1. A intervenção de agentes da PSP na recolha de prova em inquérito relativo a matéria reservada à PJ, pela Lei de Organização da Investigação Criminal (LOIC), não constitui qualquer vício processual.
2. A LOIC tem um papel marcadamente organizativo, coordenador e administrativo, que estabelece um quadro regulador geral a concatenar com os poderes de direção, de investigação e de organização criados pelo Estatuto do Ministério Público, diploma de idêntica valia normativa, e que dota esta Magistratura de competência legal para empreender planos, abordagens e métodos de investigação específicos que, no exercício da sua autonomia, tenha por mais adequados ao concreto Inquérito que tenha diante si.
3. Da LOIC, em si mesma ou em conjugação com qualquer outro diploma, não derivam direitos subjetivos para terceiros subordináveis a uma lide judicial, nomeadamente legitimando os sujeitos processuais a pleitear sobre a intervenção dos OPC a, b ou c, ou dos agentes policiais, inspetores ou guardas e, f ou g, ou sobre a forma como uns e outros foram ou são designados para intervir aqui ou ali, numa espiral de excesso de judicialização sem sentido útil.
4. Não assiste assim aos Arguidos como que o direito a um «OPC natural» e a uma espécie de «proibição de desaforamento de OPC competente», e menos ainda a fazer hipoteticamente implodir uma investigação por ter intervindo um OPC e não outro, conquanto os mecanismos seguidos de controlo, de procedimento e de garantia de direitos fundamentais tenham sido rigorosamente os mesmos que sempre seria imperativo que estivessem presentes.
5. Mal se compreenderia que, cabendo o exercício da ação penal ao Ministério Público, entidade sujeita a escrutínio público pelos resultados que nesse âmbito atinja, não se lhe reconhecesse concomitantemente (no quadro aliás da autonomia de que goza, como prerrogativa vinculada ao cumprimento da sua missão) uma certa flexibilidade na composição, de entre os meios disponíveis, das suas equipas de trabalho num organismo com a objetiva relevância do DCIAP; particularmente quando do que se trata é de atribuir a pessoas que são membros integrantes de OPC tarefas… de OPC.
Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
1 – RELATÓRIO E SEQUÊNCIA PROCESSUAL RELEVANTE
No âmbito do Inquérito nº 581/19.5TELSB o Ministério Público proferiu despacho em … de 2019, com o seguinte teor, que aqui se transcreve na parte relevante:
«(…)
O presente inquérito será dirigido pelo MP-DCIAP (artº 263º do CPP).
Os agentes da PSP a exercer funções neste momento na Unidade de Apoio do DCIAP funcionarão como OPC para a concreta realização de diligências que venham a ser determinadas (art.º 270.º do CPP).
(…)»
A investigação seguiu os seus termos, com a intervenção daqueles Srs. Agentes da PSP em diversos atos processuais, nomeadamente escutas, buscas e apreensões.
Tendo entretanto aquele despacho do Ministério Público chegado ao conhecimento do Arguido AA, veio este invocar a sua nulidade, por violação da competência legalmente reservada à Polícia Judiciária, e a nulidade da prova produzida ou decorrente desse vício.
Sobre essa arguição veio a ser proferido despacho judicial no dia … de 2024 o qual tem o seguinte teor:
«Fls. 8652 a 8674:
1. Veio o arguido AA arguir a insanável prevista no art. 119.°, al. b), do Código de Processo Penal, do despacho que, segundo alega, confere à Polícia de Segurança Pública o encargo de proceder a quaisquer diligências e investigações relativas ao presente inquérito e de toda a prova subsequentemente carreada para autos ("frutos da árvore envenenada").
Para tanto, o arguido invoca, em síntese, os seguintes fundamentos:
• Conforme resulta de fls. 66, o Ministério Público delimitou o objecto do processo à investigação da prática de crimes de corrupção e de prevaricação;
• De fls. 138 e 139, consta o despacho do Ministério Público de ….2019, com o seguinte teor: O presente inquérito será dirigido pelo MP-DCIAP (art. 263.0 do CPP). Os agentes da PSP a exercer funções neste momento na Unidade de Apoio do DCIAP funcionarão como OPC para a concreta realização de diligências que venham a ser determinadas (art.0 270.0 do CPP);
• Assim, o Ministério Público conferiu à Polícia de Segurança Pública o encargo de proceder a quaisquer diligências e investigações relativas aos crimes em averiguação (corrupção e prevaricação);
• Contudo, a Polícia Judiciária é o único órgão de polícia criminal competente para proceder à realização de quaisquer diligências e investigações relativas a inquéritos em que esteja em causa a investigação dos crimes previstos nos n.os 2 e 3 do art. 7.º da Lei de Organização da Investigação Criminal (LOIC);
• A competência da Polícia de Segurança Pública para a prática de determinados actos não pode ser definida, ou redefinida, pelo Ministério Público através de despacho proferido ao abrigo do art. 270º, n.° 1, do Código de Processo Penal, sob pena de inconstitucionalidade orgânica, por violação dos arts. 112°, n.° 5, 165.º, n.º 1, al. c), e 272.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa;
• Uma vez que o Ministério Público não tem legitimidade para atribuir à Polícia de Segurança Pública, em violação da lei, competências investigatórias distintas das que resultam da LOIC, deve considerar-se que estamos perante a nulidade insanável do art. 119.º, al. b), do Código de Processo Penal.
2.Conforme se deixou expresso, um dos fundamentos em que o arguido assenta a sua pretensão traduz-se na circunstância de, segundo alega, o Ministério Público ter conferido à Polícia de Segurança Pública o encargo de proceder a quaisquer diligências e investigações relativas aos crimes em averiguação. Contudo, esta interpretação que o arguido faz do despacho do Ministério Público de fls. 138 e 139, proferido em ….2019, nomeadamente quando aquele alude indistintamente a quaisquer diligências e investigações, inquina todo o raciocínio por si desenvolvido no requerimento em apreço.
3.De harmonia com o disposto no art. 219º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, ao Ministério Público compete (...) exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade (...).
• Na concretização deste comando constitucional, prevê o art. 48.º do Código de Processo Penal que o Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º, e o art. 53.º, n.º 2, al. b), do mesmo código, que compete em especial ao Ministério Público dirigir o inquérito. A este propósito, o n.º 1 do art. 263.º do Código de Processo Penal explicita que a direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal, acrescentando o n.º 2 do mesmo preceito legal que para efeito do disposto no número anterior, os órgãos de polícia criminal actuam sob a directa orientação do Ministério Público e na sua dependência funcional.
• Por seu turno, ainda com relevância para o caso dos autos, nomeadamente no que respeita à assistência do Ministério Público pelos órgãos de polícia criminal a que alude o citado art. 263.º, n.º 1, de acordo com a previsão do n.º 1 do art. 270.º do Código de Processo Penal o Ministério Público pode conferir a órgãos de polícia criminal o encargo de procederem a quaisquer diligências e investigações relativas ao inquérito. Acrescenta o n.º 4 do mesmo preceito legal que (...) a delegação a que se refere o n.º 1 pode ser efectuada por despacho de natureza genérica que indique os tipos de crime ou os limites das penas aplicáveis aos crimes em investigação.
Daqui decorre que a delegação de competência que o Ministério Público efectua nos órgãos de polícia criminal reveste duas modalidades: i) para estes procederem a diligências concretas; ou ii) para realizarem a investigação (podendo esta modalidade de delegação ser genérica ou ter lugar num determinado processo).
Também a Lei de Organização da Investigação Criminal (LOIC), aprovada pela Lei n.º 43/2008, de 27.08, assenta na mesma distinção, ao referir, no respectivo art. 2.0, n.° 5, que as investigações e os actos delegados pelas autoridades judiciárias são realizados pelos funcionários designados pelas autoridades de polícia criminal para o efeito competentes, no âmbito da autonomia técnica e táctica necessária ao eficaz exercício dessas atribuições [sublinhado não presente no texto legal].
Em ambos os casos de delegação de competência a direcção da investigação a que se procede na fase de inquérito cabe ao Ministério Público (arts. 263.0, n.º 1, do Código de Processo Penal, e 2º, n.os 1 e 2, da LOIC). Contudo, há que distinguir duas situações: i) por um lado, o caso de ser o próprio Ministério Público a praticar os actos e a assegurar os meios de prova necessários à realização das finalidades referidas no n.° 1 do art. 262° do Código de Processo Penal (art. 267.0 do código em referência), ainda que coadjuvado por órgão de polícia criminal na prática de uma concreta diligência (arts. 270.0, n.° 1, do Código de Processo Penal, e 2.°, n.°s 2 e 5, da LOIC); ii) por outro lado, o caso em que, não obstante o Ministério Público mantenha a direcção da investigação, esta é delegada nos órgãos de polícia criminal, que impulsionam e desenvolvem, por si, as diligências legalmente admissíveis, sem prejuízo de a autoridade judiciária poder, a todo o tempo, avocar o processo, fiscalizar o seu andamento e legalidade e dar instruções específicas sobre a realização de quaisquer actos (art. 2.°, n.° 7, da LOIC) [sublinhado não presente no texto legal]. Atente-se que esta modalidade de delegação de competência não exclui a necessidade de o desencadear da investigação, ou seja, a instauração do inquérito, depender de despacho do Ministério Público (art. 219.0, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa). É precisamente por se tratar de uma delegação de competência que o que ocorre por iniciativa dos órgãos de polícia criminal são as várias diligências que integram a investigação e não o desencadear da investigação (sem prejuízo da possibilidade de realização das medidas cautelares e de polícia - arts. 248.0 a 253.0 do Código de Processo Penal).
4. Contudo, a LOIC regula a repartição de competência entre os órgãos de polícia criminal somente quando se trate de estes procederem à investigação (cf. o texto dos respectivos arts. 6.°, 7.° e 8.°), ou seja, quando esteja em causa a segunda das referidas modalidades de delegação, e não quando é o Ministério Público a praticar os actos de investigação e apenas é coadjuvado por órgão de polícia criminal na prática de concretos actos delegados, a que alude o n.º 5 do art. 2.º daquele diploma legal. Na verdade, se por um lado, conforme já se referiu, o art. 2.0, n.º 5, da LOIC alude a investigações e a actos delegados, os arts. 6.°, 7° e 8.° da mesma lei, que regulam a competência da Guarda Nacional Republicana, da Polícia de Segurança Pública e da Polícia Judiciária em matéria de investigação criminal, reportam-se sempre, e apenas, a investigação.
A afirmação de que a LOIC regula a repartição de competência entre os órgãos de polícia criminal somente quando se trate de estes procederem à investigação (e não também a actos delegados) não assenta em mera interpretação literal dos arts. 6.º, 7º e 8.º da LOIC, pois só pode ter sido este o pensamento do legislador. A própria LOIC assume que a atribuição de competência específica obedece aos princípios da especialização e racionalização na afectação dos recursos disponíveis para a investigação criminal (art. 4.0, n.° 1), daqui decorrendo que apenas se justifica a repartição de competência entre os órgãos de polícia criminal à luz de tal critério nos casos de delegação de competência para a investigação. Na verdade, somente nesta modalidade de delegação de competência os órgãos de polícia criminal, na expressão utilizada no citado art. 2°, n.° 7, da LOIC, impulsionam e desenvolvem, por si, as diligências legalmente admissíveis [sublinhado não presente no texto legal]. Trata-se, como é bom de ver, de acautelar que nas situações em que o Ministério Público delega num órgão de polícia criminal a competência para a investigação, muitas vezes só tendo contacto com o processo numa fase avançada dessa mesma investigação, esta foi realizada de acordo com os princípios da especialização e racionalização na afectação dos recursos disponíveis para a investigação criminal a que se reporta o art. 4°, n.° 1, da LOIC. Nos casos em que foi o órgão de polícia criminal a impulsionar e a desenvolver, por si, as diligências probatórias, visa-se assim, quer evitar a necessidade de repetição de diligências probatórias, quer - e é o mais importante - evitar a constatação tardia de que deveriam ter sido efectuadas diligências probatórias que aquando do contacto do Ministério Público com o processo se tornaram já impossíveis de produzir.
Já nas situações em que o Ministério Público, para além da - como em todos os casos - direcção da investigação, assumir também ele próprio a prática das diligências investigatórias, apenas delegando nos órgãos de polícia criminal a realização de actos concretos, torna-se desnecessário o legislador regular a escolha do órgão de polícia criminal para este efeito específico, pois o titular da acção penal não só a dirige mas também a executa.
Em suma, o critério determinante para se aferir da necessidade de repartição legal de competência entre os órgãos de polícia criminal é o de a delegação a que o Ministério Público procede determinar, ou não, que o coadjuvante impulsione e desenvolva, por si, as diligências de recolha de prova. Em caso afirmativo, ou seja, se estiver em causa uma delegação de competência para a investigação, a LOIC regula a repartição dessa competência entre os órgãos de polícia criminal. Em caso negativo, ou seja, nas situações em que o Ministério Público, para além da direcção da investigação, assegurar ele próprio, por sua iniciativa, o impulso e o desenvolvimento das diversas diligências que formam essa investigação, a delegação de competência para a prática de um acto específico não carece de ser legalmente regulada no que respeita ao órgão de polícia criminal que o vai executar, pois a iniciativa da realização dessa diligência probatória permanece no titular da acção penal. Em consonância com este entendimento, o Estatuto dos Funcionários de Justiça prevê que compete ao técnico de justiça principal provido em secção de processos dos serviços do Ministério Público, ao técnico de justiça-adjunto e ao técnico de justiça auxiliar desempenhar, no âmbito do inquérito, as funções que competem aos órgãos de polícia criminal [cf. o respectivo Mapa I, als. i) a l)], o que, naturalmente, só pode reportar-se a diligências concretas de investigação e não à própria investigação como um todo, pois os funcionários de justiça, ao contrário do que sucede com os órgãos de polícia criminal, não podem praticar actos de investigação por iniciativa própria. De resto, entendimento contrário - no sentido de também a delegação de competência do Ministério Público num órgão de polícia criminal para a prática de diligências concretas ter de ser feito de acordo com o estipulado nos arts. 6.° a 8.° da LOIC - sempre seria inconstitucional, por violador do disposto no art. 219.0, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa.
Discute-se na doutrina e na jurisprudência se a LOIC é uma lei meramente de regulação administrativa (neste sentido, cf.: o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09.06.2016, disponível em www.dgsi.pt - processo 50/14.0SLLSB-Y.L1; Paulo Dá Mesquita, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Coimbra: Aimedina, 2021, pp. 956-958/§ 8 e § 9) ou se constitui verdadeiro direito processual penal (cf.: Paulo de Sousa Mendes, Lições de direito processual penal, Coimbra: Aimedina, 2014, p. 122; Maria Jqão Antunes, Direito processual penal, Coimbra: Aimedina, 2016, p, 55; Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, 3.ª edição revista, Coimbra: Aimedina, 2021, p. 919/6). A resposta que for dada a esta questão releva para efeito das consequências a extrair da preterição do regime previsto na LOIC no acto de delegação de competência num órgão de polícia criminal. Contudo, já se fez notar que a LOIC regula nos respectivos arts. 6.° a 8.° a repartição de competência entre os órgãos de polícia criminal somente quando se trate de estes procederem à investigação e não também a actos delegados.
Assim, há que, desde logo, apurar se o concreto despacho do Ministério Público a que o arguido requerente se reporta (de ….2019, constante de fls. 238 e 239) se traduziu numa delegação de competência na Polícia de Segurança Pública. Depois, caso assim seja, há que esclarecer se a competência foi delegada para a investigação ou apenas para a prática de actos concretos. Em face de tudo o que acima se referiu, já se sabe que somente no caso de se concluir que a competência foi delegada para a investigação interessa resolver a aludida questão relativa à natureza da LOIC - se é uma lei de regulação administrativa ou se constitui direito processual penal.
5.É o seguinte o teor do aludido despacho do Ministério Público que constitui o fundamento da pretensão do arguido: O presente inquérito será dirigido pelo MP-DCIAP (art.° 263° do CPP). Os agentes da PSP a exercer funções neste momento na Unidade de Apoio do DCIAP funcionarão como OPC para a concreta realização de diligências que venham a ser determinadas (art.° 270.° do CPP).
Em bom rigor, este despacho do Ministério Público não se traduziu num acto de delegação de competência num órgão de polícia criminal, no caso, na Polícia de Segurança Pública. Pelo contrário, o Ministério Público anunciou que, para além de dirigir a investigação, ia ele próprio assegurar, por sua iniciativa, o impulso e o desenvolvimento das diversas diligências probatórias, bem como que, quanto a diligências que venham a ser determinadas, os agentes da PSP (...) funcionarão como OPC para a concreta realização dessas diligências. Ou seja, não só o Ministério Público não procedeu em tal despacho a qualquer delegação de competência na Polícia de Segurança Pública como deixou claro que futuras delegações de competência em tal órgão de polícia criminal destinar-se-iam à coadjuvação na prática de concretas diligências, nos termos do disposto nos arts. 270.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, e 2.0, n.os 2 e 5, da LOIC. De resto, é este o único sentido que pode ser retirado do uso da expressão concreta realização de diligências que venham a ser determinadas.
6.Em conclusão: i) não tendo o titular da acção penal delegado na Polícia de Segurança Pública a competência para a investigação - pelo contrário, o impulso e o desenvolvimento das diligências de recolha de prova têm vindo a ocorrer por iniciativa do Ministério Público -, não houve lugar, no caso, ao afastamento do regime previsto na LOIC para a delegação de competência nos órgãos de polícia criminal em matéria de investigação criminal e, nessa medida, à nulidade insanável prevista na al. b) do art. 119.0 do Código de Processo Penal; ii) porque a competência da Polícia de Segurança Pública definida na LOIC para a investigação não foi redefinida pelo Ministério Público - ao contrário do alegado pelo arguido -, mostra-se prejudicado o conhecimento da inconstitucionalidade a que este alude.
7. Pelo exposto:
• Julgo improcedente a arguição da nulidade invocada pelo arguido AA;
• Mostra-se prejudicada a apreciação da alegada inconstitucionalidade orgânica, por violação dos arts. 112.0, n.° 5, 165.°, n.° 1, al. c), e 272.0, n.° 4, da Constituição da República Portuguesa.»
Deste despacho judicial interpuseram recurso os Arguidos AA e BB.
O Arguido AA, doravante tratado como Arguido AA, finaliza o seu recurso com as seguintes conclusões:
«I. Ao considerar válida a delegação do Ministério Público na Polícia de Segurança Pública, o tribunal a quo (porque considera observado o regime previsto na LOIC) não põe em causa a competência deste OPC para a prática de atos de investigação de crimes integrados na reserva de competência absoluta da Polícia Judiciária, definida no artigo 7,°, n,° 2, da LOIC, pelo que, consequentemente, não declara a nulidade da prova obtida pela Polícia de Segurança Pública, nem da demais prova ("fruto da árvore envenenada").
II. O facto de existirem atos que dependem de um impulso e autorização das autoridades judiciárias - designadamente, a interceção e gravação de conversas telefónicas e interceção de comunicações eletrónicas (requerimento do Ministério Público e despacho fundamentado do juiz) - não significa que o Ministério Público não tenha determinado previamente que tais atos, a ocorrerem, são executados por OPC (ainda que necessariamente impulsionados e autorizados por autoridade judiciária) nem impede que venha a determinar a execução por despachos individualizados ato a ato.
III. Em ambas as situações é o OPC (e não o Ministério Público) quem executa o ato (no caso das interceções telefónicas, é o OPC quem escuta e elabora os respetivos relatórios), fazendo-o não como uma extensão do Ministério Público, mas em nome próprio, enquanto entidade competente em virtude de uma delegação do titular do inquérito.
IV. A concreta realização de diligências é necessariamente a execução c/e diligências, não se podendo afirmar que o Ministério Público executa os atos que foram cometidos aos agentes da Polícia de Segurança Pública nos termos do despacho de fls. 138 e 139.
V. O legislador não quis - nem se percebe que pudesse querer - distinguir uma alegada delegação da investigação de uma alegada delegação de atos, aliás, atos de investigação, sob pena de se permitir uma verdadeira fraude à lei, podendo o Ministério Público, por exercício semântico, ou mera subtração de um ato singular, cometer a OPC incompetente a totalidade ou quase totalidade dos atos de investigação.
VI. Não existe diferença fundamental entre, por um lado, a delegação intraprocessual para a investigação que permita ao OPC tomar iniciativas de investigação e, por outro lado, a delegação intraprocessual para a prática de cada ato de investigação, dado que qualquer delegação para qualquer ato está limitada pela competência legaimente estabelecida para a prática do ato.
VII. Mesmo no critério do tribunal a quo, que distingue atos de investigação da investioacão (nunca sendo demais reiterar que não se aceita), o despacho do Ministério Público refere-se, também no sentido útil da sua literalidade, à investigação -_o que é confirmado pelo despacho de fls. 156 a 159. em especial, fl. 157 («Estas intercepções ficam a cargo do OPC encarregue da investigação»).
VIII. Pelo que não se mostra prejudicada a análise das «consequências a extrair da preterição do regime previsto na LOIC no acto de delegação de competência num órgão de polícia criminal» (para usar as palavras do tribunal recorrido na fl. 8680), nem a inconstitucionalídade invocada, devendo declarar-se a nulidade insanável da prova que foi obtida pela Polícia de Segurança Pública em inobservância da repartição de competências definida pela LOIC em função da diferente natureza dos crimes (aliás, de conhecimento oficioso a todo o tempo).
IX. A possibilidade delegação de poderes em órgão de polícia criminai - que, nos termos do artigo 55.° do CPP, coadjuva o titular do inquérito - tem de respeitar os limites de competência definidos em legislação processual avulsa, designadamente, na LOIC, na Antiga LOPJ, na Nova LOPJ e na LOPSP.
X. A Polícia Judiciária tem coma atribuição a coadjuvação das autoridades judiciárias na investigação criminal, nos termos definidos na LOIC (cfr. artigo 2.° da Antiga LOPJ e artigo 2,°, n.° 1, da Nova LOPJ).
XI. As atribuições da Polícia de Segurança Pública «são as decorrentes da legislação de segurança interna» (cfr. artigo 3.°, n.° 1, da LOPSP), só lhe podendo ser conferidas competências em matéria de investigação criminal em situações excecionais.
XII. De acordo com o artigo 272.°, n.° 4, da Constituição, o regime das forças de segurança está abrangido por reserva de lei.
XIII. A regulamentação do processo penal íntegra a reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (cfr. artigo 165.°, n.° i, alínea c), da Constituição).
XIV. O n.° 2 do artigo 7.° da LOIC estabelece uma reserva absoluta de competência da Policia Judiciária, não podendo a investigação dos crimes ali enunciados (onde se incluem, por exemplo, corrupção, tráfico de influência e prevaricação) ser atribuída, em quaisquer circunstâncias, a outro órgão de polícia criminal.
XV. O legislador pretendeu criar uma reserva absoluta de competência da Polícia Judiciária para a investigação dos crimes enunciados no n.° 2 do artigo 7.° da LOIC em que o Ministério Público não se pode imiscuir, nem através do Procurador-Geral da República - reserva que só pode ser alterada pelo legislador.
XVI. O Ministério Publico não pode delegar na Polícia de Segurança Pública, ao abrigo do artigo 270.°, n.° 1, do CPP, a prática de atos de investigação de crimes incluídos na esfera de competência absoluta da Polícia Judiciária, tal como definida na LOIC.
XVII. O entendimento de que a LOIC não representa qualquer limitação à faculdade de delegação prevista no artigo 270.°, n.° 1, do CPP, ignora, de forma absoluta, a vontade do legislador em matéria de organização da investigação criminal - entendimento que, para além de fazer da LOIC letra morta, redunda numa interpretação ab-rogante dos preceitos legais em causa, em clara afronta ao artigo 9.° do Código Civil.
XVIII. A LOIC é uma lei processual avulsa, estabelecendo um regime complementar ao do CPP em matéria de organização da investigação criminal, pelo que o Ministério Público não pode, no exercido dos poderes previstos no Código, desconsiderar o que resulta de ato legislativo com idêntico valor.
XIX. Estando o regime das forças de segurança e a regulamentação do processo penal sujeitas a reserva de lei, não pode o Ministério Público, através de despacho (ato normativo, ou, ao menos ato que pressupõe ato normativo com dimensão regulamentar relativa ao exercido de função administrativa como condição de exequibilidade da norma legal), conferir a órgão de polícia criminai competências em matéria de investigação mais amplas do que as previstas na legislação.
XX. São precisamente a LOIC e leis processuais especiais que permitem a delegação de competências em órgão de polícia criminal e balizam as condições em que tal delegação é legalmente admissível.
XXI. Aquando da prolação do despacho a que se reporta o artigo 270,°, n.° 1, do CPP, o Ministério Público - que está sujeito ao princípio da legalidade tem de o fazer com respeito pelas normas processuais que regulam a competência dos órgãos de polícia criminal em matéria de investigação criminal - normas que estão consagradas no CPP e em legislação avulta, em especial, na LOIC.
XXII. Quando não atue em conformidade com a lei, o ato de delegação de competência é inválido, o que tem como consequência a falta de competência para a prática dos atos que o Ministério Público pretendeu delegar, o que constitui nulidade insanável, nos termos do artigo 119,°, alínea b), do CPP (nulidade de conhecimento oficioso a todo o tempo), a nulidade de toda a prova recolhida em inobservância das regras de repartição de competência, atendendo ao disposto no artigo 126.°, n.º 3, do CPP (nulidade de conhecimento oficioso a todo o tempo), e a invalidade dos demais atos de inquérito ("frutos da árvore envenenada").
XXIII. O objeto dos presentes autos é a investigação de «crimes de corrupção, previstos e punidos pelos art°s 373° e 374° do Código Penal e/ou de prevaricação, previsto e punido pelo art° 11° da Lei 34/87, de 16 de julho» (cfr. despacho da Procuradora-Geral da República, de 6 de junho de 2019, a fls. 135 e 135 v.º).
XXIV. Aquando da delegação, na Polícia de Segurança Pública, da competência para realização dos atos de investigação (cfr. fls. 138), o objeto do processo estava circunscrito à investigação de crimes que integram a reserva de competência absoluta da Polícia Judiciária (cfr. artigo 7.°, n.° 2, da LOIC).
XXV. O Ministério Público não podia delegar na Polícia de Segurança Pública a prática de atos de investigação dos crimes que integram o objeto do processo, uma vez que tais crimes integram a reserva de competência absoluta da Polícia Judiciária (cfr. artigo 7.°, n.° 2, alíneas j) e n), da LOIC).
XXVII. Por conseguinte, tal delegação não podia ter sido validada por Juiz de Instrução Criminal no momento da autorização para início da interceção de comunicações nem nos momentos subsequentes de validação, renovação, reinício e início de novas interceções.
XXVIII. O objeto do processo manteve-se circunscrito à investigação da prática de crimes de corrupção e ou de prevaricação - o que resulta das diversas promoções de validação de interceções telefónicas apresentadas pelo Ministério Público ao longo de todo o inquérito, em especial, da promoção para início da interceção de comunicações telefónicas a AA: «Investiga-se nos autos a prática de crimes de corrupção, p. e p, art.° 373.° e 374.° do Código Penai, e/ou de prevaricação, p. e p. pelo art.° 11.° da Lei n.° 34/87, de 16 de julho (crime da responsabilidade de titulares de cargos políticos), sendo suspeitos, entre outros, BB, CC, DD, AA e EE.» (cfr. despacho de fls, 3629 a 3632, de ... de ... de 2022, em especial, fls, 3529 e 3630; negritos nossos),
XXVIII. Foram executadas, desde 2019 e, pelo menos, até à detenção de AA, diligências e investigações por órgão de polícia criminal incompetente, ao abrigo da LOIC, que têm vindo a ser ilegatmente promovidos pelo Ministério Público e ílegalmente validados por Juiz de Instrução Criminal.
XXIX. O que releva para a verificação da nulidade insanável do artigo 119.°, alínea b), do CPP, é que o Ministério Público promova algo para o que não tem competência ou deixe de promover algo a que está obrigado, incluindo-se, no primeiro caso, as situações de promoção sem legitimidade previstas nos artigos 49º e 50º, bem como todas as situações em que o Ministério Público execute ou promova a execução de algo que não pode, legalmente, fazer.
XXX. Nos presentes autos, o Ministério Público, à revelia do que resulta da lei aplicável em matéria de processo penal e organização da investigação criminal (também estas sujeitas a reserva de lei), conferiu à Polícia de Segurança Pública a prática de atos que, em primeira linha, competem ao primeiro, na qualidade de titular do inquérito, e que só podem ser delegados em terceiro com respeito pelas competências legalmente atribuídas ao órgão de policia criminal em causa.
XXXI. O Ministério Público não tem legitimidade para atribuir à Polícia de Segurança Pública, em violação da lei, competências investigatórias distintas das que resultam da LOIC (cfr. artigos 6.°, 7.°, números 2 e 3, e 8.° da referida Lei).
XXXII. Assim, ao proferir o despacho de fls. 138, promoveu algo que não estava legalmente habilitado a promover, não tendo atuado em conformidade com a lei - desconformidade que persistiu, igualmente, nos sucessivos despachos do Ministério Público relativos à produção de prova pela Polícia de Segurança Pública, bem como em todos os despachos de validação das interceções e gravações de conversas telefónicas e de interceções de comunicações eletrónicas que foram proferidas desde o inicio da investigação até, pelo menos, à detenção de AA.
XXXIII. Os autos demonstram, aliás, que, a vários passos, a verdadeira impulsionadora das diversas diligências probatórias desenvolvidas (nomeadamente, das interceções de comunicações), peio menos, até à detenção de AA foi a Polícia de Segurança Pública e não o Ministério Público.
XXXIV. Pelo exposto, deve considerar-se que se está perante a nulidade insanável do artigo 119.°, alínea b), do CPP - vício de que padecem, igualmente, os sucessivos despachos do Ministério Público relativos à produção de prova pela Polícia de Segurança Pública, bem como todos os despachos de validação das interceções telefónicas que foram proferidos desde o início da investigação, pelo menos, até à detenção de AA (designadamente, os que respeitam à realização de interceções de comunicações e à sua validação), contaminando a demais prova dos autos ("fruto da árvore envenenada"), independentemente de quem tenda executado as demais diligências de prova; nulidade de prova que deve ser declarada para os efeitos do disposto no artigo 126º, nº 3 do CPP.
XXXV. 0 despacho de delegação de competências na Polícia de Segurança Pública para realização das diligências de investigação ao arrepio do previsto no artigo 7.°, n.° 2, da LOIC, resulta da aplicação, pelo Ministério Público, de uma norma de caráter regulamentar - como parece decorrer das palavras de Paulo Dá Mesquita - segundo a qual o Ministério Público pode conferir à Polícia de Segurança Pública competências de investigação que estão reservadas, por ato legislativo, à Polícia Judiciária, ou, pelo menos, de uma norma de caráter regulamentar segundo a qual o Ministério Público pode conferirá Polícia de Segurança Pública a investigação dos crimes de corrupção (p.p. pelos artigos 373.° e 374.0 do CP), tráfico de influência (p.p. peto artigo 335.° do CP) e prevaricação (p.p. pelo artigo 11.° da Lei n.° 34/87, de 16 de julho) - normas que são organicamente inconstitucionais, por violação dos artigos 112.°, n.° 5, e 272.°, n.° 4, da Constituição; inconstitucionalidade que ora se invoca.
XXXVI. Sem conceder, ainda que se entenda que as normas sobre investigação criminai não têm de ser emanadas de ato legislativo, a verdade é que as regras sobre deferimento da investigação a órgão de polícia criminal estão estabelecidas em ato legislativo.
XXXVII. 0 despacho de delegação de competências na Polícia de Segurança Pública para realização das diligências de investigação ao arrepio do previsto no artigo 7.°, n.° 2, da LOIC, não deixa de pressupor ato normativo que derroga a lei, criando, de forma inovadora, novas competências processuais penais sem qualquer intervenção do poder legislativo.
XXXVIII. Estando o regime das forças de segurança e a regulamentação do processo penal sujeitas a reserva de Sei (cfr. artigos 272.°, n.° 4, e 165.°, n.° 1, alínea c), da Constituição, respetivamente), o despacho de fls. 138 pressupõe a aplicação de uma norma regulamentar organicamente inconstitucional, por violação do artigo 112.°, n.° 5, da Constituição - inconstitucionalidade que ora se invoca.
XXXIX. Adicionalmente, se se aceitasse a narrativa do tribunal recorrido (no que não se concede), seria, em qualquer caso, inconstitucional também a norma que aquele tribunal assume ter aplicado (conforme se retira a contrario da menção que faz a uma hipotética inconstitucionalidade - fl. 8679): uma norma segundo a qual a delegação de competência do Ministério Público num órgão de polícia criminal para a prática de diligências concretas não tem de ser feita de acordo com o estipulado nos arts. 6.° a 8,0 da LOIC - inconstitucionalidade que ora se invoca.
XL. Caso o Tribunal da Relação de Lisboa entenda que o despacho (ou despachos) de delegação do Ministério Público violou (ou violaram) as regras de atribuição de competência a OPC, estará a aplicar uma norma segundo a qual é válida a prova obtida em inobservância da repartição de competências definida pela LOIC em função da diferente natureza dos crimes, norma que é inconstitucional por violação dos artigos 2.°, 18.°, n.° 2, e 32º n.° 8, da Constituição.
O BB, doravante designado por BB, formula por sua vez as seguintes conclusões:
A. Vem o presente recurso interposto do despacho por meio do qual foi indeferida a nulidade insanável, arguida ao abrigo do disposto nos artigos 6,°, 7°, n.DS 2 e 3, e 8.° da LOIC, e do artigo 119.°, alínea b), do CPP, do despacho que confere à Polícia de Segurança Pública o encargo de proceder a quaisquer diligências e investigações relativas ao presente inquérito e de toda a prova subsequentemente carreada para os autos ("frutos da árvore envenenada")" e, bem assim, a respetiva inconstitucionalidade orgânica de tal despacho de delegação, por violação dos artigos 112.°, n.° 5, 165.°, n.° 1, alínea c), e 272.°, n.° 4, da CRP.
B. A decisão recorrida assenta numa destrinça conceptual, entre investigação e atos (de investigação) delegados, inexistente na LOIC ou no CPP, e, nessa medida, ilegal, entendendo-se no Despacho ora recorrido que apenas a delegação da investigação (como um todo) estará vinculada aos termos da LOIC, ao passo que os atos delegados (que não deixam, obviamente, de ser atos de investigação) se encontrariam fora do âmbito de aplicação daquela lei.
C. É evidente a ilegalidade deste entendimento, não podendo o Recorrente conformar-se com o pendor inovatório da decisão recorrida, de verdadeira “criação do Direito", sem o mínimo respaldo na letra e, fundamentalmente, no espírito da lei.
D. Trata-se, por conseguinte, e pelos efeitos desfavoráveis que tal decisão projeta na posição processual do Recorrente, de uma decisão que manifestamente o afeta, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 401.°, n.° 1, alínea b), do CPP, sendo manifesto o seu interesse em agir, nos termos do preceituado no artigo 401.°, n.° 2, do CPP.
Enquadramento processual:
E. Desde o início do presente inquérito que o MP considera que os factos em causa e os elementos documentais dos quais aqueles resultam indiciados poderão consubstanciar a prática de crimes de corrupção, p. e p. art.° 373° e 374 do CP e/ou de prevaricação, p. e p. pelo art.° HL0 da Lei n.° 34/87, de 16 de Julho (crimes da responsabilidade de titulares de cargos políticos)" (cfr. fl. 66 dos autos), reconhecendo, também, a sua complexidade e a sensibilidade da investigação a realizar.
F. Cabendo a direção do inquérito ao MP, nos termos do artigo 263.°, n.° 1, do CPP, foi determinado por despacho da Senhora Procuradora-Geral da República que, de entre a estrutura do MP, seria o DCIAP - estatutariamente definido como o órgão de coordenação e de direção da investigação e de prevenção da criminalidade violenta, económico- financeira, altamente organizada ou de especial complexidade - a coordenar e dirigir a investigação.
G. Assim, o MP, através do DCIAP, dirige e vem dirigindo o presente inquérito, tendo sido decidido, por Despacho desta autoridade judiciária, datado de ….2019 (a fls. 138 e 139 dos autos), que "[o]s agentes da PSP a exercer funções neste momento na Unidade de Apoio do DCIAP funcionarão como OPC para a concreta realização de diligências que venham a ser determinadas (art, 270.” do CPP)", sendo, portanto, este o ato através do qual se determina o OPC que assiste na presente investigação, para efeitos dos artigos 55.°, n.° 1, e 263.°, n.° 1, in fine, do CPP.
H. Este despacho inicial, de delegação futura e generalizada, demonstra que se operou, sim, uma delegação de competência para a presente investigação, por parte do MP na PSP, e não apenas uma mera assistência esporádica em determinados atos delegados, abrangendo a aludida delegação todas as diligências que venham a ser determinadas até instrução em contrário, e não específicas diligências em que pontualmente se determine a coadjuvação da PSP - caso em que existiriam vários despachos do MP, ao longo do processo e à medida que fossem decididas as diligências investigatórias a realizar, conferindo-se à PSP competência para o respetivo acompanhamento, o que não se verifica.
I. O que se verifica é que após este despacho inicial de delegação na PSP, foi este órgão de polícia criminal que realizou todas as diligências investigatórias do processo, as quais, como já se teve oportunidade de constatar, se reconduzem, no essencial, a escutas telefónicas e vigilâncias, seguidas de buscas e apreensões, fundadas no resultado das primeiras.
J. Desde a primeira promoção do MP para a realização das interceções telefónicas, bem como do Despacho do JIC que se seguiu, que se identifica a PSP como o OPC encarregue da investigação, reiterando-se que os crimes em investigação, na altura, eram os crimes de corrupção ativa e passiva, bem como de prevaricação.
L. Resulta dos presentes autos (designadamente, pelas centenas de Relatórios Intercalares de Interceção e Gravação Telefónicas, elaborados nos termos do artigo 188.°, n.° 3, do CPP, pelos Agentes da PSP, e subsequentes promoções do MP) que quem operou as interceções telefónicas foram sempre os agentes da PSP em funções junto do DCIAP, evidenciando-se também que, não só era a PSP que realizava estas interceções, como os conhecimentos do MP sobre as mesmas reconduziam-se aos respetivos Autos Intercalares e aos resumos que os agentes da PSP ali elaboravam, de acordo com o que entendiam relevante do que ouviam.
M. Do mesmo modo, foram agentes da PSP a realizar vigilâncias com registo de imagens e elaborar os respetivos relatórios, bem como, se, na sequência de alguma interceção telefónica, tomavam conhecimento de algum encontro passado entre suspeitos, eram igualmente os agentes da PSP a solicitar e visionar imagens de CCTV dos estabelecimentos.
N. Mas não só: foi a PSP que, no âmbito das escutas telefónicas que realizou - como determinado pelo MP - foi indicando e identificando os novos "suspeitos" que deveriam passar a ser escutados e os respetivos contactos telefónicos.
O. Compulsados os Relatórios de Interceção de Comunicações, o que se constata é que é sempre o Agente da PSP responsável que, além de realizar as escutas e elaborar os respetivos relatórios nos termos do artigo 188.n.° 3, do CPP, também (i) redige resumos das gravações, (ii) identifica as sessões a transcrever ou as sessões que, segundo o seu juízo, não têm interesse para o inquérito, (iii) solicita a prorrogação das interceções, (iv) a realização de novas interceções a novos alvos, (v) ou o cancelamento de interceções, (vi) bem como a destruição das gravações que identifica não terem relevo para a investigação.
P. Tudo sem que o MP proceda ao exame das conversações intercetadas, mas tão-somente dos autos elaborados pelos Agentes da PSP. Pelo que o que o MP se limita a fazer é promover o que, nos termos legais, sempre teria de promover junto do Juiz de Instrução Criminal competente, sendo a investigação desenvolvida, na realidade, pela PSP .
Q. Por outro lado, quem executou os Mandados de busca e apreensão foi, igualmente, a PSP, como determinado na Promoção do MP de 25.10.2023, a fls. 5292 a 5336.
R. Donde, inevitável se torna concluir que quem executou os atos investigatórios dos presentes autos foi sempre o OPC inicialmente designado pelo MP, a PSP, sendo certo que grande parte dos alvos escutados foram mesmo sugeridos pelo agente que realizava as escutas, pelo que mister será concluir, também, que o que no Despacho recorrido se entende como avocação da investigação é, na verdade, tão-somente aquilo em que se traduz a normal direção do inquérito pelo MP, na medida em que a atuação do MP no presente inquérito não corresponde senão àquela que tem lugar, justamente, nos casos em que este delega a investigação num OPC.
Da ilegalidade da interpretação sufragada no Despacho recorrido:
S. O entendimento sufragado no Despacho recorrido - segundo o qual a LOIC apenas regula a situação em que o MP delega a competência para a investigação como um todo - redunda numa evidente e ilegal subversão do regime legal aplicável à investigação criminal, porquanto assenta numa distinção artificial, que não só não resulta da LOIC, como é adversa à intenção - expressa e inequívoca - do legislador nesta matéria.
T. Não é possível ignorar que embora caiba ao Ministério Público não só a direção do inquérito [art. 53.°, n.° 2, al. a)], mas também - e, em princípio - , a própria realização dos atos de inquérito (cfr. artigo 267.°), a verdade é que, na generalidade das situações, o Ministério Público carece, no exercício das suas funções, do auxílio operacional e técnico dos órgãos de polícia criminal para a prossecução das finalidades do processo, designadamente, para execução material dos atos de investigação e, bem assim, da generalidade das diligências probatórias (artigos 55.°, n.° 1, e 263.°, n.° 1, do CPP),
U. A lei prevê, assim, a "delegação" (como lhe chama a epígrafe do artigo 270.°), nos órgãos de polícia criminal, de quaisquer diligências e investigações relativas ao inquérito (artigo 270.°, n.° 1, do CPP), mantendo, no entanto, o MP a competência para "dirigir o inquérito" [artigo 53.°, n.° % ah a)].
V. Esta realidade sai reforçada se atentarmos ao que sucedeu nos presentes autos: assumindo a direção do inquérito - por desígnio legal e constitucional -, o MP deferiu nos agentes da PSP a exercer funções na Unidade de Apoio do DCIAP a concreta realização de diligências que venham a ser determinadas (nos termos e para os efeitos do art. 270,° do CPP - isto é, o MP conferiu aos referidos Agentes da PSP “o encargo de procederem a quaisquer diligências e investigações relativas ao inquérito”).
X. O entendimento do Despacho recorrido - no sentido de o MP não ter procedido no mencionado despacho de fis. 138 a qualquer delegação de competência na PSP e que futuras delegações de competência em tal OPC destinar-se-iam à coadjuvação na prática de concretas diligências - não tem a mínima correspondência com n que se verifica no processo: à parte do referido despacho de fls. 138, não existiu qualquer outro despacho de delegação de competência na PSP, tal como não foi o MP a desenvolver as diligências probatórias dos autos, nem a assegurar por sua iniciativa o impulso das mesma, na medida em que foi a PSP que teve o impulso de diversos atos investigatórios.
Z. Sem prejuízo, ainda que tivesse sido essa a intenção do MP, é também evidente reconhecer que a delegação de competência ora em análise, enquanto materialização do direito de coadjuvação daquela autoridade judiciária, vale tanto para a investigação como um todo, como para atos determinados.
AA. Aliás, na linha da decisão recorrida, considerar-se que não existiu delegação de competência na PSP por parte do MP implicaria, necessariamente, considerá-la incompetente para os atos investigatórios que desenvolveu, sendo por demais evidente, que os múltiplos atos investigatórios levados a cabo pela PSP extravasam, incomensuravelmente, a competência cautelar própria dos OPC, pelo que, naturalmente, apenas se poderá concluir que a PSP agiu ao abrigo da competência delegada pela autoridade judiciária em apreço.
BB. A coadjuvação opera através da delegação de competência no OPC, quer seja para a investigação como um todo, quer seja para a realização de concretos atos de investigação - os considerados atos delegados pelo que, regulando a LOIC a aludida delegação de competência no OPC - pressuposto que, aliás, não é sequer infirmado pelo Despacho recorrido - não hã como recusar a .sua aplicabilidade ao caso sub judice.
CC. Atendendo a que se verificou, de facto, uma delegação na PSP para a investigação (ou atos de investigação) de crimes da competência exclusiva da PJ (cfr. art, 7°, n,° 2, alíneas j), n) e q), da LOIC), a violação do regime legal contido na referida lei é indiscutível e implica a nulidade dos atos de investigação realizados por OPC incompetente, e, consequentemente, das provas obtidas por meio destes.
DD. Não há dúvida de que, embora o MP possa ter acompanhado, normalmente a posteriori, as tarefas de investigação levadas a cabo pela PSP, a verdade é que as mesmas foram materialmente realizadas por aquele órgão de policia criminal: foram os agentes de PSP que ouviram as conversas telefónicas intercetadas e foram os agentes de PSP que elaboraram os Relatórios intercalares, quinzenalmente, com "resumos" dos conteúdos intercetados, identificando e sugerindo novos alvos, bem como novos factos e novos alegados ilícitos criminais.
EE. Assim, a invocada avocação da investigação pelo MP teria sido, no limite e também ela, artificial, pois que não pode deixar de ter-se presente que, mesmo em caso de delegação da investigação, é sempre o MP que mantém a direção do inquérito, acompanhando as diligências investigatórias, emitindo diretivas, ordens e instruções quando ao modo de realizar a investigação, tendo sido justamente isso que se verificou nos presentes autos.
FF. Como é evidente, nunca o facto de os presentes autos terem sido centralmente tramitados no DCIAP poderá implicar uma qualquer "carta branca" para o MP escolher o OPC que o coadjuva, ao arrepio da LOIC.
GG. Delegar-se a investigação "completa" ou apenas diligências concretas de investigação não pode ter soluções legais diferentes. Nem foi o que o legislador pretendeu.
HH. Seja na investigação como um todo ou em diligências concretas de investigação, o que se pretende é que tais atos sejam desempenhados por quem os poderá realizar de modo tnais eficiente, o que depende de qualidades técnicas específicas, sendo, precisamente, esse o pressuposto da delimitação das competências investigatórias efetuada na LOIC.
II. Finalmente, a consideração feita no Despacho recorrido que entendimento contrário - isto é, entender-se que também a delegação de competência do MP num OPC para a prática de diligências concretas ter de ser feito de acordo com o estipulado na LOIC - sempre seria inconstitucional, por violador do disposto no art. 219.°, n.n 1, da CRP é, obviamente, de rejeitar, por não se poder entender que a atribuição de competência reservada a certos órgãos de polícia criminal visa derrogar qualquer norma da Constituição, designadamente a constante do seu artigo 219.°.
Jj. Isto porque toda a atividade do MP, incluindo o exercício da ação penal, é, como decorre do artigo 219.°, n.° 1, da CRP, efetuada "nos termos da lei"', e, com a criação de legislação específica sobre a competência de certos OPC, o legislador criou normas processuais que balizam a atividade do MP, neste caso limitando a sua opção por certos órgãos de polícia criminal em detrimento de outros.
LL. A criação de limitações e parâmetros claros para a investigação criminal em leis avulsas consubstancia, como não poderia deixar de ser, a imposição de um quadro processual dentro do qual o Ministério Público deverá conduzir o exercício da ação penal.
MM. Pelo que manifestamente inconstitucional seria, sim, a interpretação do artigo 270.°, n.° 1, do CPP, no sentido de o Ministério Público não se encontrar vinculado à competência reservada exclusiva da PJ, prevista no artigo 7.°, n.° 2, da LOIC, quando esteja em causa a "mera" delegação de competências para a realização de atos determinados de investigação, por violação do artigo 112.°, n.° 5, da Constituição.
NN. Assim como inconstitucional se mostra, em geral, a interpretação dos artigos 263.°, n.° 1, e 270.°, n.n 1, do CPP, segundo a qual o MP pode delegar em qualquer OPC a competência para a investigação ou para atos investigatórios determinados, em derrogação do regime legal da LOIC, designadamente, o seu artigo 7.°, n.° 2, por patente violação do artigo 112,°, n,° 5, e, bem assim, do 272.°, n,° 4, da Constituição.
OO. Não existe na Lei (nem no elemento literal, nem no sistemático) distinção entre delegação da investigação ou de específicos atos investigatórios. Tanto no desenvolvimento da investigação como um todo, como no desenvolvimento de determinados atos investigatórios, a competência definida na LOIC vincula o MP, pelo que os atos investigatórios praticados pela PSP, não tendo natureza cautelar e urgente, não podem ser convalidados pelo MP, padecendo, portanto de nulidade insanável (artigo 119,“, alínea b), do CPP).
Da manifesta nulidade da delegação dos atos de investigação na PSP:
PP. Sob pena de conversão deste regime legal num regime de aplicação facultativa ou meramente supletiva, a intenção do legislador ao atribuir competência exclusiva a certos C)PC's em função do seu grau de especialização ou da tendencial complexidade técnica do ilícito em causa não pode ser gratuitamente subvertida pela mera vontade ou conveniência da autoridade judiciária.
QQ. Como é sabido, os órgãos de polícia criminal coadjuvam o MP no exercício da ação penal, tendo sido a determinação dos termos e critérios para a atribuição geral ou concreta de competência a um específico órgão de polícia criminal em detrimento de outro(s) remetida pelo legislador, numa técnica legislativa tão criticável quanto habitual, para legislação extravagante, como sejam as leis próprias desses órgãos e, acima de tudo, a já referida LOIC.
RR. De entre os órgãos de competência genérica previstos na LOIC, apenas à PJ foi atribuída competência reservada para a investigação de determinados crimes. Esses crimes incluem, não só os constantes do catálogo dos n.os 2, 3 e 4 do artigo 7 da LOIC, mas também quaisquer outros crimes em relação aos quais se verifiquem circunstâncias especiais que justifiquem o deferimento da investigação àquele órgão de polícia criminal por parte do Procurador-Geral da República ou dos procuradores-gerais distritais mediante delegação daquele (cfr. artigo 8.°, n.os 3 e 4).
SS. Por seu turno, aos demais órgãos de competência genérica incumbe a investigação dos crimes cuja competência não esteja reservada a outros órgãos de polícia criminal, bem como dos crimes cuja investigação lhes seja cometida pela autoridade judiciária competente para a direção do processo, nos termos do disposto no artigo 8.° (artigo 6.º da LOIC).
TT. Por sua vez, embora, de entre os crimes cuja investigação está legalmente reservada, exista a possibilidade de delegação noutros OPC, esse não é o caso dos crimes do catálogo do n„u 2 do artigo 7.° da LOIC, em relação aos quais o legislador expressamente proibiu o deferimento da investigação a outros órgãos de polícia criminal que não a PJ, independentemente da decisão da autoridade judiciária competente ou mesmo do Procurador- Geral de República.
UU. In casu, o MP identificou, desde o início, que os factos em causa e os elementos documentais dos quais aqueles resultam indiciados poderiam consubstanciar a prática de ilícitos criminais, designadamente crimes de corrupção e/ou de prevaricação, reconhecendo, em simultâneo, a gravidade e complexidade dos factos denunciados, assim como a sensibilidade da investigação a realizar.
VV. Nos termos da alínea j) - no que respeita aos crimes de tráfico de influência e de corrupção da alínea n) - por referência ao crime de prevaricação - e da alínea q) - por referência ao crime de recebimento ou oferta indevida de oferta, na tese do MF conexo com os crimes de tráfico de influência e de corr upção todas do n,u 2 do artigo 7.° da LOIC, a investigação dos factos dos presentes autos "[é] da competência reservada da Polícia Judiciária, não podendo ser deferida a outros órgãos de polícia criminar.
XX. Ou seja, quanto aos aludidos crimes, não só se encontra a competência para a sua investigação reservada à PJ, como a mesma não pode ser deferida a outro órgão de polícia criminal.
ZZ. Resultando, do exposto, que, estando em causa crimes da competência reservada e exclusiva da PJ (artigo 7.°, n.° 2, da LOIC) e, por isso, insuscetíveis de serem investigados por qualquer outro órgão de polícia criminal, o deferimento da investigação - ou de atos investigatórios - num outro órgão de polícia criminal é, manifestamente, ilegal.
AAA. Por outro lado, além do inultrapassável problema de ter sido deferida a investigação - ou atos investigatórios - num OPC que o legislador não contemplou como competente, nem mesmo concorrencialmente, para a investigação, acresce ainda que esse deferimento foi feito, não genericamente no órgão de polícia criminal, mas sim nos agentes da PSP a exercer funções neste momento na Unidade de Apoio do DCIAP, sem passar pelo superior hierárquico de topo, o que configura patente violação do princípio da organização hierárquica do órgão de polícia criminal em apreço, consagrado na parte final do artigo 2,u, n,° 4, da LOIC.
BBB. É manifesto que o legislador, ao consagrar, no artigo 2.°, n.° 5, da LOIC, que cabe às autoridades de polícia criminal designar os funcionários que serão competentes para o desempenho dos atos delegados pela autoridade judiciária, procurou, precisamente, evitar que a autoridade judiciária pudesse escolher livremente quais os funcionários que investigam ou praticam certos atos, desse modo, reforçando a autonomia orgânica e hierárquica dos órgãos de polícia criminal no exercício da sua função coadjuvante do MP.
CCC. Sendo, portanto, duplamente ilegal a delegação de competência para a investigação dos crimes dos presentes autos numa equipa específica de um órgão de polícia criminal que a lei, já de si, não contempla como competente.
DDD, No que respeita à consequência jurídica desta aludida (dupla) ilegalidade, não se ignora que, na jurisprudência, já se procurou sustentar que as normas «sobre competência, considerando-se serem meramente ordenadoras e supletivas, são suscetíveis de serem afastadas pela vontade da autoridade judiciária competente em função dos concretos termos da coadjuvação pretendida, ao abrigo da sua competência efetiva para o exercício da ação penal.
EEE. No entanto, tal entendimento é desacertado e absolutamente falho de razão, não sendo assim, desde logo, porque tal entendimento é contrário, tanto à letra da lei - do CPP e da LOIC -, como ao espírito e à lógica do sistema.
FFF. Em primeiro lugar, diga-se que, a ser livremente afastável pela autoridade judiciária a aplicação das normas de competência previstas na LOIC, então não faria qualquer sentido que o legislador tivesse previsto expressamente os termos em que esse afastamento pode ocorrer.
GGG. Que sentido faria prever, por exemplo, que a autoridade judiciária competente apenas pode deferir a investigação noutro órgão de polícia criminal quanto ao catálogo de crimes previsto no artigo 7.", n.° 4, da LOIC, ou que apenas o PGR pode fazê-lo quanto aos crimes referidos no n.a 3 do mesmo artigo e somente em certas circunstâncias, se, afinal, esse deferimento depende apenas das opções tomadas por qualquer procurador na condução da ação penal? À resposta é evidente: nenhum.
HHH. Por outro lado, cumpre não esquecer que, seja na LOIC, seja nas leis orgânicas dos vários órgãos de polícia criminal, não está em causa uma derrogação do CPP, mas tão somente uma regulamentação, através da criação de verdadeiras regras processuais, das normas aí previstas.
III.A criação de limitações e parâmetros claros para a investigação criminal em leis avulsas consubstancia, logicamente, a imposição de um quadro processual dentro do qual o MP deve necessariamente conduzir o exercício da ação penal, sendo a sanção para a violação de tais normas do processo a declaração de nulidade de toda a prova carreada para os autos como resultado da atividade investigatória dos OPC incompetentes.
JJJ. Por outro lado, é preciso não perder de vista que estamos perante atos de aquisição e valoração de meios de prova, razão pela qual importa ainda ter em conta o plano das proibições e nulidades de prova, e, neste particular, é naturalmente de reconhecer a existência de uma nulidade da prova sempre que se verifique, designadamente, a violação de princípios constitucionais e de direitos, liberdades e garantias (materiais ou mesmo processuais) dos visados.
LLL. In casn, os atos de investigação em apreço, levados a cabo por pessoas não legitimadas para tanto, implicaram a ilegal exposição da vida privada dos escutados, entre os quais o Recorrente, consubstanciando, nessa exata medida, intromissão na sua vida privada, sendo, por conseguinte, a prova deles derivada “nula, não podendo ser utilizada” (artigo 126.º, n.º 3, do CPP).
MMM. Esta consequência impõe-se com uma incisividade e clareza particulares relativamente aos meios de obtenção de prova, designadamente no que se refere à intervenção, a qualquer título, de pessoas legalmente não legitimadas para tanto em buscas, apreensões, escutas telefónicas ou interceções de comunicações.
NNN. Por se tratar de requisito legal para a realização de diligências restritivas de direitos fundamentais, a competência do órgão de polícia criminal constitui um requisito de validade da prova recolhida, porquanto integra o supedâneo legal para a realização da diligência probatória, sem o qual a mesma não pode ter-se por legalmente obtida.
OOO. E quando assim suceda, havendo uma afetação relevante do direito à privacidade do visado, a consequência apenas poderá ser a que permite sancionar as condutas ilegais e lavar a face do Estado: a saber, a aplicação ao caso do artigo 126.°, n.° 3, do CPP.
PPP. Nos termos do disposto no n.° 8 do artigo 32.° da CRP e do artigo 126.", n.° 3, do CPP, são nulas todas as provas obtidas mediante a intromissão abusiva na vida privada e no domicilio dos buscados, que, como tal, não podem ser utilizadas.
QQQ. Ademais, por via do instituto do efeito-à-distância das proibições de prova no processo penal, decorrente diretamente do artigo 32.°, n.° 1, da CRP, e concretizado no espírito do artigo 122.° do CPP, não poderão igualmente
RRR. Uma interpretação dos citados preceitos legais nos termos da qual seria válida a prova obtida em inobservância das referidas regras de repartição de competências definidas pela LOIC, é ainda manifestamente inconstitucional, por violação dos artigos 2,°, 18.°, n.° 2, e 32.°, n.° 8, da Constituição.»
Os recursos foram admitidos com efeito meramente devolutivo e subida imediata em separado (após doutas decisões da então Sra. Presidente da Relação proferidas em 6 de novembro de 2024).
O Ministério Público respondeu aos recursos, pugnando pela improcedência de ambos.
Sustenta para tanto e em síntese, que o despacho do Ministério Público não procedeu a qualquer delegação de competências; que os Srs. Agentes da PSP em apreço integram o próprio DCIAP, não atuando assim como representantes ou elementos dos órgãos de polícia criminal de origem; no exercício das suas funções como titular do inquérito, o Ministério Público não está vinculado a delegar competências num concreto órgão de polícia criminal sempre que, ao executar diretamente a investigação, careça da intervenção de um OPC para um concreto ato; a LOIC tem natureza administrativa e não processual penal.
Chegados os autos a esta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto pugna pela rejeição dos recursos, por manifestamente improcedentes, por falta de objeto, ao abrigo do disposto no art. 420º, nº 1, alínea a), por inexistir o despacho de delegação de competências a que os Recorrentes se referem.
A não ser assim entendido, considera o Sr. Procurador-Geral Adjunto que o despacho judicial, tendo-se limitado a constatar a ausência daquele despacho de delegação de competências, traduz-se num despacho de mero expediente e, logo, irrecorrível, por força do art. 400º, nº 1, alínea a) do Código de Processo Penal.
Ainda subsidiariamente, defende que, sendo tido por admissíveis os recursos, devem estes ser declarados improcedentes, pelas razões aventadas pelo Ministério Público junto da 1ª Instância.
Cumprido o disposto nos arts. 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, os Recorrentes vieram aos autos responder àquele douto parecer, ambos pugnando, em síntese, pela admissibilidade dos recursos e pela reiteração do bem fundado dos mesmos.
Feito o exame preliminar, no qual foi entendido que não havia motivo para rejeição dos recursos, os autos seguiram para vistos e teve lugar a conferência.
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2 – FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Questões a tratar
É pacífico, a partir do preceituado pelo n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, que são as conclusões apresentadas pelos recorrentes que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal de 2ª Instância, sem prejuízo do dever de apreciar as questões de conhecimento oficioso.
A essa luz, o que está essencialmente em discussão é saber se o despacho proferido pelo Ministério Público a fls. 138 e 139 e a intervenção que se lhe seguiu, nos autos, com base em tal despacho, por parte dos Srs. Agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP), em processo para cuja investigação a Lei de Organização da Investigação Criminal determina a competência reservada da Polícia Judiciária (PJ), constitui ou não causa de nulidade insanável e/ou de proibição de prova em relação aos procedimentos em que tais Srs. Agentes intervieram, e nomeadamente em relação às escutas telefónicas realizadas e à aquisição probatória delas derivada.
2.2 Conhecimento do mérito do recurso
O Arguido AA requereu nos autos de inquérito a declaração de nulidade do despacho proferido pelo Ministério Público a fls. 138 e 139 e da prova em cuja produção os Srs. Agentes da PSP participaram e nomeadamente das escutas telefónicas, bem assim como da demais prova delas derivada.
O Sr. Juiz de Instrução proferiu despacho não acolhendo essa pretensão, e é desse despacho que se mostram então formulados os presentes Recursos, por parte daquele Arguido AA e ainda pelo Arguido BB.
Procuram ambos a revogação de um tal despacho, deduzindo os pedidos que em seguida se reproduzem.
O Recorrente AA pretende que seja declarada a nulidade, ao abrigo do disposto nos arts. 119º, alínea b) e 126º, nº 3 do Código de Processo Penal:
a. Do despacho de fls. 138 e 139, proferido pelo Ministério Público, que (na sua perspetiva) confere à PSP o encargo de proceder a quaisquer diligências e investigações relativas ao presente inquérito (independentemente de se tratar de uma delegação genérica para a investigação ou para a realização de atos ou diligências concretas);
b. De todos os despachos de autorização e validação das interceções telefónicas que foram proferidos desde o início da investigação até à presente data;
c. De toda a prova obtida pela PSP ou através de atos praticados por esta, seja em execução de uma delegação genérica do Ministério Público, seja em cumprimento de delegação ou delegações do Ministério Público para a concreta realização de diligências;
d. Da demais prova carreada para os autos (“frutos da árvore envenenada”).
O Recorrente BB, por sua vez, pretende, ao abrigo dos mesmos arts. 119º, alínea b) e 126º, nº 3 do Código de Processo Penal, que seja declarada a nulidade insanável:
a. Do despacho que (na sua perspetiva) confere à PSP o encargo de proceder a quaisquer diligências e investigações relativas ao presente inquérito;
E, consequentemente,
b. De todos os despachos de autorização e validação da interceção de comunicações e de vigilâncias proferidos nos presentes autos;
c. De toda a prova carreada para os autos pela PSP ou como consequência dos atos investigatórios praticados por este órgão de polícia criminal (OPC).
Em substância, entendem os Recorrentes que é nula toda a prova recolhida pelos Srs. Agentes da PSP ou em cuja produção participaram, e toda a demais dela derivada, em virtude de para tais recolha ou participação a competência estar legalmente reservada à PJ, à luz do art. 7º, nº 2, alínea j), n) e q) da Lei de Organização da Investigação Criminal.
Em suma, consideram os Recorrentes que não devia ter intervindo o OPC a e que devia ter intervindo o OPC b; e que, nestas circunstâncias, tudo quanto fez o OPC a é nulo e de nenhum valor.
Com o devido respeito, a posição defendida pelos Recorrentes não tem suficiente sustentação jurídica, pelas razões que se enunciarão de seguida.
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Comecemos por uma nota prévia, que tem a ver com as competências e poderes de intervenção do Juiz de Instrução em Inquérito.
Estando os presentes autos na fase de Inquérito, ou seja, na fase que é titulada e dirigida pelo Ministério Público, nos termos dos arts. 48º, 53º, nºs 1 e 2, alíneas b) e c) e 263º, nº 1 do Código de Processo Penal, do art. 4º, nº 1, alíneas d) e e) do Estatuto do Ministério Público e do art. 219º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, o Juiz de Instrução tem intervenção tendencialmente pontual, a saber e por regra, tem intervenção apenas nas situações para que apontam os arts. 268º e 269º do Código de Processo Penal e, complementarmente, em legislação avulsa.
Para lá desses casos tipificados, ou de algum modo como uma extensão deles, cabe ainda naturalmente competência ao Juiz de Instrução para a apreciação da invocada nulidade de atos da sua própria competência em Inquérito.
Não vemos assim como possa o Juiz de Instrução, por norma, fora dos apontados e estritos limites, declarar durante o Inquérito a nulidade de despachos proferidos pelo Ministério Público ou de atos processuais por este praticados ou presididos, ou realizados sob a sua direção por órgão de polícia criminal. Uma abordagem diferente nesta matéria significaria uma ingerência nas competências próprias do Ministério Público, enquanto Magistratura autónoma e conhecida dominus do Inquérito (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, 2011, pgs. 314-5).
Admitimos em qualquer caso que possa residualmente haver ainda outras situações, de absoluta exceção, porém, em que se aceite e até imponha a intervenção do Juiz de Instrução na apreciação de vícios ocorridos em Inquérito, se e quando estiver em causa uma flagrante e injustificada restrição de direitos fundamentais, numa aplicação direta do comando previsto no art. 20º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa, que se inscreve num princípio geral de tutela jurisdicional efetiva.
Com efeito, seja numa lógica de prevenção de uma clara ofensa a direitos fundamentais, seja numa lógica de pôr cobro a consequências processuais ou extraprocessuais de uma tal ofensa a direitos fundamentais já ocorrida, poderá em casos excecionais, em função da seriedade do caso, mas de recorte abstrato sempre difícil de traçar, admitir-se uma pronta intervenção do Juiz de Instrução no Inquérito, sindicando a validade jurídico-processual dos atos correspondentes (neste sentido, mas propondo ainda um alargamento maior dos poderes de intervenção do Juiz de Instrução, veja-se João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, tomo I, Almedina, 2019, pg. 1263 e sensivelmente na mesma linha, vide Pedro Soares de Albergaria naquela mesma obra, pgs. 304-5).
Esta segunda variante das competências e dos poderes de intervenção do Juiz de Instrução não pode, contudo, deixar de ser atuada de uma forma, insista-se, excecional, e já tendo em conta que o processo penal contende quase sempre, pela sua natureza, em maior ou menor medida, com direitos, liberdades e garantias; na verdade, uma abordagem mais extensiva dos poderes de intervenção do Juiz de Instrução em Inquérito representaria um passo problemático e dogmaticamente pouco sustentado do ponto de vista da autonomia do Ministério Público, da estrutura acusatória do processo penal e da natureza do Inquérito.
Dito isto, a problemática de saber se existe ou não, nos autos, um despacho pelo qual o Ministério Público fez uma delegação genérica de competência para a investigação à PSP ou aos elementos da PSP que integram o Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), ou se a uns ou a outra delegou competência específica para a prática de atos concretos de investigação, apreciá-la-emos, sim, apenas porque (e na medida em que) se acha imbrincada na arguição de nulidade da prova resultante de procedimentos que, tendo sido ordenados ou autorizados por Juiz de Instrução, vieram a conhecer a intervenção de OPC que não a PJ, e nomeadamente a que se prende com escutas telefónicas.
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Feito este introito, o que importa apreciar é se se verifica ou não algum vício processual suscetível de afetar a validade da prova adquirida, e nomeadamente da que resulta das escutas telefónicas ou que destas derive, em razão do facto de terem intervindo nos autos elementos da PSP (e não da PJ), designados pelo despacho do Ministério Público de fls. 138 e 139.
A este propósito cumpre notar que as normas que consagram as formalidades a seguir em matéria de escutas telefónicas são as previstas nos arts. 187º a 190º do Código de Processo Penal, das quais se inferem, entre o mais que neste momento não releva, os seguintes traços: (i) apenas podem ser autorizadas durante o Inquérito, por despacho fundamentado do Juiz de Instrução e mediante requerimento do Ministério Público (art. 187º, nº 1); (ii) os crimes sob investigação têm de fazer parte do catálogo legal [alíneas a) a g) do art. 187º, nº 1]; (iii) o OPC que efetuar a interceção e a gravação lavra o correspondente auto e elabora relatório no qual indica as passagens relevantes para a prova, descreve de modo sucinto o respetivo conteúdo e explica o seu alcance para a descoberta da verdade (art. 188º, nº 1); (iv) o OPC leva ao conhecimento do Ministério Público, de 15 em 15 dias a partir da primeira interceção, os correspondentes suportes técnicos, bem como os respetivos autos e relatórios (art. 188º, nº 3); (v) o Ministério Público leva ao conhecimento do juiz os elementos referidos no prazo máximo de quarenta e oito horas (art. 188º, nº 4); (vi) para se inteirar do conteúdo das conversações ou comunicações, o juiz é coadjuvado, quando entender conveniente, por OPC (art. 188º, nº 5); (vii) durante o inquérito, o Juiz determina, a requerimento do Ministério Público, a transcrição e junção aos autos das conversações e comunicações indispensáveis para fundamentar a aplicação de medidas de coação ou de garantia patrimonial (art. 188º, nº 7); (viii) os requisitos e condições referidos arts. 187º, 188º e 189º são estabelecidos sob pena de nulidade (art. 190º).
Do que vimos de dizer ressaltam desde logo dois aspetos.
O primeiro é este: a existir a inobservância de alguma das formalidades previstas para a realização de escutas telefónicas, a sua consequência jurídica imediata é a nulidade prevista pelo art. 190º, e não a nulidade insanável contemplada pelo art. 119º, alínea b).
O segundo aspeto é este: o Código de Processo Penal não exige a intervenção do OPC a, b ou c. Decerto que o legislador parte da premissa de que a operacionalização técnica das escutas e o trabalho de prévias audição e seleção das conversações demandam a intervenção de outrem que não Magistrado e aí, do que fala é do «órgão de polícia criminal», e nada mais.
E o que são os órgãos de polícia criminal?
O Código de Processo Penal tem o cuidado de nos dar uma definição no art. 1º, alínea c): «todas as entidades e agentes policiais a quem caiba levar a cabo quaisquer actos ordenados por uma autoridade judiciária ou determinados por este Código.»
Insista-se: «todas as entidades e agentes policiais»; «a quem caiba levar a cabo quaisquer actos ordenados por uma autoridade judiciária ou determinados por este Código».
Estamos em crer que o que vimos de dizer projeta já luz suficiente para a querela suscitada pelos Recorrentes em torno da questão de saber se os elementos da PSP que estão em serviço no DCIAP podem ou não atuar como OPC nos autos - é óbvio que sim; na verdade, do que se trata é de «agentes policiais», aos quais «a autoridade judiciária ordenou que levassem a cabo certos atos», a saber, atos próprios de OPC nos autos.
Não se vê então, à luz do Código de Processo Penal, que vício possa aqui haver: as escutas foram requeridas por quem tinha competência para as requerer (o Ministério Público); foram autorizadas por quem tinha competência para as autorizar (o Juiz de Instrução); e as pessoas que desempenham o papel de OPC são agentes policiais da PSP nomeados pela autoridade judiciária titular do inquérito para o efeito, e sendo certo, acrescente-se, que a PSP figura entre os órgãos de polícia criminal de competência genérica, face ao preceituado pelo art. 3º, nº 1 da Lei de Organização da Investigação Criminal, que enuncia a esse propósito a PJ, a GNR e a PSP.
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Avancemos um pouco mais.
Admitamos que o presente Inquérito, respeitando a matéria de competência reservada à PJ, por força do art. 7º, nº 2, alíneas j), n) e q) da Lei de Organização da Investigação Criminal, demandava, para o exercício de competências delegadas de investigação ou para a execução de concretos atos de investigação, a intervenção da PJ e não da PSP ou de agentes policiais pertencentes a esta última corporação e que, portanto, não podia o Ministério Público ter atuado como atuou ao proferir o despacho de fls. 138 e 139.
Que vício teríamos aí? A nulidade insanável, prevista pelo art. 119º, alínea b), do Código de Processo Penal, como preconizado pelos Recorrentes?
Não nos parece.
O art. 119º do Código de Processo Penal enumera as «nulidades insanáveis» e sob aquela alínea b) prescreve o seguinte: «a falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do art. 48º, bem como a sua ausência a actos relativamente aos quais a lei exigir a respectiva comparência».
A norma tem dois segmentos autónomos, que em síntese se traduzem no seguinte: (i) a falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do art. 48º; e (ii) a ausência do Ministério Público a atos relativamente aos quais a lei exigir a respetiva comparência.
O segmento que deixámos sinalizado em segundo lugar não tem manifestamente aplicação ao caso. E o primeiro? O primeiro também não; mas vejamos melhor as coisas.
O art. 48º do Código de Processo Penal é o que expressamente consigna a legitimidade do Ministério Público para promover o processo penal. E o que aquele primeiro segmento normativo do art. 119º, alínea b) nos diz, reportando-se aos «termos do artigo 48º», é que existe uma nulidade insanável quando o Ministério Público não promove o processo penal.
Mas o que vem a ser isto de não promover o processo penal?
Conforme decorre da remissão expressa operada para o citado art. 48º, o que se pretende censurar com uma consequência tão drástica quanto a da nulidade insanável, é algo, precisamente, de drasticamente grave e que está profundamente ligado ao princípio do acusatório, contemplado desde logo no art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa. Não falta por isso quem sustente que o âmbito de aplicação da norma se esgota na hipótese em que o processo penal avança à revelia do Ministério Público, isto é, aos casos em que o juiz, o assistente ou os órgãos de polícia criminal lhe usurpam o poder de promover a ação penal (João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina, 2019, pgs. 1232-5; Ac. da RE de 19/11/2024, relatado por Fernando Pina, in www.dgsi.pt), mesmo se com a anuência explícita ou implícita do próprio Ministério Público (veja-se a este propósito a situação em que o Ministério Público, no contexto de crimes públicos ou semipúblicos, não deduzindo acusação própria, convida o Assistente a deduzi-la e à qual vem depois aderir, situação de que trata o Assento nº 1/2000, in DR, I-A, de 6/01/2000).
É uma visão que poderá ser vista, conceda-se, como algo redutora da norma. Com efeito, o segmento em causa do art. 119º, alínea b), do Código de Processo Penal, justamente porque ligado ao princípio do acusatório, numa certa visão das coisas, é suscetível de acomodar ainda outras hipóteses de aplicação, a saber, aquelas em que, respeitando o Inquérito a vários acontecimentos históricos com potencial relevância jurídico-penal, o Ministério Público, desenvolvendo embora o inquérito [na falta de inquérito também haverá nulidade insanável, mas por via do art. 119º, alínea d)] e aí praticando ou ordenando atos de investigação relativos a todos eles, nada decide a respeito de tais acontecimentos históricos ou de algum ou alguns deles aquando do despacho de encerramento [neste sentido vide José Damião da Cunha, “Ne bis in idem e exercício da ação penal”, AA. VV., Mário Ferreira Monte (dir.), Que futuro para o direito processual penal: simpósio de homenagem a Jorge de Figueiredo Dias, por ocasião dos 20 anos do Código de Processo Penal Português, Coimbra Editora, pgs. 553 e sgs.].
Não se trata, nesta conceção mais ampla do alcance do art. 119º, alínea b), no segmento em causa, sublinhe-se, de impor ao Ministério Público que aprecie e tome posição sobre todas as possibilidades de enquadramento jurídico-penal dos factos investigados – releva da sua autonomia a abordagem que lhes faça, nomeadamente optando, explícita ou implicitamente, por este ou aquele tipo legal de crime (Ac. da RL de 6/11/2007, relatado por Agostinho Torres, in www.dgsi.pt); trata-se, isso sim, de entender que se lhe impõe que aprecie e tome posição sobre os factos (todos os factos) denunciados e/ou sob escrutínio. Isto porque, poderá dizer-se, da mesma forma que o legislador não tolera a absoluta falta de inquérito quanto a um determinado acontecimento histórico, cominando-a com uma nulidade insanável, também não pode pretender-se que tivesse tolerado que se desenvolva o inquérito sobre esse acontecimento histórico e depois o Ministério Público o encerre sem sobre tal acontecimento histórico tomar posição, já que a consequência prático-jurídica é a mesma quanto à sua natureza, diferindo apenas no grau de gravidade do vício – a não promoção do processo penal (veja-se, nesta linha, os Acs. da RP de 24/03/2021 e 8/03/2017, relatados por Horácio Correia Pinto e Manuel Soares, respetivamente).
Seja qual for, de entre tais orientações, aquela que se acolha para o art. 119º, alínea b) do Código de Processo Penal, nenhuma delas tem aplicação ao caso que aqui nos ocupa.
O Inquérito está ainda em curso e, nele, o gesto do Ministério Público de convocar um determinado OPC, ou alguns dos seus membros, para a prática de atos de investigação, para um qualquer tipo de coadjuvação técnica ou até para assumir uma delegação genérica de competência para a investigação, releva precisamente e sempre da «promoção do processo penal» e não da «não promoção do processo penal». O que está em causa é saber se o que promoveu tem sustentação legal, o que é coisa diferente.
De resto, se considerássemos a norma em apreço relevante nesta matéria, daí decorreria uma tendencialmente total equiparação entre (a) apreciar a não promoção do processo penal e (b) apreciar a legalidade dos atos de promoção do processo penal, de tal sorte que chegar-se-ia ao resultado absurdo de que qualquer irregularidade cometida na execução de atos de inquérito («fez-se isto, mas devia ter-se feito aquilo»/«seguiu-se este formalismo legal, mas devia ter-se seguido aquele outro») poderia vir a caber na nulidade insanável em causa, que passaria a ser lida, não como «falta de promoção do processo penal», mas como «falta de promoção devida/legal/regular/sem vícios do processo penal». Isso traduzir-se-ia, ainda, em tornar em larga medida inúteis as demais normas que tipificam nulidades aplicáveis a inquérito e desvirtuaria a regra geral prevista pelo art. 118º, nº 1 do Código de Processo Penal, segundo a qual a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei.
Em suma, o art. 119º, alínea b) do Código de Processo Penal não tem aqui aplicação.
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Por outro lado, não se encontra na Lei de Organização da Investigação Criminal norma que preveja qualquer tipo de sanção ou efeito jurídico-processual externo para a intervenção de profissionais da PSP em inquérito de competência reservada à PJ.
Não se encontra, nem se compreenderia que se encontrasse, acrescente-se. Isto porque o diploma, como resulta do seu teor global e desde logo do seu título («Lei de Organização…») tem um papel marcadamente organizativo, coordenador, administrativo e regulador da posição dos órgãos de polícia criminal entre si e perante os ilícitos criminais a investigar e o processo (Ac. da RL de 9/06/2016, relatado por Maria do Carmo Ferreira, in www.dgsi.pt); desse diploma, em si mesmo ou em conjugação com qualquer outro, não derivam quaisquer direitos subjetivos para terceiros, subordináveis a uma lide judicial, nomeadamente legitimando os sujeitos processuais a pleitear sobre a intervenção dos OPC a, b ou c, ou dos agentes policiais, inspetores ou guardas e, f ou g, ou da forma como uns e outros foram ou são designados para intervir aqui ou ali, numa espiral de excesso de judicialização sem sentido útil.
O único lugar conflitual que a Lei de Organização da Investigação Criminal contempla está previsto no art. 9º, que regula o caso em que dois ou mais OPC se considerem incompetentes para a investigação, circunstância em que o dissídio é decidido pela autoridade judiciária que preside à fase processual em que os autos se encontrem, ou seja, tratando-se de um inquérito, pelo Ministério Público.
O que os sujeitos processuais, e nomeadamente os Arguidos, têm toda a legitimidade para exigir, nomeadamente em matéria de escutas telefónicas, é o cumprimento escrupuloso das normas previstas no Código de Processo Penal e não se vê, como adiantámos atrás, que alguma delas, no âmbito em que se situa esta nossa análise, haja sido violada.
Já não lhes assiste como que o direito a um «OPC natural» e a uma espécie de «proibição de desaforamento de OPC competente», e menos ainda a fazer hipoteticamente implodir uma investigação por ter intervindo um OPC e não outro, conquanto os mecanismos seguidos de controlo, de procedimento e de garantia de direitos fundamentais tenham sido, como foram, rigorosamente os mesmos que sempre seria imperativo que estivessem presentes.
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Diga-se ainda que a Lei de Organização da Investigação Criminal não pode deixar de ser lida e compreendida enquanto parte integrante de uma arquitetura jurídico-institucional e organizativa de prevenção e combate ao crime da qual fazem parte outros instrumentos com que se articula e a que o despacho do Ministério Público de fls. 138 e 139 plenamente se acomoda.
Referimo-nos desde logo ao Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei nº 68/2019, de 27/08, no qual tem assento a figura do DCIAP, (i) «órgão de coordenação e de direção da investigação e de prevenção da criminalidade violenta, económico-financeira, altamente organizada ou de especial complexidade» (art. 57º, nº 1); (ii) com competência para coordenar a direção da investigação e mesmo, em certos casos, dirigir o inquérito em processos relativos, entre outros, a «corrupção, recebimento indevido de vantagem, tráfico de influência, participação económica em negócio, bem como de prevaricação punível com pena superior a dois anos» [art. 58º, nºs 1, alínea h), 2 e 3]; (iii) podendo «proceder à articulação com os órgãos de polícia criminal» e «criar equipas de investigação e unidades de missão destinadas ao exercício da atividade do departamento» [art. 59º, nº 1, alíneas g) e j)]; (iv) e que alberga na sua composição, entre outros, «elementos de órgãos de polícia criminal designados pelo Procurador-Geral da República», «nomeados regime de comissão de serviço, pelo período de três anos, renovável» (art. 60º, nºs 3 e 4).
Assim é que sempre poderá dizer-se que a Lei de Organização da Investigação Criminal estabelece um quadro regulador geral, mas que tem de ser concatenado com os poderes de direção, de investigação e de organização criados em diploma com a mesma valia normativa e que dota o Ministério Público de competência legal para empreender planos, abordagens e métodos de investigação específicos, que no exercício da sua autonomia considere mais adequados ao concreto Inquérito que tenha diante si.
Mal se compreenderia que, cabendo o exercício da ação penal ao Ministério Público, entidade sujeita a escrutínio público pelos resultados que nesse âmbito atinja, não se lhe reconhecesse concomitantemente (no quadro aliás da autonomia de que goza, como prerrogativa vinculada ao cumprimento da sua missão) uma certa flexibilidade na composição, de entre os meios disponíveis, das suas equipas de trabalho num organismo com a objetiva relevância do DCIAP; particularmente quando, acrescente-se, do que se trata é de atribuir a pessoas que são membros integrantes de OPC tarefas… de OPC. E recorde-se que, cabendo aos OPC um papel decerto da máxima importância, não deixa ele, na sua essência, de se traduzir apenas na coadjuvação das autoridades judiciárias e em particular, durante o Inquérito, do Ministério Público, e numa atuação sob as suas direção e dependência funcional (arts. 55º, nº 1, 56º e 263º, nº 1, parte final, do Código de Processo Penal).
Não se objete dizendo que não faria sentido o legislador prever que a autoridade judiciária apenas pode deferir a investigação noutro OPC quanto ao catálogo de crimes previsto no art. 7º, nº 4 da Lei de Organização da Investigação Criminal; que apenas o Procurador-Geral da República pode deferir a investigação noutro OPC no caso do nº 3 do preceito; e, afinal, consentir-se depois que esse deferimento dependerá apenas das opções tomadas por qualquer Procurador na condução da ação penal.
Esta linha de objeção não colhe, na verdade, dado que, como decorre do já exposto, a Lei de Organização da Investigação Criminal não tem por efeito derrogar as competências e poderes de atuação de um organismo especial dentro do Ministério Público, como é o caso do DCIAP, competências e poderes que se acham também previstos em «lei». E por outro lado, sempre se diga que uma coisa é saber se houve ofensa à Lei de Organização da Investigação Criminal e outra é saber se, tendo havido ofensa, daí decorre a consequência pretendida pelos Recorrentes de ver inquinada como insanavelmente nula toda a prova em cuja recolha ou produção hajam participado os Srs. Agentes policiais em questão.
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Avança ainda o Recorrente BB um argumento autónomo em favor da nulidade que defende: ao designar aqueles concretos Srs. Agentes da PSP para as tarefas próprias de OPC nos autos, o Ministério Público teria ainda violado o princípio da organização hierárquica do OPC, consagrado no art. 2º, nºs 4 e 5 da Lei de Organização da Investigação Criminal.
Ora, é certo que os OPC têm uma estrutura hierarquizada e que as investigações e os atos delegados pelas autoridades judiciárias são consequentemente realizados pelos funcionários designados pelas autoridades de polícia criminal.
Todavia, importa perceber que, no que respeita aos elementos dos OPC que integram o DCIAP, o respeito pelo princípio da organização hierárquica daqueles é cumprido num momento prévio, a saber, aquando da entrada de tais elementos no organismo, nos termos do art. 60º, nºs 3 e 5 do Estatuto do Ministério Público e do art. 25º, nº 2 do D.L. nº 333/99, de 20/08.
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Em suma, não reconhecemos que o despacho de fls. 138 e 139 constitua causa de nulidade insanável da prova que os Recorrentes apontam.
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Defendem ainda os Recorrentes que a situação de que cuidam os autos configura uma proibição de prova, prevista pelo art. 126º, nº 3 do Código de Processo Penal, que nos diz o seguinte, recorde-se: «ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular».
É claro que as escutas telefónicas, como qualquer outro meio de obtenção de prova que represente uma ingerência em direitos fundamentais, tem um perfil melindroso e a regra é a que se encontra consagrada no preceito: «ressalvados os casos previstos na lei», as provas assim obtidas são «nulas, não podendo ser utilizadas».
Mas o ponto aqui a reter é exatamente este: «ressalvados os casos previstos na lei»; isto é, se a obtenção de prova com intromissão nas telecomunicações não consentida pelo titular do direito, ou com outro tipo de ingerência em direitos fundamentais, tiver lugar nos casos previstos na lei, inexiste proibição de prova.
E foi justamente isso que aqui sucedeu. Note-se que não está em discussão que os crimes investigados façam parte do catálogo legal; não está em discussão a indispensabilidade das escutas para a descoberta da verdade ou a afirmação de que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter; não está em discussão a legitimidade do Ministério Público para requerer as escutas, nem de quem as autorizou; não está em discussão o respeito por qualquer dos procedimentos técnicos e prático-jurídicos que rodeiam as interceções; não está em discussão, em suma, o cumprimento de qualquer das condições e formalidades previstas pelos arts. 187º e seguintes do Código de Processo Penal para garantia da validade das escutas.
Nenhuma das apontadas formalidades se mostra incumprida, com o que temos por observadas as regras processuais probatórias aplicáveis e afastada fica consequentemente a hipótese de vingar no caso a proibição de prova sinalizada pelos Recorrentes.
É certo que não é fácil, acrescente-se ainda, encontrar a exata linha de fronteira entre as verdadeiras proibições de prova e a inobservância das meras regras processuais probatórias, nomeadamente em termos de saber que tipo de desvio a estas regras é suscetível de desencadear uma proibição de prova (Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, 3ª edição, Almedina, 2021, pgs. 62 e sgs). Todavia, não se mostrando incumprida qualquer das condições legais de validade das escutas telefónicas, o caso concreto entra plenamente, pelo que já deixámos dito, no elenco de «casos previstos na lei» a que se reporta a parte inicial do art. 126º, nº 3 do Código de Processo Penal, distanciando-nos marcadamente de qualquer hipótese de proibição de prova.
Do ponto de vista do Código de Processo Penal e da concordância prática aí já consagrada entre, por um lado, os interesses da investigação, do apuramento da verdade material, da perseguição das suspeitas de crime e por essa via de realização da justiça e, por outro lado, a salvaguarda dos direitos, liberdades e garantias e nomeadamente dos direitos à reserva da vida privada e do segredo das telecomunicações das pessoas atingidas, nada há, em suma, a apontar quanto à intervenção, nos procedimentos de operacionalização das escutas telefónicas, de quaisquer elementos que integrem o corpo de OPC, sejam estes a PSP, a PJ ou a GNR: em qualquer circunstância, em matéria de escutas telefónicas, são os mesmos os estritos requisitos legais, destinados à garantia dos mesmos direitos, liberdades e garantias, como os mesmos são os rigorosos deveres de reserva quanto aos conteúdos a que os Srs. Agentes, Guardas ou Inspetores acedam, decorrentes designadamente dos arts. 86º, nº 8 e 188º, nº 6, alínea c), parte final, do Código de Processo Penal.
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Argumentam ainda os Recorrentes com a inconstitucionalidade da solução normativa acolhida no despacho recorrido.
Em síntese, alinham os seguintes vícios de inconstitucionalidade:
Primeiro vício: o despacho de delegação de competências na PSP para realização das diligências de investigação faz sobrepor uma norma de caráter regulamentar sobre o previsto pelo art. 7º, nº 2 da Lei de Organização da Investigação Criminal, o que é organicamente inconstitucional, por violação dos arts. 112º, nº 5 e 272º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa.
Não procede o argumento.
Antes de mais, digamo-lo abertamente, não vemos como possa sustentar-se que o despacho de fls. 138 e 139 consubstancia uma delegação de competências «na PSP». O que o despacho diz, recordemo-lo textualmente, é o seguinte:
«Os agentes da PSP a exercer funções neste momento na Unidade de Apoio do DCIAP funcionarão como OPC para a concreta realização de diligências que venham a ser determinadas (art.º 270.º do CPP).»
O despacho tem que ser lido valorando-se, antes de mais e sobretudo, o seu texto, ponto de partida incontornável e tendencialmente decisivo de qualquer exercício interpretativo, particularmente se um tal texto for simples e claro, como sucede aqui.
Repare-se que não se lê no despacho, em lugar algum, que há uma delegação de competências na PSP; como não se lê, em lugar algum, que o que se delega é a «investigação». Pelo contrário, o que ali se lê é a designação pessoal de quem interviria (os Srs. Agentes da PSP que exercem funções na Unidade de Apoio do DCIAP) e a identificação do propósito dessa designação (a concreta realização de diligências que venham a ser determinadas).
Conceda-se, ainda assim, que poderá continuar a ter alguma pertinência apreciar a problemática de constitucionalidade suscitada, à luz dessa realidade que retirámos do despacho do Ministério Público, visto que as pessoas por ele designadas não pertencem aos quadros da PJ, mas aos da PSP.
Dito isto, olhemos então a nossa Lei Fundamental e as normas apontadas.
Estatui-se no art. 112º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa: «Nenhuma lei pode criar outras categorias de actos legislativos ou conferir a actos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, integrar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.»
E o art. 272º, nº 4 prescreve o seguinte: «a lei fixa o regime das forças de segurança, sendo a organização de cada uma delas única para todo o território nacional.»
Ora, recordemos em traço grosso o que já atrás dissemos, e que neste espaço não repetiremos, a respeito da Lei de Organização da Investigação Criminal, das competências e atribuições do DCIAP e do Estatuto do Ministério Público em que está previsto.
Não temos diante nós, para o que aqui mais releva, uma qualquer «outra» categoria de ato legislativo ou um ato de «outra» natureza, que haja sido criado por «lei» com o poder de bulir com o sentido desta ou de a suspender ou revogar.
O que temos são duas «leis» que coexistem no nosso sistema jurídico e que têm que ser compreendidas de forma articulada (a Lei de Organização da Investigação Criminal e o Estatuto do Ministério Público), e articulada ainda com um terceiro diploma de idêntica valia normativa, que é o Código de Processo Penal, nos termos que já abordámos.
O exercício dessa tarefa interpretativa em nada ofende, pois, o citado art. 112º, nº 5.
E não ofende ainda, por identidade de razões, o regime das forças de segurança fixado na «lei», a que se refere genericamente o seu art. 272º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa: «lei», para este efeito, não é apenas a Lei de Organização da Investigação Criminal; «lei» é também o que resulta da concatenação desse diploma com o Estatuto do Ministério Público, com o Código de Processo Penal e com a própria Lei Orgânica da PSP, aprovada pela Lei nº 53/2007, de 31 de agosto, em cujo art. 3º, nº 2, alínea e) pode ler-se que uma das suas atribuições é «desenvolver as acções de investigação criminal (…) que lhe sejam atribuídas por lei [ou] delegadas pelas autoridades judiciárias (…)».
Uma segunda linha de inconstitucionalidades que se mostra invocada é esta: assumindo-se que o despacho do Ministério Público violou as regras de atribuição de competência a OPC, isso significa que estará a aplicar uma norma segundo a qual é válida a prova obtida com inobservância da repartição de competências definida pela Lei de Organização da Investigação Criminal em função da diferente natureza dos crimes, com isso violando os arts. 2º, 18º, nº 2 e 32º, nº 8 da Constituição da República Portuguesa.
A este respeito, insista-se que não vemos violadas as regras de atribuição de competência a OPC, à luz da compreensão ampla do sistema para que propendemos.
Mas ainda que o houvessem sido, daí não resultaria a ofensa de qualquer das normas constitucionais convocadas.
Atente-se no teor de tais normas:
Art. 2º: «a República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.»
Art. 18º, nº 2: «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.»
Art. 32º, nº 8: «são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações.»
Ora, o art. 2º tem um conteúdo da maior relevância, mas em larga medida genérico e proclamatório, não se lhe encontrando nenhum segmento que pudesse resultar atingido apenas por se deferir a prática de atos de investigação ao OPC a, em lugar de ao OPC b, ou aos elementos f ou g do OPC a em lugar de aos elementos h ou i do OPC b. E os arts. 18º, nº 2 e 32º, nº 8 também não são em medida alguma ofendidos, visto que todos os OPC e todos os elementos que os integram têm a sua atuação em processo penal funcionalmente subordinada às autoridades judiciárias, devem em qualquer circunstância o mesmo respeito pelos procedimentos previstos no Código de Processo Penal que regulam os meios de obtenção de prova e nomeadamente as escutas telefónicas, as revistas, as buscas e as apreensões, e pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, e estão para tanto identicamente preparados do ponto de vista da sua formação essencial.
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Em suma, improcedem os recursos.
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3 – DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, os juízes desta Relação acordam em negar provimento aos recursos, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas pelos Recorrentes, fixando-se a taxa de justiça, para cada um deles, em 5 (cinco) unidades de conta, face à extensão das motivações e conclusões apresentadas [arts. 513º, nºs 1 e 3 e 514º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais e da Tabela III anexa].
Registe e notifique.
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Lisboa, 20 de março de 2025
Os Juízes Desembargadores (processado a computador pelo relator e revisto por todos os signatários; assinaturas eletrónicas)
Jorge Rosas de Castro
Maria de Fátima R. Marques Bessa
Manuela Trocado