IMPUTABILIDADE DIMINUIDA
PENA CONCRETA
ATENUAÇÃO DA PENA
Sumário

I - O tribunal a quo não só teve em conta as limitações decorrentes da imputabilidade diminuída (o arguido padecer de síndrome de dependência alcoólica, pelo menos, desde 2012, que pode ter acarretado a diminuição da capacidade avaliativa e de auto-determinação e disponibilidade de menos recursos intelectuais para a resolução de problemas,) na fixação da pena concreta como ponderou adequadamente os critérios que determinaram o quantum encontrado nada tendo que se apontar encontrando uma pena que se situa próxima do limite mínimo e dentro do terço do limite máximo abstrato.
II - A imputabilidade diminuída do arguido, devido sobretudo ao alcoolismo, não justifica necessariamente uma atenuação da pena. Os factos provados sobre a vitima revelam uma grande ilicitude e todo o seu contexto é passível de grande censura.
III - Considerando o histórico criminal do arguido e as necessidades de prevenção, a suspensão da pena também não seria a adequada.

(Sumário da responsabilidade do Relator)

Texto Integral

Proc. Nº 988/23.2GBAGD.P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Local Criminal de Águeda

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

No âmbito do Processo singular em epígrafe id. a correr termos no Juízo Local Criminal de Águeda, por sentença foi decidido:

«A. Condenar o arguido AA pela prática, entre Fevereiro e Novembro de 2023, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea b) e 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão,

B. Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de contacto com a ofendida Tereza Vidal (por qualquer meio, pessoal, por interposta pessoa, telefónico, correspondência, internet, SMS) pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, nos termos do artigo 152.º n.º 4 e 5 do Código Penal.

C. Condenar o arguido AA no pagamento à ofendida BB da quantia de 1 250 € (mil duzentos e cinquenta euros), a título de arbitramento oficioso de reparação dos prejuízos sofridos com o crime de violência doméstica, nos termos do artigo 21.º, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Janeiro, e do artigo 82.º-A, n.º 1, do Código do Processo Penal,

D. Ordenar a recolha de amostra de ADN ao arguido, nos termos do artigo 8.º, n.º 2, da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro, na versão dada pela Lei n.º 90/2017, de 22 de Agosto, e

E. Condenar o arguido AA no pagamento das custas criminais, ao abrigo do disposto nos artigos 513.º e 514.º, do Código Penal, e 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.»


*

Inconformado o arguido interpôs recurso, solicitando a revogação da decisão proferida e a sua substituição por outra, concluindo (transcrição):

CONCLUSÕES:

I. O arguido ora recorrente AA foi condenado, além do mais, pela prática, entre Fevereiro e Novembro de 2023, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea b) e 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão.

II. Ora, o recorrente não concorda com a pena que lhe foi aplicada, por ser manifestamente desadequada e desproporcionada, nem com o facto de a mesma não ter sido suspensa na sua execução.

III. No que tange à matéria objecto do presente recurso, importa atentar nos seguintes factos dados como provados na douta Sentença e que se transcrevem:

51. O arguido tem os seguintes antecedentes criminais

(…)

51.3. Por factos praticados em 1 de Novembro de 2008 e por decisão transitada em julgado em 25 de Março de 2010, proferida no proc. n.º ..., foi condenado por um crime de violência doméstica, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo (extinta em 25 de Setembro de 2012).

(…)

52. O arguido era acompanhado em psiquiatria por transtornos depressivos e abandonou as consultas e a medicação prescrita.

53. O arguido possui um QI de 74, que corresponde a um valor limítrofe e abaixo da média.

54. O arguido padece de síndrome de dependência alcoólica, pelo menos, desde 2012.

55. O arguido tem várias admissões no serviço de urgência em contexto de etilismo agudo e complicações relacionadas.

56. A sua auto-crítica, no que concerne o consumo alcoólico e o seu efeito deletério é manifestamente pobre.

57. O arguido desvaloriza os diversos anos de consumo alcoólico e as consequências que o mesmo teve ao longo da sua vida, particularmente, o impacto no seu estado mental, a sua capacidade intelectual e elaboração de estratégias de resolução de problemas e controlo de impulsividade.

58. O aporte intelectual limite do arguido não o incapacita, de forma absoluta, para se determinar perante os factos dos autos, mas condiciona-o, ligeiramente, uma vez que o mesmo tem ao dispor menos recursos intelectuais para a resolução de problemas, favorecendo o recurso a comportamentos menos ponderados.

(…)

Condições sócio-económicas do arguido

61. O arguido tem o 6.º ano de escolaridade.

62. Vive em autocaravana, fornecida por amigo, nas traseiras da oficina onde trabalha.

63. Exerce funções de pintor de automóveis, auferindo, mensalmente, cerca de 800 €.

IV. É certo que o recorrente apenas confessou parcialmente os factos de que vinha acusado, mantendo durante a audiência de julgamento a negação de que tivesse alguma vez ofendido a integridade física da vítima, sua companheira à data dos factos, negando que lhe tivesse batido ou insultado, mas as suas declarações em audiência de julgamento não podem deixar de ser vistas à luz dos seus problemas de saúde mental, em especial, da sua dependência do consumo de álcool, que afecta a sua consciência e discernimento.

V. Na sequência do exame médico-legal efectuado ao recorrente, resultou provado na douta Sentença recorrida (pontos 52 a 60 dos factos provados) que o recorrente:

- Era acompanhado em psiquiatria por transtornos depressivos e abandonou as consultas e a medicação prescrita;

- Possui um QI de 74, que corresponde a um valor limítrofe e abaixo da média;

- Padece de síndrome de dependência alcoólica, pelo menos, desde 2012;

- Tem várias admissões no serviço de urgência em contexto de etilismo agudo e complicações relacionadas;

- A sua auto-crítica, no que concerne o consumo alcoólico e o seu efeito deletério é manifestamente pobre;

- Desvaloriza os diversos anos de consumo alcoólico e as consequências que o mesmo teve ao longo da sua vida, particularmente, o impacto no seu estado mental, a sua capacidade intelectual e elaboração de estratégias de resolução de problemas e controlo de impulsividade;

- O aporte intelectual limite do arguido não o incapacita, de forma absoluta, para se determinar perante os factos dos autos, mas condiciona-o, ligeiramente, uma vez que o mesmo tem ao dispor menos recursos intelectuais para a resolução de problemas, favorecendo o recurso a comportamentos menos ponderados [sublinhado nosso].

VI. Com base no relatório médico-legal, de 09/08/2024, a fls., conjugado com outras percepções extraídas da prova, nomeadamente, as resultantes do relatório social feito pela DGRSP, a fls., o Tribunal a quo concluiu poder “encontrar um ponto de apoio seguro para a imputabilidade do arguido, entendendo que o mesmo possuía capacidade de compreender o facto ilícito e de actuar conforme essa compreensão.”

VII. Ora, perante a prova das condições mentais, das dependências, das fraquezas intelectuais, diminuição do espírito crítico do recorrente relativamente aos comportamentos por ele adoptados, que obstam a que ele possa ter uma percepção clara do desvalor da sua conduta, perante toda a prova produzida quanto a esta matéria específica que tem a ver com a personalidade do recorrente e suas patologias mentais, impunha-se decisão diversa quanto à medida da pena de prisão e quanto à possibilidade da suspensão da sua execução.

VIII. O acima mencionado Relatório Médico-Legal, que o douto tribunal a quo acolheu, refere que o recorrente padece de Síndrome de Dependência Alcoólica, condição que é adquirida e está presente pelo menos desde 2012.

IX. Acrescentou ainda o Exmo. Sr. Perito que deve ser considerada imputabilidade atenuada.

X. Nos factos dados como provados na douta Sentença é dito que “o aporte intelectual limite do arguido não o incapacita, de forma absoluta, para se determinar perante os factos dos autos, mas condiciona-o, ligeiramente, uma vez que o mesmo tem ao dispor menos recursos intelectuais para a resolução de problemas, favorecendo o recurso a comportamentos menos ponderados” – sublinhado nosso.

XI. Não se pode, com efeito, perder de vista o quadro mental em que o recorrente actuou, na circunstância, a sua extrema debilidade e fraqueza perante uma dependência alcoólica, os seus parcos recursos intelectuais, a sua incapacidade para se determinar de forma plena e consciente, quando é certo que o recorrente, repete-se, “tem ao dispor menos recursos intelectuais para a resolução de problemas, favorecendo o recurso a comportamentos menos ponderados.”

XII. Assim sendo, está-se perante uma imputabilidade diminuída, que se reflecte num menor grau de culpa.

XIII. Esse menor grau de culpa do recorrente, não excluindo em absoluto a possibilidade da aplicação de uma pena de prisão, como veio a suceder nos presentes autos, sempre permitiria, por um lado, a aplicação de uma pena mais leve e, por outro, a consequente suspensão da pena de prisão aplicada.

XIV. Isto porque, como é consabido, a aplicação de qualquer pena tem sempre por limite a culpa do agente.

XV. É facto que, como resulta do seu registo criminal, o recorrente foi já condenado em processos anteriores, mas só num deles pela prática do crime de violência doméstica, com uma pena de prisão de dois anos e seis meses, suspensa na sua execução, por igual período.

XVI. Contudo, a condenação do recorrente pelo supracitado crime de violência doméstica respeita a factos praticados em 1 de Novembro de 2008, portanto, há mais de dezasseis anos.

XVII. O recorrente nunca mais incorreu na prática do mesmo crime, exceptuando, claro está, os factos que lhe foram imputados nestes autos.

XVIII. Por outro lado, releva-se o que resulta dos factos provados quanto à condição social e profissional do recorrente, ou seja, tem o 6.º ano de escolaridade, vive em autocaravana, fornecida por amigo, nas traseiras da oficina onde trabalha, exerce a função de pintor de automóveis, auferindo, mensalmente, cerca de 800 euros.

XIX. Está assim integrado na sociedade.

XX. Prestou consentimento para um eventual tratamento médico à dependência alcoólica.

XXI. Desde a data dos factos autuados o recorrente jamais contactou com a ofendida, nem subjazem razões que prevejam que volte a encontrar-se com ela.

XXII. A comunhão de vida entre o recorrente e a ofendida teve a duração de sete meses, foi passageira, nada têm em comum que justifique o seu contacto futuro, pelo que manter o recorrente em liberdade não constitui assim perigo para a ofendida, nem perigo que aquele repita conduta criminosa.

XXIII. Discorda-se que a culpa do recorrente se tenha revelado intensa, como concluiu o douto Tribunal a quo.

XXIV. Pelo contrário, a culpa do recorrente encontrava-se diminuída à data da prática dos factos, atendendo à sua condição de saúde mental, como se deduz dos pontos 52 a 58 dos factos provados.

XXV. E quanto aos antecedentes criminais do recorrente, atenta a natureza dos crimes praticados e o decurso do tempo, sem perder de vista a frágil condição mental do recorrente que se regista pelo menos desde 2012, só por si, não obstam à formulação de um juízo de prognose favorável ao comportamento do recorrente, conquanto este venha a ter o devido acompanhamento médico e assistência psicossocial, assim se podendo evitar o cumprimento efectivo da pena de prisão.

XXVI. Notando, neste particular, os mais de 16 anos sem que o recorrente haja voltado a incorrer no crime de violência doméstica, como acima exposto, razões que, salvo melhor entendimento, podiam e deviam ter sido tomados em consideração pelo Douto Tribunal a quo, como elemento determinante para a suspensão da execução da pena de prisão em que o recorrente foi condenado.

XXVII. Assim, atendendo ao supra exposto, devendo-se considerar uma culpa diminuída na prática dos factos e um juízo de prognose favorável ao recorrente, o Tribunal a quo devia ter tido em melhor consideração tais circunstâncias na fixação da pena de prisão, coisa que não sucedeu, donde resulta que o Tribunal a quo violou os normativos correspondentes à determinação da medida da pena, nomeadamente o que resulta plasmado no Artigo 71.º do Código Penal.

XXVIII. Por outro lado, quanto à apreciação da eventual suspensão da execução da pena de prisão, como já acima aflorado, o douto Tribunal afastou-se dessa solução por considerar as elevadas exigências de prevenção geral relativamente ao crime cometido, mas fundamentalmente por considerar elevadas as exigências de prevenção especial atendendo aos antecedentes criminais do recorrente.

XXIX. Sublinha-se mais uma vez o facto de terem decorrido mais dezasseis anos desde que o recorrente cometeu o crime de violência doméstica, em 01/11/2008, não tendo reincidido no seu cometimento.

XXX. Pela mesma ordem de razões, isto é, uma culpa diminuída na prática dos factos e um juízo de prognose favorável ao recorrente, justificava-se concomitantemente a suspensão da execução da pena de prisão, o que não sucedeu, pelo que o Tribunal a quo violou o normativo correspondente, nomeadamente o que resulta plasmado no Artigo 50.º do Código Penal.

XXXI. Podendo considerar-se ainda que, em caso de suspensão da execução da pena de prisão, o recorrente possa ser submetido ao regime de prova, previsto no artigo 53.º do Código Penal.

XXXII. Sendo certo que, in casu, a possibilidade (a ameaça) da revogação da suspensão da execução da pena de prisão é condição suficiente para que o recorrente se afaste da prática do crime, e haja assim sucesso no reforço da sua reintegração social.

XXXIII. A suspensão da execução da pena de prisão realiza assim de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, a proteção dos bens jurídicos ofendidos e a reintegração do recorrente na sociedade.

Nestes termos e nos melhores de Direito, que VEXAS suprirão, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, e revogar a aliás douta Sentença na parte em que condenou o recorrente na pena de três anos de prisão, por ser desproporcionada às finalidades da punição e, ao invés, ser aplicada ao recorrente pena não superior a dois anos de prisão, devendo a mesma ser suspensa na sua execução, pelo período que for achado mais conveniente, com regime de prova, devendo fazer parte do plano de reinserção social a elaborar a obrigação de avaliação e tratamento do consumo de álcool.»


*

O M.P. respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, concluindo:

«B) CONCLUSÕES:

1. Resulta do Relatório da Perícia de avaliação psicológica efectuada ao recorrente que se deva admitir uma imputabilidade atenuada daquele, provocada pelo consumo regular de álcool, comprovado pelas múltiplas idas ao serviço de urgência em contexto de etilismo agudo.

2. Do mesmo relatório resulta que não foi possível determinar se à data da prática dos factos o recorrente se encontrava alcoolizado.

3. Concluindo-se, ainda que a sua autocrítica no que concerne ao consumo alcoólico e seu efeito destruidor, é manifestamente pobre.

4. E que não foi detectada no recorrente, qualquer patologia (psicótica ou outra) que condicione a capacidade do indivíduo se determinar perante actos como os descritos nos autos, ou que o torne pessoa incapacitada de avaliar a sua conduta 5. Da avaliação complementar através da WAISIll obteve um QI de 74 que corresponde a um valor limítrofe e abaixo da média.

6. Porém, refere-se que um aporte intelectual limite não incapacita o examinando, de forma absoluta, para se determinar perante os actos em análise, mas condiciona-o, ligeiramente, de alguma forma, uma vez que o mesmo tem ao seu dispor menos recursos intelectuais para a resolução de problemas/conflitos.

7. Em nosso entender, à imputabilidade diminuída, não corresponde, forçosamente uma culpa diminuída e consequentemente uma atenuação especial da pena.

8. Imputabilidade diminuída não significa, como muitas vezes se conclui, que exista uma redução do grau de imputabilidade, ou da capacidade de autocontrolo do agente.

9. A imputabilidade diminuída antes se traduz numa imputabilidade dúbia, no sentido em que se conclui pela existência, de facto, de uma anomalia psíquica sendo porém pouco claras as consequências isto é, se o agente tem, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude do facto que pratica ou para se determinar de acordo essa avaliação.

10. A este propósito o Tribunal da Relação de Coimbra no aresto de 31 de agosto de 2022, relator Paulo Guerra, in www.dgsi.pt

11. O relatório pericial é claro quando aponta para uma imputabilidade sensivelmente diminuída do arguido, o que por si só, implica a aplicação no n.º 2 do art.º 20.º do Código Penal.

12. O arguido refuta a prática dos factos que lhe são imputados, negando que alguma vez tenha ofendido aa integridade da vítima, que a tivesse insultado ou agredido fisicamente.

13. Não está excluída a probabilidade de o arguido adoptar e repetir comportamentos como os descritos nos autos.

14. não pode o recorrente escudar-se nesta sua dependência alcoólica e no efeito negativo que esta tem na sua capacidade intelectual, designadamente por ter ao seu dispor menos recursos intelectuais para a resolução de problemas/conflitos, favorecendo o recurso a comportamentos menos ponderados (cfr. Relatório Pericial) e passar a agredir fisicamente toda e qualquer pessoa com quem se desentenda, pretendendo, ainda assim, sair impune.

15. o arguido foi já condenado pela prática do crime de violência doméstica, numa pena de prisão de 2 anos e 6 meses, suspensa na sua execução por igual período de tempo, 16. bem como pela prática de vários crimes de idêntica classificação - crimes contra as pessoas (designadamente três crimes de injúria, três crimes de ofensas à integridade física qualificada e dois crimes de ameaça agravada).

17. entendemos que bem andou a Mm.a Juiz do tribunal a quo ao decidir pela aplicação ao arguido de pena de 3 (anos) de prisão.

18. Insurge-se, ainda, o recorrente quanto à apreciação feita pelo tribunal a quo no que concerne à eventual suspensão da execução da pena de prisão aplicada.

19. Para que possa suspender a execução da pena de prisão, é necessário, antes de mais, que esteja verificado o pressuposto formal da sua aplicação: a pena de prisão aplicada ser inferior a 5 anos – o que in casum se verifica.

20. É, ainda, imperioso que esteja cumprido o pressuposto material da suspensão da execução da pena: ser possível ao tribunal concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (exigências de prevenção geral e especial).

21. Na concretização deste juízo de prognose deverá o Tribunal atender, à personalidade do agente, às suas condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias do crime.

22. O recorrente tem um QI de 74 que corresponde a um valor limítrofe e abaixo da média, desvaloriza o consumo alcoólico e as suas consequências ao longo da sua vida, 23. manifesta dificuldades em lidar com situações de conflito, favorecendo o recurso a comportamentos menos ponderosos.

24. Realça-se o extenso passado criminal do arguido que remonta a 2004 e que comportam 14 (catorze) crimes pelos quais foi condenado, 10 (dez) dos quais tipificados como crimes contra as pessoas (de idêntica natureza ao praticado nestes autos) e de entre os quais consta uma condenação pela prática de crime de violência doméstica (crime da mesma natureza).

25. O recorrente demonstra indiferença quanto às penas que lhe foram sendo aplicadas, as quais não lhe serviram de suficiente advertência.

26. Nem mesmo condenação pela prática do crime de violência doméstica, numa pena de prisão de 2 anos e 6 meses, suspensa na sua execução por igual período de tempo, influenciou positivamente o arguido, como era suposto.

27. O recorrente sofreu já condenações com penas privativas da liberdade, que ou foram substituídas por multa ou prestação de trabalho a favor da comunidade ou foram suspensas na sua execução.

28. O recorrente fez tábua rasa das oportunidades que lhe foram sendo dadas, continuando a revelar um comportamento contra legem, negando a prática dos factos e relevando, assim, indiferença relativamente ao dever-ser jurídico penal.

29. São fortes e acentuadas as necessidades de prevenção geral positiva no domínio da criminalidade em causa que, desde logo, vem assumindo, actualmente e cada vez mais, dimensões consideráveis e igualmente acentuada as concretas exigências de prevenção especial ou de socialização do recorrente.

30. É, assim, em nosso entender perfeitamente fundada e adequada a decisão do Tribunal a quo, quando julga adequado não suspender a execução da pena de 3 (rês) anos de prisão aplicada ao recorrente.

31. Nada há a apontar à Douta Sentença proferida nos autos, a qual se encontra devidamente fundamentada, fez uma apreciação da prova, exacta interpretação de facto e de direito, não se vislumbrando da mesma qualquer violação dos normativos legais correspondente à determinação da medida da pena ou da apreciação dos pressupostos da suspensão da mesma.

32. O Ministério Público Pugna pela manutenção da decisão proferida, entendendo ter sido devidamente ponderada a concreta medida da pena aplicada, a qual se mostra proporcional e adequada às finalidades da punição., não merecendo a sentença recorrida qualquer reparo.

33. Não se mostrando violados os art. ºs 50.º, 53.º e 71.º do Código Penal, nem quaisquer outros preceitos legais ou princípios de direito.»


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Neste Tribunal da Relação do Porto, a Exmª. Procuradora-Geral Adjunto emitiu parecer onde pugnou pela improcedência do recurso, subscrevendo a resposta do M.P. a quo.

*

Cumpridas as notificações a que alude o art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, não foram apresentadas respostas.

*

Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.

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II. Apreciando e decidindo:

Questões a decidir no recurso

É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].

As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:

-Medida da pena.

-Suspensão da pena.


*

Para análise das questões que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente à decisão e razões da sua fixação, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados, respectiva motivação e medida da pena constantes da sentença recorrida (transcrição):

“A. Factos provados

Em sede de audiência de discussão e julgamento, resultaram provados, com relevância para a decisão da causa, os seguintes factos:

1. Em data não apurada do mês de Fevereiro de 2023, o arguido AA e a ofendida BB iniciaram uma relação de namoro.

2. A ofendida padece de esquizofrenia desde os 18 anos de idade, sendo acompanhada medicamente em consultas de psiquiatria.

3. Desde data não concretamente apurada, o arguido encontra-se diariamente alterado e exaltando-se com agressividade com as pessoas que o rodeiam.

4. Em Abril de 2023, o arguido e a ofendida passaram a viver como marido e mulher, na habitação da ofendida e sita na Rua ..., n.º ..., 1.º andar, ... Águeda.

5. Sucede que, o arguido possui ciúmes excessivos da ofendida, controlando diariamente os seus movimentos e rotinas.

6. Além disso, passados cerca de 3 meses, o arguido passou a ingerir bebidas alcoólicas em excesso.

7. Nesse contexto, cerca de três meses depois de terem começado a viver juntos e pelo menos uma vez por semana, no interior da habitação, o arguido iniciou discussões com a ofendida e controlou os movimentos dela.

8. No aludido período temporal, no interior da habitação, na sequência de discussões, pelo menos uma vez por semana, o arguido apelidou a ofendida de “puta”, “vaca” e “cabra” e disse-lhe “não prestas para nada” e “não sabes conduzir”, pretendendo com isso ofendê-la e humilhá-la.

9. Durante tais discussões, o arguido exigia que a ofendida lhe prestasse atenção e agarrava-lhe os ombros e os braços, o que fazia com força, provocando-lhe dores.

10. No dia 3 de Agosto de 2023, no interior da habitação, mais concretamente na sala, por volta das 15H00, o arguido e a ofendida discutiram por motivo não apurado e, a dado momento, sem que nada o fizesse prever, o arguido desferiu-lhe várias bofetadas no rosto, tendo a ofendida desferido ao arguido algumas bofetadas para se defender.

11. Insatisfeito, o arguido apertou o pescoço da ofendida com as duas mãos, o que fez com força, o que provocou por breves momentos dificuldades de respiração à ofendida.

12. Pouco tempo depois, o arguido saiu para o exterior da habitação para fumar.

13. Aproveitando tal facto, a ofendida fechou-lhe a porta da cozinha.

14. Acto contínuo, o arguido muniu-se de um martelo e partiu a janela da porta de correr da sala, que também se encontrava trancada.

15. Depois de ter entrado na habitação não voltou a incomodar a ofendida.

16. Devido a tais factos a ofendida não recebeu qualquer tratamento médico.

17. Com tal conduta do denunciado, a ofendida sofreu dores no corpo, incluindo no rosto e no pescoço.

18. No dia 4 de Novembro de 2023, por volta das 20h00m, no interior da habitação, mais concretamente na sala, o denunciado e a ofendida discutiram devido ao facto da ofendida não o querer acompanhar ao café e, dado momento, sem que nada o fizesse prever, o arguido desferiu-lhe várias bofetadas no rosto, tendo a ofendida desferido ao arguido algumas bofetadas para se defender.

19. Nessa ocasião, o arguido estava visivelmente embriagado.

20. Nesse dia, o arguido não tinha a chave da habitação e não conseguia abrir a porta da sala, em virtude do estado em que se encontrava, tendo-se atirado para o chão onde permaneceu cerca de 2 horas no chão a dormir.

21. Quando acordou, o arguido começou a chamar pela ofendida, ao que esta não lhe respondeu.

22. De seguida, o arguido deslocou-se ao quarto onde esta se encontrava a dormir e disse-lhe que a tinha chamado e que quando chama por ela tinha de ir ter com ela, referindo ainda não sou nenhum palhaço.

23. Após, o arguido afastou as mantas, puxou a ofendida pelos braços e apertou-lhe com força o pescoço utilizando as mãos, com força, o que provocou por breves momentos dificuldades de respiração à ofendida.

24. Pouco tempo depois, o arguido saiu para o exterior da habitação para fumar e após regressou ao interior da habitação e deitou-se na cama.

25. No dia 5 de novembro de 2023, por volta das 22h00m, encontravam-se no quarto, quando o arguido manifestou intenção de praticar relações sexuais, ao que a ofendida negou.

26. Não obstante, o denunciado, com recurso ao uso da força, tirou a roupa à ofendida, apesar desta ter tentado impedi-lo de o fazer, após o que tentou manter relações sexuais com a ofendida.

27. A dado momento, a ofendida conseguiu sair daquele quarto e refugiou-se no quarto da filha, a qual não vive com eles.

28. Todavia, o arguido seguiu-a até ao mencionado quarto, agarrou-a com força pelos braços e a obrigou-a a voltar para o quarto, tendo então fechado a porta à chave.

29. De seguida, o arguido aproximou-se da ofendida e apertou-lhe com força o pescoço.

30. Após o arguido e a ofendida voltaram a deitar-se na cama.

31. O arguido tentou novamente manter relações sexuais com a ofendida, ao que esta lhe disse "se gostares de mim, não me podes violar".

32. Perante isso, o arguido acusou-a de não ter relações sexuais com ele porque tinha “com outros homens” e que era por esse motivo que não tinha “sexo com ele”, ao que lhe respondeu que não era verdade.

33. Pouco tempo depois, o arguido acalmou-se e deu-lhe a chave da porta do quarto e acabou por dormir.

34. No dia 6 de Novembro de 2023, por volta das 13h00m, estavam a regressar casa, quando o arguido disse à ofendida “despacha-te a estacionar, não sabes conduzir tiraste a carta por correspondência” e, em virtude de o mesmo estar a falar muito alto um indivíduo de identidade não apurada aproximou-se e questionou se necessitavam de ajuda.

35. Nesse dia, depois de entrarem na habitação, o arguido estava constantemente a discutir com a ofendida e, a dado momento, a ofendida deslocou-se para o quarto.

36. Dado que o arguido continuava muito exaltado, a ofendida pegou no telemóvel para ligar à GNR, todavia, o arguido retirou-lho da mão.

37. A ofendida durante uma distracção do mesmo, retirou-lhe o telemóvel, estando o arguido muito violento e deslocou-se para o exterior da habitação, tendo sido seguida por este

38. Uma vez no exterior, o arguido disse à ofendida, em tom de voz elevado e sério, que a matava e ao outro senhor que momentos antes o tinha abordado na rua.

39. De seguida, a ofendida seguiu em direção ao café situado frente à sua residência, pois era sua intenção ligar para a GNR, mas o arguido seguiu-a, mesmo no interior do estabelecimento.

40. Após isso, a ofendida saiu do estabelecimento, tendo o mesmo ficado nesse local, tendo então a ofendida se dirigido a um outro café e ali realizou a chamada telefónica.

41. Pouco tempo depois, enquanto apresentava a queixa, o mesmo não parava de contactar o telemóvel da ofendida, assim como ligou para o Posto da GNR ..., referindo que esta sofria de uma doença psiquiátrica e que deveria ser-lhe apreendido o seu veículo.

42. A ofendida regressou a casa e, ainda nesse dia, após o jantar encontravam-se à mesa com o CC, morador num quarto da habitação da ofendida, quando o arguido começou a dobrar garfos e facas com as mãos, referindo que não lhe custava nada espetar-lhes um garfo no pescoço.

43. Nessa ocasião, o arguido estava visivelmente muito exaltado e falava sozinho.

44. Após o arguido disse que ia ao café, sendo que a ofendida o acompanhou e pouco tempo depois a ofendida disse-lhe que ia a casa.

45. Devido a todo o comportamento do denunciado, a ofendida aproveitou e muniu-se de algumas roupas e deslocou-se no seu veículo para casa de uma amiga.

46. Com a descrita conduta, o arguido causou dores no corpo da ofendida.

47. Com as aludidas expressões e o descrito comportamento, o arguido deixou a ofendida receosa de que ele pudesse vir a atentar contra a sua vida.

48. O arguido agiu com o propósito concretizado, de controlar, perseguir, humilhar, intimidar, amedrontar e importunar a sua companheira, a quem sabia dever uma especial obrigação de respeito, bem como com o intuito de a atingir na sua integridade física, sexual, psíquica, honra e consideração, causando-lhe dores, medo e inquietação, o que conseguiu.

49. Bem sabia o arguido que a ofendida era sua companheira, mantendo, todavia, o seu propósito de agir do modo descrito, no interior da habitação da família.

50. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Mais se provou que,

51. O arguido tem os seguintes antecedentes criminais: 51.1. Por factos praticados em 9 de Agosto de 2004 e por decisão transitada em julgado em 29 de Setembro de 2004, proferida no proc. ..., foi condenado por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 60 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 3 meses (extinta em 12 de Fevereiro de 2008),

51.2. Por factos praticados em 20 de Janeiro de 2001 e por decisão transitada em julgado em 4 de Fevereiro de 2005, proferida no proc. n.º ..., foi condenado por um crime de ofensa à integridade física simples, na pena de 220 dias de multa (extinta em 11 de Outubro de 2006),

51.3. Por factos praticados em 1 de Novembro de 2008 e por decisão transitada em julgado em 25 de Março de 2010, proferida no proc. n.º ..., foi condenado por um crime de violência doméstica, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo (extinta em 25 de Setembro de 2012),

51.4. Por factos praticados em 12 de Maio de 2014 e por decisão transitada em julgado em 4 de Setembro de 2014, prolatada no proc. n.º ..., foi condenado por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 120 dias de multa e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 6 meses (extintas em 15 de Outubro de 2015 e 13 de Março de 2015, respectivamente),

51.5. Por factos praticados em 16 de Janeiro de 2015 e por decisão transitada em julgado em 3 de Setembro de 2015, prolatada no proc. n.º ..., foi condenado por dois crimes de injúria agravada, dois crimes de ofensa à integridade física qualificada, dois crimes de ameaça agravada, na pena única de 8 meses de prisão, substituída por 240 dias de multa, e na pena de 300 dias de multa (extinta em 22 de Outubro de 2017),

51.6. Por factos praticados em 19 de Fevereiro de 2015 e por decisão transitada em julgado em 7 de Setembro de 2016, prolatada no proc. n.º ..., foi condenado por dois crimes de injúria, na pena de 150 dias de multa, substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade (extinta em 22 de Dezembro de 2017),

51.7. Por factos praticados em 22 de Junho de 2017 e por decisão transitada em julgado em 18 de Outubro de 2019, proferida no proc. n.º ..., foi condenado por um crime de desobediência, na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução por 18 meses (extinta em 18 de Abril de 2021), e

51.8. Por factos praticados em 12 de Janeiro de 2023 e por decisão transitada em julgado em 8 de Março de 2023, proferida no proc. n.º ..., foi condenado por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 6 meses de prisão, substituída por prestação de trabalho de 180 horas a favor da comunidade, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 10 meses.

52. O arguido era acompanhado em psiquiatria por transtornos depressivos e abandonou as consultas e a medicação prescrita.

53. O arguido possui um QI de 74, que corresponde a um valor limítrofe e abaixo da média.

54. O arguido padece de síndrome de dependência alcoólica, pelo menos, desde 2012.

55. O arguido tem várias admissões no serviço de urgência em contexto de etilismo agudo e complicações relacionadas.

56. A sua auto-crítica, no que concerne o consumo alcoólico e o seu efeito deletério é manifestamente pobre.

57. O arguido desvaloriza os diversos anos de consumo alcoólico e as consequências que o mesmo teve ao longo da sua vida, particularmente, o impacto no seu estado mental, a sua capacidade intelectual e elaboração de estratégias de resolução de problemas e controlo de impulsividade.

58. O aporte intelectual limite do arguido não o incapacita, de forma absoluta, para se determinar perante os factos dos autos, mas condiciona-o, ligeiramente, uma vez que o mesmo tem ao dispor menos recursos intelectuais para a resolução de problemas, favorecendo o recurso a comportamentos menos ponderados.

59. O arguido não padece de qualquer patologia, psicótica ou outra, que condicione a capacidade do individuo de se determinar perante actos como os descritos nos autos.

60. Não está excluída a probabilidade de o arguido adoptar e repetir comportamentos como os descritos nos autos.

Condições sócio-económicas do arguido

61. O arguido tem o 6.º ano de escolaridade.

62. Vive em autocaravana, fornecida por amigo, nas traseiras da oficina onde trabalha.

63. Exerce funções de pintor de automóveis, auferindo, mensalmente, cerca de 800 €.

64. O arguido prestou consentimento para um eventual tratamento médico à dependência alcoólica.

Condições sócio-económicas da ofendida

65. A ofendida tem o 12.º ano de escolaridade.

66. Vive sozinha, em casa própria.

67. É proprietária de um veículo automóvel, de 2012.

68. Tem uma filha de 16 anos, que vive em instituição em ....

69. Despende, para medicamentos e mensalmente, cerca de 30 €.

70. Arrenda quartos disponíveis na sua residência, auferindo, mensalmente, cerca de 1 200 €.


*

B. Factos não provados

Com interesse para a decisão da causa não se provaram quaisquer factos para além dos supra descritos, designadamente, não resultou apurado que:

a. O arguido padece de esquizofrenia, sendo acompanhado medicamente mas não tomando a medicação prescrita.


*

O Tribunal não se pronunciou quanto à demais matéria vertida na acusação, em virtude de a mesma ser desprovida de relevância para a presente decisão ou se tratar de matéria de carater conclusivo.

*

C. MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Quanto à determinação da matéria de facto dada como provada, a convicção deste Tribunal formou-se com base na análise crítica e conjugada de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, devidamente confrontada com as regras da experiência comum e com a livre apreciação do julgador, nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, que preceitua “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Como é sabido, a livre apreciação da prova de modo algum se confunde com a apreciação arbitrária ou com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos vários meios de prova. “A prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Dentro destes pressupostos se deve portanto colocar o julgador ao apreciar livremente a prova” 1. Por isso, se consagrou a necessidade de fundamentar a decisão “com indicação de exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal” (cfr. artigo 374.º, n.º 2, do Código Processo Penal).

1 Neste sentido, Alberto dos Reis, Código Processo Civil Anotado e Comentado, III, pág. 246; Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, II, pág. 288, entre outros.


*

O arguido prestou declarações quanto aos factos e, em parte, contribuiu para a positividade da factualidade provada. Mencionou ser inquilino de Tereza Vidal desde Outubro de 2022, refere ter iniciado uma relação amorosa com a ofendida, entre Fevereiro e Novembro de 2023 (facto provado n.º 1).

Caracterizou a sua relação com Tereza Vidal como boa, exceptuando as discussões com a mesma sobre os seus inquilinos, uma vez que lhe pediam dinheiro e a ofendida concedia, discussões a que ninguém, outros inquilinos, assistiu e, sublinhando não ser ciumento quanto à ofendida, negou, de uma forma geral, os factos que lhe são imputados: que lhe tivesse batido e agarrado, apodado de nomes, insultado a sua condução, controlado os seus movimentos.

Contudo, assumiu que, munido de um martelo, partiu o vidro da porta de correr da sala, do que se arrependeu, mas fê-lo por a ofendida se encontrar no interior de casa a filmá-lo, no exterior, com o seu telemóvel e ter entendido que a mesma estaria colocar o vídeo nas redes sociais e que, quando entrou, nada fez quanto à ofendida; alcançou o seu telemóvel e dirigiu-se ao quarto (factos provados n.ºs 12 a 15). Mais admitiu que, por vezes, à mesa de jantar, dobrava e partia talheres (esta parte do facto provado n.º 42), “mas não os espetava no pescoço”.

Declarou ingerir bebidas alcoólicas “normalmente” e que, tendo sido diagnosticado com depressão, por não fazer efeito, abandonou a medicação que lhe foi prescrita anteriormente (facto provado n.º 52).

Ainda acrescentou haver realizado obras de reabilitação na propriedade da ofendida, entre Junho e Novembro de 2023, sendo que, depois das mesmas, aquela o quis “despachar” e sentiu-se explorado.

Quanto aos factos de Novembro de 2023, menciona somente que a ofendida saiu de casa e que nunca mais a viu, “nunca mais voltou”, não adiantando qualquer justificação para esse facto, tanto que contactou a GNR a comunicar tal facto, por estar preocupado (quanto ao telefonema, facto provado n.º 41).

Exceptuando a assumpção de determinados factos, designadamente, quanto ao partir do vidro da porta de correr da sala com martelo e ao dobrar e partir talheres, a versão trazida aos autos pelo arguido de, no âmbito da sua relação amorosa com a ofendida, não ter ciúmes, não ter agredido ou insultado a ofendida e ter-se sentido explorado pela mesma, quanto às obras de reabilitação, não logrou colher credibilidade por parte do Tribunal.

Desde logo, por se denotar contradição e enunciar factualidade que se exclui entre si. O arguido menciona que as discussões se deviam ao facto de os inquilinos solicitarem dinheiro à ofendida e a mesma aceder. Ora, se a propriedade da qual a ofendida arrenda quartos é sua, sendo dessa actividade que retira a sua retribuição, por que razão o arguido discutia com a ofendida acerca de tal assunto?

Acresce que, refere não ingerir bebidas alcoólicas em excesso, solicitando, no entanto, ajuda para internamento para tratamento a tal dependência, uma vez que se descontrola nessa ingestão e não recorda determinados eventos.

Por outro lado, da conjugação da demais prova produzida e constante dos autos, o Tribunal conclui de maneira diversa, quedando afastada a versão trazida pelo arguido.

Vejamos,

O Tribunal estribou-se na análise conjugada dos depoimentos das testemunhas arroladas, nos termos que infra se explanarão, que foi confrontada e entrecruzada com o vasto acervo documental aduzido ao pleito.

A ofendida Tereza Vidal prestou depoimento e, de modo claro, pormenorizado, circunstanciado e espontâneo, confirmou ter conhecido o arguido por lhe ter arrendado um quarto, tendo iniciado uma relação amorosa com o mesmo em Fevereiro de 2023 e passando a viver como marido e mulher, na sua residência, a partir de Abril de 2023 (facto provado n.º 4).

Enunciando que, inicialmente, a relação de namoro era boa, refere que, a partir de determinado momento, o arguido tornou-se autoritário, querendo gerir a casa e os inquilinos da ofendida, o que, nesta parte, coincide com o narrado pelo arguido quanto às discussões que existiam. Por outro lado, frisa que, para além disso, o arguido passou a adoptar uma atitude ciumenta e desconfiada quanto à ofendida, querendo conferir e saber onde se encontrava e dirigia, a controlar os telefonemas da mesma, querendo saber quem lhe ligava e com quem falava (factos provados n.ºs 5 e 7, in fine), encetando, nesse seguimento, discussões, inicialmente, uma vez por semana e que foram aumentando (facto provado n.º 7). Aqui, de forma natural, a ofendida disse que, nessas ocasiões, colocava o telemóvel em alta-voz, para o arguido se acalmar e não desconfiar de algo que pudesse não ser correcto.

Acrescenta que o arguido ingeria bebidas alcoólicas em excesso e, quando tal sucedia, ficava alterado e exaltava-se facilmente com as pessoas que o rodeavam (factos provados n.ºs 3 e 6) e, no seio das discussões que iniciava com a ofendida, apodava-a de “vaca”, “cabra”, “puta” e que não prestava para nada, que tinha tirado a carta de condução por correspondência (facto provado n.º 8), para além de lhe desferir estaladas, apertões de pescoço, agarrar-lhe os braços com força (facto provado n.º 9).

Explica que, essas situações, ocorriam normalmente quando se encontravam sozinhos mas chegaram a ser presenciadas por outros hóspedes que aí se encontravam. No entanto, importa frisar que, ainda que a maioria dos factos não haja sido presenciada por terceiros, não significa que não tenham ocorrido. É consabido que os comportamentos desta natureza, na maioria das vezes, se desenvolvem entre os respectivos intervenientes e no interior do domicílio conjugal ou familiar, longe dos olhares de terceiros.

Na verdade,

Quanto aos factos do dia 3 de Agosto de 2023, Tereza Vidal descreve que, quando se encontravam ambos em casa, na sala, cerca das 15h, o arguido desferiu-lhe várias estaladas, apertou-lhe o pescoço, com ambas as mãos e com força, tendo ficado com dificuldades em respirar e, para se defender, deu bofetadas também. Adita que, após, o arguido se ausentou do espaço e, nesse instante, fechou a porta de correr, altura em que o mesmo exigiu entrar pois, caso contrário, partiria o vidro. A ofendida, que estava a captar esse momento com o telemóvel do arguido, viu-o, munido de um martelo, a partir esse vidro da sala, a entrar na divisória, a pegar no seu telemóvel e a acalmar-se (factos provados n.ºs 10 a 15), pedindo desculpa, que não tornaria a acontecer. Finaliza dizendo que, embora tenha ficado com dores no pescoço e cara, não recebeu tratamento hospitalar (factos provados n.ºs 16 e 17).

Tereza Vidal mais relatou que, no final de Outubro de 2023, anunciou ao arguido pretender findar a relação, e, não tendo este aceitado, a partir daí, se tornou mais agressivo e violento, a nível verbal, físico e sexual, sendo que, em Novembro de 2023, ocorreu mais do que uma situação:

• No dia 4 de Novembro, o arguido, visivelmente embriagado, queria sair e, como a ofendida não quis, desferiu estaladas nesta, após o que se deitou no chão da sala, por não conseguir abrir a porta e durante 2h e, tendo chamado Tereza Vidal e não tendo esta atendido, dirigiu-se ao quarto onde a mesma dormia, apertou-lhe os braços e o pescoço, proferindo que, quando a chamava, a mesma tinha que ir, por não ser “palhaço”, acalmando depois de ter ido fumar (factos provados n.ºs 18 a 24),

• No dia 5 de Novembro, o arguido pretendendo praticar relações sexuais com a ofendida, que negou, tirou-lhe roupa à força e, tentou o acto sexual, que não conseguiu; tendo a ofendida se ausentado do quarto, o arguido seguiu-a e puxou-a novamente para o quarto, que fechou, tentando, novamente, encetar relações sexuais com a mesma; pronunciou que a ofendida tinha outros homens e acabou por desistir, dando-lhe a chave do quarto (factos provados n.ºs 25 a 33),

• No dia 6 de Novembro, quando regressavam a casa, o arguido, a ofendida e CC, aquele discutiu com Tereza Vidal acerca da sua condução e, chegados a casa e ainda na rua, atento o estado de exaltação de AA para com Tereza Vidal, um desconhecido, dirigindo-se aos mesmos, perguntou se era necessária ajuda; a ofendida dirigiu-se para o quarto e tentou ligar à GNR e o arguido, agarrando-lhe o telemóvel, enunciou que a matava a ela e ao Sr. que os tinha abordado na rua; a ofendida, que conseguiu alcançar o seu telemóvel, dirigiu-se ao café para telefonar à GNR, seguida por AA e, após, foi apresentar queixa ao Posto, durante o que, o arguido para aí telefonou, frisando ter a ofendida problemas psicológicos e ser necessário apreender o veículo da mesma (factos provados n.ºs 34 a 41),

• No mesmo dia, à hora de jantar, encontrando-se na mesa o arguido, a ofendida e CC, aquele dobrava garfos e partia facas, ao mesmo tempo que dizia que não lhe custava nada espetar facas nos pescoços daqueles (factos provados n.ºs 42 e 43).

Ainda adita que, ainda no dia 6 de Novembro de 2023, o arguido, a ofendida e CC se dirigiram ao café e, no regresso, Tereza Vidal, dizendo querer ir ao quarto de banho, adiantou a sua chegada, reuniu coisas suas e dirigiu-se à GNR e, posteriormente, a casa de amiga, DD, onde ficou durante 15 dias (factos provados n.ºs 44 e 45).

Finaliza, resumindo, ter-se sentido com dores, diminuída, ofendida, humilhada, desrespeitada, vigiada e controlada, amedrontada, insegura e intranquila, que quis findar a relação com o arguido e ele não aceitou e que esteve, em virtude disso, fora da sua casa durante 15 dias (factos provados n.ºs 46 e 47).

As espontaneidade e assertividade da ofendida, o modo como narrou os factos e a circunstância de as suas declarações se encontrarem sustentadas por outros meios de prova, testemunhal e documental, mostraram-se determinantes para lhe conferir integral credibilidade.

Neste sentido, prestou depoimento EE que, residente no imóvel da ofendida durante cerca de 2 meses (Setembro a Novembro de 2023), confirmando o relacionamento amoroso entre ambos, frisa nunca ter assistido a violência física por parte do arguido à ofendida; ao invés, sublinha a agressividade verbal, com proferimento de expressões, dirigidas àquela, como “não vales nada”, “não prestas”, mandando-a calar-se, e postura agressiva e altiva, potenciada pelo estado alcoolizado do arguido, primeiramente, só aos fins-de-semana e, posteriormente, todos os dias, exemplificando com uma altercação ocorrida entre este e CC.

Por seu lado, FF, que conhece o arguido de estabelecimento comercial que ambos frequentavam e a ofendida por lhe ter arrendado um quarto, descreve ter existido um relacionamento amoroso entre estes e que existia violência entre ambos, a que assistiu algumas vezes. Esclarece que o arguido, por diversas vezes e quando jantavam juntos, dobrava garfos e espetava facas na mesa, dirigia-se à ofendida apelidando-a de “vaca” e “cabra”, que lhe desferia “chapadas” na cara, que “até lhe saltavam os óculos” e que pedia para parar, e que lhe agarrava nos braços. Refere que presenciou o arguido a, na cozinha, agarrar a ofendida no pescoço. Ainda explica que, quando o arguido ingeria bebidas alcoólicas, ficava diferente: controlador, possessivo, queria ser o centro das atenções, ligava para as amigas da ofendida a saber do seu paradeiro. Confirma ter visualizado, no Facebook, a filmagem do arguido a partir o vidro da sala da residência da ofendida com um martelo.

Prestou também depoimento GG, residente no imóvel da ofendida desde Julho de 2023 e que conheceu, directamente, do relacionamento amoroso desta com o arguido. Com relevo, uma vez que não assistiu a quaisquer agressões verbais ou físicas por parte do arguido à ofendida, menciona que este dali saiu quando a agrediu e que, quando ingeria bebidas alcoólicas em excesso, “já não era o Sr. AA”.

Por fim, depôs DD, amiga da ofendida e com quem convivia frequentemente, em sua casa, duas ou três vezes por mês e, em Julho e Agosto, com maior regularidade, que presenciou o relacionamento amoroso desta com o arguido. Evidenciou que a ofendida pagava o tabaco ao arguido e tudo o mais que este pretendesse. Refere que AA queria ser sempre o centro das atenções e adoptava comportamentos nesse sentido, impondo aos outros a sua opinião. Para isso, viu-o a cerrar os punhos, a bater com eles na mesa de jantar, a dobrar uma faca. Confirma que assistiu a agressões verbais, por parte do arguido, à ofendida: apelidou-a de “cabra” e “vaca” e dizia-lhe que não sabia cozinhar ou fazer alguma coisa; que o mesmo tinha ciúmes da ofendida: quando trabalhava em Lisboa, telefonava para saber onde a mesma se encontrava, para a controlar, indicando que não queria ligações a pessoas do sexo masculino. Menciona que, em data que não consegue precisar mas que situa em Outubro / Novembro de 2023, acolheu a ofendida em sua casa, onde esta quedou até se sentir tranquila e segura, sublinhando que, quando aí chegou, apresentava-se muito nervosa, receosa, amedrontada, insegura, angustiada e desesperada.

Todos estes depoimentos, cada um intervindo e/ou presenciado directamente nos factos constantes dos autos, reputaram-se coesos e uníssonos, tendo-lhes, por isso, sido conferida credibilidade.

Por outro lado, os mesmos são suportados pela documentação constante dos autos, cujo cariz probatório não foi colocada em causa.

No que se refere à prova pericial, o Tribunal considerou, nomeadamente, o teor dos

• Relatório de avaliação do dano corporal de fls. 62 e ss. – facto provado n.º 18 –, e

• Relatório médico-legal de psiquiatria, realizado ao arguido, em 9 de Agosto de 2024 – factos provados n.ºs 53 a 60,

Bem como, no tocante à prova documental, os

• Auto de notícia de fls. 4 e ss. – factos provados n.ºs 18, 20, 22, 25, 28, 29, 31 a 33, 34, 36 e 38,

• Assentos de nascimento, de fls. 22 e ss., dos arguido e ofendida, e

• Documentação clínica de fls. 69 e ss. – facto provado n.º 2 –, fls. 142 e ss. e 166 e ss – factos provados n.ºs 52, 54, 55 e facto não provado a..

No que concerne à matéria vertida nos factos provados n.ºs 48 a 50, importa assinalar que, apesar de se referir a elementos pertencentes ao foro interno do arguido e o mesmo os tenha negado, os mesmos podem ser alcançados através de factos materiais e presunções, a partir dos quais seja possível extrair conclusões alicerçadas nas regras da experiência comum e da normalidade do acontecer.

De facto, alguém que actua nos termos em que actuou o arguido e que se encontra descrita no elenco de factos provados, tratando a ofendida da forma que resultou apurada, apodando-a dos epítetos supra citados, dirigindo-lhe as expressões acima descritas, desferindo-lhe tais agressões e causando-lhe as dores e mal-estar, sabendo que lhe deve respeito, porquanto a mesma era sua companheira, e que tal conduta é idónea a atingir a sua integridade física, saúde e bem-estar psicológico, somente pode intencionar alcançar esse desiderato, não podendo ignorar o seu carácter desvalioso.

A factualidade que se deu como provada atinente ao problema de saúde do arguido (síndrome de dependência alcoólica) e imputabilidade resultou da perícia médico-legal, na área de psiquiatria, realizada ao arguido por determinação deste Tribunal, que concluiu que, embora o arguido pudesse ter à data dos factos uma capacidade de avaliação e auto-determinação diminuídas, do ponto de vista psiquiátrico, é imputável, possuindo crítica para ilicitude dos factos, capacidade de avaliação e auto-determinação (factos provados n.ºs 48 a 50).

Além disso, ao processo não foi trazido qualquer facto concreto, relativo à personalidade do arguido e qualidades pessoais à data dos factos que levasse o Tribunal inferir o contrário.

Acresce ainda que, do relatório social feito pela DGRSP resulta que, à data, o arguido reside sozinho e exerce a actividade de pintor de automóveis, o que significa que o arguido apresenta, à data dos factos, autonomia de vida, sem existir qualquer sinal de diminuição da sua capacidade avaliativa e de auto-determinação, o que permite ao Tribunal encontrar um ponto de apoio seguro para imputabilidade do arguido, entendendo que o mesmo possuía capacidade de compreender o facto ilícito e de actuar conforme essa compreensão.

Da conjugação de toda a prova acabada de enunciar, não restam dúvidas para o Tribunal de que, na verdade, os factos constantes da acusação ocorreram e aconteceram como descritos.

Relativamente às condições pessoais do arguido, a factualidade demonstrada dimanou das declarações prestadas pelo mesmo em audiência de julgamento, que se afiguraram sérias e credíveis, para além de baseadas em relatório social elaborado pela DGRSP e junto aos autos em 3 de Junho de 2024 (factos provados n.ºs 61 a 64).

As condições sócio-económicas da ofendida resultaram das suas declarações, que foram atendidas pelo Tribunal (factos provados n.ºs 65 a 70). Por último, para o apuramento dos antecedentes criminais do arguido, mostrou-se essencial o teor do seu certificado de registo criminal, juntos aos autos em 25 de Outubro de 2024 (facto provado n.º 51).


*

Quanto à factualidade não apurada, esta resultou da ausência de produção de prova idónea a comprová-la ou do facto de a mesma ser contrariada pela provada, designadamente, quanto à doença de que o arguido padece (e não padece), que resulta da perícia realizada nos autos.

***

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

A. Enquadramento jurídico-penal

Apurados os factos, importa, agora, proceder ao seu enquadramento jurídico penal.

Para que o agente possa ser jurídico-penalmente responsabilizado tem de praticar um facto típico, ilícito e culposo.

O facto é típico quando a conduta do agente preenche objectiva e subjectivamente os elementos de um tipo legal de crime.


*

Vem o arguido acusado da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a), 2, alínea a), e 4 a 6, do Código Penal, que dispõe que:

“1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:

(...)

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

(...)é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 – No caso previsto no número anterior, se o agente:

a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; (...)

é punido com pena de prisão de dois a cinco anos. (...)

4 – Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

5 – A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. (...).

6 – Quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos”.

(…)

Aqui chegados, importa fazer uma breve referência à questão da imputabilidade diminuída do agente.

“Segundo o modelo consagrado no artigo 20.º, n.º 1, do Código Penal, o juízo de inimputabilidade depende da verificação cumulativa de dois requisitos: por um lado, o elemento bio-psicológico, que pressupõe que o agente seja portador de anomalia psíquica no momento da prática do facto; por outro, o elemento normativo, que se traduz na exigência de que, por força daquela anomalia psíquica, o agente tenha em tal momento sido incapaz de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa mesma avaliação. Assim, para o apontado juízo de inimputabilidade não basta a comprovação do substrato bio-psicológico de que o agente padece de anomalia psíquica, por mais grave que seja, tornando-se ainda necessário determinar a existência da relação causal entre aquela e o acto do agente, em termos de ter praticado o facto por ser incapaz de avaliar a sua ilicitude ou de se determinar de acordo com essa avaliação, resultando tal incapacidade cognitiva e/ou volitiva da anomalia psíquica que o afectava no momento da prática do facto” 17.

17 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 25 de Maio de 2018, proferido no proc. n.º 198/12.5GAOFR.C1 e disponível em www.dgsi.pt

A declaração de inimputabilidade exclui a culpa do agente e, portanto, a possibilidade de lhe ser aplicada uma pena.

Assim sendo, verificada a inimputabilidade, será aplicada medida de segurança quando, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, o agente revelar perigosidade consubstanciada no fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie (cf. artigo 91.º, n.º 1 do Código Penal).

Sucede que o n.º 2 do artigo 20.º do Código Penal prevê a extensão da inimputabilidade a determinados casos, referindo o artigo que, “pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída”, acrescentando o n.º 3 que, comprovada a incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no n.º 2.

Em bom rigor, estas duas disposições plasmadas no n.º 2 e 3 do artigo 20.º do Código Penal, prevêem aquelas situações em que, apesar de o agente não se encontrar destituído de capacidade de avaliação, a gravidade da situação permite assemelhá-la à de autêntica inimputabilidade prevista no n.º 1. Permitem, assim, ao Tribunal, após a avaliação da situação concreta, comprovada a existência de uma anomalia psíquica do agente e afectada a capacidade para o mesmo poder avaliar a ilicitude do facto ou para se determinar de acordo com a mesma, tornando-a sensivelmente diminuída, considerar o agente como imputável (diminuído) ou antes declará-lo como inimputável 18.

18 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 31 de Agosto de 2022, prolatado no proc. n.º 441/20.7PBLRA.C1 e acessível em www.dgsi.pt

Segundo Figueiredo Dias, na imputabilidade diminuída, “não se trata de uma diminuição da imputabilidade na acepção de um grau menor, ou sequer de uma diminuição da capacidade de controlo e consequente capacidade de inibição, do que se trata é antes de casos de “imputabilidade duvidosa”, no sentido de que neles se comprova a existência de uma anomalia psíquica, mas sem que se tornem claras as consequências que daí devem fazer-se derivar relativamente ao elemento normativo compreensivo exigido (…)”. Acrescenta ainda o autor que, com o dispositivo presente no artigo 20.º, n.º 2, do Código Penal, o legislador oferece ao juiz uma norma flexível que lhe permite, em casos graves e não acidentais, considerar o agente imputável ou inimputável 19.

19 in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2007, p. 584 e 587

20 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18 de Setembro de 2019, proferido no proc. 118/18.3JALRA.C1 e disponível em www.dgsi.pt

Refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18 de Setembro de 2019 que “(…) à imputabilidade diminuída não corresponde necessariamente uma culpa diminuída. Ela tanto pode determinar uma culpa agravada, como uma culpa atenuada, tudo dependendo dos traços de personalidade do agente refletidos no facto” 20.

Portanto, pode-se concluir que os casos de “diminuição sensível da capacidade de avaliação” podem ser tratados como de inimputabilidade ou antes de imputabilidade (diminuída), de acordo com o juízo que o tribunal faça sobre os pressupostos referidos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 20.º do Código Penal.

Nesse seguimento, nos casos mais graves, o Tribunal deve poder optar entre a decisão de imputabilidade ou de inimputabilidade, ou seja, entre a aplicação de uma pena ou antes de uma medida de segurança, conforme faça ou não sentido censurar eticamente a conduta do agente (n.º 2), ou tentar (ainda) influenciar a sua conduta futura mediante a aplicação de uma pena (n.º 3). O que implicará que o Tribunal pondere se, para a socialização do agente será preferível que esta cumpra uma pena ou antes uma medida se segurança. E, nessa medida, o agente pode, assim, ser declarado imputável e condenado em pena se esta sanção puder ainda satisfazer as exigências de prevenção especial que se façam sentir no caso concreto. Mas sendo declarado inimputável, é-lhe aplicável uma medida de segurança, se as exigências de prevenção especial puderem ser satisfeitas de forma mais eficaz e adequada através da aplicação desta sanção, desde logo porque mais vocacionada para o necessário tratamento psiquiátrico.


*

Revertendo ao caso concreto, embora se admita que, à data dos factos, o arguido poderia ter a sua capacidade de avaliação e auto-determinação diminuídas, face ao síndrome de dependência alcoólica de que padece, conclui o Tribunal pela sua imputabilidade, pelo facto da mesma ainda subsistir, embora com um grau sensivelmente diminuído, que não retira ao arguido a capacidade para avaliar a ilicitude do seu comportamento, nem a capacidade para se auto-determinar de acordo com essa avaliação, continuando a ser imputável para responder pelos seus actos delituosos.

Ademais, não obstante o arguido padecer dessa doença, a dinâmica dos factos, conjugada com a patologia referida, não permite considerar que a dita doença tenha afectado de algum modo a capacidade de decisão (auto-determinação) do arguido, no momento da prática de tal ilícito penal, susceptível de fundamentar o juízo de inferência no sentido de o mesmo não ter conseguido dominar o desenrolar da acção e a ocorrência do resultado verificado.

Portanto, o Tribunal não teve dúvidas de considerar o arguido como imputável.


*

B. Consequências jurídico-penais do crime

B.1. Medida da pena

Realizado o enquadramento jurídico -penal da conduta, cumpre determinar a pena concretamente aplicável aos crimes de violência doméstica, imputado ao arguido, atendendo à pena abstractamente aplicável, aos critérios de escolha e medida da pena e às suas finalidades.

O Direito Penal, enquanto direito de ordenação social jurídico-constitucionalmente legitimado, impõe ou restringe a prática de determinadas condutas lesivas de bens ou direitos fundamentais aos cidadãos de um Estado, através da tipificação de normas impositivas ou normas proibitivas e das sanções correspondentes à violação daquelas imposições ou proibições de agir.

Dispõe o n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.

Neste conspecto, refere o Supremo Tribunal de Justiça, no aresto de 11 de Fevereiro de 2010 21, que “(…) a pena assume agora, e entre nós, um cariz utilitário, no sentido de eminentemente preventivo, não lhe cabendo, como finalidade, a retribuição qua tale da culpa. Quanto aos fins utilitários da pena, importa referir que, contraposta no art. 40.º do CP a defesa dos bens jurídicos à reintegração do agente na sociedade, não se pode deixar de ver nesta uma finalidade especial preventiva, e, na dita defesa de bens jurídicos, um fim último que se há-de socorrer do instrumento da prevenção geral”.

21 Acordão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11 de Fevereiro de 2010, proferido no proc. n.º 23/09.4GCLLE.S1, relatado por Souto de Moura, disponível em www.dgsi.pt)

22 Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Noticias, 1993, p. 215

Acrescenta o n.º 2 do mesmo artigo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”. Como explica Figueiredo Dias, por meio da consideração da culpa como fundamento e limite da pena, “dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limita de forma inultrapassável as exigências de prevenção” 22.

Assim, a reacção criminal deve-se pautar pelas finalidades de prevenção geral e de prevenção especial, mas sempre tendo por pressuposto e por limite a culpa do arguido, por consideração ao principio da dignidade humana, o qual se constitui como alicerce fundamental de um Estado de Direito democrático, de harmonia com o previsto no artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa.

É atendendo a tais finalidades, pressupostos e limites, conforme resulta do artigo 40.º do Código Penal, que deve o julgador proceder à escolha da pena e à determinação da sua medida concreta, nos termos dos artigos 70.º e 71.º do Código Penal.

In casu, o crime de que vem acusado o arguido não consente esta escolha, porquanto somente é cominado com pena de prisão, pelo que, compete, de imediato, proceder à determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido.


*

O crime de violência doméstica agravado imputado ao arguido é punido com pena cuja moldura abstracta vai de dois a cinco anos de prisão. (cfr. artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, alínea a), do Código Penal).

No que se refere à dosimetria da pena, segundo o prescreve o n.º 1 do artigo 71º, do Código Penal, o julgador terá de apreciar e conjugar dois factores, a saber, a culpa do agente e as exigências de prevenção que no caso se façam sentir.

Portanto, como bem sintetiza o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26 de Abril de 2017 23, a medida concreta da pena “resultará da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos em cada caso requerida – tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada [prevenção geral positiva ou de integração] –, temperada, sempre que possível, pela necessidade de reintegração social do agente [prevenção especial positiva de socialização] mas, em qualquer caso, com respeito pelo limite inultrapassável da medida da culpa”.

23 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26 de Abril de 2017, proferido no proc. n.º 186/16.2JALRA.C1 e acessível em www.dgsi.pt

A par desta apreciação e conjugação, deverá o Tribunal atender às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra si, as quais se encontram consagradas no n.º 2 do mencionado preceito.

Relativamente às exigências de prevenção geral que se fazem sentir no presente caso, no que respeita a este tipo de crime, impõe-se ressaltar que as mesmas se afiguram assaz elevadas, tendo em consideração que este é um fenómeno social que tem alcançado considerável expressão em Portugal, sendo potenciador de um, também, crescente alarme social, decorrente das consequências altamente gravosas que, normalmente, resultam da prática deste crime. Por conseguinte, afigura-se premente reforçar, perante a comunidade, a validade das normas violadas e chamar à atenção para a necessidade de salvaguarda dos bens jurídicos alvo de lesão.

Por sua vez, no que concerne às exigências de prevenção especial, as mesmas revelam-se elevadas, considerando os antecedentes criminais do arguido, que mostram 8 condenações anteriores e a prática de 14 crimes, um deles, da mesma natureza do dos autos, e o trânsito em julgado da última condenação datar de 8 de Março de 2023, para além de os factos em causa assumirem gravidade objectiva relevante, designadamente, quanto às agressões e quanto às expressões e aos nomes ofensivos dirigidos a Tereza Vidal, o que evidencia a premência de, por meio da pena a aplicar, prevenir a prática de factos de idêntica natureza. Por outro lado, o arguido tem 50 anos e encontra-se profissionalmente integrado.


*

Impõe-se, ainda, levar em consideração as circunstâncias referidas no n.º 2 do artigo 71.º, do Código Penal que deponham a favor ou contra o arguido.

Neste âmbito, é digno de realce o facto de,

● a culpa se revelar intensa, uma vez que o arguido actuou com dolo directo, sendo esta a modalidade de culpa mais veemente das legalmente consagradas;

● o grau de ilicitude se revelar elevado, atendendo à gravidade e ao carácter reiterado das agressões e das expressões ofensivas e dos nomes dirigidos à ofendida, acompanhadas de comportamentos violentos, num curto período de tempo (9 meses), que propiciou a que a ofendida tivesse que sair da sua residência, o que evidencia manifesto desrespeito em relação à pessoa da ofendida, o conhecimento, pelo arguido, da doença da assistente, as consequências do crime que, dentro da gravidade objectiva compreendida no tipo legal, se revelam ponderosas, considerando a natureza, diversidade e seriedade das lesões que resultaram das condutas do arguido para a saúde física da ofendida e para o seu bem-estar psicológico,

● os antecedentes criminais do arguido, que mostram 8 condenações anteriores e a prática de 14 crimes, um deles, da mesma natureza do dos autos,

● a inexistência de arrependimento por parte do arguido,

● o arguido padecer de síndrome de dependência alcoólica, pelo menos, desde 2012, que pode ter acarretado a diminuição da capacidade avaliativa e de auto-determinação e disponibilidade de menos recursos intelectuais para a resolução de problemas,

● as condições de vida do arguido patentearem integração profissional, e

● o arguido ter 50 anos.

Isto posto, equacionados e conjugados todos estes factores, entende-se que a medida concreta da pena que se revela mais adequada e proporcional e que deve ser aplicada ao arguido pela prática do crime de violência doméstica é de 3 anos de prisão.


*

B.2. Da suspensão da execução da pena de prisão

Consciente dos efeitos criminógenos que o cumprimento da pena de prisão em estabelecimento prisional exerce sobre os agentes, impôs o legislador penal, nos termos do artigo 45.º, n.º 1, do Código Penal, que, quando a mesma seja aplicada em medida não superior a um determinado quantitativo e seja possível a sua substituição por pena não privativa da liberdade, o tribunal equacione a mesma e a concretize.

Exceptuam-se os casos em que a execução da pena de prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes ou a pena substitutiva não realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Nesta medida, atenta a medida concreta da pena fixada, de 3 anos de prisão, somente poderá́ ser equacionada a suspensão da sua execução, de harmonia com o preceituado no artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, que dispõe:

“O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Primeiramente, importa ter presente que a suspensão da execução da pena de prisão apenas pode ter lugar nas hipóteses em que:

● a pena de prisão fixada seja igual ou inferior a cinco anos e,

● à aplicação da suspensão subjaza a possibilidade de concretização de um juízo de prognose que, atendendo à personalidade do arguido, às condições da sua vida e à sua conduta anterior e posterior ao crime, permita concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, ou seja, as exigências de prevenção geral e especial.

Efectivamente, a suspensão da execução da pena de prisão “constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, tendo na sua base uma prognose social favorável ao arguido: a esperança fundada – e não uma certeza – de que a socialização em liberdade será́ possível, que o arguido sentirá a sua condenação como uma advertência solene e que, em função desta, não sucumbirá, não cometerá outro crime no futuro, que saberá́ compreender, e aceitará, a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, pautando a conduta posterior no sentido da fidelização ao direito” 24.

24 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 9 de Outubro de 2019, prolatado no proc. n.º 35/18.7SFPRT.P1

Paralelamente a este juízo de prognose favorável acerca da conduta futura do condenado, tendo em vista a aplicação desta pena substitutiva, deverá o julgador concluir que a aplicação da mesma não irá colocar em causa, inexoravelmente, a tutela dos bens jurídicos.


*

No presente caso, considerando que o arguido foi condenado numa pena de prisão de 3 anos, portanto não superior a 5 anos de prisão, o pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão encontra-se verificado.

Cabe averiguar do preenchimento do pressuposto material de aplicação da mesma pena de substituição se verifica, tendo em conta a factualidade dada como provada na sentença.

Perante os factos provados em concreto no presente caso, entende-se não ser possível fazer-se um juízo de prognose favorável relativamente à suspensão da execução da pena de prisão.

As exigências de prevenção geral são elevadas relativamente ao crime em cometido pelo arguido, como já se expôs. No tocante às exigências de prevenção especial, as mesmas reputam-se elevadas, considerando que:

• os antecedentes criminais do arguido remontam a 2004,

• o arguido possui 8 condenações anteriores e pela prática de 14 crimes,

• 10 dos 14 crimes por que foi condenado consubstanciam crimes contra as pessoas,

• uma das condenações refere-se a crime da mesma natureza do dos autos, e

• a prática dos factos dos autos ocorre escassos quatro meses após a data do trânsito em julgado da última condenação de 8 de Março de 2023.

Isso mostra que as penas aplicadas anteriormente não influenciaram positivamente o arguido como deveriam, fazendo este tábua rasa das oportunidades dadas pois, no que respeita às penas privativas de liberdade que foram aplicadas, as mesmas ora se suspenderam na sua execução, ora se substituíram por multa ou por prestação de trabalho a favor da comunidade.

Assim, resulta evidente não ser possível fazer-se um juízo de prognose favorável.

Entende-se que somente a pena de prisão efectiva satisfaz, simultaneamente, as exigências de prevenção geral e de prevenção especial que se fazem sentir.

Deste modo, julga-se adequado não suspender a execução da pena de prisão aplicada (cfr. artigo 50.º do Código Penal).


*

B.3. Das penas acessórias

Estatui o artigo 152.º, n.º 4, do Código Penal que podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vitima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

O n.º 5 dispõe que a pena acessória de proibição de contacto com a vitima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distancia.

Outrossim, prevê o n.º 6 do mesmo normativo que quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 (um) a 10 (dez) anos.

A este propósito, também prevê̂ o n.º 1 do artigo 35.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, que:

“o tribunal, com vista à aplicação das medidas e penas previstas nos artigos 52.º e 152.º do Código Penal, no artigo 281.º do Código de Processo Penal e no artigo 31.º da presente lei, deve, sempre que tal se mostre imprescindível para a protecção da vítima, determinar que o cumprimento daquelas medidas seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância”.

Ademais, o n.º 1, do artigo 36.º do mesmo diploma legal preceitua que:

“a utilização dos meios técnicos de controlo à distância depende do consentimento do arguido ou do agente e, nos casos em que a sua utilização abranja a participação da vítima, depende igualmente do consentimento desta”.

Por outro lado, estatui o n.º 7 do mesmo normativo que a aplicação das penas acessórias não é obrigatória no caso de condenação pela prática de crime de violência doméstica, sendo que a apreciação da sua necessidade atendendo às circunstâncias do caso concreto se afirma como um poder-dever do julgador.

Resulta desse quadro legal que as medidas de afastamento (as previstas no artigo 152.º, n.ºs 4 a 6, do Código Penal e a contida no artigo 31.º da Lei n.º 112/2009) se apresentam como de aplicação diferenciada consoante as circunstâncias do caso concreto, sendo que apenas deverão ser aplicadas nas hipóteses mais graves em que as necessidades de prevenção e a protecção da vítima exigem uma tutela penal reforçada.


*

Volvendo aos autos,

No que respeita à pena acessória de proibição de contactos do arguido com a vítima, aplicável pelo período de 6 meses a 5 anos, atendendo às finalidades de prevenção especial subjacentes a esta condenação, impõe-se aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contacto com a vítima pelo período de 1 ano e 6 meses.

Tal pena acessória afigura-se como essencial para proteger a ofendida, sedimentando o afastamento entre ambos.

Nestes termos, decide-se aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contacto com a vítima (por qualquer meio, pessoal, por interposta pessoa, telefónico, correspondência, internet, SMS) pelo período de 1 ano e 6 meses, nos termos do artigo 152.º, n.ºs 4 e 5, do Código Penal, sem necessidade de recurso a meios de controlo à distância, uma vez que a ofendida mora em Águeda e o arguido em Aveiro.

No mais, considerando que não resulta da factualidade apurada que o arguido possua armas ou que os factos em causa foram praticados com recurso a qualquer arma, mostra-se desnecessário aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de uso e porte de armas.


*

Acresce que a prática do crime de violência doméstica pelo arguido nas concretas circunstâncias apuradas não possui qualquer conexão com funções pelo mesmo exercidas, sendo certo que, não resulta da matéria de facto demonstrada que este exerça responsabilidades parentais, funções de tutor ou de acompanhante, pelo que se afigura desnecessário aplicar pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais, de tutela ou de medidas relativas a maior acompanhado.

*

B.4. Da reparação oficiosa de vitimas especialmente vulneráveis

Estatuem os n.ºs 1 e 2, do artigo 21.º, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, que:

“1 – À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.

2 – Para efeito da presente lei, há́ sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser”.

O referido artigo 82.º-A dispõe que “não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham”.

(…)“

Decidindo.
O recorrente pretende ver reduzida a pena de prisão sustentando a existência de imputabilidade diminuída e a sua suspensão com base nos seguintes argumentos:
1. Imputabilidade Atenuada: O arguido possui um QI de 74, padece de síndrome de dependência alcoólica desde 2012 e tem várias admissões no serviço de urgência devido ao consumo de álcool. A sua capacidade intelectual limitada e a sua condição mental sugerem uma imputabilidade atenuada, o que justifica uma pena menos severa.
2. Histórico Criminal e Comportamento: Embora o arguido tenha antecedentes criminais, ele não cometeu crimes de violência doméstica nos últimos 16 anos, exceto os factos presentes neste processo.  Isso sugere um menor risco de reincidência.
3. Integração Social e Consentimento para Tratamento: O arguido está integrado na sociedade, trabalha como pintor de automóveis e vive em uma autocaravana fornecida por um amigo.  Ele também prestou consentimento para um eventual tratamento médico à dependência alcoólica, demonstrando disposição para enfrentar e tratar a sua condição de saúde.
4. Prognose Favorável: A condição mental e social do arguido, juntamente com a ausência de reincidência em crimes de violência doméstica por um longo período, permite formular um juízo de prognose favorável ao seu comportamento futuro, especialmente se receber o devido acompanhamento médico e assistência psicossocial.
5. Finalidades da Punição: A suspensão da execução da pena de prisão, com regime de prova e tratamento para o consumo de álcool, pode realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, protegendo os bens jurídicos ofendidos e promovendo a reintegração do arguido na sociedade.
6. Regime de Prova: Em caso de suspensão da execução da pena de prisão, o arguido pode ser submetido ao regime de prova, previsto no artigo 53.º do Código Penal, incluindo a obrigação de avaliação e tratamento do consumo de álcool.  Isso visa garantir que ele receba o suporte necessário para evitar a reincidência e promover a sua reintegração social.

Decidindo.

Do enquadramento jurídico.

O recorrente não colocou em causa o enquadramento realizado.

Da medida da pena.

Alega-se violação dos artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal, nomeadamente dos princípios da necessidade e proporcionalidade, enquanto princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável.

As finalidades da punição reconduzem-se, nos termos do art. 40.º, do Cód. Penal, à proteção de bens jurídicos (prevenção geral), e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).

Quanto à medida da pena, esta deve ser graduada pelo Juiz, dentro da moldura fixada nos termos do art. 71.º, do Cód. Penal, ou seja, em função dos factos praticados, das circunstâncias do seu cometimento, da culpa do arguido e das exigências de prevenção, quer geral, quer especial, ponderando-se, para esse efeito, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor do arguido ou contra ele.

A este propósito, o Prof. Figueiredo Dias assinala que toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial; a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos, e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; e dentro desta moldura de prevenção geral de integração, a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva, de integração ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação.

Assume, assim, a referida prevenção geral positiva - de reforço da consciência jurídica

comunitária e do sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida, o primeiro lugar como finalidade da pena. Como refere Roxin, a prevenção geral positiva implica três efeitos: o ensino pedagógico-socialmente motivado o qual deve provocar a aprendizagem da fidelidade ao direito; o efeito de confiança que se produz quando o cidadão vê que o direito se impõe; e o efeito de satisfação que se apresenta quando o delinquente já foi penalizado de uma forma que a consciência jurídica geral tranquiliza-se perante a infração ao direito e considera solucionado conflito com o autor.

No caso em apreço, em primeira linha, há que atender à moldura penal abstrata do tipo de ilícito de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea b) e 2, alínea a), do Código Penal, com pena de prisão de dois a cinco anos. (...)

Analisados os fundamentos da decisão posta em crise e a moldura abstratamente aplicável ao crime praticado pelo arguido foram respeitados os princípios da necessidade e proporcionalidade, enquanto princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável, pelo que a dosimetria da pena aplicada não merece qualquer reparo.

O tribunal a quo considerou a propósito da imputabilidade diminuída:

“Aqui chegados, importa fazer uma breve referência à questão da imputabilidade diminuída do agente.

“Segundo o modelo consagrado no artigo 20.º, n.º 1, do Código Penal, o juízo de inimputabilidade depende da verificação cumulativa de dois requisitos: por um lado, o elemento bio-psicológico, que pressupõe que o agente seja portador de anomalia psíquica no momento da prática do facto; por outro, o elemento normativo, que se traduz na exigência de que, por força daquela anomalia psíquica, o agente tenha em tal momento sido incapaz de avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa mesma avaliação. Assim, para o apontado juízo de inimputabilidade não basta a comprovação do substrato bio-psicológico de que o agente padece de anomalia psíquica, por mais grave que seja, tornando-se ainda necessário determinar a existência da relação causal entre aquela e o acto do agente, em termos de ter praticado o facto por ser incapaz de avaliar a sua ilicitude ou de se determinar de acordo com essa avaliação, resultando tal incapacidade cognitiva e/ou volitiva da anomalia psíquica que o afectava no momento da prática do facto” 17.

17 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 25 de Maio de 2018, proferido no proc. n.º 198/12.5GAOFR.C1 e disponível em www.dgsi.pt

A declaração de inimputabilidade exclui a culpa do agente e, portanto, a possibilidade de lhe ser aplicada uma pena.

Assim sendo, verificada a inimputabilidade, será aplicada medida de segurança quando, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, o agente revelar perigosidade consubstanciada no fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie (cf. artigo 91.º, n.º 1 do Código Penal).

Sucede que o n.º 2 do artigo 20.º do Código Penal prevê a extensão da inimputabilidade a determinados casos, referindo o artigo que, “pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa ser censurado, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade para avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação sensivelmente diminuída”, acrescentando o n.º 3 que, comprovada a incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no n.º 2.

Em bom rigor, estas duas disposições plasmadas no n.º 2 e 3 do artigo 20.º do Código Penal, prevêem aquelas situações em que, apesar de o agente não se encontrar destituído de capacidade de avaliação, a gravidade da situação permite assemelhá-la à de autêntica inimputabilidade prevista no n.º 1. Permitem, assim, ao Tribunal, após a avaliação da situação concreta, comprovada a existência de uma anomalia psíquica do agente e afectada a capacidade para o mesmo poder avaliar a ilicitude do facto ou para se determinar de acordo com a mesma, tornando-a sensivelmente diminuída, considerar o agente como imputável (diminuído) ou antes declará-lo como inimputável 18.

18 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 31 de Agosto de 2022, prolatado no proc. n.º 441/20.7PBLRA.C1 e acessível em www.dgsi.pt

Segundo Figueiredo Dias, na imputabilidade diminuída, “não se trata de uma diminuição da imputabilidade na acepção de um grau menor, ou sequer de uma diminuição da capacidade de controlo e consequente capacidade de inibição, do que se trata é antes de casos de “imputabilidade duvidosa”, no sentido de que neles se comprova a existência de uma anomalia psíquica, mas sem que se tornem claras as consequências que daí devem fazer-se derivar relativamente ao elemento normativo compreensivo exigido (…)”. Acrescenta ainda o autor que, com o dispositivo presente no artigo 20.º, n.º 2, do Código Penal, o legislador oferece ao juiz uma norma flexível que lhe permite, em casos graves e não acidentais, considerar o agente imputável ou inimputável 19.

19 in “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2007, p. 584 e 587

20 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18 de Setembro de 2019, proferido no proc. 118/18.3JALRA.C1 e disponível em www.dgsi.pt

Refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 18 de Setembro de 2019 que “(…) à imputabilidade diminuída não corresponde necessariamente uma culpa diminuída. Ela tanto pode determinar uma culpa agravada, como uma culpa atenuada, tudo dependendo dos traços de personalidade do agente refletidos no facto” 20.

Portanto, pode-se concluir que os casos de “diminuição sensível da capacidade de avaliação” podem ser tratados como de inimputabilidade ou antes de imputabilidade (diminuída), de acordo com o juízo que o tribunal faça sobre os pressupostos referidos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 20.º do Código Penal.

Nesse seguimento, nos casos mais graves, o Tribunal deve poder optar entre a decisão de imputabilidade ou de inimputabilidade, ou seja, entre a aplicação de uma pena ou antes de uma medida de segurança, conforme faça ou não sentido censurar eticamente a conduta do agente (n.º 2), ou tentar (ainda) influenciar a sua conduta futura mediante a aplicação de uma pena (n.º 3). O que implicará que o Tribunal pondere se, para a socialização do agente será preferível que esta cumpra uma pena ou antes uma medida se segurança. E, nessa medida, o agente pode, assim, ser declarado imputável e condenado em pena se esta sanção puder ainda satisfazer as exigências de prevenção especial que se façam sentir no caso concreto. Mas sendo declarado inimputável, é-lhe aplicável uma medida de segurança, se as exigências de prevenção especial puderem ser satisfeitas de forma mais eficaz e adequada através da aplicação desta sanção, desde logo porque mais vocacionada para o necessário tratamento psiquiátrico.


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Revertendo ao caso concreto, embora se admita que, à data dos factos, o arguido poderia ter a sua capacidade de avaliação e auto-determinação diminuídas, face ao síndrome de dependência alcoólica de que padece, conclui o Tribunal pela sua imputabilidade, pelo facto da mesma ainda subsistir, embora com um grau sensivelmente diminuído, que não retira ao arguido a capacidade para avaliar a ilicitude do seu comportamento, nem a capacidade para se auto-determinar de acordo com essa avaliação, continuando a ser imputável para responder pelos seus actos delituosos.

Ademais, não obstante o arguido padecer dessa doença, a dinâmica dos factos, conjugada com a patologia referida, não permite considerar que a dita doença tenha afectado de algum modo a capacidade de decisão (auto-determinação) do arguido, no momento da prática de tal ilícito penal, susceptível de fundamentar o juízo de inferência no sentido de o mesmo não ter conseguido dominar o desenrolar da acção e a ocorrência do resultado verificado.

Portanto, o Tribunal não teve dúvidas de considerar o arguido como imputável. “

Seguidamente o tribunal passou a concretizar a pena, dizendo:

“In casu, o crime de que vem acusado o arguido não consente esta escolha, porquanto somente é cominado com pena de prisão, pelo que, compete, de imediato, proceder à determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido.

O crime de violência doméstica agravado imputado ao arguido é punido com pena cuja moldura abstracta vai de dois a cinco anos de prisão. (cfr. artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, alínea a), do Código Penal).

No que se refere à dosimetria da pena, segundo o prescreve o n.º 1 do artigo 71º, do Código Penal, o julgador terá de apreciar e conjugar dois factores, a saber, a culpa do agente e as exigências de prevenção que no caso se façam sentir.

Portanto, como bem sintetiza o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26 de Abril de 2017 23, a medida concreta da pena “resultará da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos em cada caso requerida – tutela das expectativas da comunidade na manutenção e reforço da norma violada [prevenção geral positiva ou de integração] –, temperada, sempre que possível, pela necessidade de reintegração social do agente [prevenção especial positiva de socialização] mas, em qualquer caso, com respeito pelo limite inultrapassável da medida da culpa”.

23 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26 de Abril de 2017, proferido no proc. n.º 186/16.2JALRA.C1 e acessível em www.dgsi.pt

A par desta apreciação e conjugação, deverá o Tribunal atender às circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra si, as quais se encontram consagradas no n.º 2 do mencionado preceito.

Relativamente às exigências de prevenção geral que se fazem sentir no presente caso, no que respeita a este tipo de crime, impõe-se ressaltar que as mesmas se afiguram assaz elevadas, tendo em consideração que este é um fenómeno social que tem alcançado considerável expressão em Portugal, sendo potenciador de um, também, crescente alarme social, decorrente das consequências altamente gravosas que, normalmente, resultam da prática deste crime. Por conseguinte, afigura-se premente reforçar, perante a comunidade, a validade das normas violadas e chamar à atenção para a necessidade de salvaguarda dos bens jurídicos alvo de lesão.

Por sua vez, no que concerne às exigências de prevenção especial, as mesmas revelam-se elevadas, considerando os antecedentes criminais do arguido, que mostram condenações anteriores e a prática de 14 crimes, um deles, da mesma natureza do dos autos, e o trânsito em julgado da última condenação datar de 8 de Março de 2023, para além de os factos em causa assumirem gravidade objectiva relevante, designadamente, quanto às agressões e quanto às expressões e aos nomes ofensivos dirigidos a Tereza Vidal, o que evidencia a premência de, por meio da pena a aplicar, prevenir a prática de factos de idêntica natureza. Por outro lado, o arguido tem 50 anos e encontra-se profissionalmente integrado.


*

Impõe-se, ainda, levar em consideração as circunstancias referidas no n.º 2 do artigo 71.º, do Código Penal que deponham a favor ou contra o arguido.

Neste âmbito, é digno de realce o facto de,

● a culpa se revelar intensa, uma vez que o arguido actuou com dolo directo, sendo esta a modalidade de culpa mais veemente das legalmente consagradas;

● o grau de ilicitude se revelar elevado, atendendo à gravidade e ao carácter reiterado das agressões e das expressões ofensivas e dos nomes dirigidos à ofendida, acompanhadas de comportamentos violentos, num curto período de tempo (9 meses), que propiciou a que a ofendida tivesse que sair da sua residência, o que evidencia manifesto desrespeito em relação à pessoa da ofendida, o conhecimento, pelo arguido, da doença da assistente, as consequências do crime que, dentro da gravidade objectiva compreendida no tipo legal, se revelam ponderosas, considerando a natureza, diversidade e seriedade das lesões que resultaram das condutas do arguido para a saúde física da ofendida e para o seu bem-estar psicológico,

● os antecedentes criminais do arguido, que mostram 8 condenações anteriores e a prática de 14 crimes, um deles, da mesma natureza do dos autos,

● a inexistência de arrependimento por parte do arguido,

● o arguido padecer de síndrome de dependência alcoólica, pelo menos, desde 2012, que pode ter acarretado a diminuição da capacidade avaliativa e de auto-determinação e disponibilidade de menos recursos intelectuais para a resolução de problemas,

● as condições de vida do arguido patentearem integração profissional, e

● o arguido ter 50 anos.

Isto posto, equacionados e conjugados todos estes factores, entende-se que a medida concreta da pena que se revela mais adequada e proporcional e que deve ser aplicada ao arguido pela prática do crime de violência doméstica é de 3 anos de prisão.”

Para logo equacionar a possibilidade da suspensão da pena de prisão, concluindo não ser lícito ao Tribunal efectuar um prognóstico favorável sobre os seus futuros comportamentos.

Referindo: “No presente caso, considerando que o arguido foi condenado numa pena de prisão de 3 anos, portanto não superior a 5 anos de prisão, o pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão encontra-se verificado.

Cabe averiguar do preenchimento do pressuposto material de aplicação da mesma pena de substituição se verifica, tendo em conta a factualidade dada como provada na sentença.

Perante os factos provados em concreto no presente caso, entende-se não ser possível fazer-se um juízo de prognose favorável relativamente à suspensão da execução da pena de prisão.

As exigências de prevenção geral são elevadas relativamente ao crime em cometido pelo arguido, como já se expôs. No tocante às exigências de prevenção especial, as mesmas reputam-se elevadas, considerando que:

● os antecedentes criminais do arguido remontam a 2004,

● o arguido possui 8 condenações anteriores e pela prática de 14 crimes,

● 10 dos 14 crimes por que foi condenado consubstanciam crimes contra as pessoas,

● uma das condenações refere-se a crime da mesma natureza do dos autos, e

● a prática dos factos dos autos ocorre escassos quatro meses após a data do trânsito em julgado da última condenação de 8 de Março de 2023.

Isso mostra que as penas aplicadas anteriormente não influenciaram positivamente o arguido como deveriam, fazendo este tábua rasa das oportunidades dadas pois, no que respeita às penas privativas de liberdade que foram aplicadas, as mesmas ora se suspenderam na sua execução, ora se substituíram por multa ou por prestação de trabalho a favor da comunidade.

Assim, resulta evidente não ser possível fazer-se um juízo de prognose favorável.

Entende-se que somente a pena de prisão efectiva satisfaz, simultaneamente, as exigências de prevenção geral e de prevenção especial que se fazem sentir.

Deste modo, julga-se adequado não suspender a execução da pena de prisão aplicada (cfr. artigo 50.º do Código Penal).”

Donde resulta que o tribunal a quo não só teve em conta as limitações decorrentes da imputabilidade diminuída (• o arguido padecer de síndrome de dependência alcoólica, pelo menos, desde 2012, que pode ter acarretado a diminuição da capacidade avaliativa e de auto-determinação e disponibilidade de menos recursos intelectuais para a resolução de problemas,) na fixação da pena concreta como ponderou adequadamente os critérios que determinaram o quantum encontrado nada tendo que se se apontar encontrando uma pena que se situa próxima do limite mínimo e dentro do terço do limite máximo abstrato.

De facto, a imputabilidade diminuída do arguido, devido ao alcoolismo, não justifica necessariamente uma atenuação da pena. Os factos provados sobre a vitima revelam uma grande ilicitude e todo o seu contexto é passível de grande censura.

Considerando o histórico criminal do arguido e a necessidade de prevenção, a suspensão da pena também não seria a adequada.

Em casos de violência doméstica, a lei penal portuguesa deve ser interpretada e aplicada considerando diversos fatores relacionados com a imputabilidade do arguido e a necessidade de proteger a vítima e a sociedade.

A Imputabilidade Diminuída como bem se refere pode ser considerada se o arguido tiver a sua capacidade de avaliar a ilicitude dos seus atos diminuída devido a uma anomalia psíquica grave, sendo que o tribunal pode declará-lo inimputável ou considerar a imputabilidade diminuída. A imputabilidade diminuída não implica necessariamente uma culpa diminuída, podendo até agravar-se dependendo das características do agente refletidas no ato praticado.

O arguido foi sujeito a uma Avaliação Psicológica, sendo comum a sua realização para determinar a capacidade do arguido de entender a ilicitude dos seus atos e de se controlar. Esta avaliação pode influenciar a decisão sobre a pena a aplicar.

E dependendo da avaliação da perigosidade do arguido, poderão ser aplicadas medidas de segurança ou penas de prisão. A escolha entre uma pena e uma medida de segurança depende da avaliação de saber se o arguido pode ser "censurado" por não controlar os efeitos da sua anomalia psíquica e de qual medida será mais eficaz para a sua socialização.

O arguido tem problemas com o álcool (O arguido, AA, sofre de Síndrome de Dependência Alcoólica (CID-F10.2) e esta dependência alcoólica pode ser considerada como um fator que contribui para a diminuição da capacidade intelectual e de autocrítica do arguido e já por causa disso foi também considerado com imputabilidade diminuída, sendo certo que dos factos dados como provados não decorre a certeza de que o arguido estava alcoolizado no momento da prática de todos eles, sendo certo que deles também decorre que a dependência alcoólica não o incapacitou totalmente de avaliar os seus atos. Tanto mais que, como resulta da motivação, o arguido não só negou a substância dos factos como até mencionou alguns pormenores assustadores da sua conduta.

A propósito o que se provou foi que:

52. O arguido era acompanhado em psiquiatria por transtornos depressivos e abandonou as consultas e a medicação prescrita.

53. O arguido possui um QI de 74, que corresponde a um valor limítrofe e abaixo da média.

54. O arguido padece de síndrome de dependência alcoólica, pelo menos, desde 2012.

55. O arguido tem várias admissões no serviço de urgência em contexto de etilismo agudo e complicações relacionadas.

56. A sua auto-crítica, no que concerne o consumo alcoólico e o seu efeito deletério é manifestamente pobre.

57. O arguido desvaloriza os diversos anos de consumo alcoólico e as consequências que o mesmo teve ao longo da sua vida, particularmente, o impacto no seu estado mental, a sua capacidade intelectual e elaboração de estratégias de resolução de problemas e controlo de impulsividade.

58. O aporte intelectual limite do arguido não o incapacita, de forma absoluta, para se determinar perante os factos dos autos, mas condiciona-o, ligeiramente, uma vez que o mesmo tem ao dispor menos recursos intelectuais para a resolução de problemas, favorecendo o recurso a comportamentos menos ponderados.

59. O arguido não padece de qualquer patologia, psicótica ou outra, que condicione a capacidade do individuo de se determinar perante actos como os descritos nos autos.

60. Não está excluída a probabilidade de o arguido adoptar e repetir comportamentos como os descritos nos autos. “

O relatório pericial apontando para uma imputabilidade sensivelmente diminuída do arguido, provocada pelo consumo regular de álcool também indica que não foi possível determinar se o arguido estava alcoolizado no momento da prática dos factos1.

A avaliação psicológica revelou que o arguido tem um QI de 74, um valor limítrofe e abaixo da média. No entanto, o relatório especificou que esta condição não o incapacita totalmente de se determinar perante os atos em análise, embora o condicionasse ligeiramente.

Por sua vez, o registo criminal é um fator agravante, demonstrando a indiferença do arguido em relação às penas anteriores e indicando a necessidade de uma pena mais severa.

Portanto a condição do arguido não retirou a sua capacidade para avaliar a ilicitude do facto e de se autodeterminar de acordo com essa avaliação.

A conclusão a que o tribunal chegou por referência ao acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 31 de agosto de 2022, relatado por Paulo Guerra, que oferece uma súmula prática das várias possibilidades que podem ocorrer perante uma situação do artigo 20.º, n.º 2 do Código Penal, esclarecendo que o juiz pode optar pela imputabilidade ou inimputabilidade do sujeito, sendo que a imputabilidade diminuída influencia a determinação da pena (art. 71.º) e a inimputabilidade leva à aplicação de uma medida de segurança (art. 91.º), mostra-se correta.

Em suma, apesar da imputabilidade diminuída do arguido devido ao consumo de álcool e dificuldades intelectuais, não se justifica uma atenuação da pena, porque não há uma diminuição sensível da culpa ou da ilicitude ou da necessidade da pena, dada a sua capacidade de avaliar a ilicitude dos seus atos, dado o contexto global da prática e tipo de factos praticados, antecedentes reincidência e a necessidade de prevenção geral e especial.

Sendo que tal diminuição foi tida em conta para fixar a pena de 03 anos de prisão.

Donde se pode concluir que o tribunal a quo considerou todos estes parâmetros, mostrando-se a pena aplicada proporcional e adequada à perigosidade do agente, bem como às necessidades de prevenção geral e especial, cumprindo integralmente as finalidades da punição.

No que diz respeito à suspensão da pena de prisão esta pode ser considerada se, atendendo à personalidade do agente, às condições de vida, à conduta anterior e posterior ao crime, e às circunstâncias deste, o tribunal concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão são suficientes para realizar as finalidades da punição.

No entanto, se o arguido tiver um extenso histórico criminal e demonstrar indiferença em relação às sanções penais, a suspensão da pena pode ser negada.

No caso concreto as necessidades de prevenção geral (reafirmação da necessidade de respeito pelas normas) e de prevenção especial (socialização do arguido) forma tidas em conta na determinação da pena e são grandes.

Não pode esquecer-se que o arguido, AA, tem um extenso histórico criminal que inclui para além de outros:

Um crime de violência doméstica, pelo qual já havia sido condenado a uma pena de prisão de 2 anos e 6 meses, suspensa na sua execução por igual período de tempo, embora há mais de 10 anos.

Vários crimes contra as pessoas, nomeadamente: Três crimes de injúria; Três crimes de ofensas à integridade física qualificada e Dois crimes de ameaça agravada.

Estes crimes remontam desde 2004, sempre em cadeia, sendo o mais recente praticado em 12 de Janeiro de 2023 e por decisão transitada em julgado em 8 de Março de 2023, proferida no proc. n.º ..., foi condenado por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 6 meses de prisão, substituída por prestação de trabalho de 180 horas a favor da comunidade, e totalizam 14 crimes pelos quais já foi condenado.

A violência doméstica é um crime frequente e alarmante pelos efeitos funestos que tem na vida das vitimas e da família mais próxima e a sociedade tem necessidade gritante de reafirmar a validade desta norma violada, pelo que a pena a fixar tenderá a ser cada vez mais severa.

O arguido refutou a prática dos factos, negando ter ofendido a integridade da vítima, insultado ou agredido fisicamente, revelando indiferença relativamente ao dever-ser jurídico penal.

Donde se pode concluir que também aqui o tribunal a quo considerou todos estes parâmetros, mostrando-se correta a decisão d enão suspender a pena de prisão.

Não é possível fazer-se um juízo de prognose positivo, pois a tendência por parte do arguido para a prática de crimes é evidente, não estando descartada a hipótese de voltar a repetir uma situação de violência doméstica para com a mesma outra vitima atendendo às suas limitações e dependência alcoólica e sua falta de vontade em tratar-se.

Não foi questionada a pena acessória de afastamento.


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Decisão:

Pelo exposto, o Tribunal da Relação do Porto decide negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente AA e, em consequência, confirmar a sentença recorrida nos seus precisos termos.

Custas a cargo do recorrente com taxa de justiça que fixo em 4 UCs.

Notifique – cfr. art. 425º nº 6 do CPP.

Sumário da responsabilidade do relator.

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Porto, 12 de março de 2025
(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas eletrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Paulo Costa
Pedro Afonso Lucas
Mara Luísa Arantes
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.