 401.º, n.º 1, alínea b)”.
Cremos poder interpretar que para Damião da Cunha, o legislador processual penal reconhece ao assistente uma “atuação constitutiva (…) em ordem a obter uma decisão justa de acordo com as suas expectativas”.
Quanto ao interesse em agir, ou direito à jurisdição, na formulação ínsita no art. 20º da Constituição da República, o legislador estabeleceu como pressuposto que a decisão judicial afete o assistente ou seja contra ele proferida.
Na definição de G. Marques da Silva, afetam, as decisões “que contrariem as posições processuais assumidas pelo assistente”.
Na definição do Ac. STJ de 12/10/2016, “constitui decisão proferida contra o assistente a decisão que, tendo em conta a acusação por aquele deduzida ou sufragada e as pretensões por ele formuladas no âmbito das suas atribuições, com vista ao julgamento e à decisão da causa, julga as mesmas improcedentes, total ou parcialmente”.
Na definição do Ac. de 18/01/2012, deste STJ, “o interesse em agir consiste na necessidade de apelo aos tribunais para acautelar um direito ameaçado que necessite de tutela e só por essa via possa obtê-la; o interesse em agir radica na utilidade e imprescindibilidade do recurso aos meios judiciários para assegurar um direito em perigo: trata-se de uma posição objectiva perante o processo, que é ajuizada a posteriori”.
Na doutrina, Damião da Cunha defende que “o assistente pode interpor recurso restrito á questão da medida da pena, quando durante a audiência de julgamento ele tenha formulado um qualquer pretensão sobre tal matéria que não tenha merecido acolhimento na decisão final.”
Entendemos que o interesse em agir firmado no art. 401º n.º 2 do CPP, já está, em grande medida, incorporado no conceito legal “de decisões contra eles proferidas”. O assistente, como o arguido, (também as partes civis na parte correspondente) – só podem obter utilidade e, consequentemente, apenas têm interesse em recorrer das decisões que os afetem, que não reconheçam os direitos ou interesses jurídicos por que tenham pugnado no processo.
Sustenta no ac. STJ de 25/10/2018 (5ª secção), seguindo estritamente o entendimento defendido por Cláudia Cruz Santos: “ainda que as finalidades da punição que justificam a espécie e a medida da pena, não visam dar satisfação ao ofendido pelo crime, (…) não pode escamotear-se que o assistente tem também um interesse próprio e concreto na resposta punitiva que é justaposto ao interesse comunitário na realização da justiça. Nessa justaposição (…) é que deve ser encontrado «o fundamento para a possibilidade de recurso autónomo do assistente em matéria penal». (…) «enquanto assistente, ele tem o poder de procurar conformar a resposta à questão penal, que engloba quer a questão da culpa quer a questão da pena. Logo, se através da operação de determinação da medida da pena em sentido amplo o Tribunal chegar a uma decisão contrária à pretensão manifestada pelo assistente no processo e que ofenda o seu concreto interesse na justeza da punição (…), dessa decisão deverá o assistente ter a faculdade de recorrer de forma autónoma».
Com a evolução jurisprudencial verificada – no STJ e no Tribunal Constitucional - e doutrinária sobre o estatuto de autêntico sujeito processual do assistente, designadamente sobre os poderes de conformação do procedimento e o interesse próprio na justa decisão da causa penal, entendemos que pode recorrer desacompanhado do MP, no que concerne à espécie e medida concreta da pena, se essa for a via de alcançar tutela judicial efetiva para as pretensões apresentadas e pelas quais pugnou ativamente na sua intervenção processual. Não mais podendo exigir-se do que evidencie não ter a decisão recorrida satisfeito as pretensões de tutela que, legalmente e na justa medida, defendeu perante o tribunal que proferiu a decisão impugnada. Se entre essas pretensões adequadas a satisfazer os seus direitos violados ou outros interesses legítimos, se incluiu pena de uma determinada espécie e/ou com uma medida concreta, sem dúvida que a decisão que assim não condenou lhe foi desfavorável».
No mesmo sentido Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código do Processo Penal, Tomo I, p. 820, refere a respeito: «Relevante, cremos, é que a possibilidade de o assistente recorrer da decisão sobre a escolha ou medida da sanção não pode desvincular-se da questão substancial dos fins adscritos às penas, entre os quais surge, com proeminência, a tutela de bens jurídicos (art. 40.º/1 CP). Se a satisfação desse fim pela aplicação de uma pena conforma, juntamente com a questão da determinação da culpa, o ius puniendi estadual, nem por ser matéria de evidente "interesse público" deve a respeito dela ser considerado estranho o ofendido constituído assistente pois, precisamente, é ele o titular do bem jurídico menoscabado pela conduta do arguido que assim se fez "credor" da reação punitiva do Estado. Se aqui age o assistente desacompanhado do MP não é porque subtraia a sua ação ao interesse público, mas sim porque, como acima se disse (§§ 1 e 2), a cabal satisfação deste poderá requerer o reconhecimento de espaços de não sobreposição, desacordo ou mesmo contradição com a posição do MP, de que a faculdade consagrada na al. c) do n.º 2 do art. 69.º é exemplo. De modo que deve ser amplamente entendida a faculdade de o assistente recorrer da decisão sobre a escolha ou medida da pena, não se lhe fazendo exigências adicionais à manifestação de desacordo sustentada na própria motivação e conclusões do recurso, pois que a cláusula geral do n.º 2 do art. 401.º, formulada pela negativa, será suficiente para filtrar as situações em que, no confronto com a motivação e conclusões do recurso, não tenha ele interesse na impugnação (paradigmaticamente, quando tenha deixado rasto processual de se ter sugerido pena cuja severidade, pela sua natureza ou medida, se contém na que veio a ser aplicada)».
Volvendo à situação em crise, constata-se que está em causa um crime de violência doméstica, que o arguido esteve sujeito ininterruptamente à medida de coacção de prisão preventiva desde 11 de Janeiro de 2024 até à data da leitura da sentença revidenda e que a vítima1, tendo requerido e logrado intervir nos autos como assistente, coerentemente, ao longo do iter processual, maxime no julgamento, em sede de alegações finais, pugnou pela aplicação de uma pena de prisão efectiva ao arguido.
E assim sendo, afigura-se que, com o fito de acolhimento da reclamada tutela judicial, lhe assiste, inequivocamente, in casu, direito ao recurso.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. Delimitação do objeto do recurso
Atento o teor das conclusões da motivação do recurso, importa fazer exame da questão atinente ao erro do Tribunal a quo no julgamento da matéria de direito, concreta e exclusivamente, no que concerne à decisão de suspensão de execução da pena de prisão aplicada.
2. A decisão trazida da instância sobre a matéria de facto é do seguinte teor:
«A) FACTOS PROVADOS
Discutida a causa, e com relevância para a mesma, resultaram provados os seguintes factos:
A) Do NUIP 770/23.8PGCSC
1. O arguido AA e BB (doravante “BB”) iniciaram uma relação de namoro em … de 2022, com partilha de cama, mesa e habitação, inicialmente numa tenda em ..., a partir de … de 2022 em casas abandonadas na zona de ... e, a partir de … de 2022, numa tenda instalada na ....
2. A partir de … de 2023 o arguido e BB passaram a residir numa caravana sita na ..., lote caravana, ..., pertencente a esta.
3. Desde data não apurada de … de 2023, em pelo menos duas ocasiões, o arguido – encontrando-se alcoolizado - dirigiu a BB a seguinte expressão “Vai para o caralho, vai para a puta da tua mãe” e, em pelo menos uma ocasião, estando igualmente alcoolizado, disse-lhe “não sabes fazer nada, não prestas para nada!".
4. Em data não apurada de … de 2023, quando viviam numa casa abandonada, na sequência de uma discussão na qual o arguido estava sob a influência do álcool, o arguido envolveu o pescoço de BB com as suas mãos e apertou-o, com recurso à força física, largando-o, de seguida.
5. Em consequência da atuação do arguido descrita em 4., BB sentiu dores e ficou com um hematoma na zona atingida.
6. Em ........2023, em local e hora não concretamente apurado, o arguido e BB discutiram em virtude de uma contenda com terceiras pessoas.
7. Nessa sequência o arguido, que estava sob a influência do álcool, com recurso à força física, segurou os braços de BB com força, abanando-os.
8. Em consequência da atuação do arguido descrita em 7., BB sentiu dores e ficou com um hematoma na zona atingida.
9. Em data não concretamente apurada, mas após os factos descritos em 6. e 7., no interior da carava sita em 2, o arguido acordou BB com o intuito de manter relações sexuais com esta, tendo a vítima recusado.
10. Em face da recusa de BB, o arguido travou-se de razões com esta e disse-lhe: "Se não queres é porque tens outro!".
11. Momentos mais tarde, BB se estava a arranjar para ir trabalhar, o arguido, com recurso à força física, agarrou-a pelos braços, impedindo-a de sair.
12. Seguidamente, o arguido colocou a sua mão no queixo de BB, agarrando com recurso à força física, com vista a obrigá-la a manter relações sexuais, ao que esta recusou, acabando por abandonar a habitação.
13. Em consequência da atuação do arguido descrita de 9. a 12., BB sentiu dores e ficou com um hematoma nas zonas do queixo e braços atingidos.
14. Em ….2023 ao arguido presente a 1.º interrogatório judicial de arguido detido, foram-lhe aplicadas as medidas de coação, para além das obrigações decorrentes do TIR, de não contactar a vítima, por qualquer meio, seja diretamente seja por interposta pessoa, obrigação de não permanecer ou se aproximar da residência ou do emprego da vítima, medida a fiscalizar eletronicamente.
15. Não obstante, em ........2023, em hora não concretamente apurada, o arguido dirigiu-se à caravana da vítima, a pedido desta.
16. No dia seguinte, o arguido ao aperceber-se que a vítima se dirigia para o local de trabalho, foi atrás da mesma até ao autocarro.
17. Com as atuações acima descritas, o arguido quis e conseguiu magoar, amedrontar e humilhar BB.
18. Mais agiu o arguido AA de forma livre, voluntária e consciente, reiteradamente, com o propósito concretizado de maltratar física e psicologicamente, amedrontar, humilhar, menosprezar e magoar BB, causando-lhe dores, medo e inquietação e lesando-a na sua dignidade pessoal e enquanto mulher, sabendo que desrespeitava a sua capacidade de decidir com quem se relacionar sexualmente, bem sabendo que, na qualidade de companheiro da vítima, sobre si impendia um dever acrescido de respeito para com aquela, bem como, um dever acrescido de não atentar contra o seu bem-estar físico e psíquico não se coibindo de o fazer na residência de ambos.
19. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e tinha capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
B) Do NUIP 4435/23.2T9CSC
20. Em ........2023 o arguido foi presente a 1.º interrogatório judicial de arguido detido.
21. A partir de … de 2023, o arguido encontrou-se regularmente com BB, por mútuo acordo entre ambos.
22. Em ….2023, pelas 19h30, quando arguido e BB preparavam pipocas com bacon em conjunto, iniciaram uma discussão por falta de um dos ingredientes.
23. Nessa altura, e estando sob a influência do álcool, o arguido desferiu uma violenta pancada de mão aberta na lateral esquerda da face da vítima, apanhando-lhe o olho e a zona da boca.
24. Em consequência da atuação do arguido descrita em 23., BB sentiu dores e ficou com um hematoma na zona atingida, tendo sangrado e ficado marca arroxeada na região periorbital esquerda. Tais lesões determinaram um período de cura fixável em 10 (dez) dias, com afectação da capacidade geral de trabalho (5 dias) e com afectação da capacidade de trabalho profissional (5 dias).
25. Quanto a vítima se apercebeu que estava a sangrar do lábio disse ao arguido "estás a ver tu matas-me!", ao que o arguido retorquiu "isso não é nada eu também já levei cinco facas de cinco africanos!".
26. A vítima solicitou ao arguido para se ir embora e disse que iria chamar a polícia, ao que o arguido retorquiu "perdão amor, não vás à Polícia, bate-me também, deixa estar que eu vou embora, nunca mais me vês!".
27. Seguidamente, o arguido abandonou o local para parte incerta.
28. Com as actuações acima descritas, o arguido AA quis e conseguiu magoar, amedrontar e humilhar BB.
29. Mais agiu o arguido AA de forma livre, voluntária e consciente, reiteradamente, com o propósito concretizado de maltratar física e psicologicamente, amedrontar, humilhar, menosprezar e magoar a vítima, causando-lhe dores, medo e inquietação e lesando-a na sua dignidade pessoal e enquanto mulher, bem sabendo que, na qualidade de companheiro da vítima, sobre si impendia um dever acrescido de respeito para com aquela, bem como, um dever acrescido de não atentar contra o seu bem-estar físico e psíquico não se coibindo de o fazer na residência de ambos.
30. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e tinha capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
C) Mais se provou
31. O arguido já foi condenado na pena de 3 anos suspensa por igual período com regime de prova, por decisão transitada em 10.1.2020, pela prática em 04.10.2018 de um crime de violência doméstica - processo 747/18.5PDAMD;
32. O arguido está em situação de reclusão, em prisão preventiva, desde Janeiro deste ano.
33. No EP não recebe visitas e não teve nenhum processo disciplinar.
34. Trabalha no EP na … e frequenta um grupo de acompanhamento para a dependência do álcool.
35. Antes da reclusão o arguido fazia biscates na área de … e vivia em situação de “sem abrigo”.
36. Vive em Portugal há 7 anos.
37. Tem de habilitações literárias o 9.º ano de escolaridade».
3. Do recurso interposto
A recorrente/assistente pretende que a pena aplicada ao arguido não seja suspensa na sua execução, concluindo que o Tribunal a quo incorreu em erro de jure, por deficiente interpretação do disposto nos art. 50.º do C.P.
Antes de mais, atentemos que neste particular (da decisão de suspensão da execução da pena) a Sra. Juíza do Tribunal a quo ponderou nos seguintes termos:
«ii) Da suspensão da execução da pena de prisão
Nos termos do artigo 50.º n.º 1 do Código Penal: “O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Através desta norma o legislador consagrou um poder-dever do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização daquelas finalidades, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos, sendo esta uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico. Por outro lado, nos termos do artigo 50.º n.º 5 do Código Penal, o período de suspensão é fixado entre um e cinco ano.
No caso vertente, atendendo a que o arguido admitiu a quase totalidade das condutas por si perpetradas contra vítima, não obstante o antecedente criminal que regista, o Tribunal entende ser de conceder ao arguido uma última e derradeira oportunidade de permanecer em liberdade, pelo que determina a suspensão da execução da pena de prisão ora aplicada ao arguido pelo período de 4 anos.
Mais se determina, nos termos dos artigos 50.º, n.º 2, 52.º, n.º 1, alíneas b)e c), 53.º e 54.º, 152.º, n.º 4, todos do Código Penal e 34º-B, n.º 1, da Lei 112/2009, de 3 de setembro, que a suspensão seja acompanhada de regime de prova assente num plano de reintegração a elaborar pela DGRSP que inclua: i) o cumprimento da pena acessória de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica; ii) à obrigação de se submeter/manter a tratamento de alcoologia na Unidade de Alcoologia da área de residência, ou noutro estabelecimento de saúde que lhe venha a ser determinado por aquela entidade, cumprindo todas as recomendações e prescrições que lhe forem determinadas e comparecendo sempre que determinado por aqueles serviços, atento o consentimento do arguido prestado em audiência e o disposto no artigo 52.º, n,º 1 (não taxativo) e 3 do código Penal».
Vejamos.
Tal como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10 de Fevereiro de 2010, proferido no âmbito do processo n.º 279/06.4GBOAZ.P1, in www.dgsi.pt., «Só há lugar à suspensão da execução de uma pena de prisão, atento o disposto no art. 50.º, n.º 1 do C. Penal (1995), se a simples censura do facto e a ameaça daquela pena forem bastantes para afastar o arguido da criminalidade, satisfazendo simultaneamente as necessidades de reprovação e prevenção do crime.
A jurisprudência tem assim vindo a acentuar, que a suspensão da pena é uma medida penal de conteúdo pedagógico e reeducativo que pressupõe uma relação de confiança entre o tribunal e o arguido, estando na sua base um juízo de prognose social favorável ao condenado [Ac. do STJ de 2002/Jan./09 (Recurso n.º 3026/01-3.ª) e 2007/Out./18, (Recurso n.º 3185/07) divulgados, respectivamente, em http://www.stj.pt e www.colectaneadejurisprudência.com)].
Tal juízo deverá assentar num risco de prudência entre a reinserção e a protecção dos bens jurídicos violados, reflectindo-se sobre a personalidade do agente, as suas condições de vida, a sua conduta “ante et post crimen” e sobre todo o circunstancialismo envolvente da infracção.
Para o efeito, será de atender que a pena de prisão suspensa, sujeita ou não a certas condições ou obrigações, é a reacção penal por excelência que exprime um juízo de desvalor ético-social e que não só antevê, como propicia ao condenado, a sua reintegração na sociedade, que é um dos vectores dos fins das penas (função de prevenção especial de reinserção ou positiva).
Porém, outros dos seus vectores é a protecção dos bens jurídicos violados e, naturalmente, a protecção da própria vítima e da sociedade em relação aos agentes do crime, de modo que, responsabilizando suficientemente estes últimos, se possa esperar que os mesmos não venham a adoptar novas condutas desviantes (função de prevenção especial defensiva ou negativa).
Na protecção dos bens jurídicos, será igualmente de destacar que a reacção penal a aplicar deve, tanto quanto possível, neutralizar o efeito do delito, passando este a surgir, sem sombra de dúvidas, como um exemplo negativo para a comunidade e contribuindo, ao mesmo tempo, para fortalecer a consciência jurídica da mesma (função de prevenção geral).
Pretende-se, assim, dar satisfação ao sentimento de justiça do mundo circundante que rodeia o arguido, através do mínimo de prevenção geral de defesa da ordem jurídica [Ac. STJ de 2007/Set./26, (Recurso n.º 2579/07), acessível em www.colectaneadejurisprudência.com].
Daí que, muitas vezes, e sobrepondo-se à ressocialização, seja necessária a execução de uma pena de prisão para defesa do ordenamento jurídico, designadamente quando o comportamento desviante for revelador de uma atitude generalizada e consequente de não se tomar a sério o desvalor de certas condutas relevantemente ofensivas da vida comunitária, de acordo com os princípios constitucionais relevantes de um Estado de Direito Democrático.
E isto porque a suspensão generalizada e tida como “normal” ou “corrente” das penas de prisão de amplitude elevada, prejudica grandemente, por motivos óbvios de afrouxamento da reacção penal executiva, a eficácia preventiva do direito penal».
Mais recentemente, a respeito, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Fevereiro de 2021, processo n.º 381/16.4GAMMC.C1.S1, in www.dgsi.pt., consignou-se que: «77. Para a aplicação da suspensão da execução da pena (artigo 50.º, do CP), a lei define um requisito objectivo (condenação em pena de prisão não superior a 5 anos) e estabelece pressupostos subjectivos, determinados por finalidades político-criminais – os que permitam concluir pelo afastamento futuro do delinquente da prática de novos crimes, através da sua capacidade de se reintegrar socialmente.
78. Trata-se de alcançar a socialização, prevenindo a reincidência.
79. Assim, sempre que o julgador puder formular um juízo de prognose favorável, à luz de considerações de prevenção especial sobre a possibilidade de ressocialização do arguido, deverá deixar de decretar a execução da pena.
80. Estão em causa, não considerações sobre a culpa, mas prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção.
81. Pretende-se, como sublinha, com incontornável autoridade, o Professor Figueiredo Dias, «o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e não qualquer correcção, melhora ou – ainda menos – metanoia das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É, em suma, como se exprime Zipf, uma questão de legalidade e não de moralidade que aqui está em causa. Ou como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o conteúdo mínimo da ideia de socialização, traduzida na prevenção da reincidência».
82. Depois de se optar por uma pena detentiva, à luz das considerações e com os critérios legais sobre-expostos, importa, pois, determinar se existe a esperança fundada de que a socialização em liberdade pode ser alcançada, a partir de razões fundadas e sérias que levem a acreditar na capacidade do delinquente para a auto-prevenção do cometimento de novos crimes, devendo negar-se a suspensão sempre que, fundadamente, seja de duvidar dessa capacidade.
83. Nos termos prevenidos no artigo 50.º, do CP, a averiguação de tal capacidade deve ser feita em concreto, através da análise da personalidade do arguido, das suas condições de vida, da conduta que manteve antes e depois do facto e das circunstâncias em que o praticou.
84. Se, dessa análise, resultar que é possível esperar que a ameaça da pena de prisão e a censura do facto são idóneos a permitir a formulação do referido juízo de confiança na capacidade do arguido para não cometer novos crimes, deverá ser decretada a suspensão da execução da pena»
Definido o paradigma legal e jurisprudencial, volvendo ao caso, estamos em crer que, a Sra. Juíza do Tribunal a quo, por um lado, omitiu qualquer consideração e/ou reflexão quanto às razões de prevenção geral e, por outro, valorou inadequadamente as concretas circunstâncias apuradas, tal qual propugnam a recorrente e a Sra. Procuradora Geral Adjunta.
Na verdade, é indiscutível, desde logo e ante a sua imensa proliferação, que os crimes de violência doméstica reclamam, por veementes razões de prevenção geral, rigor punitivo. Tanto assim é que, a par da consciencialização e da censura comunitária - nacional e internacional - a jurisprudência tem vindo, progressivamente, a realçar, neste espectro, as fortíssimas exigências de prevenção geral.
Acresce que, se é certo, como aduz a Sra. Juíza, que o arguido confessou objectivamente a globalidade dos factos imputados, de tal (única) circunstância invocada em abono, não será simplisticamente de inferir prognose de rectidão.
É que, consabidamente, a mera confissão objectiva da facticidade não equivale a uma atitude de contricção e só «Há arrependimento relevante quando o arguido mostre ter feito reflexão positiva sobre os factos ilícitos cometidos e propósito firme de, no futuro, inflectir na sua conduta anti-social, de modo a poder concluir-se pela probabilidade séria de não recair no crime. O arrependimento é um acto interior revelador de uma personalidade que rejeita o mal praticado e que permite um juízo de confiança no comportamento futuro do agente por forma a que, se vierem a deparar-se-lhe situações idênticas, não voltará a delinquir»2.
Por outro lado, não será também de olvidar que, antes de ser sujeito à medida de coacção de prisão preventiva, o arguido vivia na condição de sem abrigo, sem ocupação profissional, e já foi anteriormente condenado, também pela prática de um crime de violência doméstica, numa pena de 3 (três) anos de prisão, que ficou suspensa por igual período, com regime de prova, sendo certo que as condutas delituosas em apreço nestes autos foram prontamente iniciadas findo o período da suspensão de execução da pena aplicada naquele outro processo3.
Ora, neste quadro de inolvidáveis fragilidades, do qual ressaltam ponderosas necessidades de prevenção especial, tendo presentes as anteriormente assinaladas fortes exigências de prevenção geral, outra solução não resta senão a de se concluir que inexistem circunstâncias que amparem um juízo de prognose favorável e que sustentem a decidida suspensão de execução da pena.
Vale tudo por dizer que, a decisão de suspensão de execução da pena constitui, no caso, uma injustificada indulgência, assemelhando-se - sem desdouro para a sensibilidade da Sra. Juíza do Tribunal a quo - a um acto de fé que não pode, de todo em todo, subsistir.
Assim, merece e reclama provimento o recurso interposto.

III. DISPOSITIVO
Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:
Julgar procedente o recurso interposto pela assistente BB, revogando-se, na parcela atinente à escolha da pena, a sentença recorrida, que se substitui pela decisão de, pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 al. a) do C.P., condenar o arguido AA na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão efectiva.
Notifique e comunique de imediato à primeira instância.

Lisboa, 20 de Março de 2025
Ana Marisa Arnêdo
Manuela Trocado
Cristina Santana
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1. Titular dos bens jurídicos ofendidos.
2. Acórdão do S.T.J. de 21/6/2007, proc. 07P2042, in www.dgsi.pt.
3. Conforme resulta da matéria de facto dada por assente, o período de suspensão de execução da pena aplicada no processo n.º 747/18.5PDAMD findou em 10 de Janeiro de 2023 e os factos pelos quais o arguido foi condenado no âmbito dos presentes autos iniciaram-se em datas não concretamente apuradas do mês de Janeiro de 2023.