REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
DECISÃO JUDICIAL
PRESSUPOSTOS
LEGITIMIDADE ATIVA
LEGITIMIDADE PASSIVA
ADOÇÃO
PROGENITOR
LEI ESTRANGEIRA
Sumário


Em processo de revisão de sentença estrangeira de adopção, os pais adoptivos e a adoptada são partes legítimas, não se exigindo a intervenção dos pais biológicos.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

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AA, BB e CC instauraram acção de delibação para verem integrado no nosso ordenamento jurídico a sentença proferida no 15 de Junho de 2004, na Vara da Infância e da Juventude da Comarca de ..., Estado ..., República Federativa do Brasil, que decidiu julgar procedente o pedido de adopção inicial, primeiramente destituir DD do exercício do poder familiar que exerce sobre EE, com base no artigo 1621.º caput do Código Civil, e deferir a adopção desta para os requerentes.

Foi proferida decisão sumária que decidiu julgar verificada a excepção dilatória de ilegitimidade e não conhecer do pedido de revisão.

Reclamaram para a conferência os autores, mas o colectivo dos Srs. Desembargadores indeferiu a reclamação e manteve a decisão singular.

Inconformados, interpuseram os autores competente recurso, cuja minuta concluíram da seguinte forma:

1. Os Requerentes, ora recorrentes, apresentaram ação para a revisão e confirmação de sentença estrangeira de adoção;

2. De acordo com o acórdão vergastado (ref. ...86), o pedido não pôde ser conhecido por ter sido verificada suposta exceção dilatória de ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário;

3. O acórdão submetido à presente revista sustentou que a mãe biológica da 1ª Requerente está obrigada a intervir no presente processo de revisão de sentença estrangeira de adoção por ter havido destituição do exercício do seu poder familiar na decisão estrangeira de adoção;

4. Por seu turno, os Requerentes sustentam:

i) que não têm (nem estão obrigados a ter) conhecimento do paradeiro da mãe biológica para fins de eventual citação desta;

ii) que após o nascimento da 1ª Requerente, esta foi entregue imediatamente para adoção, pelo que a 1ª Requerente não teve qualquer contato com sua mãe biológica desde então; o que já contabiliza mais de 20 anos;

iii) que a intervenção da mãe biológica em processo de revisão e

confirmação de sentença estrangeira contraria entendimento jurisprudencial unânime e presente em dezenas de processos já julgados por esta Relação, nos quais nunca houve– mesmo em casos de destituição do exercício do poder familiar – o condicionamento do andamento processual à intervenção da mãe ou do pai biológico(a) ou de ambos;

iv) que, na seara do procedimento de revisão de sentença estrangeira, o entendimento consolidado é no sentido de que apenas podem ser partes na ação os sujeitos que figuraram como parte na ação originária, logo, não tendo a mãe biológica da 1ª Requerente figurado como parte no processo originário de adoção, não deve, de igual modo, ser exigida sua intervenção no presente processo de revisão de sentença estrangeira;

v) que, no acórdão proferido no processo 529/11.5... de 04-10-2011, restou decidido de formaexpressaque os pais biológicos não são parte legítima na acção de revisão e confirmação de sentença estrangeira de adoção;

vi) que o irmão da 1ª Requerentes (filho adotivo da 2ªe do 3ºRequerentes), por meio de processo idêntico (documento 01, pág.4), no qual não houve qualquer exigência relativa à intervenção da mãe biológica, obteve decisão favorável ao pedido de revisão e confirmação de sentença estrangeira de adoção, pelo que, a prevalecer o entendimento firmado no acórdão criticado submetido à presente revista, estar-se-á diantedehipótesedegrave atentadoà segurança jurídica, pois oJudiciário responde de formacontraditóriaemdemandasidênticas,gerandoperdadeconfiançaecredibilidade no Poder Público; e

vii) que, mesmo que se considerasse necessária a intervenção da mãe

biológica sob a alegação desta ter sido afetada pelos efeitos da sentença revidenda (destituição do exercício do poder familiar), verificada a maioridade da 1ª Requerente, tal poder extinguiu-se e com ele qualquer interesse da mãe biológica que justifique sua intervenção no presente processo de revisão.

5. Sendo assim, ao tempo que reitera a presença dos requisitos previstos no art. 978º do CPC para a confirmação da sentença estrangeira de adoção, os Recorrentes pedem que seja acolhida a presente Revista, sendo afastada a suposta exceção dilatória de ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário e, como consequência, seja determinado o prosseguimento da ação, pois, em processo de revisão de sentença estrangeira de adoção, apenas o adotado e os pais adotivos são partes legítimas, não se exigindo, em qualquer hipótese, a intervenção dos pais biológicos».

O Ministério Público em resposta pronuncia-se a favor da confirmação do acórdão.

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A única questão decidenda consiste em saber se, no caso sujeito, deve ser demandada a mãe biológica da adoptanda, sob pena de ilegitimidade.

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A factualidade relevante resulta dos autos, tal como em síntese descrita no relatório.

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Os recorrentes têm razão.

O acórdão recorrido peca por não levar em conta muitas das especificidades das acções de delibação no nosso sistema de processo civil.

Por outro lado, constata-se que a posição da Relação é ambígua, porquanto se na decisão singular se alude à preterição do litisconsórcio necessário (forçosamente activo) no acórdão conclui-se estarmos afinal em presença de um caso de ilegitimidade singular passiva (cfr. designadamente a invocação da necessidade de se assegurar o contraditório da mãe da menor).

Vários têm sido os modelos adoptados pelos Estados para o reconhecimento das decisões estrangeiras (cfr. Marnoco e Souza, Execução extraterritorial das sentenças cíveis e comerciais, F. França Amado Editor, Coimbra, 1898: 43 e seg; José Alberto dos Reis, Processos Especiais, Vol II, Coimbra Editora, Coimbra, 1956: 139 ss; Luís Lima Pinheiro, Direito internacional Privado, Vol. III, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2012: 371).

Como se sabe, o nosso sistema, de acordo com a doutrina dominante, é um sistema de reconhecimento individualizado de tipo misto de revisão formal e revisão de mérito (José Alberto dos Reis, op. cit: 142).

O que significa que, em princípio, o juiz do Estado ad quem não julga do mérito, limitando-se a uma sindicância formal da sentença revidenda, só em casos especiais podendo debruçar-se sobre pontos substantivos da decisão a rever (cfr. artigos 980.º, al. f) e 983.º, 2 CPC).

Aqueles que queiram que uma sentença de um tribunal de um Estado não pertencente à União Europeia seja integrada e eficaz no ordenamento jurídico português, devem requerê-lo ao Tribunal da Relação competente, mediante requerimento no qual «exporá (…) que obteve determinada sentença estrangeira e que pretende fazê-la executar em Portugal; concluirá, pedindo que a sentença seja revista e confirmada» (Alberto dos Reis, Processos Especiais, op. cit: 199).

Uma causa identifica-se, como é bem sabido, pelos sujeitos, pedido e a causa de pedir (artigo 581.º, 1).

A questão que se suscita neste recurso é uma questão de legitimidade passiva, que tem a ver com os sujeitos da acção, ou seja, determinar se a mãe biológica da adoptanda deve ou não figurar como requerida.

Todavia, os restantes elementos (objectivos) não podem deixar de ser equacionados.

Importa lembrar que a causa de pedir «na acção de revisão de sentença estrangeira (…) não é um acto substantivo, mas um acto processual – é a própria sentença. É o facto de existir a favor de alguém uma sentença (de tribunal estrangeiro) que dá a esse alguém a pretensão de a fazer rever e confirmar em Portugal – a sentença apresenta-se assim como a causa de pedir na acção de revisão de sentença estrangeira, nos termos exactos do artigo 498.º, n.º 4 [hoje 581.º, 4]» (João de Castro Mendes, «Alguns problemas sobre revisão de sentença estrangeira», Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Vol XIX, 1965:145/146).

O pedido na acção de revisão, por sua vez, é o reconhecimento do acto revidendo e a sua eficácia na ordem jurídica interna portuguesa.

«O pedido do autor na acção de revisão de sentença estrangeira, diz Castro Mendes, tem índole diversa e objecto diferente do pedido na acção que poderíamos chamar subjacente. Tem índole diversa: este segundo é meramente declarativo, ou condenatório ou constitutivo na ordem material (solicita uma mudança na ordem processual existente, onde toma eficácia de caso julgado e título executivo um acto que até aí só tinha força de meio de prova livre – artigo 1094.º). E tem objecto diferente – não uma relação substantiva de propriedade, ou crédito, ou família, mas a eficácia de uma sentença, nos termos do mesmo artigo 1094.º [hoje 978.º]» (Ibidem: 146).

Sendo assim as coisas, focalizando o caso sujeito, facilmente se conclui que a causa de pedir não é o acto substantivo da adopção, mas a própria sentença que a decretou.

Os requerentes identificam, nítida e cabalmente, como causa de pedir, a sentença de 15.6.2004, proferida pelo Juiz de Direito da Vara da Infância e da Juventude da Comarca de ..., Estado ..., Brasil.

Por sua vez, o pedido é: «Deste modo, preenchidos os requisitos legais exigidos pelo artigo 980º do Código de Processo Civil, considerando que a sentença foi proferida pelo órgão judicial brasileiro competente e que a presente adoção reveste-se dos requisitos previstos na legislação portuguesa, serve a presente para requerer que este Tribunal reveja e confirme, para produzir seus efeitos em Portugal, a sentença proferida nos autos do processo nº 29/04 (documento 02) pelo Juiz de Direito da Vara da Infância e da Juventude da Comarca de ..., Estado ..., Brasil, que decretou a Adoção de AA (inicialmente registada como “EE”) por CC e BB, sendo avós paternos: FF e GG; sendo avós maternos: HH e II».

Resulta claro que o pedido é um só: a atribuição à sentença de adopção do tribunal brasileiro de eficácia no ordenamento português.

Mas, o que consta da sentença revidenda: será que estamos diante de sentença com cumulação real de capítulos, com uma pluralidade real de decisões? será que devemos concluir que a mãe do menor teve aí uma intervenção tal que imponha também neste processo que deva estar na acção?

O acórdão recorrido deu uma resposta positiva a estas questões. Afirma que:

i) «a decisão a confirmar não se limitou a deferir a adopção»; «a decisão a rever e a confirmar é, primeiramente, a da destituição do exercício do poder familiar de DD. Só depois é que se segue a parte da decisão que decreta a adopção»; «a destituição do exercício do poder familiar não é a consequência (posterior) da adopção, mas antes é o (primeiro) pressuposto necessário à adopção»»

ii) «Só DD poderá manifestar o seu eventual interesse, enquanto titular da relação filial»;

iii) «O que está em causa é uma decisão que potencialmente importa consequências para a DD, independentemente da filha ter atingido a maioridade».

Não podemos acompanhar este raciocínio.

No identificado processo de adopção, que tramitou no tribunal do Brasil, CC e BB requereram tão-só a adopção da criança EE.

Não pediram em lado nenhum a destituição do poder familiar da mãe biológica.

Limitaram-se a referir no final do rosto do requerimento inicial que «a genitora biológica da criança concordou com o presente pedido, conforme declarou no termo de assentada em anexo».

Realmente, em anexo à petição, encontra-se uma assentada, da qual consta que, no dia 16.3.2004, compareceu DD, a qual declarou, diante da juíza JJ e da promotora de justiça KK, «manifestar expressamente a sua não intenção de exercer o poder familiar sobre a filha EE» e que «concorda expressamente que a criança EE seja colocada numa família substituta através da adopção».

Tal como entre nós, a legislação brasileira exige o consentimento dos pais biológicos à adopção e o código de processo civil brasileiro de 1973 consagrava o princípio do pedido (artigo 128.º e 460.º).

Daí que o dispositivo da sentença revidenda tenha sido exactamente este: «Assim, sobejamente satisfeitos os requisitos legais, com apoio no estudo técnico, acolhendo o parecer ministerial e com atenção aos interesses da criança, julgo procedente o pedido inicial e, primeiramente destituto do exercício do poder familiar que DD exerce sobre EE com base no artigo 1621.º caput do Código Civil e defiro a adopção desta para os requerentes».

Este dispositivo, deve ser entendido como contendo não uma cumulação real de capítulos decisórios, mas sim uma cumulação aparente.

Isto é, só processualmente existe pluralidade; substancialmente a acção é uma só: acção de adopção; o que sucede é que para decretar a adopção o tribunal desenvolveu uma actividade, não pedida, consistente em verificar que houve consentimento da mãe biológica da menor.

No Brasil, a adopção é regulada pelo Código Civil de 2002 (artigos 1630.º ss.) e pela Lei n.º 8069/1990 (Estatuto das Crianças e dos Adolescentes), cujo artigo 45.º prescreve a necessidade de consentimento dos pais ou do representante legal do adoptando, dispensando, porém, esse consentimento em relação a criança ou adolescente cujos pais sejam desconhecidos ou tenham sido destituídos do pátrio poder.

Feitas estas considerações, queda líquido que nada obsta a que o tribunal se pronuncie a favor da legitimidade dos requerentes.

Tem-se entendido, na ausência de norma expressa sobre a matéria, que são partes certas na acção de delibação os sujeitos que figuraram como partes na acção originária, não sendo pacífico que, também o sejam, terceiros que possam ser afectados pela decisão de reconhecimento.

A este propósito o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 4.10.2011, Proc. 3254/24 afirma que «sendo uma sentença um acto pelo qual se definem direitos, a atribuição de eficácia a uma sentença estrangeira coloca aquele a quem ela atribui direitos numa posição de, no território nacional, a fazer impor a quem aquela sentença constitui na obrigação de reconhecer aqueles direitos. Daí que o pedido de revisão dessa sentença deva ser formulado no confronto com quem possa ser diretamente atingido pelo deferimento de tal pedido (daí que o pedido deva ser formulado contra quem se pretenda fazer valer a ação – e não necessariamente o vencido na mesma – no tribunal da área da sua residência para a ela ser chamado por meio de citação).

Mas nem sempre a atribuição de eficácia à sentença estrangeira visa a possibilidade de a fazer impor a outrem; de a fazer valer contra outrem. Com efeito, situações há em que com atribuição de eficácia à sentença estrangeira apenas se pretende tornar efetivas no território nacional as situações definidas na sentença estrangeira em favor do próprio peticionante, sem que haja qualquer confronto com terceiro.

Ora, nesses casos, a ação de revisão não se estabelece numa relação processual antagónica, em termos de autor/réu, requerente/requerido, mas numa simples demanda ao Estado de atribuição de eficácia à sentença estrangeira; ao reconhecimento da situação por ela definida. Pelo que a mesma não terá qualquer sujeito a ocupar o lado passivo da relação processual (abstraindo aqui do papel do MP enquanto defensor da legalidade e dos princípios de ordem pública)».

Um dos casos em que tal acontece é o do pedido de revisão de sentença estrangeira de adopção formulado pelos pais adoptivos e pelo filho adoptado, este se maior, não sendo necessária que sejam também chamados os pais biológicos.

Esta posição é esmagadoramente maioritária na jurisprudência como resulta dos inúmeros acórdãos citados pelas recorrentes, que seria ocioso voltar a enumerar já que bem documentados nos autos e de fácil consulta.

Pode, pois, concluir-se, que inexiste fundamento bastante para negar legitimidade aos requerentes e impedir que por esse motivo vejam inviabilizada o reconhecimento da sentença.

Dito de ouro modo: não vislumbramos razões consistentes para não considerar os recorrentes parte certa no processo.

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Pelo exposto, acordamos em revogar o acórdão recorrido e em determinar que os autos prossigam os seus termos no segundo grau.

Custas pelos recorrentes, porque foram quem tirou proveito do recurso (artigo 535.º, 1 e 2, al. a), do CPC).

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25.3.2025

Luís Correia de Mendonça (Relator)

Anabela Luna de Carvalho

Cristina Coelho