NULIDADE POR FALTA DE INQUÉRITO
REQUISITOS DO REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
Sumário

I - A nulidade processual prevista na alínea d) do nº1 do art. 120º do Cód. de Processo Penal reporta–se a três momentos processuais distintos : à fase de Inquérito, à fase de Instrução, e às fases posteriores àquelas (maxime a de julgamento).
II - Apenas com relação a fases e momentos processuais posteriores ao Inquérito ou (se a houver) à Instrução a nulidade em causa se configura por via da omissão de diligências que se possam reputar essenciais à descoberta da verdade ; não assim no que tange às fases de Inquérito e de Instrução, relativamente às quais só a falta da prática de «actos legalmente obrigatórios» é causa de nulidade por insuficiência de completude de tais fases processuais, não traduzindo, nestas fases processuais, a omissão de diligências, (nomeadamente de produção de prova) cuja obrigatoriedade não resulte de lei, a nulidade do art. 120º/1/d) do Cód. de Processo Penal.
III - O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente (em reacção a uma decisão de arquivamento do Ministério Público), deve permitir de forma clara a definição e delimitação do objecto do processo a partir da sua apresentação, constituindo, substancialmente, uma acusação alternativa ao despacho de abstenção proferido pelo Ministério Público.
IV - Do regime previsto nos arts. 287º/2 e 283º/3/b)d) do Cód. de Processo Penal não resulta a imposição de que a avaliação da completude do preenchimento dos pressupostos de adequação do RAI do assistente deva processar–se por referência apenas a um segmento específico do RAI, e não por reporte àquela que seja a globalidade do teor do mesmo RAI.
V - À luz do respeito pela autonomia e auto–suficiência que se impõe ao RAI, a remissão efectuada no mesmo para outras peças processuais apenas é viável para complemento de dados puramente objectivos da descrição da matéria de facto (como o são, maxime, uma data ou um local da respectiva ocorrência, pressupondo que esta esteja enunciada e bem delimitada no RAI), relevando sempre, contudo, que o RAI apresentado permita consubstanciar uma acusação alternativa ao arquivamento, constituindo uma peça autónoma e suficiente, que, no que tange aos seus elementos essenciais não implica a necessidade de recurso a elementos externos à mesma.

(Sumário da responsabilidade do Relator)

Texto Integral

Proc. nº 123/24.0GALSD.P1

Tribunal de origem: Juízo de Instrução Criminal de Penafiel, ...

Acordam em conferência os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO

No âmbito do processo nº 123/24.0GALSD foi oportunamente pelo Ministério Público proferido despacho de encerramento de Inquérito, em que, nos termos do disposto no art. 277º/2 do Cód. de Processo Penal, se decidiu pelo arquivamento do inquérito.

Nessa sequência, e inconformado com tal arquivamento, veio a ora assistente AA, apresentar requerimento de abertura de instrução (RAI), nos termos do artigo 287º/1/b) do Cód. de Processo Penal, por considerar que existem indícios suficientes da prática pela arguida BB, dos «factos por si denunciados constantes da participação criminal, e como seja o crime de violação de correspondência, crime de devassa da vida privada, coação e outros a estes conexos».

Remetidos os autos ao Juízo de Instrução Criminal de Penafiel - ..., veio ali a ser, em 04/11/2024, proferida pela Juiz de Instrução decisão declarando nulo o RAI e, consequentemente, rejeitando a requerida abertura de instrução.

É inconformado com esta decisão que dela ora recorre, por requerimento apresentado em 05/12/2024, a assistente AA, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
I. O Despacho ora recorrido viola ou pelo menos faz uma errada interpretação dos art. 283.° e 287° do C.P.P.
lI. A Assistente, notificada dos motivos da rejeição do seu requerimento de abertura de instrução não pode com eles concordar, porquanto aí se extrai resumidamente que:
Só é legalmente admissível a instrução mediante a apresentação de requerimento que obedeça aos requisitos previstos no art. 287° n° 2 do C.P.P.
Ora, o requerimento apresentado, enferma de nulidade, prevista no art. 283.° n.° 3 do C.P.P. para o qual remete o art. 287.° n.° 2, pois não contém a narração dos factos que fundamentam a aplicação à arguida de uma pena ou de uma medida de segurança: art. 283.° n.°3 al. b) do C.P.P.
III. No entanto, no seu requerimento de abertura de instrução, a requerente expôs as razões de facto e essencialmente de direito de discordância relativamente à não acusação, conforme manda o art. 287.° n.°2 do C.P.P., o qua! aliás, e por outro lado, expressamente afirma que no requerimento não está sujeito a formalidades especiais".
IV. Aliás, a jurisprudência vem por isso dizendo, como por exemplo no Douto e recente Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra no âmbito do Processo n.° 8/07.5GBLRA-A.C1, de 02/03/2011, publicado no site http://www.dasi.pt:
"A rejeição do requerimento da abertura de instrução só é possível guando o mesmo for extemporâneo, verificar-se a incompetência do juiz ou ser inadmissível, legalmente - segundo artigo 287º n.° 3."
V. E sem dúvidas, no caso dos autos, nem o requerimento é intempestivo, nem o juiz é incompetente, nem se trata de um caso de inadmissibilidade legal de instrução, porquanto a Assistente efectuou o seu pedido no âmbito de um requerimento tempestivamente endereçado ao juiz de instrução criminai, após ter sido notificado do arquivamento dos autos.
VI. Do artigo 287°, n.° 2, do Código de Processo Penal extrai-se que o requerimento para abertura da instrução não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns de outros, se espero provar mos, sendo a instrução requerida pelo assistente, como no caso vertente, certo é que ao respectivo requerimento, por força da parte final da norma em causa, é ainda aplicável o disposto no artigo 283°, n.° 2, alíneas b) e c), do C.P.P. o que significa que terá de conter, sob pena de nulidade:
– narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
– a indicação das disposições legais aplicáveis.
VII. Da exposição feita, podemos e devemos retirar as seguintes ilações relativamente ao requerimento para abertura da instrução apresentado pela assistente:
> É rejeitado quando extemporâneo, se o juiz for incompetente ou se a instrução for legalmente inadmissível;
> É nulo quando não contenha narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e indicação das disposições legais aplicáveis;
> É meramente irregular quando não contenha, pelo menos em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à não acusação.
VIII. Ao contrário porém do que afirma o despacho de que ora se recorre, no requerimento de abertura de instrução a Assistente fez uma exposição sistemática dos factos praticados pela arguida que justificam a aplicação de uma pena, indicando ainda as normas legais aplicáveis, cumprindo portando as exigências das referidas alíneas b) e c) do art. 283.° do C.P.P., porquanto aí se diz:
IX. Não se compreende pois a rejeição do requerimento de abertura de instrução se todos os preceitos legais foram respeitados, a menos que se queira discutir gramática e a forma como tais factos (que foram referidos) foram reduzidos a escrito (o que também não seria possível visto o requerimento de abertura de instrução não estar sujeito a quaisquer formalidade), tanto mais que, in casu, atentando às razões pelas quais a assistente discorda do despacho de arquivamento, não está apenas em causa a (in)suficiência de prova ou os factos em si (que foram confirmados pelas testemunhas), também se discorda totalmente da posição do MP, se tais factos integram ou não o crime de violação de correspondência, devassa da vida privada e outras crimes a estes conexos., sendo que, nesta parte se trata até de uma questão de direito!
Refere ainda o Acórdão da Relação de Coimbra de 02/03/2011 supra citado:
"Daí que é admissível a abertura da instrução, apenas com um fundamento jurídico, desde que daí (dessa questão jurídico) decorram consequências processuais para o requerente."
XI. Que é precisamente o que sucede, nesta parte, quando o Ministério Público até parece não por em causa os factos, simplesmente não os integra nos crimes contra a honra, concretamente constando do despacho de arquivamento que:
"...quanto à divulgação das cartas no Fecebook, além de nada constar nos autos, sempre se diria que este não colabora nos crimes contra a honra, porque nos EUA não são crime ...". E, por isso arquiva os autos.
XII. Ora, nesta parte, está em causa uma questão jurídica:
- Saber se os factos relatados na queixa apresentada pela Assistente e confirmados pelas testemunhas, integram ou não afinal o crime contra a honra, seja devassa da vida privada, ou outros a este conexos.
Pois segundo o MP tais factos não são crime, porque:
- "a divulgação das cartas no Fecebook além de nada constar nos autos, sempre se diria que este não colabora nos crimes contra a honra, porque nos EUA não são crime
XIII. Posição com a qual não se concorda pelos fundamentos supra expressos, e constante do RAI, que aqui se reiteram.
XIV. A decisão Instrutória proferida no processo supra, também conheceu e decidiu, no seu ponto II, sobre a nulidade decorrente da insuficiência do inquérito prevista pelo artigo 120, n° 2 alínea d) do C.P. Penal, por a assistente entender e expressar no RAI, que foram omitidas no Inquérito diligencias de prova que se reputam essenciais para a descoberta da verdade material conforme infra se descrevem no RAI.
XV. Tendo a decisão instrutória concluindo, no seu ponto II, para além do mais supra exposto, que "o MP é livre, de levar a cabo ou promover as diligencias de prova que entender necessárias"... e ainda que não existe quaisquer omissão ou insuficiência que cumpra declarar..." Pelo que, a realização das diligencias requeridas na instrução consubstanciariam a pratica de actos inúteis e dilatórios, o que não se afigurou curial ao MP." ..."Razão pela qual se indefere o requerido"
XVI. A assistente entende, salvo melhor entendimento, que esta decisão instrutória, constante do seu ponto II, por não ter levado a cabo os actos de Instrução requeridos pela assistente no seu RAI, está ferida de nulidade por omissão de actos instrutórios requeridos, que deveriam ter sido praticados e não foram, impedindo-se assim a descoberta a verdade material, reiterando-se aqui o já expresso supra nos artigos 1º a 6º deste recurso.

O recurso foi admitido.

A este recurso respondeu apenas o Ministério Público, defendendo a improcedência do mesmo, e concluindo nos seguintes termos:

1. Nos autos de inquérito n.° 123/24.0GALSD que correram termos no Departamento de Investigação e Ação Penal - Secção ... - foi proferido despacho final - cfr. fis. 39 - que determinou o arquivamento dos autos por ter sido entendido, em síntese, não terem sido reunidos indícios suficientes da prática de um crime de violação de correspondência, previsto e punível pelo art.° 194.°, n.° 1, do Código Penal.

2. Inconformada com tal decisão veio a Recorrente atravessar nos autos o R.A.I. que reproduzimos no local próprio, que terminou formulando as suprarreferidas 16 "conclusões".

3. Analisando-as se constata, em síntese apertada, que a Recorrente invoca uma nulidade decorrente de uma alegada insuficiência de inquérito prevista no artigo 120.°, n.° 2, al. d), do C.P.P., bem como alega que, em seu entender, o seu R.A.I. não deveria ter sido rejeitado por não se verificar nenhuma das causas que a lei tipifica como fundamento de rejeição e, consequentemente, o Tribunal "a quo" deveria ter admitido tal requerimento e declarado aberta a instrução.

4. Porém, analisando-se quer o teor do R.A.I. quer do despacho recorrido se constata que, s.m.o. e ressalvado o devido respeito por opinião contrária, que é muito, não lhe assiste razão, dado que:

5. Como foi certeiramente decidido na parte inicial do despacho recorrido, "...tendo em conta as diligências de prova levadas a cabo nos autos, não existe qualquer omissão ou insuficiência que cumpra declarar, não tendo o MP reputado essenciais as diligências agora oferecidas pela assistente. Pelo que, a realização das aludidas diligências consubstanciariam a prática de actos inúteis e dilatórios, o que não se afigurou curial ao MP. Nesta senda, entende-se que não se verificou qualquer nulidade, mormente a nulidade decorrente da insuficiência do inquérito prevista pelo artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do C.P.P., e invocada pela assistente, razão pela qual se indefere ao requerido. (...);

6. Tal como foi, mais uma vez, certeiramente salientado no despacho recorrido, não resulta do R.A.I., que a Recorrente tenha feito a descrição de factos suficientes que preencham os elementos constitutivos, objetivos e subjetivos, dos crimes suprarreferidos, o que consubstancia fundamento para a rejeição do R.A.I.. Com efeito, parafraseando parcialmente o, aliás douto, despacho recorrido, por não sabermos escrever melhor, a Recorrente requereu ...a abertura de instrução, ao abrigo do disposto no art. 287.°, n.° 1, al. b), do Código de Processo Penal, visando obter a pronúncia da arguida BB, pela prática um crime de violação de correspondência, previsto e punido pelo artigo 194°, n° 1 do Código Penal, bem como sem referir quaisquer normas, dos crimes de devassa da vida privada e coacção. No seu RAl, porém, e com vista a este desiderato, limitou/aram-se a requerer sejam levadas a cabo determinadas diligências de prova e a apresentar as razões pelas quais não concorda/m com o arquivamento pelo MP. Ainda que no RAI tenha/m descrito alguns factos, os mesmos não estão descritos de forma clara e afiguram-se conclusivos. Não estão descritos quaisquer factos capazes de consubstanciar o elemento objectivo nem subjectivo da incriminação. (...)

Daí que, não constando do mesmo uma descrição clara e ordenada de todos os factos necessários a integração de todos os pressupostos legais de algum crime se torne inviável a realização desta fase processual por falta de delimitação do seu objecto, sendo manifesto que ninguém poderá vir a ser pronunciado com base apenas em alegações genéricas, inconclusivas ou omissas de factos susceptíveis de fazer integrar, na totalidade, os elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual se pretende essa pronúncia. E devendo o despacho de pronúncia quedar-se pela apreciação do conteúdo do requerimento de abertura de instrução, torna-se óbvio que as omissões deste podem comprometer irremediavelmente a pronúncia dos arguidos, não fazendo qualquer "sentido proceder-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido" 2. 2 Acordão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.10.2003, que pode ler-se na integra em www.dgsi.pf. Esta estrita vinculação temática do Tribunal aos factos alegados no requerimento para abertura de instrução, enquanto limitação da actividade instrutória, relaciona-se, assim, com a natureza judicial desta fase processual, sendo uma consequência do principio da estrutura acusatória do processo penal e constituindo uma garantia de defesa consagrada no art. 32°-; n° 5 da Constituição da República Portuguesa. Acresce a isto, por outro lado, que as eventuais deficiências do requerimento não podem ser supridas por iniciativa do Tribunal, designadamente mediante decisão que convidasse o assistente para o efeito. (...).

7. Como bem se vê, a Recorrente não fez constar do seu R.A.I. factos suscetíveis de consubstanciar a imprescindível "acusação alternativa", necessária quando o objeto da instrução, como no caso dos presentes autos, é um despacho de arquivamento, e não há lugar a despacho de aperfeiçoamento, pelo que está correta e não merece censura a decisão do Tribunal "a quo" de rejeitar tal requerimento.

Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, no parecer que emitiu referencia em síntese conclusiva – e na parte que para aqui releva – o seguinte:

«[N]o que concerne ao recurso apresentado, sempre diremos assistir razão formal à Mma. Juiz de Instrução, quer quanto à nulidade de Inquérito, que não se verifica (mas, quanto a nós, insuficiência) ; quer quanto à questão da vinculação temática do Tribunal que, de acordo com o princípio do acusatório, não poderá substituir-se ao Ministério Público.».

Foi cumprido o disposto no artigo 417º/2 do Cód. de Processo Penal, nada vindo a ser aditado nessa sequência ao processo.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos a conferência.

Nada obsta ao conhecimento do mérito, cumprindo, assim, apreciar e decidir.


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II. APRECIAÇÃO DO RECURSO

O objecto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito.

A esta luz, as questões a conhecer e decidir no âmbito do presente acórdão são as seguintes:

1ª saber se se mostra verificada a nulidade processual prevista no art. 120º/2/d) do Cód. de Processo Penal ;

2ª saber se deve ser revertida a decisão de rejeição do requerimento para abertura de instrução apresentado pela assistente.

Apreciemos então as questões suscitadas, pela ordem de prevalência processual sucessiva que revestem.

Comecemos, antes de mais, por fazer presente o teor da decisão de que ora se recorre, e que é – na parte aqui relevante – o seguinte:

«II - Da invocada nulidade por insuficiência do inquérito

No seu requerimento de abertura de instrução a assistente veio invocar a nulidade decorrente da insuficiência do inquérito prevista pelo artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do C.P.P., porquanto foram omitidas as diligências de prova que descreveu, e que reputa serem essenciais para a descoberta da verdade, entre as quais, a apreensão do telemóvel do falecido e da arguida, bem como a ofendida (que só agora se constituiu assistente) não foi convocada para ser ouvida como testemunha.

O MP pronunciou-se no sentido de inexistir insuficiência do inquérito, que não deve ser confundida com a prova dos factos que constam da acusação.

Cumpre apreciar e decidir.

Ora, não obstante a questão de saber se compete ao Juiz de Instrução ou ao MP declarar qualquer nulidade, por razões de celeridade e porque suscitado perante o JIC, iremos conhecer da questão.

Estabelece o artigo 118.º, n.º1 do Código de Processo Penal que “A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.”

Nos termos do n.º2, “Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.”

O artigo 120.º do CPP prevê as nulidades sanáveis:

1 - Qualquer nulidade diversa das referidas no artigo anterior deve ser arguida pelos interessados e fica sujeita à disciplina prevista neste artigo e no artigo seguinte.

2 - Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:

a) O emprego de uma forma de processo quando a lei determinar a utilização de outra, sem prejuízo do disposto na alínea f) do artigo anterior;

b) A ausência, por falta de notificação, do assistente e das partes civis, nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência;

c) A falta de nomeação de intérprete, nos casos em que a lei a considerar obrigatória;

d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.

3 - As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas:

a) Tratando-se de nulidade de acto a que o interessado assista, antes que o acto esteja terminado;

b) Tratando-se da nulidade referida na alínea b) do número anterior, até cinco dias após a notificação do despacho que designar dia para a audiência;

c) Tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito ou à instrução, até ao encerramento do debate instrutório ou, não havendo lugar a instrução, até cinco dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito;

d) Logo no início da audiência nas formas de processo especiais.

Quanto ao regime, nos termos do art. 122.º do CPP:

1 - As nulidades tornam inválido o acto em que se verificarem, bem como os que dele dependerem e aquelas puderem afectar.

2 - A declaração de nulidade determina quais os actos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição, pondo as despesas respectivas a cargo do arguido, do assistente ou das partes civis que tenham dado causa, culposamente, à nulidade.

3 - Ao declarar uma nulidade o juiz aproveita todos os actos que ainda puderem ser salvos do efeito daquela.

Preceitua o artigo 123º, n.º1, do Código de Processo Penal que “Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.”

O n.º 2 determina que “Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.”

Quanto aos efeitos da irregularidade importa referir que a declaração de irregularidade determina a invalidade de todo o acto a que se refere, e dos actos subsequentes que possa afectar, ou seja, que tenham um nexo de dependência lógica e histórica com o acto irregular.


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Por despacho datado de 21-05-2024 foi determinado o arquivamento dos autos pela prática do crime de violação de correspondência, previsto e punido pelo artigo 194º, nº 1 do Código Penal, que a assistente imputou à arguida, com os fundamentos ali expendidos, e que por questões de celeridade se dão por integralmente reproduzidos, entre eles o facto de ter sido a GNR quem mandou abrir as cartas à denunciada, no âmbito de investigação criminal, por causa do suicídio do pai da queixosa.

Quanto à divulgação das cartas no Facebook, além de nada constar nos autos, sempre se diria que este não colabora nos crimes contra a honra, porque nos EUA não são crime, vide Ponto 3 da Nota Prática nº 3/2014 do Gabinete do Cibercrime da PGR, in www.ministeriopublico.pt

Em consequência, entendeu o MP não se vislumbrar a realização de diligências suplementares e úteis ao apuramento indiciário dos factos, concluindo pelo arquivamento do procedimento criminal, por falta de prova bastante ou carência de indiciação suficiente (vide artigo 283º, nº 2 do CPP).

A arguida foi constituída como tal, interrogada e informada dos factos concretamente imputados, constantes dos autos em 18-04-2024 –, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 141º, nº 4, al. d) do C.P.P., ex vi do artigo 144º, nº 2, do mesmo diploma, conforme ref. 9580573, datada de 19-04-2024.

Como é sabido, o interrogatório do arguido no âmbito do inquérito constitui uma relevante garantia de defesa, com tutela constitucional no artigo 32º da CRP, que se destina a dar a conhecer os factos sob investigação e a conferir-lhe a faculdade de sobre eles se pronunciar, oferecendo provas ou requerendo as diligências que entender adequadas à defesa dos seus interesses.

Trata-se, por conseguinte, de uma exigência de um processo leal, justo e equitativo e a sua ausência constitui violação da garantia de defesa.

Foram inquiridas testemunhas conforme ref. 9745488, designadamente CC, irmão da ofendida, e DD, cunhado do falecido.

No Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 06-11-2017, in www.dgsi.pt, decidiu-se e sumariou-se que:

“I) Só a falta absoluta da prática dos atos que a lei obrigatoriamente imponha é passível de gerar a nulidade a que alude o artº 120º, nº 2, al. d), do CPP e não já a eventual insuficiência material do inquérito.

II) As diligências que, na alegação da recorrente, deviam ter sido realizadas em inquérito e não o foram - reinquirição de todas as testemunhas já ouvidas e demais intervenientes (nomeadamente o arguido) - não são meios de prova cuja produção seja legalmente imposta, razão pela qual, a omissão da sua realização não acarreta a referida nulidade, na medida em que a apreciação da necessidade de realização dessas diligências, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito, é da competência exclusiva do Mº Pº, sem prejuízo das formas de reação previstas nos artºs 278º e 279º do CPP.

III) O segmento da «omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade», igualmente incluído na al. d) do citado artº 120º, reporta-se à nulidade derivada da omissão de atos processuais na fase de julgamento e de recurso.

IV) Partindo da correta ponderação da estrutura acusatória do processo penal (artº 32º, nº 5, da CRP), bem como dos princípios do contraditório e da oficialidade, a solução maioritariamente seguida pela jurisprudência é a de que a insuficiência do inquérito respeita apenas à omissão de atos obrigatórios e já não também a quaisquer outros atos de investigação e de recolha de prova necessários à descoberta da verdade.”

Concluímos que o Ministério Público é livre, salvaguardados os atos de prática obrigatória e as exigências decorrentes do princípio da legalidade, de levar a cabo ou de promover as diligências que entender necessárias, com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito e não determina a nulidade do inquérito por insuficiência a omissão de diligências de investigação não impostas por lei (Ac. do TC nº395/2004, de 2/6/2004, DR.1.Série de 9/10/2004).

Face ao exposto, e tendo em conta as diligências de prova levadas a cabo nos autos, não existe qualquer omissão ou insuficiência que cumpra declarar, não tendo o MP reputado essenciais as diligências agora oferecidas pela assistente. Pelo que, a realização das aludidas diligências consubstanciariam a prática de actos inúteis e dilatórios, o que não se afigurou curial ao MP.

Nesta senda, entende-se que não se verificou qualquer nulidade, mormente a nulidade decorrente da insuficiência do inquérito prevista pelo artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do C.P.P., e invocada pela assistente, razão pela qual se indefere ao requerido.

Notifique.


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III - Da rejeição do RAI por inadmissibilidade legal:

Tiveram origem os presentes autos na denúncia efetuada por AA contra a arguida BB, alegando que esta terá divulgado o teor das cartas escritas pelo pai, momentos antes de cometer suicídio, o que afectou a sua honra e consideração.

Tais factos seriam susceptíveis de consubstanciar, eventualmente, a prática de um crime de violação de correspondência, previsto e punido pelo artigo 194º, nº 1 do Código Penal.

Findo o inquérito, concluiu-se não existir matéria de índole criminal.

Da prova indiciária recolhida em sede de inquérito entendeu o MP que não resultam quaisquer indícios da prática dos factos denunciados.

O assistente, melhor identificado/a/s nos autos, requeu/ram a abertura de instrução, ao abrigo do disposto no art. 287.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, visando obter a pronúncia da arguida BB, pela prática um crime de violação de correspondência, previsto e punido pelo artigo 194º, nº 1 do Código Penal, bem como sem referir quaisquer normas, dos crimes de devassa da vida privada e coacção.

No seu RAI, porém, e com vista a este desiderato, limitou/aram-se a requerer sejam levadas a cabo determinadas diligências de prova e a apresentar as razões pelas quais não concorda/m com o arquivamento pelo MP.

Ainda que no RAI tenha/m descrito alguns factos, os mesmos não estão descritos de forma clara e afiguram-se conclusivos. Não estão descritos quaisquer factos capazes de consubstanciar o elemento objectivo nem subjectivo da incriminação.


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Ora, como é consabido e decorre, aliás, do art. 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, o requerimento para abertura de instrução, apresentado pelo assistente em caso de arquivamento pelo Ministério Público, deve equivaler, em tudo, a uma acusação, condicionando e delimitando a actividade de investigação do juiz de instrução e, consequentemente, o objecto da decisão instrutória, nos exactos termos em que a acusação formal, seja pública, seja particular, o faz.

E assim é de tal modo que na instrução apenas poderão ser considerados os factos descritos no requerimento para a sua abertura (ressalvada a hipótese a que se refere o art. 303º do Código de Processo Penal de alteração não substancial dos factos descritos nesse requerimento), sob pena de nulidade da decisão instrutória, como resulta, claramente do disposto no art. 309º, nº 1 do Código de Processo Penal.

Daí que, não constando do mesmo uma descrição clara e ordenada de todos os factos necessários a integração de todos os pressupostos legais de algum crime se torne inviável a realização desta fase processual por falta de delimitação do seu objecto, sendo manifesto que ninguém poderá vir a ser pronunciado com base apenas em alegações genéricas, inconclusivas ou omissas de factos susceptíveis de fazer integrar, na totalidade, os elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual se pretende essa pronúncia.

E devendo o despacho de pronúncia quedar-se pela apreciação do conteúdo do requerimento de abertura de instrução, torna-se óbvio que as omissões deste podem comprometer irremediavelmente a pronúncia dos arguidos, não fazendo qualquer “sentido proceder-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido".

Esta estrita vinculação temática do Tribunal aos factos alegados no requerimento para abertura de instrução, enquanto limitação da actividade instrutória, relaciona-se, assim, com a natureza judicial desta fase processual, sendo uma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo penal e constituindo uma garantia de defesa consagrada no art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.

Acresce a isto, por outro lado, que as eventuais deficiências do requerimento não podem ser supridas por iniciativa do Tribunal, designadamente mediante decisão que convidasse o assistente para o efeito.

A admitir-se entendimento diverso, "(...) estar-se-ia a transferir para o juiz o exercício da acção penal, contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor e a transformar a natureza da instrução que passaria de contraditória a inquisitória".

Em boa verdade, uma decisão neste sentido – consubstanciando o exercício, pelo juiz de instrução, de uma faculdade inquisitória e de exercício de acção penal que, no actual quadro legal, não lhe assiste – contrariaria o princípio da estrutura acusatória do processo penal consagrada do referido art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa.

Quanto a este ponto em particular, é pertinente chamar à colação o que expenderam os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na Constituição da República Anotada, 3ª ed., pág. 206: a estrutura acusatória do processo penal implica, além do mais, a proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação. De onde resulta que o juiz de instrução não pode intrometer-se na delimitação do objecto do processo – fixado pela acusação ou pelo RAI do assistente – no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao aperfeiçoamento feito ao assistente requerente da abertura da instrução.

Anote-se, ainda neste âmbito, que a inadmissibilidade de renovação do requerimento para abertura de instrução não implica uma limitação desproporcionada do direito da assistente a deduzir acusação através desse requerimento – como referido no Acórdão do Tribunal Constitucional de 30.01.20014 –, "(...) na medida em que tal facto lhe é exclusivamente imputável, para além de constituir – na sua possível concretização – uma considerável afectação das garantias de defesa do arguido".

Ainda segundo este aresto: "(...) do ponto de vista da relevância constitucional merece maior tutela a garantia de efectivação do direito de defesa (na medida em que protege o indivíduo contra possíveis abusos do poder de punir), do que garantias decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito".

Esclarecendo, definitivamente as divergências jurisprudenciais que se vinham verificando a este respeito, veio o Supremo Tribunal de Justiça fixar jurisprudência por Acórdão de 12.05.2005 (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, publicado no DR – I S-A de 04.11.2005) nos termos seguintes:

“Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento para abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, n.º2, do Cód. Proc. Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

Já no que concerne as consequências da inobservância do preceituado no art. 287º, nº 2 do Código de Processo Penal, importa desde logo atender que este mesmo normativo remete para a aplicação do disposto no art. 283.º, n.º 3 al. b) e c) do mesmo diploma legal.

Pelo que, além de inviabilizar, objectivamente, a possibilidade de realização da instrução (art. 309º do Código de Processo Penal), a deficiência de conteúdo (e não de mera forma) do requerimento – por não conter a narração de factos que fundamentem a aplicação a um concreto arguido de uma pena ou medida de segurança, como o impõe o citado art. 283º, nº 3 als. a) e b) do Código de Processo Penal –, implica a sua nulidade, tornando assim legalmente inadmissível a abertura da instrução e obrigando, consequentemente, à rejeição daquele nos termos do art. 287.º, n.º 3 do CPP, onde se dispõe que "o requerimento (para abertura de instrução) só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução".

Ora, dito isto e, tendo em mente os elementos objectivos e subjectivos que integram o/s crime/s pelo/s qual/is os assistentes pretendem ver o/s arguido/s pronunciado/s no caso dos autos, logo se vislumbra, segundo cremos, que o RAI deduzido terá, necessariamente, que ser rejeitado in totum.

Tudo porque, como bem se vê, não obedece ao que se estatui no art. 287º, nº 2 do Código de Processo Penal, sendo manifesto que, contrariamente a exigido art. 283º, nº 3, al. b) e c) do mesmo diploma legal, não contém a descrição clara, ordenada e suficiente – à semelhança do que é exigido para a acusação, seja pública, seja particular – dos factos necessários a dar como para dar como preenchidos todos os elementos típicos objectivos e subjectivos do ilícito penal em causa e, como tal, a dar como integrada a sua prática, pelo/a/s arguido/a/s.


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Descendo ao caso dos autos, desde logo, não são descritos quaisquer factos susceptíveis de integrar, quer o elemento objectivo, quer subjectivo dos crimes em apreço.

Não são suficientes os factos no RAI, já que não satisfazem cabalmente a exigência prevista na alínea b), do n.º3, do art. 287.º, do CPP, ou seja “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.

Não se aduza, contra o que vai dito, o argumento de que os elementos de facto concernentes ao tipo subjectivo do ilícito em questão se retiram da análise dos factos objectivos praticados. É que, embora essa asserção seja correcta ao nível da prova de tais elementos de facto – porquanto tratando-se de factos de ordem subjectiva, (do mundo dos pensamentos e das representações mentais do agente: os seus conhecimentos e intenções) são insusceptíveis de prova directa, havendo que retirar a convicção da sua verificação da análise dos factos objectivos praticados à luz das regras da experiência comum – tal não significa que os mesmos não tenham de ser devidamente alegados, sob pena, como vimos de não poderem ser considerados na instrução.

Face ao exposto, estamos em crer que o RAI apresentado pelo/a/s assistente/s não obedece ao que se estatui no art. 287º, nº 2 do Código de Processo Penal, pois é manifesto que, contrariamente a exigido art. 283º, nº 3, al. b) e c) do mesmo diploma legal, não contém a descrição clara e ordenada – à semelhança do que é exigido para a acusação, seja pública, seja particular – de todos os factos susceptíveis de responsabilizar criminalmente o/a/s arguido/a/s por nenhum dos crimes que lhe são imputados, abstractamente, pelo/a/s assistente/s.

Dele não consta, como tal, a narração de todos os factos necessários para fundamentar a aplicação ao/à/s o/a/s arguido/a/s de uma pena ou medida de segurança pelos aludidos crimes.

Por tudo isto, afigura-se-nos que tal requerimento é nulo (cf.art. 283º, nº 3, als. b) e c), aplicável ex vi art. 287.º, n.º 2. ambos dos Código de Processo Penal) sendo que a falta de objecto adveniente dessa nulidade implica, como vimos, a inexequibilidade da instrução, por falta de objecto.

Deve, pois, ser totalmente rejeitado, nos termos do art. 287º, nº 3 do Código de Processo Penal, por inadmissibilidade legal da instrução.


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Face ao exposto, decido rejeitar, por legalmente inadmissível, o requerimento para abertura de instrução apresentado pela assistente AA.

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Custas pela assistente, que se fixam em 2 UC em função da utilidade prática da instrução na tramitação global do processo – cfr. art. 515º n.º 1 al. a) e 519º n.º 1, ambos do Código de Processo Penal e art. 8.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais. ».

Analisemos então as questões suscitadas em sede de recurso.

1ª De saber se se mostra verificada a nulidade processual prevista no art. 120º/2/d) do Cód. de Processo Penal.

Vem a assistente invectivar a decisão recorrida, em primeiro lugar, na parte da mesma que considerou não verificada a nulidade do Inquérito tal qual se mostrava suscitada em sede de requerimento de abertura de instrução, reiterando nesta sede a sustentação ali aduzida, isto é, que pelo Ministério Público terão sido «omitidas no Inquérito diligencias de prova que se reputam essenciais para a descoberta da verdade material conforme infra se descrevem no RAI».

Considera, pois, por tal via verificada a nulidade processual prevista no art. 120º/1/d) do Cód. de Processo Penal, onde se estatui que «Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais … A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade».

Apreciando se dirá que não lhe assiste razão.

Na verdade, a previsão aqui em causa reporta esta nulidade por falta de realização de diligências probatórias, a três momentos processuais distintos: à fase de Inquérito, à fase de Instrução, e às fases posteriores àquelas (maxime a de julgamento).

Ora, apenas com relação a esta última vertente – isto é, a fases e momentos processuais posteriores ao Inquérito ou (se a houver) à Instrução – a nulidade em causa se configura por via da omissão de diligências que se possam reputar essenciais à descoberta da verdade.

Não assim no que tange às fases de Inquérito e de Instrução, relativamente às quais só a falta da prática de «actos legalmente obrigatórios» é causa de nulidade por insuficiência de completude de tais fases processuais.

Ou seja, apenas a falta por omissão de acto que a lei prescreve como obrigatório – como seja o interrogatório de arguido (quando seja possível notificá-lo) em sede de Inquérito – pode consubstanciar a nulidade de insuficiência de inquérito prevista nesta al. d) do art. 120º/2 do Cód. de Processo Penal.

Outrossim, a omissão de diligências, nomeadamente de produção de prova, cuja obrigatoriedade não resulte de lei, não dá origem à aludida nulidade.

Ora, no presente caso – e como desde logo se constata antecipado pela alegação da própria assistente/recorrente –, a sua pugna processual (e agora recursória) não reporta a diligências ou actos que devessem obrigatoriamente ter sido realizados em sede de Inquérito, e que não o hajam sido, mas antes a «diligencias de prova que se reputam essenciais para a descoberta da verdade material» – nomeadamente nova tomada de declarações complementares à arguida (que, note–se, foi constituída e interrogada nessa qualidade em sede de Inquérito, cfr. fls. 25 a 28 dos autos) a inquirição de testemunhas e a junção de um telemóvel.

Não se estando, pois, perante a omissão de qualquer acto cuja realização se imponha obrigatoriamente em sede de Inquérito, não se mostra verificada insuficiência de Inquérito que cumpra declarar.

Bem andou, pois, o tribunal a quo ao julgar não verificada a nulidade processual em causa, decisão que se confirma integralmente.

Improcede, pois, esta primeira parte do recurso interposto.

2ª De saber se deve ser revertida a decisão de rejeição do requerimento para abertura de instrução apresentado pela assistente.

Analisemos então a suscitada questão recursória de saber se devia ter sido rejeitado o requerimento de abertura de instrução (RAI) apresentado nos autos pela assistente e em que se reagia contra a decisão de arquivamento oportunamente proferida pelo Ministério Público.

Os fundamentos de rejeição do requerimento de abertura de instrução estão previstos de forma taxativa neste nº3 do art. 287º do Cód. de Processo Penal, reconduzindo–se à respectiva extemporaneidade, à incompetência do juiz ou a inadmissibilidade legal da instrução.

E se os dois primeiros fundamentos não suscitam debate no presente caso (nem, diga–se, se afigura que sejam susceptíveis de grande controvérsia na respectiva integração), é já quanto ao terceiro dos fundamentos de rejeição do RAI que maiores questões podem suscitar–se.

Como de forma expressiva refere Pedro Soares Albergaria – em “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal – Tomo III”, ed. 2021, pág. 1207 –, «O fundamento por assim dizer mais "diversificado" de rejeição é o da inadmissibilidade legal da instrução», logo aditando que «Debalde se tentaria esgotar o conteúdo dessa cláusula geral, importando sobretudo reter que nem sempre essa inadmissibilidade resulta direta e obviamente de norma expressa (cf. art. 286.º/3), mas mais frequentemente até da consideração do desenho e lugar da fase de instrução na estrutura (acusatória) jurídico-constitucionalmente sancionada do processo penal português (…) - é dizer, não raro a inadmissibilidade legal da instrução resulta não propriamente de uma norma-regra (ainda o art. 286.º/3), mas da correta compreensão e otimização dos princípios que caraterizam o processo penal pátrio.».

E prossegue o mesmo autor, em quanto para a presente situação releva, referindo que «Seja como for, por razões de arrumação sistemática talvez se possa, sempre sem pretensão de exaustividade e sem prejuízo de zonas mais ou menos cinzentas, destrinçar entre razões atinentes ao objeto da instrução e razões atinentes às "partes", suscetíveis de fundarem a rejeição do requerimento por inadmissibilidade legal da instrução: (…) ali [cabem], a circunstância de (…) quando o requerimento do assistente não seja autossuficiente quanto aos factos pertinentes ao tipo de crime imputado ».

Efectivamente, e ponderando naqueles que são os fins e os objectivos da fase de instrução em processo penal, temos que a mesma se orienta desde logo a partir dos termos consignados no art. 286º/1 do Cód. de Processo Penal, onde se dispõe que «A instrução visa a comprovação da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem em submeter ou não a causa a julgamento».

Assim, enquanto fase jurisdicional, e citando Paulo Pinto de Albuquerque (in ‘Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem’, 2ª ed., pág. 737) «A instrução consiste na fase de discussão da decisão de arquivamento ou de acusação tomada pelo MP no final do inquérito. Mas o âmbito desta discussão é limitado pela lei, ou melhor, pelo objectivo que a lei estabelece para aquela discussão. Nela pretende-se apurar a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança (artigo 308, n.º 1). Portanto, a instrução visa discutir a decisão de arquivamento apenas no que respeita ao juízo do MP de inexistência de indícios suficientes e discutir a decisão de acusação apenas no que respeita ao juízo do MP de existência de indícios suficientes».

Não se configurando como um complemento da investigação feita em inquérito, mas antes contemplando a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento, tal significa que em sede de fase instrutória caberá ao juiz investigar o caso submetido a instrução, de forma autónoma, e sempre «tendo em conta a indicação constante do requerimento da abertura de instrução» a que se refere o art. 287º/2 do Cód. de Processo Penal, conforme expressamente exigido no art. 288º/4 do Cód. de Processo Penal.

Nesta perspectiva, é fora de dúvida que o RAI apresentado pelo assistente (em reacção a uma decisão de arquivamento do Ministério Público, como sucede no presente caso), deve permitir de forma clara a definição e delimitação do objecto do processo a partir da sua apresentação, constituindo, substancialmente, uma acusação alternativa ao despacho de abstenção proferido pelo Ministério Público.

Isso mesmo decorre expressamente do disposto no art. 287º/2 do Cód. de Processo Penal, onde se estatui que o RAI «não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar», sendo certo que a tal requerimento, quando formulado pelo assistente, é aplicável «o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º» – ou seja, o mesmo deve conter «A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada” e “A indicação das disposições legais aplicáveis».

O assistente tem, pois, que indicar os factos concretos que, ao contrário do Ministério Público, considera indiciados ou que pretende vir a fazer indiciar no decurso da investigação requerida, viabilizando a jusante a sindicância instrutória em que o juiz de instrução apura se esses factos se indiciam (ou não), e a final profere (ou não) despacho de pronúncia.

Como, por todos, se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29/04/2020 (proc. 1016/14.5T3AVR.P1)[[1]], “I - O requerimento para abertura de instrução (RAI), apresentado pelo assistente em caso de arquivamento pelo Ministério Público deve equivaler em tudo a uma acusação, condicionando e delimitando a atividade de investigação do juiz de instrução e, consequentemente, o objeto da decisão instrutória, nos exatos termos em que a acusação formal, seja pública, seja particular, o faz. II - Daí que, não constando do RAI uma descrição clara e ordenada de todos os factos necessários a integração de todos os pressupostos legais de algum crime se torne inviável a realização desta fase processual de instrução por falta de delimitação do seu objecto. III - E isto porque é manifesto que ninguém poderá vir a ser pronunciado com base apenas em alegações genéricas, inconclusivas ou omissas de factos suscetíveis de fazer integrar, na totalidade, os elementos objetivos e subjetivos do crime pelo qual se pretende essa pronúncia. IV - Quando não contém os elementos supra referidos em II, o RAI é nulo por falta de objecto, o que implica a inexequibilidade da instrução e, por via disso, a sua rejeição”.

Só assim se respeitará a estrutura acusatória que preside ao direito processual penal português, na medida em que «o juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos (...) que tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objeto da acusação do Ministério Público» – Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, pág. 264.
Por isso, como – também por todos – se diz no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/11/2016 (proc. 37/09.4TAPNC.C1)[[2]] , “a exigência legal de que o requerimento de instrução contenha a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, refere-se aos elementos objectivos e também subjectivos do crime imputado, posto que não existe crime/responsabilidade penal sem que todos eles se encontrem preenchidos. A exigência da descrição dos factos no requerimento de instrução do assistente radica na circunstância de este, partindo de um despacho de arquivamento do inquérito, dever fixar o objecto do processo, dentro do qual se moverá a actividade do juiz de instrução a quem é vedado alterar os factos alegados, fora das excepções previstas no artigo 303º, nº 1 do Código de Processo Penal. Mas, por outro lado e de capital importância, o requerimento de instrução é a base factual dentro da qual se moverá o contraditório, o exercício do direito de defesa (cfr. Prof. Germano Marques, Curso de Processo Penal III, pag. 141).
Em última análise o que está em causa é a garantia constitucional de defesa do arguido com o princípio, também constitucional, do contraditório que é inerente àquele e cuja efectividade implica uma definição clara e precisa do objecto do processo (cfr. artigo 32º, nº 1 e nº 5 da CRP). O disposto no artigo 287º, nº 2 do Código de Processo Penal é, portanto, uma decorrência necessária da própria constituição.
Porque assim é, tem sido entendido que o requerimento de instrução do assistente que não descreva cabalmente os factos imputados, deve ser objecto de rejeição por inadmissibilidade legal desta, nos termos conjugados dos artigos 287º, nº 2 e nº 3 e 283º, nº 3, b) do Código de Processo Penal, não podendo o juiz de instrução intrometer-se de qualquer modo na delimitação do objecto do processo no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao assistente requerente da instrução”.

Revertendo a quanto releva no presente caso concreto, temos, pois, que estando aqui em causa a reacção à decisão de arquivamento proferida pelo Ministério Público e a propugnada (pela assistente) imputação à arguida, vertida em correspondente pronúncia, de determinado(s) crime(s), então «a submissão à comprovação judicial só faz sentido com a apresentação de uma narrativa de factos cuja prática é imputada ao arguido, pois que a comprovação, a confirmação, o reconhecer-se como bom o requerimento (ou a acusação) terá de passar necessariamente pela aferição de factos concretos da vida real. (…) O requerimento para abertura da instrução constitui, pois, o elemento fundamental de definição e determinação do âmbito e dos limites da intervenção do juiz na instrução: investigação autónoma, mas delimitada pelo tema factual que lhe é proposto através do requerimento de abertura da instrução. No caso de instrução requerida pelo assistente, o limite tem de ser definido pelos termos em que, segundo o assistente, deveria ter sido deduzida acusação, e consequentemente, não deveria ter sido proferido despacho de arquivamento – no rigor, por um modelo de requerimento que deve ter o conteúdo de uma acusação alternativa, ou, materialmente, da acusação que o assistente entende que deveria ter sido deduzida com base nos elementos de prova recolhidos no inquérito» – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07/05/2008 (proc. 07P4551)[[3]].
Pois bem, no presente caso concreto, desde logo é inevitável constatar que o RAI apresentado não é, efectivamente, um exemplo de clareza na delimitação da imputação fáctica típica e jurídico–criminal que pretende efectuada à arguida.
Desde logo, e no que tange ao segundo aspecto, verifica–se propugnar pelo acolhimento do ali requerido por forma a que a arguida seja pronunciada pelos crimes de violação de correspondência, de devassa da vida privada, de coacção «e outros a estes conexos», fórmula que não se revela totalmente esclarecedora, e à qual ademais falece a adequada indicação das disposições legais penais típicas correspondentes ao pretendido.
Além disso, constata–se a alusão a alguns factos de natureza eminentemente conclusiva, inexistindo aquela que idealmente deveria ser uma escorreita, lógica e clara descrição de factos, mais se intercalando, na descrição destes, alusões às razões de discordância relativamente aos fundamentos em que o Ministério Público sustentou o despacho de arquivamento oportunamente proferido nos autos, e à pretensão de que sejam levadas a cabo determinadas diligências de prova.
Foi precisamente a consideração como desadequada da indicação no RAI dos elementos típicos objectivos e subjectivos dos tipos criminais ali imputados – aliás, por referência ao crime de violação de correspondência –, que sustentou a decisão ora recorrida, como já acima vimos, e em termos que aqui se dão por inteiramente reproduzidos.

Considera–se, porém, e em face do concreto teor do RAI apresentado pela recorrente/assistente, que a decisão recorrida utilizou um crivo demasiado restritivo daquilo que se mostra efectivamente exigível nos termos dos aludidos arts. 287º/2 e 283º/3/b)d) do Cód. de Processo Penal.

Assim, cumpre desde logo realçar que o nº2 do art. 287º do Cód. de Processo Penal estipula que «o requerimento [de abertura de instrução] não está sujeito a formalidades especiais» – estatuição base aplicável a qualquer RAI (isto é, também ao que seja apresentado por quem tenha a qualidade de assistente nos autos) –, aditando depois quais os aspectos e elementos que, não obstante essa inexigência de formalismo estrito, devem constar do RAI, em especial do apresentado pelo assistente nos autos.
É certo que o teor do aludido nº 2 do art. 287º do Cód. de Processo Penal se afigura claro no sentido de, com relação ao RAI apresentado pelo assistente, cindir aquilo que seja a formalidade da descrição e exposição dos factos típicos criminalmente relevantes, da essencialidade de que tal descrição exista e seja completa e clara – colocando em planos e momentos expressamente distintos a inexigibilidade de «formalidades especiais» permitida a qualquer RAI (leia–se, seja apresentado pelo assistente, seja pelo arguido, consoante o caso), da exigência de imprescindível cumprimento do «disposto nas alíneas b) e d) do nº 3 do artigo 383.º» no caso de o RAI ser apresentado pelo assistente.
Porém, não se descortina deste regime legal a imposição de que a avaliação da completude do preenchimento dos pressupostos de adequação do RAI do assistente – e, assim, da presença dos elementos do requerimento que sejam materialmente exigidos –, deva processar–se por referência apenas a um segmento específico do RAI, e não por reporte àquela que seja a globalidade do teor do mesmo RAI. Donde, para que se tenham por satisfeitas as exigências formais e substanciais impostas como condição de eficácia processual do RAI, o que há que ponderar é se os elementos essenciais que as preenchem resultem do RAI globalmente considerado, e não apenas de um segmento particular do mesmo.
Ou seja, essencial é, sempre, que percorrido o RAI apresentado pelo assistente – ainda que, portanto, analisado na sua globalidade e não exigindo que do mesmo tal conste num específico segmento –, do teor do mesmo resulte o elenco das circunstâncias de facto que permitem a averiguação probatória indiciária pretendida, por reporte aos elementos do tipo objectivo e subjectivo do ilícito que o assistente impute ao arguido.

Pois bem, no caso dos autos, e na sequência do que já se disse, concede–se sem qualquer hesitação que a estrutura descritiva do RAI apresentado não milita em abono da clareza que seria desejável e formalmente adequada à devida proposta de acusação alternativa.
Porém, percorrido todo o conteúdo do RAI apresentado, não se julga rigorosa a consideração efectuada na decisão recorrida de que no mesmo « Não estão descritos quaisquer factos capazes de consubstanciar o elemento objectivo nem subjectivo da incriminação».
Sendo indiscutível quanto fica dito, também é verdade que ao longo do RAI apresentado a assistente igualmente elenca e alude a circunstâncias de facto que permitem uma averiguação probatória indiciária, não apenas dos elementos do tipo objectivo, mas também no que respeita ao tipo subjectivo dos ilícitos que a assistente imputa à arguida – assim como, adita–se, igualmente elenca, de forma que se tem por suficiente, circunstâncias das quais se extrai estarmos perante a imputação de actuação consciente da ilicitude daqueles –, sendo que, muito naturalmente, se tais elementos se podem, ou não, ter por indiciariamente demonstrados, essa é questão muito diversa da sua alegação em sede de RAI, e que aqui não releva de todo.
Assim – e, repete–se, independentemente da razão que possa ter a assistente (ou não) nas imputações que faz – o que constitui, precisamente, o objecto da instrução requerida, e não da avaliação preliminar prevista no art. 287º/3 do Cód. de Processo Penal – crê–se que a factualidade enunciada e descrita pelo menos nos pontos 2º, 3º, 5º, 6º, 7º, 12º, 14º, 15º, 16º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º, 35º, 36º, 37º, 44º, 45º, 46º, 47º, 48º, 61º e 62º do RAI, sem prejuízo de poder ser expurgada de alguma passagens mais eminentemente conclusivas, poderá ser suficiente para sustentar o preenchimento dos elementos típicos objectivos e subjectivos (nestes últimos relevando em particular os aludidos pontos 61º e 62º) dos crimes imputados.

Duas notas.

A primeira, para referir que, como de início se enunciou, a assistente não referencia a adequada indicação das disposições legais penais típicas correspondentes à pronúncia criminal pretendida.
Porém, nesta matéria sufraga–se o entendimento vertido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 03/07/2024 (proc. 10629/22.0T9PRT.P1)[[4]], onde, em situação absolutamente similar à presente, se decidiu que «a omissão de indicação das disposições legais, nos termos em que se verificou no caso em apreço, não impede uma decisão instrutória válida, pelo que não permite concluir pela inadmissibilidade legal da instrução. Repare-se que se o legislador pretendesse este resultado bastava ter determinado a nulidade insanável em caso de falta dos requisitos previstos no art. art. 283.º, n.º 3, do CPPenal. Mas não o fez. E a nosso ver bem, pois a multiplicidade de situações que podem surgir do não cumprimento daqueles requisitos hão-de determinar soluções diferentes. Como bem se definiu no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 24-10-2017, embora perante falhas diferentes, «[e]ntre as causas de rejeição do requerimento para abertura de instrução previstas taxativamente no nº 3 do art. 287º conta-se a “inadmissibilidade legal da instrução”. Neste conceito cabem apenas as deficiências do conteúdo de tal requerimento, nomeadamente quando dele resultar falta da tipicidade da conduta - e já não as suas deficiências formais», sendo que estas, não sendo essenciais e imprescindíveis, não devem conduzir à rejeição da abertura da instrução, «posto que a sua indagação e acrescento é possível». No caso em apreço, a assistente entendeu que estava em causa um crime de ofensa à integridade física, elucidando, deste modo, qual a subsunção jurídica considerada adequada ao caso. É certo que omitiu a indicação da norma legal, mas em coerência com a denominação que utilizou só existe uma disposição legal aplicável – o art. 143.º do CPenal [no caso], já que os demais casos de ofensa à integridade física são ou graves ou qualificados ou privilegiados ou negligentes.».
Também aqui, a referência aos crimes de violação de correspondência, de devassa da vida privada, de coacção se afigura suficientemente unívoca, sendo certo que neste aspecto em particular se a é ademais viável a viabilidade de oportuna rectificação à luz da alteração da qualificação jurídica permitida nos termos do art. 303º/1/5 do Cód. de Processo Penal.

A segunda, para consignar que se constata que, em algumas passagens, do seu RAI a assistente remete para o teor de outras peças processuais, designadamente o auto de notícia/denúncia.

No caso, porém, não se julga que tal exercício desvirtue a autonomia e auto–suficiência que se impõe ao RAI no cumprimento da exigência processual decorrente da aplicação do art. 283º/2/b) do Cód. de Processo Penal.

Na verdade, além uma remissão para outras peças processuais sempre se julgar viável, no limite, para complemento de dados puramente objectivos da descrição da matéria de facto (como o são, maxime, uma data ou um local da respectiva ocorrência, pressupondo que esta esteja enunciada e bem delimitada no RAI), releva que in casu o RAI apresentado permite consubstanciar uma acusação alternativa ao arquivamento, constituindo uma peça autónoma e suficiente, que, no que tange aos seus elementos essenciais não implica a necessidade de recurso a elementos externos à mesma.

Como se escreveu no Acórdão Tribunal da Relação de Lisboa de 25/10/2016 (proc. 1634/14.1T9SNT.L1-5)[[5]], «V- Ora ainda que nos termos do art. 283.º, n.º 3, al.ª b), do Cód. Proc. Penal, a narração dos factos possa ser sintética, terá que ser suficiente para albergar a consequência de poder fundamentar a aplicação de uma pena. VI- Essa suficiência mede-se não só pela possibilidade do libelo acusatório conter todos os elementos subjectivos e objectivos indispensáveis à perfectibilização subsuntiva da infracção, como também, num outro domínio, o de poder funcionar como uma peça processual autónoma, ou seja, sem que para definição desses mesmos elementos se tenha de recorrer a outras peças do processo.» – sublinhado agora aposto.

No mesmo sentido os Acórdãos, todos do Tribunal da Relação do Porto, de 08/09/2010 (proc. 626/08.4TAPVZ.P1)[[6]], de 29/04/2020 (proc. 1016/14.5T3AVR.P1)[[7]] (já citado supra) – onde ademais se assinala que «o Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 35/2012, de 25-01, em consonância com o seu anterior acórdão n.º 358/2004, deixou bem claro que perfilha o entendimento exposto, decidindo «Não julgar inconstitucional a norma extraída dos artigos 287º e 283º do CPP, quando interpretada no sentido de que a “sua formulação de “descrição sintética dos factos”, não permite que estes sejam descritos por remissão”» –, e de 22/05/2024 (proc. 925/18.7T9OVR.P1)[[8]] – e ainda de 22/05/2024 (proc. 110/18.8T9VGS.P1), do ora relator.

É, pois, por se entender aqui verificada essa necessária autónoma suficiência narrativa que se julga que o RAI apresentado não integra motivo de rejeição, viabilizando por si a actividade instrutória pretendida.

Concluindo, ainda que o RAI apresentado nos autos pela assistente não constitua um exemplo modelar no cumprimento do art. 287º/2 e 283º/3/b)d) do Cód. de Processo Penal, julga–se que só a ausência, por absoluta omissão narrativa, de factos fundamentadores da aplicação ao sujeito-arguido duma pena ou duma medida de segurança, gera uma verdadeira ineptidão do requerimento de instrução determinante da sua rejeição – por só uma tal omissão tornar juridicamente impossível a realização da fase instrutória por falta de objecto, e inúteis, e como tal proibidos, quaisquer actos instrutórios que ainda assim se viessem a realizar.
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07/03/2012 (proc. 903/09.7PBVIS.C1)[[9]], «Deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente que seja totalmente omisso quanto a elementos subjetivos dos crimes imputados e que não contém uma descrição minimamente inteligível dos factos praticados pelos arguidos que possam integrar os seus elementos objetivos».
No caso dos autos, percorrida a globalidade do RAI, impõe-se reconhecer que o objectivo visado pela lei foi ainda alcançado – pois que do mesmo é possível extrair a exigida a narração e alegação dos factos que fundamentam a aplicação à arguida de uma sanção penal.
Como se consigna no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06/12/2011 (proc. 231/10.5TACTX.E1)[[10]], «haverá de ter-se em conta que, reportando-se a exigência à narração de factos, esta tem de ser apreciada de modo consentâneo com o de traduzir narração de acontecimentos da vida, ainda que, necessariamente, susceptíveis de produzir efeitos jurídicos, pelo que não estará propriamente em causa a forma pela qual se relatam, desde que esta, eventualmente deficiente, não desencadeie, ela própria, a incompreensão desses acontecimentos». Nesta perspectiva, propendemos, tal como se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17/11/2010 (proc. 83/08.5TAMTR.P1)[[11]], a considerar que «Não deve ser rejeitado o requerimento para abertura da instrução [RAI] que, embora desajeitado, prolixo e confuso, mencione todos os factos que integram o tipo do crime imputado ao arguido, cabendo ao juiz de instrução, em eventual despacho de pronúncia, ordenar, sintetizar e clarificar os mesmos».

Em suma, a matéria de facto enunciada no RAI apresentado, se indiciada suficientemente em instrução, é bastante para permitir uma pronúncia com um tema viável que permite chegar a uma condenação em julgamento. No presente caso, e como se escreveu no supra aludido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/04/2017 (proc. 8473/16.3T9PRT.P1), «Não há qualquer violação da estrutura acusatória do processo – quem acusa é a assistente e quem tem de provar é a acusação – nem dos direitos de defesa do arguido – o facto é suficientemente claro para permitir o exercício de um contraditório efectivo».

Pelo que não se verifica o fundamento que sustentou a rejeição do RAI, e o recurso da assistente deve assim proceder.


*


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III. DECISÃO

Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a 1ª Secção deste Tribunal da Relação do Porto em julgar o recurso da assistente AA parcialmente procedente e, em consequência:

1º, julgam não verificada a nulidade processual prevista no art. 120º/2/d) do Cód. de Processo Penal ;

2º revogam o despacho de rejeição do requerimento da abertura de instrução apresentado pela assistente AA, que deve ser substituído por outro que autorize o prosseguimento do processo nos termos julgados adequados, nomeadamente declarando aberta a instrução e apreciando o demais ali requerido.

Sem custas.


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Porto, 12 de Março de 2025

Pedro Afonso Lucas

Pedro M. Menezes

Amélia Carolina Teixeira

(Texto elaborado pelo primeiro signatário como relator, e revisto integralmente – sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo da primeira página)

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[[1]] Relatado por Maria Joana Grácio, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[[2]] Relatado por Maria Pilar de Oliveira, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[[3]] Relatado por Raúl Borges, acedido em www.dgsi.pt/jstj.nsf
[[4]] Relatado por Maria Joana Grácio, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf 
[[5]] Relatado por Luís Gominho, acedido em www.dgsi.pt/jtrl.nsf
[[6]] Relatado por Maria Leonor Esteves, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[[7]] Relatado por Maria Joana Grácio, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[[8]] Relatado por Maria Joana Grácio, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf  
[[9]] Relatado por Luís Ramos, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[[10]] Relatado por Carlos Berguete Coelho, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[[11]] Relatado por José Manuel Araújo Barros, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf