EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RECUSA
PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
PRINCÍPIO DO PEDIDO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
Sumário

Sumário da responsabilidade da relatora (art. 644º, nº7 do CPC).
1. O devedor insolvente que não procedeu à entrega do rendimento disponível ao fiduciário, no período de cessão (terceiro ano), sabendo que tinha de o fazer porquanto foi expressamente advertido das obrigações que impendiam sobre si e das consequências da sua violação, age com negligência grave; em virtude desse facto, tendo os credores deixado de receber o valor que era devido, no montante de 812,43€, conclui-se que se mostra preenchido o condicionalismo previsto no artº 243º nº 1, al. a) do CIRE, tendo por referência a obrigação que decorre do art. 239.º, n.º 3, alínea b) i) e, justificando-se a prolação de decisão final de não concessão da exoneração do passivo restante.
2. Não é de molde a afastar essa conclusão a invocação, pelo insolvente, de dificuldades económicas impeditivas dessa estrega se não formulou no processo, no decurso do período de cessão, qualquer pretensão tendo em vista o aumento da quantia fixada inicialmente pelo tribunal como correspondendo ao rendimento indisponível, ponderando a invocada alteração superveniente de circunstâncias (mudança de residência de Portugal para o Reino Unido, com o consequentemente aumento do custo de vida), competindo-lhe o respetivo ónus de impulso processual (art. 3.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi do disposto no art. 17.º, nº1 do CIRE).
3. Não é admissível valorar a posteriori esses elementos, depois de findo o período de cessão, sob pena de se desvirtuar o caso julgado formado pelo despacho inicial e os efeitos já produzidos pelo mesmo, fora do contexto em que esse despacho pode ser alterado, a saber, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem alteração, à semelhança do que ocorre nos processos de jurisdição voluntária e por similitude de razões (art. 988.º do CPC) – cfr. ainda o art. 619.º, nº2 do CPC.

Texto Integral

Acordam as Juízas da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO
(i) Nos presentes autos de insolvência (por apresentação), em que foi declarada a insolvência de SB, nascida em 31-12-1975 [ [1] ] apelante, foi proferido despacho inicial relativo ao procedimento de exoneração do passivo restante em 11/11/2020, tendo sido excluído da cessão de rendimentos o valor correspondente a um e meio salários mínimos nacionais.
O segmento dispositivo desse despacho tem o seguinte teor:
“Pelo exposto, nos termos do art. 237.º, alínea b), e 239.º, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, admito liminarmente o incidente de exoneração do passivo restante e, em consequência: 
1) determino que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, designado por período de cessão, o rendimento disponível que a insolvente venha a auferir, atento o disposto no art. 239.º, n.º 3, do CIRE, seja cedido a fiduciário; 
2) fixo o valor para assegurar o sustento da insolvente em um e meio salários mínimos nacionais, consignando que o cálculo deste montante teve como pressuposto a ponderação da sua situação de desemprego, bem como critério de equidade do que necessita para a sua subsistência pessoal e do seu agregado familiar (que inclui dois filhos menores), com o mínimo de dignidade, atendendo às despesas que indicou nos autos e à posição do sr. administrador da insolvência;
3) nomeio fiduciário o Sr. Dr. FM, já nomeado administrador da insolvência; 
4) advirto a insolvente de que, durante o período da cessão, fica obrigada, nos termos do art. 239.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; 
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão        quando desempregada, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apta; 
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; 
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores. 
5) a exoneração será concedida uma vez observadas pela insolvente as condições previstas no art. 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas durante o período da cessão.
Custas do incidente pela massa insolvente (art. 303.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas). 
Publique e registe nos termos do art. 247.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. 
Notifique”.
Na mesma data o processo de insolvência foi declarado encerrado “por ser manifesta a inexistência de bens a liquidar, nos termos do art. 230.º, n.º 1, al. e), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas
Despacho notificado à própria insolvente [ [2] ] e ao mandatário respetivo por comunicação de 12-11-2020.
(ii) Em 02-02-2023 a insolvente apresentou requerimento em que, para além do mais, termina como segue:
6. Por fim comunica aos autos a sua morada actual no Reino Unido, conforme informação já comunicada ao Sr. Administrador de Insolvência:
(…)
REINO UNIDO”.     
Em 23-03-2023 o administrador da insolvência juntou aos autos requerimento dando nota de que:
- “[Q]anto ao montante em dívida pela insolvente perante a fidúcia (€170,66) desde, pelo menos, o início de 2022, foi finalmente regularizado em 02/02/2023”;
- “Será ainda de informar que, na data atrás referida [02-02-2023], também nos foi indicada a morada da insolvente no Reino Unido – o que também foi comunicado ao Tribunal:
(…)
Reino Unido”.     
Em 17-04-2023 foi proferido despacho com o seguinte teor:
Reqs. 02/02 e 23/03/2023: Visto. // Notifique a insolvente para, em 10 dias, entregar ao sr. fiduciário declaração emitida pela entidade empregadora comprovativa dos rendimentos auferidos. // Se antes não sobrevier razão para movimentar os autos, aguarde-se o prazo previsto no art. 240.º, n.º 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e, nada sendo consignado nos autos, notifique o sr. fiduciário para juntar ao processo informação a que alude aquele preceito legal, devendo comprovar dela ter dado conhecimento aos credores”.
Em 22-04-2023 o AI informou que “os rendimentos auferidos pela insolvente, no Reino Unido, ronda os €581,49 mensais, ao actual câmbio da Libra, de €1,12 por cada uma Libra”, indicando que essa informação foi certificada por documento emitido pela entidade empregadora e que dela deu conhecimento aos credores.
Por requerimento de 26-03-2024 e na sequência do despacho de 20-03-2024 [ [3] ], veio a insolvente comunicar nos autos “que já procedeu ao envio de comprovativos dos rendimentos auferidos desde Novembro de 2022 a Outubro de 2023, não dispondo de declaração e nota de liquidação de IRS de 2016 por não haver presente (por inexistência de rendimentos) da mesma reportada a esse ano, tudo com as demais consequências legais” (sic).       
(iii) Em 03-04-2024, o administrador da insolvência apresentou relatório anual sobre o estado da cessão, (art. 240.º, n.2 do CIRE), alusivo ao “terceiro ano do período de cessão” indicando, nomeadamente que:
Em consonância com a alteração legislativa operada pela Lei 09/2022 de 11 de janeiro, encontra-se terminado o período de cessão e, por conseguinte, requer seja proferida decisão final relativamente à concessão da exoneração do passivo restante à devedora. Conforme consta do presente relatório, levando em consideração o seu rendimento anual em euros, a devedora auferiu valores passiveis de cessão no total de 812,43 € e não efetuou a entrega de qualquer valor. No entanto, se levarmos em consideração o custo de vida do Reino Unido e o valor correspondente ao salário mínimo nacional daquele país, concluímos que a devedora auferiu valores bastante abaixo do correspondente ao mínimo necessário para subsistência no Reino Unido. // Assim, o signatário não se opõe que seja considerado que a devedora não auferiu valores passíveis de cessão de rendimento uma vez que a mesma auferiu rendimento anual abaixo de 23.407,49 € [(10,42£/hora x 40 horas x 4 semana x 1,17) x 12 meses] e que lhe seja concedida a exoneração do seu passivo restante” (sublinhado do texto).
Em 24-04-2024 foi proferido despacho determinando a notificação da insolvente para proceder ao pagamento “da quantia já apurada em dívida á fidúcia (€812,43), com a advertência de que o incumprimento poderá acarretar a recusa de exoneração do passivo restante” e que o pagamento “deverá ser comprovado nos autos”; mais se determinou que decorrido “o prazo concedido sem que nada seja consignado nos autos ou comprovado o pagamento, cumpra-se o disposto no art. 244.º” do CIRE.
O despacho foi notificado aos intervenientes processuais por comunicação de 29-04-2024 e, nada tendo sido dito, em 20-05-2024 foram notificados os intervenientes processuais para, no prazo de dez dias se pronunciarem, “querendo, sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante ao devedor”.
Na sequência dessa notificação, a insolvente apresentou, em 27-05-2024, requerimento com o seguinte teor, em síntese:
“Contudo, é de se referir que quando foi fixado rendimento indisponível no montante corresponde ao equivalente a 1,5 SMN, a devedora se encontrava a viver em Portugal” (art. 4.º); / 31. No entanto, a devedora atualmente trabalha e vive no Reino Unido, onde o custo de vida é superior que em Portugal, tendo naquele país como referência de salário mínimo nacional no ano de 2023 o montante de 1.950,62 € [10,42£/hora x 40 horas x 4 semana x 1,17], ou seja, 23.407,49 € anuais” (art.5.º); “E na verdade os seus custos de vida são muito mais elevados do que em Portugal, como é consabido genericamente até por força do Brexit” (art. 6); // “Conforme consta do relatório invocado, levando em consideração o seu rendimento anual em euros, a devedora auferiu valores passiveis de cessão no total de 812,43 € e não efetuou a entrega de qualquer valor” (art. 9). // No entanto, como refere o mesmo Sr. Administrador de Insolvência, se levarmos em consideração o custo de vida do Reino Unido e o valor correspondente ao salário mínimo nacional daquele país, concluímos que a devedora auferiu valores bastante abaixo do correspondente ao mínimo necessário para subsistência no Reino Unido” (art. 10). // “ Assim sendo a insolvente não vive mas sobrevive com esforço no Reino Unido, como e bem sustenta o Sr. Administrador de Insolvência, actualmente a Insolvente possui custo de vida genérico mais elevados do que em Portugal devendo, em consequência, ser reconhecida a exoneração do passivo com as demais consequências legais” (art.18).// “Tais custos de vida são de conhecimento geral” (art. 19).// “Caso assim não se entenda, e por mera hipótese académica, requer-se a prorrogação do prazo de exoneração, nos termos do artº 242 A do CIRE com as demais consequências legais” (art. 20). //Certo é que, em qualquer dos casos, a exoneração deve ser reconhecida face ao cumprimento, pela Insolvente, de todos os requisitos para tal” (art. 21).
Na sequência da mesma notificação, por requerimento de 03-06-2024 a credora Prime Credit 3, SARL, opôs-se à concessão da exoneração do passivo restante, invocando o incumprimento pela insolvente das obrigações a que estava sujeita, relativamente ao 3.º ano do período de cessão, que pelo fiduciário foi apurado como “rendimento total a ceder à fidúcia a quantia de €812,43”, “[c]ontudo, não foi entregue pela insolvente qualquer quantia à fidúvia” (arts. 2.º e 3.º), concluindo que “não deverá ser concedido a exoneração do passivo restante à insolvente, por violação do disposto no artigo 239º, nº4, alínea c) do CIRE” [ [4] ].
O administrador da insolvência não apresentou qualquer requerimento na sequência desse despacho.
(iv) Em 08-10-2024 foi proferida decisão final incidindo sobre o pedido de exoneração formulado pela insolvente, com o seguinte segmento dispositivo:
“Em suma, verificando-se que, durante o período de cessão, a devedora incumpriu o dever imposto nos n.ºs 2 e 4, alínea c) art. 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, decido, nos termos dos arts. 237.º, al. d), 244.º, n.ºs 1 e 2, e 245.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, recusar a exoneração definitiva do passivo restante de SB. 
*
Notifique, publique e registe (art. 247.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
*
Oportunamente, arquive”.
(v) Não se conformando, a insolvente apelou formulando as seguintes conclusões:
“II- DAS CONCLUSOES
87. A exponente usou, usa e usará no âmbito do seu quotidiano com a boa fé, o mesmo tendo em consideração no presente pleito, pelo que é da mais elementar injustiça a Sentença ora aduzida, o qual desvirtua, por completo, a realidade.
88. Foi uma má, injusta e infundada decisão de não concessão da    exoneração do passivo.
89. A mera omissão de não entrega ao fiduciário da parte dos rendimentos objecto de cessão por banda da devedora não implica de per si uma recusa de concessão de exoneração do passivo restante.
90. O incumprimento da devedora tem de resultar de uma concreta actuação dolosa ou gravemente negligente do seu comportamento, prejudicando por esse facto os credores. 
91. E a verdade é que não ocorreu qualquer actuaçao nesse sentido da devedora.         
92. Assim nos três anos da Insolvência ocorreu entrega de rendimento disponível no 1º ano, 
93. Não entrega, no 2º ano, de qualquer rendimento, por que não existiram.  
94. A questão coloca-se, assim, no terceiro ano onde não ocorreu a entrega de uns meros 812,43€
95. E quer a verdade é que quer a devedora quer o Sr. Administrador de Insolvência, em relatório aceite por todos os credores, apresentaram as razoes de impossibilidade de apresentação de tais valores. 
96. Conforme consta e fls dos autos, quando foi fixado rendimento indisponível no montante corresponde ao equivalente a 1,5 SMN, a devedora se encontrava a viver em Portugal.                    
97. No entanto, a devedora atualmente trabalha e vive no Reino Unido, onde o custo de vida é superior que em Portugal, tendo naquele país como referência de salário mínimo nacional no ano de 2023 o montante de 1.950,62 € [10,42£/hora x 40 horas x 4 semana x 1,17], ou seja, 23.407,49 € anuais.   
98. E na verdade os seus custos de vida são muito mais elevados do que em Portugal, como é consabido genericamente até por força do Brexit.                            
99. Mas para além disso, conforme documentos que anexou aos autos, aceites por todos, desde o final de Agosto de 2023 e até ao momento a exponente tem estado em algo equivalente à nossa Baixa Médica.                                     100. Conforme 11 documentos que anexou aos autos a exponente não estava apta para o trabalho (“You are not fit for work”), o que levou em 2024 a baixa de rendimentos.
101. Tais documentos foram emitidos por clínico Inglês de (…), local da residência da mesma e não impugnados por qualquer alma.                                
102. Ora tal baixa, conforme 2 documentos que anexou, determinaram perda de rendimento.     
103. Face a esta elevada perda de rendimento requereu, a exponente, inclusivamente, a alteração de rendimento disponível e acatamento do proposto pelo Sr. Administrador de Insolvência no sentido de nada ser devido à massa insolvente.
104. Certo é que, em todo o caso, justificou a razão de ser de não entrega do valor de € 812,43.
105. Tal invalida o que consta, por bastas vezes, na sentença onde é dito que neste 3 ano a exponente não justificou a razão de não entrega daquele valor,
106. Ficando, no entanto, claro dos autos o escrupuloso cumprimento no 1º e 2º ano do determinado judicialmente.    
107. Sendo que nesses anos trabalhou                                                  
108. E neste 3º ano estava de baixa, como comprovou nos autos mas foi ignorada pelo Tribunal.
109. Não teve condições para pagar o que quer que fosse.               
110. O despacho de que se recorre assenta numa errada apreciação da prova.              
111. Conforme resulta dos documentos juntos aos autos, a Insolvente sempre manteve uma profissão remunerada (devidamente comprovada nos autos) até estar de baixa (devidamente comprovada nos autos)
112. Os seus rendimentos neste 3º ano igualmente foram devidamente comprovada nos autos e justificativos da impossibilidade de pagamento da quantia referenciada nos autos. 
113. O Tribunal ignorou e omitiu as justificações, como se lê da sentença recorrida.
114. E até fez juízos de valor sobre 800,00€ num ano que, de acordo com o Tribunal recorrido, faria a insolvente viver acima das suas posses…                                                                          
115. O procedimento de exoneração do passivo restante corresponde a uma filosofia da «fresh start» em que ocorre a extinção das dívidas e a libertação do devedor por forma a que este não fique inibido de começar de novo e poder retomar a sua atividade económica. 
116. Durante o período de cessão, o devedor fica obrigado a mostrar uma conduta exemplar, designadamente, nos termos das als. a) e c), respetivamente, do nº4 do art.239º, a não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado e entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão – obrigações que a Insolvente cumpriu.  
117. A negligência grosseira corresponde à falta grave e indesculpável, que consiste na omissão dos deveres de cuidado, por não se ter usado daquela diligência que era exigida segundo as circunstâncias concretas, pelo que se exige um dever de prever um resultado como consequência duma conduta, em si ou na medida em que se omitem as cautelas e os cuidados adequados a evitá-lo.  
118. Tal comprovadamente não ocorreu.                                 
119. Para que se verifique um “prejuízo para os credores” necessário se torna a verificação de comportamentos que impossibilitem, dificultem ou diminuam a possibilidade de os credores obterem a satisfação dos seus créditos: uma diminuição do património, uma oneração do mesmo ou comportamentos geradores de novos dividas a acrescer àquelas que já integravam o passivo que o devedor já não conseguia satisfazer.                   
120. Tal comprovadamente não ocorreu.                                 
121. Como decorre dos autos, em termos concretos, a insolvente, sempre que notificada, prestou os esclarecimentos requeridos, as informações solicitadas, juntou os documentos pedidos e apresentou, inclusive, justificação para o facto de não ter procedido à entrega dos valores por si recebidos, sem que alguma vez se tivesse considerado injustificada a não entrega, conforme assumido pelo Sr Admnistrador de Insolvência que apos no seu relatório e foi por todos aceite.                                     
122. Acresce que, esta, quando confrontada com o incumprimento, agiu de forma esforçada e muito mais diligente, o que afasta o grau de censura que a negligência grave pressupõe. 123. Pois justificou com documentos tudo.                               
124. Ninguém os colocou em causa.                                       
125. Não subsistirão dúvidas de que na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições não foram tomadas em consideração.   
126. Pelo que, o comportamento da devedora, perante o exposto, e mesmo mencionado pela fiduciária, não reveste uma violação, com grave negligência, das obrigações que lhe foram impostas, e um consequente prejuízo da satisfação dos créditos sobre a insolvência.
 127. Como tal, não se verificando tais requisitos e, consequentemente, não se enquadrando a situação na al. a), do n.º 1, do art. 243°, do CIRE, aplicável por força do disposto no n.º 2, do art. 244.º, do mesmo diploma, deve ser concedida a exoneração do passivo restante do devedor, revogando-se, consequentemente, a decisão que a recusou                
128. É ainda de salientar que, ao longo do período de cessão, os documentos e esclarecimentos juntos aos autos, quer pela devedora, quer pela Exmª Fiduciária, nunca foram impugnados pelos credores, nem houve por parte destes qualquer oposição quanto aos valores cedidos, nem à forma da sua cedência, nem quanto às informações prestadas, ou seja, nenhum credor veio alegar que ficava prejudicado com os valores que se encontravam a ser cedidos pela Insolvente.
129. Tão pouco a Exmª Fiduciária se opôs à concessão definitiva da exoneração do passivo restante, sendo esclarecedora no sue relatório por todos aceite.                                                                
130. Aliás, notificados nos termos do artigo 244.º, n.º do CIRE, os credores não se pronunciaram e a Exmª fiduciária veio afirmar que, durante o período de cessão, a insolvente cumpriu os deveres do artº 239º do CIRE, designadamente o dever de informação e o dever de manter uma profissão remunerada, tendo cedido a favor da fidúcia os rendimentos disponíveis, nada tendo a opor à concessão da exoneração do passivo restante.                         
131. Nestes termos, deve proceder o recurso interposto, concedendo-se à Insolvente a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não foram integralmente pagos no processo.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO QUE V. EXA DOUTAMENTE SUPRIRÁ DEVE O PRESENTE RECURSO SER ADMITIDO E, EM CONSEQUENCIA, A DECISAO REVOGADA E EXONERAÇÃO DO PASSIVO RECONHECIDA A INSOLVENTE COM AS DEMAIS CONSEQUENCIAS LEGAIS.
PEDE E ESPERA DEFERIMENTO”
Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre apreciar.
II. FUNDAMENTOS DE FACTO
O tribunal de 1ª instância julgou relevantes as seguintes vicissitudes processuais que indicou resultarem dos autos e dos relatórios juntos [ [5] ]:
1. No primeiro ano do período de cessão de rendimentos a insolvente auferiu o rendimento disponível de € 170,66, que não entregou à fidúcia.
2. Por despacho de 15/02/2022, foi determinada a notificação da insolvente para proceder ao pagamento da quantia apurada em dívida à fidúcia ou apresentar proposta de regularização que se contivesse no período de cessão, com a advertência de que o incumprimento poderia acarretar a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
3. Em resposta, a insolvente solicitou uma moratória de 12 meses, o que foi indeferido por despacho de 24/03/2022.
4. Comunicada a falta de informação dos rendimentos auferidos pela insolvente no segundo ano do período de cessão, por despacho de 16/01/2023, foi determinada a notificação daquela para entregar ao sr. fiduciário comprovativos dos rendimentos auferidos desde Outubro de 2021, bem como cópia da declaração e nota de liquidação do IRS de 2021, com a advertência de que a falta de colaboração com o sr. fiduciário ou com o tribunal poderia acarretar a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante. 
5. A insolvente entregou à fidúcia o rendimento disponível auferido o primeiro ano do período de cessão em 02/02/2023.
6. No segundo ano do período de cessão, a insolvente não auferiu rendimento disponível.
7. Comunicada a falta de informação dos rendimentos auferidos pela insolvente no terceiro ano do período de cessão, por despacho de 20/03/2024, foi determinada a notificação daquela para entregar ao sr. fiduciário comprovativos dos rendimentos auferidos desde novembro de 2022 a outubro de 2023, com a advertência de que a falta de colaboração com o sr. fiduciário ou com o tribunal poderia acarretar a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante [ [6] ].
8. No terceiro ano do período de cessão, a insolvente auferiu o rendimento disponível de € 812,43, que não entregou à fidúcia.
9. Por despacho de 24/04/2024, foi determinada a notificação da insolvente para proceder ao pagamento da quantia apurada em dívida à fidúcia, com a advertência de que o incumprimento poderia acarretar a recusa da exoneração do passivo restante, nada havendo sido consignado nos autos no prazo concedido [  [7] ].
10. Na sequência do peticionado pela insolvente em 27/05/2024, foi proferido despacho em 11/06/2024, no qual se determinou novamente a notificação da insolvente para comprovar a entrega da quantia em dívida à fidúcia, documentando-a nos autos, sob pena de recusa da exoneração do passivo restante [ [8] ] [ [9] ].
11. Por requerimento de 24/06/2024, veio a insolvente requerer a alteração do rendimento indisponível, o que veio a ser indeferido por despacho de 11/07/2024, no qual se concedeu o derradeiro prazo de 5 dias para a insolvente regularizar a quantia em dívida à fidúcia [ [10] ] [ [11] ] [ [12] ].
12. Até ao presente, a insolvente não procedeu à entrega à fidúcia do rendimento disponível auferido no 3.º ano do período de cessão.
13. Nos presentes autos, foram reclamados e reconhecidos créditos no valor global de € 87.191,18.
III. FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelos apelantes e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 635.º e 639.º do CPC – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5.º, n.º 3 do mesmo diploma.
No caso, cumpre apreciar:
- Da verificação dos pressupostos para a recusa de exoneração do passivo restante do devedor, atento o disposto no art. 244.º do CIRE, diploma a que aludiremos sempre que não se fizer menção de origem, com a redação da Lei 9/2022 de 11-01, que se reflete na ponderação a fazer nos autos quanto à configuração do período de cessão.
2. O deferimento do pedido de exoneração do passivo restante acarreta a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida (art. 245.º, nº1), permitindo-se ao devedor “um novo começo (fresh start), recuperando assim da sua situação de insolvência” [ [13] ]. Esse foi, conforme expresso no preâmbulo do DL 53/2004, de 18/03, que aprovou o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, o objetivo do legislador.
Do outro lado da balança está o interesse do credor, o seu direito ao cumprimento, pretendendo-se harmonizar todos os interesses [ [14] ]. Como se referiu no Ac. RC. de 31/01/2012 a “exoneração” não se pode/deve aplicar aos devedores que se endividaram de forma completamente “leviana”, que se infere que não pensaram “duas vezes” quando se deram conta que era “fácil” obter um financiamento, que se recusaram a perceber que jamais iriam ter meios para liquidar as dívidas que estavam a contrair “levianamente”; a exoneração não pode/deve servir para, contraídas avultadas dívidas – para o rendimento e património de quem contrai tais dívidas –, se pretender, pura e simplesmente, nada pagar ou quase nada pagar [ [15] ]. 
Do disposto nos arts. 239.º a 248.º resulta que, proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante (art. 239.º, nº1) – o que significa que inexistia motivo para o indeferimento liminar do pedido de exoneração –, e decorrido o período de cessão (art. 239.º, nº2), é proferida a decisão final de exoneração (art. 244.º); sem prejuízo, casos há em que nem sequer se justifica aguardar pelo terminus do período de cessão porquanto ocorrem motivos para a cessação antecipada do procedimento de exoneração (art. 243.º).
Em ambos os casos, é sobre quem formula a pretensão de cessação antecipada ou de recusa que impende o ónus de alegar e provar a factualidade respetiva, que suporta essa pretensão; efetivamente, é isso que expressamente decorre da lei nos casos de cessação antecipada – “[a]ntes ainda de terminado o período de cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário” (art. 243.º, nº1, proémio) –, e, por remissão para esse regime, nos casos de decisão final de recusa – art. 244.º, nº2.
Os fundamentos para a não concessão da exoneração, quer esta ocorra antecipadamente ou apenas no final do período de cessão, são os taxativamente enunciados no art. 243.º [ [16] ], ex vi da conjugação dos referidos preceitos.
Sendo que, na previsão constante da alínea a), do número 1 do art. 243, para além da verificação do tipo objetivo – comportamentos do insolvente que importem violação das obrigações enunciadas no art. 239.º e dos quais resulte prejuízo para os credores, aferido com base no critério da causalidade adequada – exige-se um nexo de imputação subjetiva, isto é, comportamentos dolosos ou gravemente negligentes, afastando-se, pois, as hipóteses em que o insolvente age com mera culpa ou negligência.
É com este pano de fundo que se cuida aqui de saber se é correta a decisão final de não concessão da exoneração, com o fundamento apontado na decisão e que se subsume à hipótese contemplada na alínea a) do nº1 do art. 243.º.
3. Pelo despacho de 11-11-2020 foi determinado o encerramento do processo pelo que o termo inicial do período de cessão ocorreu em nessa data, o que nenhum interveniente processual discute, sendo o período de cessão de cinco anos, nos termos do art. 235.º, na redação anterior àquela introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11-01, que entrou em vigor em 11-04-2022 (art. 12.º da lei) e reduziu esse período para três anos.
O diploma é aplicável aos processos de insolvência pendentes à data da sua entrada em vigor, como consignado no n.º 1 do art. 10.º da Lei (“[r]egime transitório”), sem prejuízo do disposto nos seus números 3 e 4, como expressamente aí também assinalado.
Assim, “[n]nos processos de insolvência de pessoas singulares pendentes à data de entrada em vigor da presente lei, nos quais haja sido liminarmente deferido o pedido de exoneração do passivo restante e cujo período de cessão de rendimento disponível em curso já tenha completado três anos à data de entrada em vigor da presente lei, considera-se findo o referido período com a entrada em vigor da presente lei” (número 3), sendo que “[o] disposto no número anterior não prejudica a tramitação e o julgamento, na primeira instância ou em fase de recurso, de quaisquer questões pendentes relativas ao incidente de exoneração do passivo restante, tais como as referentes ao valor do rendimento indisponível, termos de afetação dos rendimentos do devedor ou pedidos de cessação antecipada do procedimento de exoneração” (número 4).
É por via da fixação de um regime transitório que o legislador resolve questões atinentes à sucessão de leis e, no caso, não se retira do referido regime transitório que o legislador tenha atribuído eficácia retroativa à LN [ [17] ]. Mesmo nas situações enquadráveis no disposto no número 3 do citado preceito, isto é, nos casos em que à data de entrada em vigor da LN ainda estava em curso o prazo respetivo, mas já se mostrava completado o período de três anos, o que daí decorre é que o juiz deve considerar findo o período de cessão com a entrada em vigor da lei nova; daí não decorre que o juiz se deva ater apenas ao período inicial dos três anos para avaliar da atuação do devedor, antes se devendo considerar que, nessas hipóteses, está em causa avaliação reportada a todo o período que decorreu até ao momento em que, por aplicação da LN, nos moldes enunciados, se considera findo o período em causa.
No caso, à data em que a LN entrou em vigor, estava em curso o 2.º ano do período de cessão pelo que, por aplicação da LN, o terminus do período de cessão (terceiro ano) ocorria em novembro de 2023.
Assim sendo, a aferição dos pressupostos para a recusa do pedido de exoneração, em sede de decisão final, deve ser feita ponderando a atuação do devedor nesse período de três anos (período de cessão) de novembro de 2020 a novembro de 2023.
4. Como resulta do processo, a insolvente cumpriu as obrigações que sobre si impendem nos dois primeiros anos do período de cessão, tendo regularizado a dívida relativa ao 2.º ano.
O mesmo não acontece, no entendimento da decisão recorrida, relativamente ao terceiro ano do período de cessão, sendo apenas este que está em discussão.
Tendo sido fixada à insolvente, perante a concreta situação de vida que à data apresentava, em novembro de 2020, o rendimento mensal indisponível de 1,5 SMN, temos por evidente que, alterando-se supervenientemente o circunstancialismo base dessa decisão, tinha a insolvente que dar nota dessa alteração no processo, peticionando o que tivesse por pertinente a esse respeito, o que não fez, competindo-lhe esse impulso (art. 3.º, n.º 1 do CPC, aplicável ex vi do disposto no art. 17.º, nº1 do CIRE).
Saliente-se que a data em que é formulado pedido de alteração corresponde ao momento processual relevante para aferir desse pedido e dos seus efeitos, em termos perfeitamente similares ao que acontece com a propositura da ação (cfr. os arts. 259.º e 260.º do CPC).
Uma das obrigações que impende sobre o devedor durante o período de cessão é a de informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência (art. 239.º, n.º 4, alínea d) obrigação que, no caso, o devedor cumpriu porquanto comunicou, em 02-02-2023, ter passado a residir no Reino Unido, limitando-se no entanto a essa indicação. Se a sua situação pessoal se alterou nessa data – para além da sua residência – de forma a justificar eventual alteração do valor fixado inicialmente e não olvidando ainda o disposto no art. 239.º, n.º 3, alínea b), iii) in fine, impunha-se que o devedor o desse a conhecer ao tribunal formulando, a esse propósito, a pretensão tida por pertinente, o que não fez, em tempo oportuno.
Efetivamente, quer o pedido de prorrogação do período de cessão, formulado pela apelante em 27-05-2024 (objeto de um indeferimento tácito pelo tribunal, conforme decorre do que supra se expôs no relatório, em (iii)), quer o pedido de alteração do rendimento indisponível, formulado em 24-06-2024 (objeto de indeferimento por despacho de 11-07-2024) foram deduzidos de forma intempestiva, porquanto apresentados, ambos, já depois do terminus do período de cessão, o que, acrescente-se, a apelante nem sequer impugnou, tendo transitado em julgado o despacho proferido em 11-07-2024.
Em suma, impera, nesta sede, o princípio do dispositivo, o que significa que o devedor tem inteira liberdade para formular, ou não, o pedido de exoneração, o que se estende, também, à conformação dessa instância incidental ao longo do período de cessão, não podendo o tribunal substituir-se ao devedor no exercício do impulso processual, sendo certo que, no caso, o devedor está assistido por mandatário judicial, profissional do foro a quem compete essa avaliação.
Neste contexto, que dizer da argumentação exposta nas alegações de recurso?
O que resulta dessa argumentação é que a apelante pretende colmatar aquela apontada omissão invocando que competia ao tribunal, na ponderação dos parâmetros de aferição da concessão/recusa da exoneração, em sede de decisão final, atender oficiosamente àquela circunstância – alteração superveniente da residência da insolvente – e a um conjunto de elementos que a apelante entende estarem associados à mesma – custo de vida em Portugal versus o custo de vida no Reino Unido e valor do SMN em Portugal versus o valor equivalente no Reino Unido –, para concluir que, no caso, a insolvente não agiu com dolo, nem com culpa grave, tendo indicado “as razões de impossibilidade de apresentação de tais valores” (cfr. as conclusões 89 a 98), reportando-se a apelante ao valor em falta, de 812,43€ (“uns meros 812,43€”, como refere na conclusão 94). Refira-se que esse montante foi o indicado pelo AI ponderando os valores dos rendimentos auferidos pela insolvente no terceiro ano do período de cessão e o valor fixado pelo tribunal no despacho inicial proferido em 11/11/2020 como correspondendo ao rendimento indisponível (I,5 SMN), não estando o mesmo em discussão – o que significa que não se mostra impugnado o valar global dos rendimentos auferidos pela insolvente nesse período, sendo o mais mera operação de cálculo aritmético. No entanto, ainda que constatando a falta desse pagamento, o AI indica nada ter a opor à concessão da exoneração com base, justamente, na ponderação daqueles elementos apontados pela insolvente – cfr. o relatório apresentado em 03-04-2024 e aludido supra em (iii).
Vejamos
Afigura-se-nos constituir um facto notório (art.º 412.º, nº1 do CPC), entendendo-se que um facto “é notório quando o juiz o conhece como tal, colocado na posição do cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas, nem a juízos presuntivos” [ [18] ], tratando-se de facto que o juiz pode conhecer (art.º 5.º, nº2, alínea c) do CPC) que  no Reino Unido, à data pertinente (grosso modo, 2023), o nível do custo de vida era mais elevado do que aquele que se verificava no nosso país, o que ainda atualmente acontece.
É também consensual que, em face do disposto no art. 239.º (“[c]essão do rendimento disponível”), nºs 2 e 3, não tendo o legislado fixado objetivamente qualquer limite mínimo alusivo ao valor do rendimento que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar (número 3, alínea b), i), deve reportar-se o mesmo ao montante correspondente à retribuição mínima mensal garantida (RMMG), criada pelo Dec. Lei n.º 217/74, de 27 de maio – anteriormente designada por salário mínimo nacional (SMN) ou retribuição mínima mensal (RMM) –, que em 2023 foi atualizada para o valor €760, com efeitos a partir de 1 de janeiro de 2023 (Decreto-Lei n.º 85-A/2022 de 22-12).
O conceito constitucional de “dignidade da pessoa humana” – art. 1.º da C.R.P. – é um conceito estruturante e assume projeção no plano económico e social. Assim, “a dignidade da pessoa exige condições económicas de vida capazes de assegurar liberdade e bem-estar”, refletindo-se, nomeadamente, na obrigação do Estado estabelecer e atualizar o salário mínimo nacional, nos moldes que resultam do art. 59.º, nº2 da C.R.P. “Daí, consequentemente, o direito das pessoas a uma existência condigna [art. 59.º, nº2, alínea a), in fine] ou a um mínimo de subsistência, numa dupla dimensão: Negativa – garantia de salário, impenhorabilidade do salário mínimo ou de parte do salário e da pensão que afecte a subsistência (...)”[[19] ].
Em consonância, por diversas vezes o TC tem sido chamado a pronunciar-se em casos em que se dirimiu o conflito entre o direito do cidadão devedor a uma existência condigna, que lhe é assegurada pelo fruto do seu trabalho, o salário e, portanto, do qual não pode ser (inteiramente) privado e, por outro lado, o direito do credor ao recebimento das quantias que aquele lhe deve, sendo que o TC, “tem feito uma utilização do princípio plena de consequências, associando-o, aí, à invocação e reconhecimento constitucional – com base na dignidade da pessoa humana – de um direito fundamental ao mínimo necessário para uma existência condigna” [ [20] ].
Sem prejuízo de se admitir que o valor da RMMG se aproxima do estrito limiar de sobrevivência sempre se dirá que foi esse valor, que não pode ter-se por simbólico ou irrisório no contexto do nosso país, aquele que foi fixado pelo legislador, servindo, pois, como valor de referência.
No Reino Unido, ainda que com contornos diferentes, vigora um quadro normativo similar, tendo por base o National Minimum Wage (NMW), incluindo o National Living Wage (NLW). Desde 1 de abril de 2023 e até março de 2024, o valor do NMW, para pessoas com idade superior a 23 anos é de £10.42, valor fixado por cada hora de trabalho [ [21] ], ou seja, ponderando o período de trabalho de 40 horas semanais é de £1.806 mensais; o que traduz um montante significativamente mais elevado daquele fixado em Portugal, de 760,00€ mensais em 2023, tendo por referência o período normal de trabalho, que é 8 horas diárias e 40 horas semanais (arts. 198.º e 203.º do Código do Trabalho), isto é, um valor de 4,32€/hora[ [22] ].
Do exposto não segue que seja admissível ao tribunal valorar a posteriori esses elementos, depois de findo o período de cessão, sob pena de desvirtuar o caso julgado formado pelo despacho inicial e os efeitos já produzidos pelo mesmo, fora do contexto em que esse despacho pode ser alterado, a saber, com fundamento em circunstâncias supervenientes que justifiquem alteração, à semelhança do que ocorre nos processos de jurisdição voluntária e por similitude de razões (art. 988.º do CPC) – cfr. ainda o art. 619.º, nº2 do CPC; neste tipo de processos, o caso julgado forma-se nos mesmos termos em que se forma nos processos de jurisdição contenciosa, “[o] que sucede é que, aqui, o caso julgado não possui o dom da irrevogabilidade. Qualquer resolução pode ser livremente alterada, embora haja transitado em julgado. (…) Esta instabilidade não vai ao ponto de prejudicar os efeitos que já tenha produzido a resolução anterior; esses efeitos subsistem. A nova resolução só exerce a sua eficácia em relação ao futuro” [ [23] ]. E, como se refere no acórdão do TRE de 16-03-2006, a “alteração não é oficiosa. Pressupõe um pedido de quem tem legitimidade processual, a que se segue uma avaliação dos factos e circunstâncias, apurados através do incidente próprio” [ [24] ].
O que a apelante pretende é que a 1ª instância profira um despacho com efeitos retroativos, porque atingindo uma situação jurídica que já se mostrava consolidada e que a apelante, em tempo oportuno, não cuidou de alterar, por via do incidente adequado, podendo fazê-lo.
Aduz ainda a apelante que desde o final de agosto de 2023 se encontra numa situação de baixa médica, “inteiramente comprovada nos autos”, o que levou, em 2024, a uma baixa de rendimento, mais aduzindo que juntou um conjunto de documentos “não impugnados por qualquer alma” (cfr. as conclusões 99 a 113).
O terceiro ano do período de cessão terminou no final de 2023, sendo, pois, irrelevante, para o efeito ora em apreço, a ponderação da situação económica da apelante em 2024; por outro lado, ao contrário do que refere a apelante, não está comprovada nos autos a factualidade aludida pela singela razão que esses documentos – documentos particulares, redigidos em língua inglesa, que não se mostram assinados – só foram juntos aos autos com o requerimento apresentado em 24-06-2024, nem sequer tendo sido notificados os credores para se pronunciarem sobre o mesmo, mas apenas ao AI, como supra se aludiu, proferindo imediatamente o juiz despacho de indeferimento, transitado; novamente, a insolvente não cuidou de introduzir nos autos essa matéria no momento temporal oportuno, isto é, logo que constatada a mesma e ainda no decurso do período de cessão.
Improcede, igualmente, essa argumentação.
No contexto apontado, temos de concluir que a insolvente agiu com negligência grave, pois descurou de forma flagrante a obrigação que sobre si impende, de entregar à fidúcia todo o seu rendimento disponível, nas condições que se mostravam fixadas sendo que, para além da notificação dirigida ao mandatário judicial, a própria insolvente foi igualmente notificada do despacho inicial proferido em 11-11-2020, pelo qual foi expressamente advertida de que durante o período de cessão tinha que entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão e que a exoneração só seria concedida se observadas as condições previstas no art. 239.º.
Não podendo o tribunal valorar o circunstancialismo invocado pela apelante, pelas razões já expostas, falece a argumentação de que a omissão de entrega do valor em causa se ficou a dever a “razões de impossibilidade de apresentação de tais valores” (conclusão 95) ou que a insolvente não pagou os referidos 812,43€ porque “[n]ão os tinha” (art. 59 do corpo das alegações), inexistindo quaisquer elementos de facto que permitam suportar essa alegação.
Acresce que, como decorre do que se referiu, a insolvente foi sendo sucessivamente alertada pelo tribunal para a necessidade de proceder a esse pagamento, com advertência de que o incumprimento era suscetível de acarretar a prolação de decisão de recursa de exoneração, como decorre dos despachos proferidos em 20-03-2024, 24-04-2024, 11-06-2024 e 24-06-2024, sem qualquer resposta positiva da apelante, que, insiste-se, está representada por profissional do foro.
Assim, não tendo a insolvente procedido ao pagamento integral da quantia fixada pelo tribunal, comprovando-se estar em falta o montante de 812,43€, tem de concluir-se que agiu, no mínimo, com grave negligência, não podendo ignorar que estava adstrita ao cumprimento da decisão e consequente dever de entrega dessa quantia, segundo as regras da experiência comum e de acordo com o comportamento exigível a um cidadão médio, sendo evidente o prejuízo causado aos credores, exatamente na medida correspondente ao valor que a devedora deixou de entregar e aqueles de receber – sendo que se trata de quantia que não pode ter-se como irrisória  –, bem como o nexo de causalidade entre aquela conduta e esse prejuízo.
Em suma, o devedor insolvente que não procedeu à entrega do seu rendimento disponível ao fiduciário, no período de cessão (terceiro ano), invocando dificuldades económicas para assim justificar a omissão, mas não formulou no processo, nesse período, qualquer pretensão tendo em vista o aumento da quantia fixada inicialmente pelo tribunal como correspondendo ao rendimento indisponível, ponderando a invocada alteração superveniente de circunstâncias (mudança de residência de Portugal para o Reino Unido, com o consequentemente aumento do custo de vida), competindo-lhe o respetivo ónus de impulso processual, como já se analisou, age com negligência grave. Em virtude desse facto, tendo os credores deixado de receber o valor que era devido, no montante de 812,43€ (oitocentos e doze euros e quarenta e três cêntimos), conclui-se que se mostra preenchido o condicionalismo previsto no artº 243º nº 1, al. a) do CIRE, tendo por referência a obrigação que decorre do art. 239.º, n.º 3, alínea b) i) e, justificando-se a prolação de decisão final de não concessão da exoneração do passivo restante.
*
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário (art. 527.º, n.º 1  do CPC).
Notifique.

Lisboa, 11-03-2025
Isabel Fonseca
Fátima Reis Silva
Manuela Espadaneira Lopes

Voto Vencido:
A signatária não acompanha o sentido decisório e a fundamentação do Acórdão, pelos seguintes fundamentos:
- À insolvente, solteira e com dois filhos menores, foi fixado o valor para assegurar o seu sustento em um e meio salários mínimos nacionais.  É certo que a insolvente não recorreu deste despacho, o qual transitou em julgado, mas, em meu entender e conforme se decidiu no Ac. da RE de 13/02/2020, proc. 482/12.8TBACN.E1, in www.dgsi.pt, «nada disso impede que, no momento da prolação da decisão final da exoneração, se pondere a exiguidade do mesmo valor e a extrema dificuldade ou, mesmo, incapacidade que qualquer pessoa nas circunstâncias da recorrente sentiria para, com ele, assegurar as despesas quotidianas, mesmo num período em que é suposto diminuir-se estas últimas àquilo que seja indispensável para o “sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar” referido no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), ponto i). Tal ponderação não visa, obviamente, fixar um novo valor, mas sim ajuizar sobre a exigibilidade de uma actuação diferente daquela que a recorrente teve no decurso do período da cessão no que toca à falta de entrega, ao fiduciário, de parte das quantias a que se encontrava obrigada, pelo que não está em causa a força de caso julgado do despacho inicial.»;
- em 02/02/2023, a insolvente comunicou que passou a viver no Reino Unido e como se refere na fundamentação do Acórdão, é facto notório que o nível do custo de vida no Reino Unido era (e é) mais elevado do que aquele que se verificava no nosso país;
-  a insolvente entregou à fidúcia o rendimento disponível auferido do primeiro ano do período de cessão, no segundo ano não auferiu rendimento disponível e o montante apurado em relação ao terceiro ano – de Novembro de 2022 a Outubro de 2023 - é de € 812,43, montante que não entregou ao fiduciário;
- não obstante a comunicação que a sua residência passou a ser no Reino Unido, o cálculo do montante a ceder pela insolvente no ano de 2023 continuou a ser efectuado tendo por referência a remuneração mínima mensal garantida em Portugal e não o equivalente no Reino Unido a tal remuneração - National Minimum Wage (NMW) -, que, tal como também se refere na fundamentação do Acórdão, é em montante significativamente mais elevado daquele fixado em Portugal;
- nos autos, foram reclamados e reconhecidos créditos no valor global de € 87.191,18.
- In casu, atendendo a tudo o que supra ficou referido e à gravidade das consequências para a devedora da recusa da exoneração, entendo que viola o princípio da proporcionalidade consagrado no artº 18º, nº2, da Constituição da República Portuguesa, que se desdobra em três sub-princípios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos) – cfr. Acs. TC n.º 187/2001, de 2 de Maio, n.º 632/2008, de 23 de Dezembro e n.º 360/2016, de 8 de Junho de 2016, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ - a recusa da exoneração do passivo restante.
Assim, teria concedido à insolvente a aludida exoneração.
Manuela Espadaneira Lopes

_______________________________________________________
[1] Conforme assento de nascimento junto com a petição inicial em que se apresentou à insolvência, em 10-08-2020.
[2] Por carta dirigida para a sua morada, indicada no cabeçalho da petição inicial, a saber, Rua (…).
[3] Despacho referido nos factos que a 1ª instância deu por assentes (cfr. o número 7).
[4] No corpo das alegações de recurso é indicado:
15. Face ao que consta nos autos e CITIUS não se vislumbra fundamento para ser dito que ocorreu oposição à concessão de exoneração por um credor em 11/11/2020. // 16. A decisão não é assim correcta. // 17. Ninguém se opôs à concessão da exoneração do passivo”.
O que não está correta é a alegação referida e não a decisão – pese embora, no relatório, a 1ª instância não tenha cuidado de datar o requerimento de oposição do credor –, inexistindo, aliás, qualquer requerimento com data de 11-11-2020; essa data (11-11-2020) é a data de prolação do despacho inicial e do despacho de encerramento do processo.                   
[5] Que esta Relação indica sob a numeração agora aposta.
[6] O despacho proferido tem o seguinte teor:
Req. 11/03/2024: Notifique a insolvente para, no prazo de 10 dias, entregar ao sr. fiduciário comprovativos dos rendimentos auferidos desde Novembro de 2022 a Outubro de 2023, bem como cópia da declaração e nota de liquidação do IRS de 2016, com a advertência de que a falta de colaboração com o sr. fiduciário ou com o tribunal poderá acarretar a recusa da exoneração do passivo restante. // Decorrido o prazo concedido, notifique o sr. fiduciário para informar os autos se lhe foram entregues os documentos em falta e, se for caso disso, apresentar o relatório a que alude o art. 240.º n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas”.
Notificado esse despacho, por comunicação de 21-03-2024, veio a insolvente apresentar requerimento, em 25-03-2024 indicando, nomeadamente que: “[e]m sua conformidade vem, muito respeitosamente, confirmar já haver informado o Sr Administrador de que estava a reunir a documentação para dar cumprimento ao determinado. Sem prejuízo, por estar a residir na Inglaterra requer prazo adicional ao inferior a 20 dias para tal cumprimento, dada a dificuldade logística na recolha e envio da informação. Por fim, como não residente, não apresenta a expoente declarações de IRS indo requerer à Autoridade Tributária a Certidão Negativa de molde a dar cumprimento ao ordenado”.
E em 26-03-2024 a insolvente apresentou o requerimento aludido supra, no relatório.
No corpo das alegações de recurso, depois de aludir ao despacho referido no número 7 dos factos provados, a apelante alega como segue:
22. Mas não é dito que, no dia seguinte a tal despacho, haver sido afirmado pela exponente que, face ao Despacho, e “Em sua conformidade vem, muito respeitosamente, confirmar (…)” // 23.          E que no dia 26 de Março, ou seja dois dias após o Despacho, comunicou aos autos “que já procedeu ao envio de Comprovativos dos rendimentos auferidos desde Novembro de 2022 a Outubro de 2023, não dispondo de declaração e nota de liquidação do IRS de 2016 por não haver presente (por inexistência de rendimentos) da mesma reportada a esse ano, tudo com as demais consequências legais” // 24. Estranhamento nada é dito na Sentença de cumprimento ao solicitado na sentença mas ao invés é aposto unicamente o teor do Despacho. // 25. Ou seja, nestes dois primeiros anos (de 3) nada há a apontar à exponente”.
Ou seja, as datas indicadas pela apelante (“no dia seguinte”/ “dois dias depois”) não estão corretas e a circunstância do tribunal de 1ª instância não ter aludido a esses requerimentos e, apenas, ao despacho, não pode causar qualquer estranheza, uma vez que estamos perante vicissitudes processuais que os autos documentam e que, portanto, são relevantes independentemente de qualquer outra específica referência.                
[7] O despacho foi proferido imediatamente a seguir ao relatório anual sobre o estado da cessão apresentado, em 03-04-2024, pelo administrador da insolvência, a que supra se aludiu no relatório.
[8] Requerimento (de 27-05-2024) a que supra se aludiu no relatório.
[9] O despacho (de 11-06-2024) tem o seguinte teor:
“Reqs.27/05 e 03/06/2024: Atendendo ao teor do despacho de 24/04/2024 e considerando que a insolvente, em momento algum, no decorrer do período de cessão de rendimentos, requereu a alteração do rendimento indisponível, notifique-a, novamente, para, em 5 dias, comprovar a entrega da quantia em dívida à fidúcia, documentando-a nos autos, sob pena de recusa da exoneração do passivo restante”.
O despacho foi notificado aos intervenientes processuais por comunicação de 12-06-2024 e na sequência do mesmo veio a insolvente apresentar o requerimento de 24-06-2024.
[10] No requerimento de 24-06-2024 a insolvente repete, em parte, a alegação já vertida no requerimento de 27-05-2024, e alega ainda que, “para além disso, conforme documentos que ora consegue anexar aos autos, desde o final de Agosto de 2023 e até ao momento a exponente tem estado em algo equivalente à nossa Baixa Médica” (art. 4.º), juntando documentos, “emitidos por clínico inglês de (…), local da residência da mesma” (art. 6), o que determinou a perda de rendimento (art. 7); termina o requerimento como segue:
8. Face a esta elevada perda de rendimento requer-se a alteração de rendimento disponível e acatamento do proposto pelo Sr. Administrador da Insolvência no sentido de nada ser devido à massa insolvente”.
Com esse requerimento juntou documentos.      
[11] O despacho tem o seguinte teor:
Req. 24/06/2024: O pedido ora formulado de alteração do rendimento indisponível, realizado após o termo final do período de cessão, mostra-se intempestivo, pelo que se indefere. // Sem prejuízo, concede-se à insolvente a derradeira oportunidade de, no prazo de 5 dias, comprovar a entrega da quantia em dívida à fidúcia, documentando-a nos autos, sob pena de recusa da exoneração do passivo restante”.
O despacho foi notificado à insolvente por comunicação de 12-07-2024 e não foi impugnado pela insolvente.
Nada sendo dito pela insolvente e na sequência de determinação do tribunal (despacho de 12-09-2024) o AI informou nos autos, em 20-09-2024 que “a devedora não efetuou, até ao momento, a entrega dos valores objeto de cessão”.   
[12] O requerimento foi notificado ao AI e logo a seguir foi proferido o despacho de 24-06-2024.
[13] Luís Menezes Leitão, Direito da Insolvência, Almedina, Coimbra, 2009, p.319.   
[14] Lê-se no nº 45 do preâmbulo que “o Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência (…) é agora também acolhido entre nós, através do regime da "exoneração do passivo restante”.
[15] Proferido no proc. 3638/10.4 TJCBB-G.C1 (Relator: Barateiro Martins), acessível in www.dgsi.pt., como todos os demais a que aqui se fizer referência.
[16] Artigo 243.º
Cessação antecipada do procedimento de exoneração
1 - Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
2 - O requerimento apenas pode ser apresentado dentro do ano seguinte à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respectiva prova.
3 - Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.
4 - O juiz, oficiosamente ou a requerimento do devedor ou do fiduciário, declara também encerrado o incidente logo que se mostrem integralmente satisfeitos todos os créditos sobre a insolvência
[17] “Do até aqui exposto retira-se:
- que o princípio da não retroactividade não tem força de princípio constitucional senão no domínio do direito penal, pelo que o legislador ordinário bem pode dar às leis que edita eficácia retroactiva;
- que o legislador pode resolver os problemas suscitados pela sucessão de leis mediante disposições transitórias;
- que na grande maioria dos casos a lei nada estabelece quanto à sua “aplicação” no tempo” (Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, 2011, Coimbra: Almedina, p. 231.
[18] Acórdão do TRC de 22-06-2010, processo: 1803/08.3TBVIS.C1 (Relator: Carvalho Martins).
Cfr., ainda Luís Filipe Pires de Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 2013, Coimbra: Almedina, p. 74, no sentido de que o facto notório “vale de per si, não requerendo a formulação do nexo lógico ínsito à presunção. Também não é confundível com as máximas da experiência porquanto estas (neste enfoque) constituem regras para valorar factos e não factos”, apontando, como um dos exemplos de facto notório “a inflação”.            
[19] Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, pp. 88-89.
[20] Jorge Reis Novais, Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa, Coimbra Editora, Coimbra, 2011, Reimpressão, p. 66.
[21] Cfr. os elementos de informação disponíveis no site do governo do Reino Unido, in  https://www.gov.uk/government/publications/the-national-minimum-wage-in-2023/the-national-minimum-wage-in-2023 (consultado em 21-02-2025).
[22] À taxa de câmbio média anual do euro em 2023 (cfr. o site bpstat.bportugal.pt) a quantia de 1.806,00 libras equivale a 2.075,37€.  
[23] Alberto dos Reis, Processos Especiais, 1982, vol. III, Coimbra, Coimbra Editora, p. 403.   
[24] Processo 150/06-3 (Relator: Bernardo Domingos). Cfr., ainda, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, CPC Anotado, vol. II, p. 428, notas 1 e 2.