I - A regra para definir o valor da causa é o recurso à utilidade económica imediata do pedido e está expressa no artigo 296º do Código de Processo Civil: nº1 – «A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade imediata do pedido.»
II - Para surpreender qual a utilidade económica do pedido é também essencial atender à causa de pedir, visto que aquele deve ser lido à luz dos seus fundamentos.
III - A utilidade económica imediata do pedido não é considerado abstratamente, mas sim em confronto com a causa de pedir.
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I
AA deduziram ACÇÃO DECLARATIVA DE CONDENAÇÃO sob a forma de Processo comum, contra BB, CC e DD.
Invoca para o efeito que celebrou com a mãe das RR um contrato de compra e venda de eucaliptos, 100 toneladas, pelo valor de 5.800,00€, já pago.
Desses eucaliptos fez o corte e remoção de 75 toneladas, tendo ficado impedido de o fazer em relação ao remanescente por oposição das demandadas, remanescente esse cujo valor cifra em 1.750,00 €.
Pede:
Nestes termos e nos melhores de direito, deve a presente acção ser julgada provada e procedente e, consequentemente, condenar-se as Rés:
a) A permitir a entrada do A. no terreno, para cortar e remover as arvores que estão marcadas, que comprou e pagou;
b) Reconhecer ao A. o direito aos eucaliptos vendidos pela sua mãe, com conhecimento de todos os filhos;
c) A pagar juros de mora vencidos e vincendos sobre a quantia acima referida, que representa o valor da madeira em falta, desde Novembro de 2023, até efectivo e integral pagamento.
Citadas as RR., além do mais, impugnaram o valor oferecido pelo A, oferecendo outro em sua substituição, 5.800,00 €.
Alegam para o efeito que o critério determinativo do valor da acção será o que se encontra previsto no art.301.º nº1 do CPC, relativa à apreciação da existência, validade, cumprimento (…) de um acto jurídico.
«Aferindo-se que a utilidade económica da ação se adstringe ao valor da madeira referenciado no art.º 15.º) da petição inicial, fixa-se o valor da causa em €1.750,00 (mil setecentos e cinquenta euros), em consonância com o preceituado nos artigos 296.º/1, 297.º/1, 305.º/4 e 306.º/1, do Código de Processo Civil.»
Fixou-se o
«DO OBJECTO DO LITÍGIO:
Analisando-se os autos, atesta-se que a lide se estriba nas seguintes questões fundamentais:
A) Do reconhecimento do direito de propriedade do Autor;
B) Da pretensão reconstitutiva e do direito do Autor ao ressarcimento.»
…e os
«DOS TEMAS DA PROVA
1) A celebração do acordo descrito nos arts. 2.º) e 3.º) da petição inicial e o respetivo circunstancialismo;
2) A marcação das árvores descritas no sobredito acordo;
3) As toneladas de madeira correspondentes às árvores cortadas pelo Autor em decorrência do indicado em 1) e 2);
4) A factologia referenciada nos arts. 11.º) a 13.º) da petição inicial.»
É daquela decisão que fixou o valor da acção de que se recorre, tendo as RR. concentrado o respectivo recurso nas seguintes conclusões:
I) O presente recurso versa, unicamente, sobre a matéria de direito atinente à decisão respeitante à fixação do valor da causa proferida no despacho saneador, objeto do presente recurso, pelo Tribunal a quo.
II) Na petição inicial, o Autor indicou como valor da causa a quantia de 1.750,00€.
III) As Recorrentes impugnaram, nos termos do preceito 305.º, n.º1,doCPC,ovalor da causa indicado pelo Autor e ofereceram outro em substituição (5.800,00€) - cfr. arts. 36.º a 48.º da contestação.
IV)Sucede que, o Tribunal a quo fixou, no despacho saneador, aqui recorrido, o valor da causa na quantia de 1.750,00€, invocando os arts. 296, n.º 1, 297.º, n.º 1, 305.º, n.º 4 e 306.º, n.º 1, do CPC.
V) Salvo o devido e merecido respeito, as Recorrentes não se conformam com essa decisão, por erro na determinação da norma aplicável. O valor da causa deveria ter sido fixado na quantia de 5.800,00€, ao abrigo do art. 301.º, n.º 1, do CPC.
VI) No que concerne à fixação do valor da causa, o artigo 297.º, n.º 1, do CPC consagra o designado critério geral. Os artigos 298.º e seguintes, todos daquele mesmo diploma legal, expõem critérios especiais em relação àquele critério geral.
VII) Pela análise da petição inicial, nomeadamente dos artigos supra transcritos, juntamente com o Doc n.º1(contrato de compra e venda) junto pelo Autor, constata-se que ele invoca um contrato de compra e venda de 100 toneladas de madeira celebrado, em Abril de 2023, pelo preço de 5.800,00€.
VIII) E alega um incumprimento parcial por parte das Rés / Recorrentes que supostamente impedem ou opõem-se a que o Autor corte determinadas árvores que o mesmo considera ter direito no âmbito desse contrato celebrado.
IX) O pedido principal do Autor (alínea a)) consiste em exigir o cumprimento do contrato de compra e venda, mediante o pedido de entrada do Autor no terreno das Recorrentes para cortar e remover as árvores que estão marcadas, que alegadamente comprou e pagou por via desse contrato.
X) Em nenhuma das alíneas do pedido o Autor reclama o pagamento da quantia de 1.750,00€. Esse montante encontra-se referido, unicamente, no art. 15.º da petição inicial.
XI) Portanto, o Autor peticiona, a título principal, o cumprimento do contrato em apreço.
XII) Ora, nos termos do art. 301.º, n.º 1, do CPC - “Quando a ação tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um ato jurídico, atende-se ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes”.
XIII) O contrato de compra e venda cujo cumprimento se pretende foi junto com a petição inicial como doc n.º 1 e dele decorre que o preço convencionado entre as partes para a venda da madeira foi o de 5.780,00€.
XIV) Salvo melhor entendimento, dúvidas não restam que o valor da presente causa deveria ter sido fixado na quantia de 5.780,00€, conforme alegado e requerido pelas Recorrentes em sede de contestação.
XV) Na fixação do valor da causa, o Tribunal a quo incorreu em erro na determinação da norma aplicável. O Tribunal a quo deveria ter aplicado a norma legal prevista no art. 301.º, n.º 1, do CPC.
XVI) Assim, em cumprimento do disposto nesse preceito legal, sendo peticionada nesta acção o cumprimento do mencionado acto jurídico (contrato de compra e venda), que tem por base um preço (5.780,00), deverá ser este o valor a considerar para efeitos de determinação do valor da causa.
É consabido que resulta dos artº635º, n.ºs 3 a 5 e 639º, n.ºs1 e 2, ambos do CPC, que o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das respetivas alegações[1], sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.
Assim, em síntese, do que resulta das conclusões, caberá apreciar unicamente se o valor da acção fixado pelo tribunal a quo é o correcto ou, ao invés, é-o o proposto pelas RR
III.
III.1
Damos aqui por reproduzido o despacho atacado, a fixação do objecto do litígio e temas da prova descritos no relatório que antecede.
III.2
Defendem as recorrentes que o valor da acção deve ser definido tendo por base o critério que resulta do artº 301.º, n.º1 do CPC.
Vejamos.
A cada causa deve atribuir-se um valor, é o que estabelece o artigo 299º nº 1 do Código de Processo Civil.
Além do mais, este valor releva por determinar a competência do tribunal e a suscetibilidade do recurso, nos casos em que outra norma especial o não permita[2].
A regra para definir o valor da causa é o recurso à utilidade económica imediata do pedido e está expressa no artigo 296º do Código de Processo Civil: nº1 – «A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade imediata do pedido.»
Para surpreender qual a utilidade económica do pedido é também essencial atender à causa de pedir, visto que aquele deve ser lido à luz dos seus fundamentos.
A utilidade económica imediata do pedido não é considerado abstratamente, mas sim em confronto com a causa de pedir.
Como refere Lebre Freitas e Isabel Alexandre, «[h]á, porém, que ter em conta que o pedido se funda sempre na causa de pedir, que o explica e delimita. Dela não abstrai o critério da utilidade económica imediata do pedido, pelo que do pedido este não é considerado abstratamente, mas sim em confronto com a causa de pedir, para apuramento do valor da causa; (…)
Tal como o pedido desligado da causa de pedir não basta à determinação do valor da acção, também a causa de pedir, por si, não o determina: com base num contrato pelo qual é devida a quantia de 1.000, pode pedir-se a condenação do réu em 100 apenas; este é o valor da acção.»[3]
Por conseguinte, com vista à definição da «utilidade que as partes podem obter com a procedência dos pedidos que formulam há que verificar o que está em litigio e logo o que efetivamente pedem que seja decidido, afastando-se os pedidos que apenas foram formulados por serem pressupostos da efetiva pretensão das partes, mas que não correspondem a uma utilidade autónoma que pela ação pretendem fazer valer.
Esta ideia tem apoio também no artigo 297º do Código de Processo Civil, que estabelece os “[c]ritérios gerais para a fixação do valor”, afirmando que se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa e se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício.
Remete, pois, sempre, para o benefício concreto que a parte aufere com a ação, caso seja procedente.» [4]
Ora, se analisarmos a p.i., e a causa de pedir que a enforma e sustenta o petitório, o que de facto está em crise é a entrega ao A. de 30 toneladas de eucaliptos que alegadamente lhe foram vendidas, 30 toneladas dum total de 100 e por 70 já lhe terem sido entregue.
Nada mais interessa ao A., tudo o demais é instrumental a este substancial interesse que pretende tutelado. Pretende que lhe seja facultado o corte e remoção do remanescente eucaliptal.
Invoca para o efeito um contrato de compra e venda, fixando-se, como preço das 100 toneladas, a quantia de 5.800,00.
Ponderado o valor total referido, operando-se a «regra de três simples», resulta que ao valor das 30 toneladas corresponderá o montante de 1740,00 €.
É aquela a pretensão substantiva que aqui está em causa[5], a tutela do direito de propriedade que se pretende reconhecido sobre as 30 toneladas de eucaliptos não removidas e vista a oposição das RR.
A base legal da qual se afere o valor do pedido será, pois, o que resulta do art.302.º, n.º 1, do CPC («Se a acção tiver por fim fazer valer o direito de propriedade sobre uma coisa, o valor desta determina o valor da causa»), devidamente interpretado e por forma permitir o seu ajuste porque no caso se gira apenas em torno de parte do que foi objecto de compra e venda[6].
Àquele valor, porque se faz um pedido, de resto muito atípico por não se pedir previamente a condenação das RR. em qualquer quantia, quando muito somar-se-iam os juros que se pedem sobre aquele montante a computar desde Novembro de 2023 - al.c) do pedido (art.297.º, n.º2, do CPC).
Pelo exposto, considera-se ajustado o valor proposto pelo A. e fixado pelo tribunal a quo, assim improcedendo o recurso.
IV.
Nestes termos e pelos fundamentos que antecedem, nega-se provimento ao recurso, confirmando inteiramente o decidido pela 1ª instância.
Custas pelas recorrentes.
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Porto, 20/3/2025
Carlos Cunha Rodrigues Carvalho
José Manuel Correia
Ana Vieira
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[1] Cfr. a citação da doutrina a propósito no Ac. do STJ de 6.6.2018 proc. 4691/16.2T8LSB.L1.S1: (a) António Santos Abrantes Geraldes - «[a]s conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do artigo 635º, n.º 3, do CPC. Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões do recurso devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do tribunal Superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo Tribunal a quo.» - in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 – 4ª edição, Almedina, página 147. / (b) Fenando Amâncio Ferreira - «[n]o momento de elaborar as conclusões da alegação pode o recorrente confrontar-se com a impossibilidade de atacar algumas das decisões desfavoráveis. Tal verificar-se-á em dois casos; por preclusão ocorrida aquando da apresentação do requerimento de interposição do recurso, ou por preclusão derivada da omissão de referência no corpo da alegação. Se o recorrente, ao explanar os fundamentos da sua alegação, defender que determinada decisão deve ser revogada ou alterada, mas nas conclusões omitir a referência a essa decisão, o objeto do recurso deve considerar-se restringido ao que estiver incluído nas conclusões.» - in Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2000, página 108 / (c) José Augusto Pais do Amaral - «[o] recorrente que tenha restringido o âmbito do recurso no requerimento de interposição, pode ainda fazer maior restrição nas conclusões da alegação. Basta que não inclua nas conclusões da alegação do recurso alguma ou algumas questões, visto que o Tribunal ad quem só conhecerá das que constem dessas conclusões.» - Direito Processual Civil, 2013, 11ª edição, Almedina, páginas 417/418.
[2] Como releva para muitos outros aspectos e/ou efeitos. Vide a propósito Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in CPC anotado, V.I, 3º Ed., Almedina, p.380
[3] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1º, 4ª ed, pág. 601. Vide igualmente Alberto Reis, Comentário ao CPC, Vol. III, pág. 594, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães de 11/07/2012, no processo 286/10.2TBSPS-B.C1 e do Tribunal da Relação de Lisboa no processo 2586/17.1T8CSC.L1-7, de 04/13/2021, citações feitas no Ac. da RG de 9.11.23, proc. 484/21.3T8CMN-A.G
[4] Ac. da RG de 9.11.23, proc. 484/21.3T8CMN-A.G
[5] «Sabemos que o pedido é o efeito jurídico pretendido.
Esse efeito jurídico traduz-se, ao fim ao cabo, na afirmação do efeito jurídico substantivo potenciado pela estatuição da norma aplicável ao caso singular. Consiste, portanto, na afirmação, feita pelo peticionante, de pretender um certo aproveitamento prático, concreto, a coberto de uma determinada posição juridicamente tutelada
O julgador deve descortinar o sentido efectivo do pedido, socorrendo-se para tanto de todos os elementos vertidos na petição inicial, desde que o seu alcance assim obtido tenha um mínimo de correspondência verbal, não se bastando, por conseguinte, com os seus dizeres expressos, e por outro lado, desde que, evidentemente, esse sentido tenha sido perfeitamente entendido e compreendido pelos Réus, de modo a possibilitar-lhes defesa plena e eficiente.» - Ac. da RP 23 aneiro 2025- Proc. 439/24.6T8PRT.P1
[6] Vide, no caso de parcela de prédio reivindicado, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in CPC anotado, V.I, 3º Ed., Almedina, comentário ao art.302 do CPC, nota 2, p.389.