INVENTÁRIO
AUDIÊNCIA PRÉVIA
FALTA DE GRAVAÇÃO
NULIDADE
PRAZO DE ARGUIÇÃO
CONFERÊNCIA DE INTERESSADOS
DELIBERAÇÃO SOBRE O PASSIVO
CASO JULGADO
Sumário

I – Não tendo o Apelante impugnado no prazo de 10 dias a falta de gravação, o vicio decorrente da mesma fica sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade processual ser arguida no prazo de interposição de recurso e nas próprias alegações de recurso, sendo o mesmo extemporâneo.
II - Tendo sido discutido e apreciado no âmbito da conferência de interessados do inventário o não reconhecimento de passivo, partilha que depois veio a ser homologada, tal consubstancia situação de autoridade de caso julgado e que vincula definitivamente as partes.

Texto Integral

Proc. nº 819/23.4T8ETR.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo Local Competência Genérica de Estarreja - Juiz 1

Relator: Juiz Desembargador Álvaro Monteiro
1º Adjunto: Juíza Desembargadora Isabel Silva
2º Adjunto: Juiz Desembargador Carlos Cunha Carvalho

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Sumário:
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I - Relatório:
Veio o autor AA, NIF ......, intentar a presente acção declarativa de condenação, contra:
1) BB, casado com CC;
2) DD, casado com EE
3) FF, casada com GG;
4) HH, casada com II

a) Ser os Réus condenados ao pagamento do montante de €34.270,53 (trinta e quatro mil duzentos e setenta euros e cinquenta e três cêntimos), a título de valores que foram assumidos pelo património do Autor conforme os factos ora aduzidos, nos seguintes termos:
i. Dos sucessores da sua irmã, JJ, o valor de €11.423,51 (onze mil quatrocentos e vinte e três euros e cinquenta e um cêntimos) divido respetivamente na proporção dos seus quinhões hereditários pelo:
a. Seu sobrinho, o Réu BB, no valor de 5.711,75€ (cinco mil setecentos e onze euros e setenta e cinco cêntimos);
b. Seu sobrinho, o Réu DD, no valor de 5.711,75€ (cinco mil setecentos e onze euros e setenta e cinco cêntimos);
ii. Da sua irmã, a Ré FF, na proporção do seu respetivo quinhão hereditário, o valor de € 11.423,51 (onze mil quatrocentos e vinte e três euros e cinquenta e um cêntimos)
iii. Da sua irmã, a Ré HH, na proporção do seu respetivo quinhão hereditário, o valor de €11.423,51 (onze mil quatrocentos e vinte e três euros e cinquenta e um cêntimos).
b) Ser a Ré HH ainda condenada ao pagamento do montante de €751,38 (setecentos e cinquenta e um euros e trinta e oito cêntimos) resultante da diferença de valor entre as tornas que o Autor lhe pagou e o valor que lhe pagaria, se tivessem sido adjudicadas corretamente as verbas que lhe seriam destinadas;
c) Ser os Réus condenados no pagamento de juros moratórios, à taxa legal, contados sobre as importâncias líquidas acima peticionadas, desde a data da citação até integral e efetivo pagamento;

Invoca o seguinte:
Exerceu o cabecelato no processo de inventário que correu termos sob o n.º 470/13.7T2ETR para partilha da herança aberta por óbito de KK e LL, onde os réus intervieram enquanto interessados.
No exercício do cabecelato, procedeu ao pagamento de uma dívida da herança a MM no valor global de €18.000,00, não tendo tal dívida sido reconhecida ou aprovada em sede de inventário pelos demais herdeiros, pelo que pretende ser ressarcido de tal pagamento com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa.
Verificou-se um lapso no averbamento dos saldos bancários titulados pela inventariada à data da sua morte, pelo que apenas poderia ter sido objeto de partilha o valor de €27.694,06 e não o montante efetivamente partilhado, o que resultou na assunção pela sua parte do valor excessivamente relacionado, o qual entende lhe deverá ser restituído pelos demais herdeiros com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa.
O seu mandatário aceitou a adjudicação de verbas à interessada HH e a seu favor em contrariedade às indicações por si providenciadas, sendo que tal erro implicou o pagamento, da sua parte, de tornas, as quais não seriam devidas caso esse erro não se tivesse verificado, pelo que esta interessada se enriqueceu, sem causa justificativa e à custa do empobrecimento do interessado, de um montante que não seria devido.
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Em sede de contestação, os réus FF e NN vieram sustentar, nomeadamente, com relevo para as questões que serão decididas de imediato, o seguinte:

i. Da exceção do trânsito em julgado da decisão que foi tomada no âmbito do processo de inventário sobre a partilha dos bens, a qual entende ser definitiva, não podendo vir agora o autor invocar ou reclamar dessa mesma decisão.
ii. Da exceção da validade dos atos praticados pelo mandatário do autor no processo de inventário, sustentando que qualquer eventual abuso de representação, previsto no artigo 269.º do Código Civil, não será imputável aos contestantes que são terceiros em relação ao mandato que o autor conferiu ao seu mandatário no processo principal.
iii. Da inexistência dos pressupostos do enriquecimento sem causa, pois que o alegado empobrecimento que o autor alega e que os réus não reconhecem, tem uma causa justificativa: o processo de inventário.
iv. Da exceção da prescrição do direito de invocar o enriquecimento sem causa.
v. Por fim, por impugnação.
Mais pugnaram os réus pela condenação do autor como litigante de má-fé.
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HH deduziu, de igual modo, contestação, alegando, nomeadamente e com relevo para a resolução das questões que se pretendem decidir de imediato, o seguinte:
i. Da exceção do trânsito em julgado relativamente ao diferencial de 27.694,38 €.
ii. Da exceção do trânsito em julgado, pois que a dívida de 18.000,00 € não foi reconhecida em sede de reclamação contra a relação de bens e não foi aprovada em sede de conferência de interessados.
iii. Da exceção do trânsito em julgado relativamente à adjudicação à ré HH.
iv. Da exceção da ilegitimidade substantiva da ré HH.
v. Da prescrição do direito a invocar o enriquecimento sem causa.
vi. Da não verificação dos pressupostos do enriquecimento sem causa.
Mais pugnou a ré pela condenação do autor como litigante de má-fé.
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Mais vieram os réus BB, CC, DD e EE apresentar a sua contestação, onde sustentaram, com relevância para as questões que se pretendem decidir de imediato, o seguinte:
i. Da exceção do caso julgado do alegado erro no relacionamento das contas bancárias atento o trânsito em julgado da decisão judicial proferida quanto a este particular.
ii. Da exceção do caso julgado, pois que a dívida de 18.000,00 € não foi aprovada em sede de conferência de interessados, não tendo o autor apresentado qualquer reclamação ou recurso desta deliberação.
iii. Da exceção da prescrição do direito de enriquecimento sem causa.
iv. Da não verificação dos pressupostos do enriquecimento sem causa.
Mais pugnaram os réus pela condenação do autor como litigante de má-fé.
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Realizada audiência prévia, foi proferida seguinte decisão:
“Assim sendo, não se encontrando verificados os pressupostos do regime do enriquecimento sem causa, decide-se absolver os réus dos pedidos contra si formulados.
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Fixa-se o valor da ação em €35.021,91 (trinta e cinco mil, vinte e um euros e noventa e um cêntimos), nos termos do disposto nos artigos 296.º, n.º 1, 297.º, nºs 1 e 2 e 306.º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.
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As custas da ação são da responsabilidade do autor (artigo 527.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil).
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Notifique.
Registe.”
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É desta decisão que, inconformado, o Autor interpõe recurso, terminando as suas alegações com as seguintes
CONCLUSÕES:
1.ª Não tendo sido a audiência prévia gravada e não tendo sido a mesma dispensada pelas partes, nem tendo ocorrido eventual impossibilidade de gravação, a omissão pelo Tribunal a quo da tramitação legal prevista para a gravação da mesma, constitui tal omissão uma nulidade processual que acarreta a nulidade dos atos posteriores, nomeadamente da sentença proferida, nos termos dos arts. 155.º, 195.º e 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, todos do CPC.
2.ª Subsidiariamente, se assim não se conceber, deverá a sentença ser substituída por outra que acautele os pedidos do Recorrente por se entender que sobre os seus pedidos com fundamento em enriquecimento sem causa não houve qualquer decisão anterior para estarem tais assuntos cobertos por exceção de caso julgado.
Conclui pela procedência do recurso.
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Foram apresentadas contra alegações pela Ré HH, a qual pugna pela improcedência do recurso.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
No exame preliminar considerou-se nada obstar ao conhecimento do objecto do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, não podendo este tribunal conhecer de questões nelas não incluídas, salvo se forem de conhecimento oficioso (cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1.ª parte, e 639.º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (C. P. Civil).

Assim, partindo das conclusões das alegações apresentadas pelo Apelante, as questões a decidir no presente recurso, são as seguintes:
a) Nulidade da audiência prévia por omissão de gravação, constituindo tal omissão uma nulidade processual que acarreta a nulidade dos actos posteriores, nomeadamente da sentença proferida, nos termos dos arts. 155.º, 195.º e 615º, nº 1, alínea d), 2ª parte, todos do CPC.
b) Subsidiariamente, deverá a sentença ser substituída por outra que acautele os pedidos do Recorrente por se entender que sobre os seus pedidos com fundamento em enriquecimento sem causa não houve qualquer decisão anterior para estarem tais assuntos cobertos por excepção de caso julgado.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
1. Os factos são os constantes do relatório.
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2 - OS FACTOS E O DIREITO.
Falta gravação audiência da audiência prévia.

Dispõe o artº Artigo 591.º, nº 4, do CPC, a audiência prévia é, sempre que possível, gravada, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 155.º.

Por sua vez o artº 155º dispõe o Artigo 155.º
Gravação da audiência final e documentação dos demais atos presididos pelo juiz
1 - A audiência final de ações, incidentes e procedimentos cautelares é sempre gravada, devendo apenas ser assinalados na ata o início e o termo de cada depoimento, informação, esclarecimento, requerimento e respetiva resposta, despacho, decisão e alegações orais.
2 - A gravação é efetuada em sistema vídeo ou sonoro, sem prejuízo de outros meios audiovisuais ou de outros processos técnicos semelhantes de que o tribunal possa dispor, devendo todos os intervenientes no ato ser informados da sua realização.
3 - A gravação deve ser disponibilizada às partes, no prazo de dois dias a contar do respetivo ato.
4 - A falta ou deficiência da gravação deve ser invocada, no prazo de 10 dias a contar do momento em que a gravação é disponibilizada.
5 - A secretaria procede à transcrição de requerimentos e respetivas respostas, despachos e decisões que o juiz, oficiosamente ou a requerimento, determine, por despacho irrecorrível.
6 - A transcrição é feita no prazo de cinco dias a contar do respetivo ato; o prazo para arguir qualquer desconformidade da transcrição é de cinco dias a contar da notificação da sua incorporação nos autos.
7 - A realização e o conteúdo dos demais atos processuais presididos pelo juiz são documentados em ata, na qual são recolhidas as declarações, requerimentos, promoções e atos decisórios orais que tiverem ocorrido.
8 - A redação da ata incumbe ao funcionário judicial, sob a direção do juiz.
9 - Em caso de alegada desconformidade entre o teor do que foi ditado e o ocorrido, são feitas consignar as declarações relativas à discrepância, com indicação das retificações a efetuar, após o que o juiz profere, ouvidas as partes presentes, decisão definitiva, sustentando ou modificando a redação inicial.

Do aludido nº 4 deste preceito resulta que a gravação deve ser disponibilizada às partes no prazo de dois dias após a realização do acto e que as partes devem invocar a falta ou deficiência da gravação no prazo de 10 dias, contados da sua disponibilização pelo que “é de concluir que o prazo de arguição da deficiência conta-se a partir do termo do prazo de disponibilização da gravação imposto ao tribunal (dois dias), ou antes, se a gravação for entregue à parte antes desse prazo, devendo descontar-se eventual atraso do tribunal na disponibilização efetiva da gravação à parte (ou na prestação da informação acerca da sua inexistência) que a tenha solicitado ainda dentro do aludido prazo global de 12 dias”, vide AC do TRG de 16/05/2019, Processo n.º 57308/18.0YIPRT.G1, Relator Alcides Rodrigues em www.dgsi.pt.
O próprio Recorrente invoca que a omissão ou deficiência da gravação configura uma nulidade processual, a qual acarreta a nulidade dos actos posteriores, pelo que estando a omissão duma formalidade prescrita por lei que a parte interessada devia arguir autonomamente a nulidade artigos 195º e 197º, ambos do Código de Processo Civil.
Decorrido aquele prazo global de 12 dias (= 2 + 10) sem que seja arguido o vício em causa, fica o mesmo sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade processual ser arguida pela parte interessada no prazo de interposição de recurso (30 ou 40 dias) e apenas nas próprias alegações de recurso, vide Ac TRG de 25.02.2021, processo nº 54843/19.6YIPRT.G1, Relator: Raquel Baptista Tavares, in www.dgsi.pt.
Daí afirmar-se “que a omissão ou deficiência das gravações é, após a entrada em vigor do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, um problema que deve ficar definitivamente resolvido ao nível da primeira instância, quer pela intervenção oficiosa do juiz que preside ao acto, quer mediante arguição dos interessados.
Tal regime tem o mérito de permitir que a questão seja colocada de imediato ao tribunal de 1.ª instância e este possa de imediato desencadear todas as diligências necessárias ao suprimento das falhas que afectem a gravação, evitando a subida de recursos “condenados” a gerarem anulações e repetições de actos evitáveis, constituindo, além do mais, expressão do princípio da autorresponsabilização das partes” António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, in Código Processo Civil Anotado, página 190.
Revertendo aos presentes autos constata-se que a audiência prévia realizou-se em 18.04.2024, constando da mesma:
“Iniciada a diligência à hora designada, a Mma Juiz tentou conciliar as partes nos termos do art.º 591º, n.º 1, al. a) do CPC, o que não foi logrado, uma vez que as partes mantêm as posições expressas nos seus articulados (cfr art.º 594º, n.º 1, do CPC).
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Em seguida, e nos termos do art.º 598º, do CPC, pela Ilustre mandatária do autor, foi pedida a palavra, e tendo-lhe sido concedida, no uso da mesma, disse:
Em relação às testemunhas arroladas pelo autor nos presentes autos, vem-se ora indicar as moradas que foram devidamente apuradas, para efeitos de posterior notificação das mesmas, e que são as seguintes:
- Quanto à testemunha MM, a sua morada é: Rua ..., ..., ...;
- Quanto à testemunha OO, a sua morada é: ..., casa ......, ..., Lisboa.
Adita ainda a seguinte testemunha: PP, residente na Rua ..., ..., ....
Que reitera o pedido de prestação de declarações de parte do autor, restringido à matéria dos artigos 4º a 25º da petição inicial e aos artigos 70º a 78º das respostas às contestações.
Por fim, requer a tomada dos depoimentos de parte das rés FF e QQ, à mesma matéria agora indicada.
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Dada a palavra aos demais Il. mandatários presentes pelos mesmos foi dito que reiteram os seus meios de prova já apresentados nos seus articulados.
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De seguida, por todos os Il. mandatários presentes foi acordado, desde já, em fixar a seguinte data para a realização da audiência final: 27 de junho de 2024, pelas 13:30 horas.
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Seguidamente, foi pela Mm.ª Juiz proferido o seguinte:
= DESPACHO =
Oportunamente, abra conclusão, a fim de ser proferido despacho saneador – artº 595º, nº 2 do CPC. Notifique.
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Logo, todos os presentes foram devidamente notificados.
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Foi encerrada a audiência quando eram 14 horas e 18 minutos. A presente ata foi integralmente revista e por mim, RR, elaborada, e assinada eletronicamente pela Mmª. Juiz.»

A aludida acta ficou disponível às partes em 24.04.2024, sendo que as partes nada impugnaram quanto à acta, nem vieram suscitar qualquer questão.
A única decisão que ficou a constar da acta foi a de ser aberta conclusão para elaboração do despacho saneador e que é agora objecto de recurso, o qual foi prolatado em 18.11.2024.
Ora, não tendo o Apelante impugnado no prazo de 10 dias, nos termos acima referidos, a falta de gravação o vicio decorrente da mesma fica sanado, não podendo oficiosamente ser conhecido pela Relação, nem podendo tal nulidade processual ser arguida no prazo de interposição de recurso e nas próprias alegações de recurso, sendo o mesmo extemporâneo.
Assim sendo, improcede a aludida nulidade de falta de gravação invocada pela Apelante.
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O Apelante pugna ainda, a título subsidiário, deverá a sentença ser substituída por outra que acautele os pedidos do Recorrente por se entender que sobre os seus pedidos com fundamento em enriquecimento sem causa não houve qualquer decisão anterior para estarem tais assuntos cobertos por excepção de caso julgado.
Conhecendo:
A conclusão acima referida comporta duas vertentes:
- uma relativa ao montante de €18.000,00
Relativamente ao alegado direito de crédito titulado pelo autor por ter liquidado na qualidade de cabeça de casal, uma dívida a MM no valor global de €18.000,00, como se diz na sentença recorrida “constata-se que o reconhecimento deste crédito foi suscitado em sede de inventário, onde não foi reconhecido (cf. decisão proferida no incidente de reclamação contra a relação de bens, junta como doc. n.º 2 à contestação da ré HH, onde se lê que: «No que se refere à requerida redução em €18.000,00 (dezoito mil euros), alegadamente pagos a MM, para além de não se ter produzido qualquer prova que tal pagamento se verificou, trata-se de invocação de passivo, a submeter à consideração da conferência de interessados, nos termos do disposto no art. 1353.º, n.º e 1354.º. do Cód. Processo Civil, na versão aplicável»), nem tão pouco aprovado pelos interessados em sede de conferência de interessados (cf. acta da conferência de interessados junta como doc. n.º 3 à sobredita contestação).”
Nos termos do artº 1353º, nº 3, do CPC, em vigor na altura, à conferência compete ainda deliberar sobre a aprovação do passivo e forma de cumprimento dos legados e demais encargos da herança.
Em processo de inventário, é soberana a deliberação da Conferência de Interessados sobre a aprovação do passivo relacionado, devendo a sentença que homologa as operações da partilha limitar-se a respeitá-la, nos termos dos artigos 1353.º, n.º 3 e 1354.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Sucede que o aludido montante de €18.000,00 (alegado como passivo) foi discutido no inventário, mas não foi aprovado em sede de conferência de interessados, sendo que o Tribunal no Inventário não se pronunciou posteriormente sobre o mesmo.
As dívidas eram decididas na conferência de interessados, e consideravam-se reconhecidas se aceites por todos.
Se algum a não aceitar, era decidida pelo juiz se tivesse as provas necessárias, ou remetia os interessados para os meios comuns. Os que a tivessem aprovado, eram logo condenados no pagamento da dívida na proporção dos respectivos quinhões.
No caso sub judicio a questão dos €18.000,00 nunca foi judicialmente apreciada. Na verdade, depois de relacionada, ela foi objecto de reclamação. O juiz do inventário não a decidiu na reclamação. O que consta da reclamação é que o juiz disse que isso era relegado para a conferência de interessados.
E, na conferência de interessados, a dívida não foi aprovada por 5 interessados (e os interessados eram 6).
Portanto, perante a não aprovação da dívida, o juiz do inventário teria de:
- a decidir se considerasse ter as provas necessárias;
- ou remeter os interessados para os meios comuns.
No inventário não existiu nenhuma dessas decisões. Donde, não há sequer caso julgado sobre a possível existência da dívida.
Em qualquer caso, a aprovação ou não de dívidas num inventário compete aos interessados e não é uma decisão judicial sobre a respectiva existência.
Concluindo, não há qualquer decisão anterior sobre a existência ou não da dívida, pelo que não se verifica a excepção de caso julgado, nem a autoridade de caso julgado.
Serve o exposto para dizer que não recaiu uma decisão do Tribunal sobre tal montante de €18.000,00 e, como tal, não se pode falar em caso julgado.
Assim sendo, será de proceder o recurso nesta parte, revogando-se a decisão recorrida.
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A segunda vertente do pedido do Autor tem como causa de pedir o facto de ter verificado um lapso no averbamento dos saldos bancários titulados pela inventariada à data da sua morte, pelo que apenas poderia ter sido objeto de partilha o valor de €27.694,06 e não o montante efetivamente partilhado, o que resultou na assunção pela sua parte do valor excessivamente relacionado, o qual entende lhe deverá ser restituído pelos demais herdeiros com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa.
Relativamente ao alegado lapso no averbamento dos saldos bancários e a consequente assumpção pelo autor do valor excessivamente relacionado, constata-se que recaiu sobre o relacionamento dos saldos bancários uma decisão no âmbito do processo de inventário n.º 470/13.7T2ETR- J1 (ref.ª 87428355) - cfr. doc. n.º 2 junto à contestação da ré HH, a seguinte decisão:
a) quanto às contas bancárias tituladas pelos inventariados na Banco 1..., nos valores de 147,48 €, 16.471,49 €, 802,61 €, 68,86 €, 9.217,54 € e 26.035,14 € «estas têm de ser relacionadas na sua integralidade por pertencerem na totalidade ao acervo hereditário»;
b) no que se refere ao depósito no valor de 3.967,47 € titulado pelos inventariados e pelo cabeça de casal, aqui autor, no Banco 2..., «por ter três titulares (os dois inventariados e o cabeça de casal) deverá ser relacionado na proporção de 2/3 (dois terços) – cfr. art. 780.º, n.º 5, do Cód. Processo Civil)»;
c) por fim, os depósitos bancários na Banco 1... nos valores de 1.593,45 €34.019,25 € e 18.415,81 €, e no Banco 2... no valor de 15.061,42 €, todos titulados pelo inventariado e pelo cabeça-de-casal, «devem ser relacionados em metade do seu valor, por serem titulados pelo inventariado e pelo cabeça de casal.»
Pese ainda o autor considerar ter pago indevidamente tornas em face da conduta do seu então Ilustre Mandatário, certo é decorrer do mapa de partilha e a decisão que o homologou ter havido acordo alcançado pelo cabeça de casal e os demais interessados quanto à adjudicação dos bens, tendo a decisão homologada transitado em julgado (cf. doc. n.os 9, 11, 14, 15 e 17 junto à aludida contestação).
Da aludida situação decorre, tal como referido na decisão recorrida, “que o cabeça de casal teve integral intervenção nos autos inventariais, quer pessoal e diretamente, quer por intermédio do seu Ilustre Mandatário, a quem conferiu poderes gerais e especiais para o representar, assinalando-se que qualquer lapso comunicativo entre ambos sempre teria que ser discutido no âmbito da relação de mandato, não sendo oponível aos demais intervenientes no processo de inventário.”
Serve o exposto para dizer que tal matéria encontra-se abrangida pela autoridade do caso julgado.
“A autoridade do caso julgado, significa que transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele (…)” - artigo 619º, nº 1, CPC.
Assim, tal decisão torna-se imutável, inalterável, e já não apenas perante o órgão que a proferiu (cfr. artigo 613º, nº 1, CPC), mas também perante as demais instâncias (cfr. artigo 628º, CPC).
Essa autoridade do caso julgado é decorrente da uma exigência de boa administração da justiça, da funcionalidade dos tribunais e da salvaguarda da paz social, dando expressão aos valores da segurança e certeza inerentes a qualquer ordem jurídica: a res judicata obsta a que uma mesma acção seja instaurada várias vezes, impede que sobre a mesma situação recaiam soluções contraditórias e garante uma composição, tendencialmente definitiva, dos litígios que os tribunais são chamados a resolver; a intangibilidade (tendencial) do caso julgado visa evitar a existência de decisões, em concreto, incompatíveis.
Ou seja, a força e autoridade de caso julgado tem por finalidade evitar que a regulação jurídica da relação jurídica possa vir a ser apreciada diferentemente por outra decisão, com ofensa da segurança jurídica.
Esta imutabilidade e indiscutibilidade da decisão transitada em julgado, como «garantia processual de fonte constitucional enquanto expressão do princípio da segurança jurídica, própria do Estado de Direito (cit. artigo 2.º da Constituição)», manifesta-se, de acordo com a construção doutrinária e jurisprudencial do caso julgado:
a) Num efeito negativo e formal, que opera como excepção dilatória e que evita que o Tribunal julgue a acção repetida (entre os mesmos sujeitos e sobre o mesmo objecto processual) e reproduza ou contradiga a decisão anterior, nos termos dos arts.577º/i), 578º, 580º e 581º do C. P. Civil:
«Entre as mesmas partes e com o mesmo objeto (isto é, com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir), não é admissível nova discussão: o caso julgado opera negativamente, constituindo uma excepção dilatória que evita a repetição da causa (efeito negativo do caso julgado)».
Neste caso, a decisão anterior impede o conhecimento do objecto posterior.
b) Num efeito positivo e material, que opera no conhecimento de mérito da causa, através da autoridade do caso julgado, quando, apesar de existir identidade de sujeitos ou via equiparada a esta, se está perante objectos processuais distintos.
«Entre as mesmas partes mas com objectos diferenciados, entre si e ligados por uma relação de prejudicialidade, a decisão impõe-se enquanto pressuposto material da nova decisão: o caso julgado opera positivamente, já não no plano da admissibilidade da acção mas no do mérito da causa, com ele ficando assente um elemento da causa de pedir (efeito positivo do caso julgado)»
Este efeito «admite a produção de decisões de mérito sobre objectos materiais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão».
Neste caso, a decisão anterior vincula a decisão de mérito do distinto objecto posterior”, vide AC do STJ 24558/19.1T8LSB.L1.S1, Relator: FERNANDO BAPTISTA, de 15-09-2022, in www.dgsi.pt..
Em suma:
A excepção de caso julgado tem em vista o efeito negativo de obstar à repetição de causas, implicando a tríplice identidade a que se refere o artº 581º do CPC -, ou seja a identidade de sujeitos, pedido e a causa de pedir.
A autoridade de caso julgado visa o efeito positivo de impor a força vinculativa da decisão antes proferida [e transitada em julgado] ao próprio tribunal decisor ou a qualquer outro tribunal (ou entidade) a quem se apresente a dita decisão anterior como questão prejudicial ou prévia em face do «thema decidendum» na acção posterior.
A autoridade de caso julgado tem a ver com a existência de relações entre acções, já não de identidade jurídica (própria da excepção de caso julgado), mas de prejudicialidade entre acções, de tal ordem que julgada, em termos definitivos, uma certa questão em acção que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre essa questão ou objecto da primeira causa, se impõe necessariamente em todas as acções que venham a correr termos, ainda que incidindo sobre objecto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na acção posterior, vide acórdão da RP de 21-11-2016 [Proc.º n.º 1677/15.8T8VNG.P1, Desembargador Jorge Seabra, disponível em www.dgis.pt].
Ora, a vertente do pedido em que assenta a causa de pedir nestes autos está conexionado e assenta na ocorrência de um lapso no averbamento dos saldos bancários titulados pela inventariada à data da sua morte, pelo que apenas poderia ter sido objeto de partilha o valor de €27.694,06 e não o montante efetivamente partilhado.
Tal matéria, como acima foi referido, foi objecto de decisão no processo de inventário que apreciou e determinou o relacionamento dos saldos bancários, pelo que a questão se encontra ao abrigo do efeito da autoridade do caso julgado, não podendo agora sob a veste de uma acção do instituto do enriquecimento sem causa vir outra vez discutir a mesma questão e pôr em causa a decisão que sobre tal matéria já foi prolatada no âmbito do processo de inventário, aliás, diga-se, houve homologação da partilha com trânsito em julgado.
Em suma, aqui é de improceder o recurso por a matéria em causa se encontrar abrangida pela autoridade do caso julgado.
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Atento o exposto, é de dar parcial provimento ao recurso na parte relativa ao valor de €18.000,00, improcedendo no restante.
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IV. – Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a 3ª secção deste Tribunal da Relação do Porto em:
a) Em conceder parcial provimento ao recurso do Apelante, na parte relativa ao valor de €18.000,00, determinando-se o prosseguimento dos autos para apreciação da acção quanto esta parte.
b) Negar provimento ao restante recurso, mantendo-se a decisão recorrida em tal parte.
Custas pelo A/Apelado e Apelados de acordo com o decaimento – artigo 527º do Código de Processo Civil.
Notifique.

Porto, 20 de Março de 2025.
Álvaro Monteiro
Isabel Silva
Carlos Cunha Rodrigues Carvalho