INVENTÁRIO
REMESSA PARA OS MEIOS COMUNS
RECLAMAÇÃO
COMPENSAÇÃO
CÔNJUGES
Sumário

I- Eventuais insuficiências da matéria de facto não sustentam nulidade da sentença, mas haverão de ser invocadas em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
II- Tendo sido completamente omitida a indicação das passagens gravadas dos depoimentos em que o recorrente sustenta a prova dos factos impugnados, e não tendo sido feita, também, qualquer transcrição na parte relevante de tais depoimentos, não se podem considerar cumpridos os ónus de impugnação (art.640.º n.º 2 a) do CPC), impondo-se nessa parte a rejeição do recurso de impugnação da decisão de facto.
III- São pressupostos da remessa dos interessados para os meios comuns a complexidade da matéria de facto subjacente à questão, da qual decorra inconveniência na apreciação por implicar redução das garantias das partes, pelo que, não justifica ou legitima o tribunal a remeter os interessados para os meios comuns a complexidade jurídica da questão (que pode não estar associada à complexidade de facto), nem qualquer inconveniência que se não traduza na redução da garantia das partes, v.g. uma inconveniência meramente processual por impor uma decisão mais demorada ou mais extensa produção de prova;
IV- Sendo função do processo de inventário a partilha dos bens, é-lhe inerente a apresentação da relação dos bens a partilhar, decorrendo daí o direito dos interessados dela reclamarem, para o que dispõem do prazo de 30 dias (art.1104.º n.º1 d) do CPC), correndo a favor dos demais não reclamantes igual prazo de 30 dias para responderem, devendo as provas ser indicadas com tais requerimentos (art.1105.º) e as questões são decididas depois de efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz.
V- Face a tal legal tramitação, com prazo de 30 dias, quer para apresentar reclamação quer para a resposta à mesma, prevendo a lei que sejam produzidas as provas necessárias, podendo o juiz, por isso, se entender pertinente, determinar a realização das diligências probatórias convenientes, sem sujeição às indicadas, há que concluir que apenas em casos excecionais as questões aportadas pela reclamação à relação de bens, não poderão ser cabalmente apreciadas no inventário e justificam a remessa para os meios comuns.
VI- A falta de prova, no sentido de que embora produzida não determinou convicção positiva dessa factualidade não é razão para a remessa para os meios comuns, pois se a eventual falta de prova sobre certos factos (ou a aliada falta de convencimento do tribunal), justificasse a remessa para os meios comuns, estaríamos a erigir tal facto em requisito da remessa não previsto legalmente.
VII- É injustificada a decisão de remeter os interessados para os meios comuns após a produção integral da prova, sem que nada haja que demonstre qualquer intenção das partes em ver produzidas outras provas, e não se patenteando sequer que numa ação comum as partes lograssem produzir outras provas que não tenham carreado para o inventário ou que para ele não pudessem carrear com a mesma diligência de uma ação comum.
VIII- A compensação prevista no art.1676.º n.º2 do Código Civil tem em vista tornar efetiva, após a dissolução do casamento, a paridade entre os cônjuges no cumprimento do dever de assistência a que estão vinculados (n.º1 do mesmo artigo), em casos em que se pateteie ter ocorrido, durante o casamento, uma contribuição de um deles, para os encargos da vida familiar consideravelmente superior ao que seria devido por esse cônjuge de harmonia com as suas possibilidades.
IX-O direito à compensação depende da prova de factos que demonstrem que se verifica por parte de um dos cônjuges uma contribuição consideravelmente superior para os encargos da vida familiar e que dessa contribuição decorre uma renúncia excessiva à satisfação dos interesses desse cônjuge, renúncia essa que lhe causou prejuízo importante, exigindo-se a demonstração desses dois nexos causais (dupla causalidade).

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I-Relatório
1-A… instaurou processo de inventário, para partilha dos bens comuns do ex-casal que formou com B…, invocando que existem bens comuns e não há acordo na partilha.
2- O cabeça de casal B…apresentou a relação de bens com 16 verbas todas constituídas por bens móveis (loiças e utensílios de cozinha).
3- A interessada A…reclamou da relação de bens com os seguintes fundamentos:
- as verbas 1 e 2 estão descritas de forma incompleta, devendo ser acrescentado na descrição das mesmas que estes serviços de jantar e de café são “modelo PRAGA”.
-os bens móveis já relacionados estão subavaliados;
- omissão dos seguintes bens:
A- Fracção Autónoma destinada a habitação tipo T2 com um lugar de estacionamento e arrecadação com duas divisões, designada pela letra O, pertencente ao prédio urbano sito na Rua…., freguesia de…., concelho do Funchal, inscrito na respectiva matriz sob o art…º, e descrito na CRPredial do Funchal sob o n.º…, adquirido pelo casal na constância do casamento (cfr. escritura pública de 13 de Abril de 2000, outorgada no Cartório da Notária ..., no Funchal, e respectiva certidão matricial, em anexo);
B- um veículo automóvel da marca Volkswagen, modelo Polo, com a matricula…., em posse da aqui Requerente (cfr. Documento Único Automóvel em anexo);
C- um veículo automóvel da marca Opel, modelo Frontera, com a matricula…, em posse e averbado em nome do Cabeça de Casal, com respectivos documentos;
D- Poupança associada à conta nº…, do Banco Santander Totta, titulada pela Requerente e pelo Cabeça de Casal, e que apresentava o saldo de €22.094,15 no inicio de Fevereiro de 2018 (cfr. extracto bancário anexo), saldo esse actualmente todo na posse do Cabeça de Casal, que o levantou à revelia da Requerente;
E- Bens móveis que compõem o recheio da Habitação, que descreveu.
- deverá ser também relacionado um crédito de compensação pela “contribuição consideravelmente excessiva para os encargos da vida familiar” a favor da aqui Interessada, nos termos do disposto no art.1676º, nº 2, do C. Civil, a fixar tendo em conta juízos de equidade.
4- Respondeu o cabeça de casal aceitando que seja aditada à descrição dos bens que relacionou a expressão “praga”, mas mantendo os valores destes bens que indicou; e quanto à invocada falta de bens dizendo que os bens mencionados em A) a E) da reclamação não foram relacionados porque, não obstante terem sido adquiridos durante o casamento, constituem bens próprios do Cabeça-de-Casal pois foram adquiridos com o dinheiro que este recebeu de herança dos seus pais; mas, quanto aos bens móveis (E) aceita relacionar: a) Uma torradeira; b) Varinha mágica; c) Dois tabuleiros de forno em branco; d) Relógio de parede; e) Faqueiro com base em madeira com 6 facas de cozinha. No mais, impugna a factualidade alegada pela requerente na qual esta suporta o crédito de compensação, aduzindo ainda que sempre teve outros rendimentos, inclusive provenientes de rendas de prédios, e sempre pagou despesas da casa;
5-Respondeu a requerente, dizendo que também tinha poupanças que levou para o casamento e foram aplicadas na aquisição dos bens comuns.
6- Produzida a prova foi proferida decisão, a qual veio a ser anulada por acórdão deste tribunal que anulou o julgamento da decisão de facto, bem como a sentença, e ordenou que fosse proferida nova sentença na qual devia constar a fundamentação de facto (factos provados e/ou não provados), análise crítica da prova aplicando-se o direito em consonância.
7- Veio então a ser proferida nova sentença que decidiu o seguinte:
“Nestes termos, decide-se remeter os interessados para os meios comuns, no que concerne à reclamação relativa à verba relativa às contas bancárias, não incluindo no inventário o referido bem.
(…)
Em face do exposto a factualidade alegada como fundamento do direito à compensação pela “contribuição consideravelmente excessiva para os encargos da vida familiar” é bastante complexa e de difícil indagação, não se coadunando com a prova sumária que nos é aqui permitido realizar, pelo que a questão suscitada não pode ser decidida em consciência neste inventário, por carecer de larga, aturada e complexa indagação, implicando a decisão nestes autos a redução das garantias das partes, pelo que nos abstemos de proferir decisão, relegando os interessados para os meios comuns a fim de aí definirem os direitos em conflito, nos termos do art 1105.º e 1093.º do Código de Processo Civil. (ver neste sentido o Ac. da RL, 14.04.2011).
III. Decisão:
Nestes termos, julgo a reclamação deduzida pela Interessada A…parcialmente procedente, por provada, e em consequência:
a) Aditar às verbas 1 e 2 da Relação de Bens a descrição modelo “Praga”;
b) Aditar à relação de bens, uma fração autónoma, destinada a habitação, tipo T2, com 1 lugar de estacionamento e arrecadação com duas divisões, designada pela letra O, pertencente ao prédio urbano sito na Rua …, freguesia de…., concelho do funchal, inscrito na respetiva matriz sob o art…. e descrito na CRP do Funchal sob o nº…., adquirida pelo casal na constância do casamento, como bem comum;
c) Aditar à relação de bens, um veículo automóvel da marca Volkswagen, modelo Polo, com matricula…., adquirido na constância do matrimónio, o qual se encontra na posse da interessada, como bem comum;
d) Aditar à relação de bens um veículo automóvel da marca Opel, modelo Frontera, com a matrícula…., adquirido na constância do casamento, em posse do cabeça de casal, como bem comum;
e) Aditar à relação de bens os bens móveis, que compõem o recheio da habitação que foi morada de família, melhor descritos no requerimento reproduzido nos autos;
f) Relego para a conferência de interessados a decisão sobre os valores (dos bens) impugnados pela Interessada Reclamante, sem prejuízo de a Interessada declarar nos autos a sua concreta intenção de requerer a avaliação dos bens, caso em que a avaliação será determinada previamente à marcação da conferência de interessados.”
*
8- Dessa sentença recorre a requerente A…, recurso que termina com as seguintes conclusões:
A-) Discorda a Recorrente do tribunal a quo relativamente à sentença aqui recorrida que determinou: relativamente à poupança associada à conta bancária nº…, do Banco Santander Totta, “decide-se remeter os interessados para os meios comuns, no que concerne à reclamação relativa à verba relativa às contas bancárias, não incluindo no inventário o referido bem.”; e relativamente ao crédito de compensação, requerido nos termos do art. 1676º, nº 2, do CCivil, que “nos abstemos de proferir decisão, relegando os interessados para os meios comuns a fim de aí definirem os direitos em conflito, nos termos do art 1105.º e 1093.º do Código de Processo Civil.”;
B-) Entende a Recorrente que a decisão recorrida avaliou erradamente a prova documental e testemunhal produzida em audiência de julgamento, tendo ignorado documentos autênticos e particulares não impugnados, bem como a produção de extensa prova testemunhal indicada pelas partes que teve lugar nas várias audiências de discussão e julgamento, o que acabou por inquinar a sentença recorrida quanto à matéria de facto que deveria ter sido dada como provada, bem como à aplicação correcta das normas atinentes à mesma;
C-) Defende que se o Tribunal Recorrido entendia que existia complexidade de prova que justificava a remessa das partes comuns quanto a estas duas questões, tal decisão deveria ter sido tomada antes da extensa produção de prova efectuada pelas partes, e não no momento em que foi proferida sentença relativamente às diversas questões levantadas pela reclamação da ora Recorrente, não sendo, de todo, aceitável esta decisão do tribunal recorrido, nem que seja apenas por uma questão de economia processual;
D-) Não se justifica a remessa para os meios comuns com o argumento de uma pretensa diminuição das garantias das partes quanto ao direito a um processo justo e equitativo, uma vez que os prazos do incidente para apresentação da reclamação da relação de bens e respectiva resposta são agora ambos de 30 (dias) – igual prazo ao de contestação nos meios comuns -, podendo, nesse prazo, as partes lançar mão de todos os meios de prova – nomeadamente testemunhal, documental e por requisição - que julguem necessários à defesa dos seus direitos nos mesmos termos que no processo comum, bem como o Tribunal, oficiosamente ou a requerimento das partes, pode ordenar a produção de prova que entenda pertinente para tomar essa decisão.
E-) Entende a Recorrente que da prova documental e testemunhal produzida em audiência em audiência de julgamento do presente incidente foi produzida prova suficiente (ou, pelo menos, foi dada oportunidade às partes para produzir nos presentes Autos a prova – nomeadamente, documental, e por depoimento das partes – que considerassem adequada e/ou possível para tentarem fazer valer as suas posições),
F-) Não se compreende nem se considera aceitável que a decisão das questões colocadas (relativamente à poupança bancária e ao peticionado crédito de compensação) tivessem sido remetidas pela sentença recorrida para os meios comuns já depois de produzida a prova documental e testemunhal trazida pelas partes para os Autos, e que também versou sobre as matérias relativas a essas questões, para mais quando tal produção de prova foi de tal modo extensa que foi produzida ao longo de sete sessões de audiência de discussão e julgamento, pelo que deu plena oportunidade às partes de discutir e produzir toda prova que entendessem por conveniente quanto a estas duas questões, e não houve qualquer redução das normais garantias das partes, nomeadamente quanto à produção de prova e discussão dos factos e direitos em causa;
G-) Deve ser rectificada a matéria de facto dada como provada em 3-), e aditados a essa mesma matéria, pelo menos, os pontos 5-), 6-), 7-), 8-), 9-) e 10-) nos termos infra indicados, ou seja:
“3- Por sentença datada de 11 de Fevereiro de 2020, foi decretado o divórcio entre a requerente e o cabeçade-casal, tendo sido declarado que os efeitos do mesmo retroagem a Janeiro de 2018, data em que ocorreu a separação de facto.” (com base no teor da certidão da sentença de divórcio proferida nos Autos do processo nº ……/19.0T8FNC, a que os presentes Autos estão apensados, e cuja certidão, com nota do trânsito em julgado, também está nos presentes Autos);
“5- O Cabeça de Casal B.., no estado de casado com a Requerente A…, adquiriu a fracção autónoma, destinada a habitação, tipo T2, com 1 lugar de estacionamento e arrecadação com duas divisões, designada pela letra O, pertencente ao prédio urbano sito na Rua…, freguesia de…, concelho do funchal, inscrito na respectiva matriz sob o art. …e descrito na CRP do Funchal sob o nº…, através de escritura de compra e venda outorgada no ... Cartório Notarial do Funchal, no dia 13 de Abril de 2000” (com base na escritura pública de compra e venda junta aos Autos com a Reclamação da Relação de Bens da ora Recorrente, outorgada no ... Cartório Notarial do Funchal, perante a licenciada…, em 13/04/2000);
“6- Em Fevereiro de 2018, a Requerente e o Cabeça de Casal eram titulares de uma poupança associada à conta nº…., do Banco Santander Totta, titulada pela Requerente e pelo Cabeça de Casal.“ (com base no extracto bancário junto pela Requerente com a sua Reclamação de Bens, especialmente na 2ª página).
“7- Em 10/01/2018, tal poupança apresentava o saldo de € 22.094,15, cuja totalidade desse valor ficou na posse do Cabeça de Casal.” (com base no extracto bancário junto pela Requerente com a sua Reclamação de Bens, especialmente na 2ª página).
“8 – A Requerente possui contribuições para o Regime Geral da Segurança Social desde o ano desde o ano 1990 até ao ano de 1998 referente a trabalho dependente (cfr. valores constantes da certidão da SS junta aos Autos), e tem trabalhado como Funcionária Pública desde 19/09/1994 até, pelo menos, 30/10/2020.” (com base no extracto do portal do Portal do Funcionário Público da RAM- Carreira, e a certidão da Segurança Social referente à carreira Contributiva desta junto daquela entidade, juntos pela Requerente com a sua Reclamação de Bens).
“9 – O Requerido Cabeça de Casal apenas possui contribuições para o Regime Geral da Segurança Social desde o ano desde o ano 1987 até ao ano de 1999 (com excepção do ano de 1996) referente a trabalho dependente (cfr. valores constantes da certidão da SS junta aos Autos), não possuindo profissão desde então até, pelo menos, 30/10/2020.” (com base na certidão da Segurança Social referente à carreira Contributiva desta junto daquela entidade, juntos pela Requerente com a sua Reclamação de Bens, concatenando com os testemunhos da generalidade das testemunhas ouvidas, que referiram que este não trabalhava enquanto foi casado com a ora Recorrente).
“10 – Durante o período em que a Requerente e o Requerido Cabeça de Casal estiveram casados e coabitaram (... de ... de 1998 e ... 2018), era a Requerida quem, quase exclusivamente, cuidava da filha de ambos, cuidava da limpeza da casa e tratava das roupas de toda a família, cozinhava, tratava dos assuntos da família e fazia as compras para o casal e a filha de ambos, depois do seu horário de trabalho.” (com base nos depoimentos, nomeadamente, das testemunhas AM… - min. 18.45 a 18.50, 19.00 a 19.20, 20.05, 20.30 a 20.35, e 21.00 a 21.10 do seu depoimento -, JS… - a mins. 15.55 a 16.10, 29.00 a 29.20, 29.50 a 30.05, e 30.10 a 30.30 do seu depoimento -, MS.. a mins. 15.15 a 15.30 do seu depoimento - e EM… (a mins. 10.40 a 10.50 do seu depoimento -, citados e transcritos nas alegações).
H-) Quanto à Poupança Bancária em crise, uma vez que foi junta prova documental (extracto bancário, documento não impugnado) apresentada pela ora Recorrente relativamente à existência e respectivo valor da poupança em conta bancária na titularidade do Recorrido Cabeça de Casal e da ora Recorrente à data em que a sentença decretou que o divórcio em crise produziu os seus efeitos patrimoniais (Janeiro de 2018), entende esta que também se justificava que, face à ausência de matéria de facto dada como provada e documentos que ilidissem a presunção legal constante do art.1725º do CCivil, o Tribunal Recorrido deveria ter aplicado a mesma e, consequentemente, declarar que este bem também é comum da Recorrente e do Recorrido em partes iguais, ou seja, na proporção de 50% (cinquenta por cento) para cada um;
I- Por último, entende a Recorrente que também relativamente ao crédito de compensação, o Tribunal Recorrido estava em condições de decidir pela fixação do crédito de compensação a que se refere o art.1676º, nº 2, do CCivil com recurso a juízos de equidade, a favor da Recorrente,
J- Tal crédito justifica-se tendo em conta, nomeadamente, ter sido produzida prova suficiente para dar como provada a matéria que se pretende dar como provada com o presente recurso quanto a esta questão, nomeadamente que, durante o casamento e coabitação do casal, a Recorrente cumulou durante praticamente 20 anos o exercício de uma profissão a tempo inteiro com a execução de todas as tarefas relativas à vida familiar do casal, sem que o Recorrido exercesse qualquer profissão, e ou executasse qualquer tarefa que dissesse respeito à casa ou à família por considerar que tais tarefas eram da responsabilidade exclusiva da “mulher”, além de ser a Recorrente, em todo o período de casamento e coabitação do casal, a única que exerceu uma profissão com a qual obtinha rendimentos para fazer face às principais despesas do agregado familiar composto pelo casal dissolvido e pela filha então menor.
L- Entende que, face ao acima exposto, ao decidir como decidiu, o Tribunal Recorrido, nomeadamente, fez uma errada avaliação da prova documental e gravada, e errada aplicação das regras de apreciação de prova, bem como uma errada aplicação do art.1725º do CCivil e art.1093º, nº 1, do NCPCivil, e por via disso, também acabou por omitir a aplicação, entre outras normas legais, nomeadamente o disposto nos art.369º, nºs 1 e 2 do CCivil, art.1724º, al. a) e b), do CCivil, e nos arts.1674º, 1675º, nº 1, 1676º, nº 2, do CCivil.”
*
9- Recorre também da mesma sentença o interessado B…, apresentando as seguintes conclusões:
A. A sentença proferida é manifestamente nula, uma vez que os fundamentos estão em oposição com a decisão, tal como previsto nas alíneas b) e c) do artigo 615.º do CPC;
B. O Tribunal a quo, pecou por não dar o devido valor e atenção aos documentos juntos aos autos e às testemunhas ouvidas, que foram muitas, havendo um erro notório na apreciação da prova produzida e consequente valorização errónea da prova.
C. Era dever do Tribunal identificar as testemunhas na sentença, o que não o fez, passando ao lado dos diversos depoimentos ouvidos em Tribunal;
D. O mesmo sucedeu com os documentos juntos aos autos, não tendo havido a correta análise e identificação dos mesmos na sentença para efeitos de proferir uma decisão justa;
E. Nesta senda, o Tribunal a quo julgou apenas como provado:
a. O cabeça de casal e a requerente contraíram casamento católico um com o outro, no dia ... de ... de 1998, sem convenção antenupcial;
b. Em 1 de março de 2019 a requerente instaurou contra o cabeça de casal uma ação de divórcio;
c. Por sentença datada de 13 de outubro de 2010, foi decretado o divórcio entre a requerente e o cabeça de casal
d. De tal sentença não foi interposto recurso.
F. Na sequência desta matéria dada como provada, o Tribunal a quo decidiu:
a. Aditar às verbas 1 e 2 da Relação de Bens a descrição modelo “Praga”;
b. Aditar à relação de bens, uma fração autónoma, destinada a habitação, tipo T2, com 1 lugar de estacionamento e arrecadação com duas divisões, designada pela letra O, pertencente ao prédio urbano sito na Rua…, freguesia de…, concelho do funchal, inscrito na respetiva matriz sob o art. …e descrito na CRP do Funchal sob o nº…, adquirida pelo casal na constância do casamento, como bem comum;
c. Aditar à relação de bens, um veículo automóvel da marca Volkswagen, modelo Polo, com matrícula…, adquirido na constância do matrimónio, o qual se encontra na posse da interessada, como bem comum;
d. Aditar à relação de bens um veículo automóvel da marca Opel, modelo Frontera, com a matrícula…., adquirido na constância do casamento, em posse do cabeça de casal, como bem comum;
e. Aditar à relação de bens os bens móveis, que compõem o recheio da habitação que foi morada de família, melhor descritos no requerimento reproduzido nos autos;
f. Relego para a conferência de interessados a decisão sobre os valores (dos bens) impugnados pela Interessada Reclamante, sem prejuízo de a Interessada declarar nos autos a sua concreta intenção de requerer a avaliação dos bens, caso em que a avaliação será determinada previamente à marcação da conferência de interessados;
G. Ora, entende o Recorrente que da matéria julgada provada nunca poderia ter resultado a decisão proferida;
H. Ademais, e de acordo com a prova documental junta aos autos e da prova testemunhal ouvida deveria igualmente ser julgado provado que:
A. Por escritura de compra e venda datada de 13/04/2000 o Cabeça de Casal adquiriu no estado de casado no regime da comunhão de adquiridos a fração autónoma destinada a habitação, tipo T2m com 1 lugar de estacionamento e arrecadação com duas divisões, designada pela Letra O, pertencente ao prédio sito…., freguesia de …concelho do Funchal, inscrito na matriz sob o artigo … e descrito na CRP do Funchal sob o número…., pelo preço de 22.000.000$00 (correspondente à quantia de 109.735,54€);
B. Por escritura datada de 05/08/1999, o Cabeça de Casal vendeu a casa que tinha herdado da sua mãe pelo preço 60.000.000$00, tendo-lhe rendido a quantia de 30.000.000$00 (corresponde a 149.639,37€),
C. O Cabeça de Casal vendeu igualmente um outro imóvel da herança dos seus pais pelo valor de 45.000.000$00, tendo-lhe rendido a quantia de 22.500.0000$00 (que corresponde a 112.229,53€);
D. A Interessada à data da aquisição não tinha recebido qualquer herança (porque a recebeu em 2012), nem tinha quaisquer poupanças que lhe permitissem adquirir o imóvel referido em a.;
E. A aquisição do imóvel em a., do recheio da casa, e dos veículos automóveis foi efetuado por pagamento da conta do BPI;
F. Por contrato de compra e venda datado de 17 de dezembro de 2012, referente à alienação da parte titulada (3/32) pela Interessada na casa propriedade de seus pais, a Autora recebeu a quantia de € 8.385,88 (Cláusula Segunda do documento junto aos presentes autos);
G. O cabeça de casal e a Interessada não tinham contas bancárias em comum, sendo a conta do Millennium BCP, CGD e Montepio da Interessada e as do BPI e Santander eram do cabeça de casal;
I. De acordo com os factos que efetivamente resultaram provados a decisão proferida, deveria ser substituído por outra que tivesse decidido:
A. Aditar às verbas 1 e 2 da Relação de Bens a descrição modelo “Praga”;
B. Não aditando quaisquer outos bens à Relação de Bens apresentada pelo Cabeça de Casal, por serem bens próprios;
J. É pois claro da prova junta aos presentes autos que a casa morada de família, o recheio e os veículos foram adquiridos com dinheiro próprio do Cabeça de Casal, vindo da herança dos seus pais, sendo por esse motivo bens próprios nos termos da alínea c) do nº 1 do art. 1722º do Código Civil.
K. Nestes termos requerer-se que seja decidida a nulidade da decisão proferida, substituindo a mesma por outra que decida conforme alínea I destas Conclusões.
*
10-Contra-alegou o cabeça de casal B…, pugnando pela improcedência do recurso da interessada A…, no que respeita à alteração da matéria de facto em tudo o que extravase os factos que o mesmo, no seu recurso, entende deverem ser considerados provados, incluindo, pelas razões que avança, aqueles em que a requerente pretende alicerçar a compensação ao abrigo do art.1676.º n.º2 do Código Civil.
***
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir
*
Objecto do recurso/questões a decidir:
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões apresentadas, nos termos conjugados dos arts.635.º n.º4 e 639.º n.º1 do CPC, sem prejuízo das questões de que o tribunal possa conhecer oficiosamente (art.608.º, n.º 2, in fine, em conjugação com o art. 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC), prefiguram-se no presente caso as seguintes questões a decidir:
-nulidade da sentença nos termos do art.615.º n.º1 b) e c) do CPC;
-impugnação da matéria de facto;
-impossibilidade/inoportunidade do tribunal relegar os interessados para os meios comuns após a produção de prova no incidente de reclamação, e/ou indevida/injustificada remessa para os meios comuns, impondo-se o conhecimento das respetivas questões no inventário
- erro de julgamento quanto à natureza comum dos bens
**
II- Fundamentação
2.1- Fundamentação de facto:
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1. O cabeça-de-casal e a requerente contraíram casamento católico um com o outro, no dia ... de ... de 1998, sem convenção antenupcial.
2. Em 1 de Março de 2019, a requerente instaurou contra o cabeça-de-casal uma acção de divórcio.
3. Por sentença datada de 13 de Outubro de 2010, foi decretado o divórcio entre a requerente e o cabeça-de-casal, tendo ficado declarado que os efeitos do mesmo retroagem a Janeiro de 2018, data em que ocorreu a separação de facto.
4. De tal sentença não foi interposto recurso.
2.2-Factos não provados:
Na sentença recorrida foram considerados não provados os seguintes factos:
A- Não ficou provado que a fracção autónoma, destinada a habitação, tipo T2, com 1 lugar de estacionamento e arrecadação com duas divisões, designada pela letra O, pertencente ao prédio urbano sito na Rua…, freguesia de…., concelho do funchal, inscrito na respectiva matriz sob o art. …e descrito na CRP do Funchal sob o nº…, adquirido pelo casal na constância do casamento, foi paga exclusivamente pelo cabeça de casal;
B. Não ficou provado que os dois veículos automóveis tenham sido adquiridos a pronto pagamento, bem como o mobiliário descrito no ponto E que compõem o recheio da habitação, unicamente com dinheiro do cabeça de casal;
C. Não ficou provado que a conta do Banco Santander era exclusivamente do cabeça de casal, bem como a do Millemium BCP era exclusivamente da interessada;
D. Também não ficou provado que terá sido com o salário da interessada que foram pagas todas as despesas gerais e pessoais do agregado familiar, bem como era ela que desempenhava as tarefas domésticas do agregado familiar, bem como era ela que prestava os cuidados à sua filha (escolares e médicos) bem como ao próprio cabeça de casal.
2.3-Fundamentação de direito:
2.3.1.- Nulidade da sentença
O cabeça de casal invoca no recurso que a sentença é nula porque há oposição entre os fundamentos e a decisão, mas convoca quer a alínea b) quer a alínea c) do art.615.º do CPC na conclusão A) do mesmo recurso.
O art.615.º do CPC no seu n.º1 diz que é nula a sentença quando:
a) não contenha a assinatura do juiz;
b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade que torne a decisão ininteligível;
d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
A oposição entre os fundamentos e a decisão está prevista na alínea c), sendo que a alínea b) respeita à não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. E vistas as alegações de recurso a fim de melhor compreender a nulidade invocada nas conclusões, verifica-se que o recorrente não faz a devida destrinça entre o que são as nulidades da sentença, vícios formais que se haverão e patentear da própria decisão e o erro de julgamento seja de facto ou de direito, posto que, nessas alegações sob a epígrafe “II- Da nulidade da decisão por violação do disposto nas alíneas b) e c) do artigo 615.º do CPC”, o recorrente insurge-se, ao fim e ao cabo, contra a decisão da matéria de facto, por entender que em face da prova produzida outra devia ter sido a decisão do tribunal a quo, questão esta que já não se reconduz às invocadas nulidades. Nem a estas se reconduz a pretensão de ver alterada a decisão quanto à matéria de facto. Efetivamente, como já se disse, importa distinguir as situações que configuram nulidade da sentença, daqueloutras que integram erro de julgamento, sendo que apenas as primeiras se reconduzem ao citado normativo legal. Tal como se escreve no sumário do Ac. STJ de 3.3.2021 (Leonor Cruz Rodrigues), “I. Há que distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento seja de facto seja de direito. As nulidades da decisão reconduzem-se a vícios formais decorrentes de erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal; trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito, enquanto o erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris), de forma a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual - nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma - ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma. II. Só a absoluta falta de fundamentação – e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação – integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil.” (acessível em www.dgsi.pt).
Por outro lado, ainda, eventuais insuficiências da matéria de facto, como resulta do já acima mencionado, também não sustentam nulidade da sentença, mas haverão de ser invocadas em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.(neste sentido Ac. TRL de 26.9.2024, proferido no processo n.º10022/17.7T8SNT.L1, em que foi relator o ora Exmo. Desembargador 2.º adjunto, com o seguinte sumário, no que releva, “I-À decisão sobre a matéria de facto não é aplicável o regime das nulidades da sentença previsto no art. 615.º, n.º 1 do CPC, mas sim o disposto no respectivo art.662.º, pelo que as eventuais deficiências ao nível da decisão sobre a matéria de facto não são causa de nulidade da sentença, mas sim fundamento de impugnação da decisão sobre a matéria de facto.” (sumário acessível em https://trl.mj.pt/8a-seccao-civel/).
Vejamos, então, do alegado, quais as razões que são convocadas e que podem suportar as arguidas nulidades, na certeza de que o que vem dito nas conclusões B) e D) (esta, pelo menos, em parte) a K) não se reconduz à nulidade da sentença mas à discordância quanto à decisão sobre a matéria de facto. Assim, resta o que, de pouco específico, consta da conclusão C) e, em parte, da conclusão D), de onde se poderá extrair, em certo sentido, a intenção de aludir à falta de fundamentação da decisão de facto, convocando-se, ainda, a asserção constante das alegações “não identifica em quem baseou a sua decisão, nem porque motivo não valorizou, ao que parece os depoimentos das testemunhas arroladas pelo Cabeça de Casal.”; e, no que respeita à nulidade da sentença, que seria integrada pela contradição da decisão com a fundamentação, a mesma, à margem da discordância relativa à decisão de facto, também, não está objetivada nem densificada seja nas conclusões seja nas alegações de recurso, parecendo-nos que a contradição invocada pelo recorrente se problematiza entre aquilo que é a decisão recorrida e aquela que o recorrente propugna que devia resultar da correta análise da prova, tal como deixam antever as seguintes alegações “Com esta prova não pode nunca resultar que os veículos automóveis foram pagos da Conta conjunta, porque esta não existia, conforme declarações das próprias partes.” ou “…se o Tribunal tivesse valorado os depoimentos prestados nos presentes autos, bem como os documentos juntos, decidiria, em bom cumprimento da justiça que, a casa morada de família e o respetivo recheio constituem bens próprios do cabeça de casal, aqui Recorrente.”.. Por conseguinte, também, nessa parte, as questões se prendem, a final, com a decisão de facto proferida pelo tribunal recorrido e nesse âmbito caberá apreciá-las, não sendo causa de nulidade da sentença. De todo o modo, analisando a decisão recorrida do ponto de vista da fundamentação – para além daquilo que já se deixou dito acima e que não revela em termos de nulidade da sentença mas sim da impugnação da matéria de facto, o que aqui de novo se enfatiza -, a mesma contém o elenco de factos provados e não provados, e as razões que a sustentam, sendo que quanto aos primeiros se mostra minimamente fundamentada, contendo ainda a indicação das razões que levaram à decisão. Ademais, vista a sentença no seu conjunto, não se verifica nenhuma contradição entre os fundamentos invocados e a decisão, na medida em que os aditamentos à relação de bens a que procede se harmonizam com a sustentação feita na sentença quanto a terem os referidos bens sido adquiridos na constância do casamento e não ter resultado provado que foram adquiridos com dinheiro próprio do cabeça de casal. Relembre-se que a discordância quanto a tais razões ou até a errada apreciação pelo tribunal recorrido dos meios de prova produzidos, não revelam para afirmar a nulidade da sentença por falta de fundamentação. Por outro lado, vem sendo entendido, de forma cremos pacífica (vide o acima citado acórdão de 3.3.2021), que só integra nulidade da sentença, a completa falta de fundamentação e não já a fundamentação deficiente, escassa, incompleta. Neste sentido, entre outros, para além do ac. STJ acima referido, Ac. TRG de 2.11.2027 (António Barroca Penha), com o seguinte sumário “I- Só ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão judicial, quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial.”; Ac. TRL de 21.3.2024 (António Moreira), de cujo sumário consta, no que ora releva: “1–A decisão com fundamentação escassa ou deficiente não é nula, só sendo causa de nulidade da decisão a falta total da mesma fundamentação.”; Ac. TRC de 13.12.2022 (Paulo Correia) com o seguinte sumário “I – Sendo imperativa a exigência de fundamentação das decisões judiciais, só a absoluta falta de fundamentação da sentença (ou seja, a não indicação dos factos provados e não provados) é suscetível de gerar a sua nulidade, pelo que a falta de motivação não gera a nulidade da sentença, desde que na mesma tenham sido discriminados os factos que o tribunal considera provados/não provados. II – Ainda que se admita que também a motivação da decisão da matéria de facto possa ser considerada para efeitos do art. 615.º, n.º 1, alíneas b) e c) do CPC, para que a sentença possa ser considerada nula, sempre se exigiria a falta absoluta de motivação, não bastando que a mesma seja deficiente, incompleta, ou não convincente.” (acórdãos acessíveis em www.dgsi.pt). Em conformidade, a decisão não será nula se apesar de pouco fundamentada ou de escassa ou deficiente fundamentação, dela se logra extrair e as partes podem ainda extrair as razões de facto e de direito que levaram àquela decisão concreta, devendo aqui acrescentar-se que não colhe ao nível da falta de fundamentação a circunstância da decisão conter uma “formulação” ou método seguido na sua estruturação, (que, contudo, não temos pelo mais acertado) em que os factos em que se sustenta e meios de prova são invocados no campo atinente à motivação da decisão de facto ou aquando da apreciação jurídica, como ressalta, entre o mais, na efetiva consideração da escritura pública atinente à compra do imóvel na pendência do casamento, mencionada na decisão mas não levada distintivamente aos factos provados, o que se evidencia do seguinte trecho da sentença recorrida “Resulta assim que, o único documento que existe nos autos é a escritura de compra e venda (documento autêntico nos termos do disposto no artigo 369º nºs 1 e 2 do CC), outorgada em 13/04/2000, durante a pendência do casamento celebrado entre o cabeça de casal e a interessada A…, no regime de comunhão de adquiridos e da mesma não consta qualquer referência à natureza do bem, aos valores ou proporção com que, respetivamente, qualquer um deles tenha participado na aquisição da fração, ou se este bem constituía parcialmente ou na totalidade bem próprio de qualquer um dos cônjuge.”. E o mesmo se diga no que concerne aos veículos e aos bens móveis. Nestes termos improcede a arguida nulidade da sentença.
*
2.3.2- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto/erro na apreciação da prova:
Em ambos os recursos, os recorrentes impugnaram a decisão sobre a matéria de facto.
Vejamos:
Nos termos do art.639.º n.º1 do CPC o recorrente deve apresentar a sua alegação na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
Por seu turno, nos termos do art.640.º do CPC que estabelece o “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
Resulta evidente do artigo transcrito que pretendendo a parte recorrer na parte atinente à decisão de facto, impugnando-a, tem que cumprir diversos ónus, sob pena do recurso quanto à matéria de facto ser rejeitado e, por isso, não chegar a ser apreciado pelo Tribunal da Relação. Por conseguinte, numa primeira linha de exigências (n.º1 do art.640.º), deve obrigatoriamente especificar a) os concretos pontos de facto incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa; c) a decisão (diversa) que deve ser proferida. E numa segunda linha de exigência, se os meios indicados como fundamento do erro na apreciação das provas tiverem sido gravados, sob pena de imediata rejeição do recurso, tem o recorrente que indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda.
A jurisprudência é pacífica quando à necessidade de cumprimento de tais ónus. Assim, v.g. Acórdão do STJ Uniformizador de Jurisprudência, de 17.10.2023 onde se diz “Com efeito, no art.º 640, sob a epígrafe “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”, consta do n.º1, Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgado; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida; e quanto ao ora em análise, c) A decisão que no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Apontados como ónus primários, pois têm como função delimitar o objeto do recurso, fundando os termos da impugnação, daí a sua falta traduzir-se na imediata rejeição do recurso, em contraposição aos ónus secundários, previstos no n.º2 do art.º640 relativos à alínea b) do n.º1, enquanto instrumentais do disposto no art.º 662, que regula a modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto pelos Tribunais da Relação, permitindo assim, um efetivo segundo grau de jurisdição no conhecimento das questões de facto, na procura da sua melhor realização, em termos relevantes, isto é, na busca da verdade material com a decorrente justa composição dos litígios.”; ou nos dizeres do sumário do Ac. TRG de 12.10.2023 (relatora Maria João Matos), “I. O ónus de impugnação da matéria de facto julgada exige que, cumulativamente, o recorrente indique os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os meios probatórios e as exactas passagens dos depoimentos que os integrem que determinariam decisão diversa da tomada em primeira instância - para cada um dos factos que pretende impugnar -, e a decisão que deverá ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (art.º 640.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC).”, ou ainda no Ac. TRP de 12.7.2023 (Paula Leal de Carvalho) “A impugnação da decisão da matéria de facto deve ser rejeitada quando o Recorrente: não deu cumprimento, nas conclusões, aos requisitos previstos nas als. a) e c) do nº 1 do art. 640º, do CPC pois que não indicou os concretos pontos da decisão da matéria de facto de que discorda e as respostas que, em seu entender, deveriam ter sido dadas, sendo que são estas que delimitam o objeto do recurso; não deu igualmente cumprimento a tais requisitos no corpo das alegações, pois que, aí, limita-se a transcrever os factos provados e não provados e a dizer que o juiz “não poderia ter dado todos os factos acima identificados como não provados” sem concreta indicação das respostas que, em seu entender, deveriam ter sido dadas; não cumpriu o disposto na al. b) do nº 1 do citado art. 640º, mais não fazendo do que uma impugnação em bloco, não conexionando cada facto individualizadamente (ou, pelo menos, grupos de factos que estejam em intimamente relacionados) com os concretos meios de prova que aduz; e não cumpriu o disposto no art. 640º, nº 2, al. a), não localizando, na gravação, o momento temporal (minutos) correspondente aos depoimentos que transcreve.”, ou Ac. TRL de 11.7.2024 (Paulo Fernandes da Silva) “II.–Sob pena de rejeição do recurso da decisão de facto, na impugnação desta o Recorrente tem um triplo ónus: (i) concretizar os factos que impugna, (ii) indicar os concretos meios de prova que justificam a impugnação e impõem uma decisão diversa, sendo que caso tenha havido gravação daqueles deve o Recorrente indicar as passagens da gravação em que funda a sua discordância, e (iii) especificar a decisão que entende dever ser proferida quanto à factualidade que impugna.”, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
Haverá ainda de ter em conta que, relativamente à forma/modo de cumprimento do ónus previsto na al. c) do n.º1 do art.640.º, questão que vinha gerando controvérsia, o já mencionado Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º12/2023, de 17.10.2023, com a retificação operada pela declaração de retificação n.º25/23 (DR de 28.11.2023) uniformizou a jurisprudência da forma seguinte: «Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações».
Já quanto ao cumprimento do ónus previsto na al. a) do n.º1 do art.640.º do CPC, como ressalta também desse mesmo acórdão uniformizador, a indicação dos concretos pontos de facto terá, sob pena de rejeição, que constar das conclusões do recurso.
Quanto à indicação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diferente sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (al. b) do n.º1 do art.640.º), vem sendo entendido que tal ónus se cumpre se for possível extrair com segurança das alegações de recurso a indicação dos concretos meios probatórios em que o recorrente se funda para defender que se impõe decisão diferente sobre cada um dos pontos de facto concretamente impugnados.
Por outro lado, ainda, não há lugar a convite ao aperfeiçoamento, tendo em vista o cabal cumprimento dos ónus impostos ao recorrente quando impugna a decisão sobre a matéria de facto (Ac. STJ de 25.11.2020 (Paula Sá Fernandes) “II. Omitindo a Recorrente o cumprimento dos ónus processuais a que se refere o artigo 640.º do CPC, impõe-se a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto, não sendo aplicável o convite ao aperfeiçoamento das conclusões a que se refere o n.º1, b) do artigo 652.º do CPC.”; Ac. STJ de 14.2.2023 (Jorge Dias), “III - No recurso sobre a matéria de facto se as conclusões forem deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não contemple o estatuído no art. 640.º, o relator não tem o dever de convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, na parte afetada. IV - Ou seja, quando o recurso da matéria de facto se apresenta deficiente, sem dar cumprimento ao disposto no art. 640.º do CPC, não há lugar a despacho de convite ao aperfeiçoamento.”, - acessíveis em www.dgsi.pt.
Acresce, que o conhecimento da impugnação da matéria de facto, pelo Tribunal da Relação, haverá de se revelar necessário e relevante para a apreciação das questões objeto do recurso, donde, evidenciando-se que a alteração dos factos pretendida não tem a virtualidade de se repercutir, alterando ou modificando os termos da questão a apreciar no recurso, o tribunal superior não tem que conhecer do recurso sobre a impugnação da matéria de facto, ou conhecê-lo na sua totalidade, podendo a apreciação cingir-se aqueles concretos pontos de factos relevantes e cuja alteração, supressão ou aditamento, tenham a virtualidade de se puderem repercutir na decisão final do recurso, em face das demais questões objecto do mesmo. Neste sentido, entre outros, Ac. STJ de 3.11.2023 (Mário Belo Morgado), em cujo sumário se exarou: “I- O julgamento da matéria de facto está limitado aos factos articulados pelas partes, nos termos do art. 5º, nº 2, do CPC [sem prejuízo das circunstâncias particulares contempladas nas alíneas a) a c) deste mesmo nº 2]. II- Se determinados pontos não foram alegados pelas partes, nem constam do elenco dos factos provados e não provados constantes da sentença da primeira instância, eles são insuscetíveis de constituir o objeto de impugnação da decisão de facto dirigida a aditá-los à factualidade provada. III- Nos recursos apenas se impõe tomar posição sobre as questões que sejam processualmente pertinentes/relevantes (suscetíveis de influir na decisão da causa), nomeadamente no âmbito da matéria de facto. IV- De acordo com os princípios da utilidade e pertinência a que estão sujeitos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte. V- Deste modo, o dever de reapreciação da prova por parte da Relação apenas existe no caso de o recorrente respeitar os ónus previstos no art. 640.º, n.º 1 do CPC, e, para além disso, a matéria em causa se afigurar relevante para a decisão final do litígio. VI- Na parte em que na revista se visa (em última análise) que a Relação adite à matéria de facto determinados pontos que são insuscetíveis de influir na decisão da causa (à luz das diversas soluções plausíveis da questão de direito), o recurso é inútil, o que obsta ao conhecimento do respetivo objeto.”; Ac. TRL de 26.9.2019 (Carlos Castelo Branco) – “I)– Não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.).”; Ac. TRC de 25.10.2022 (João Moreira do Carmo) - “I - Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância, importância ou suficiência jurídica para a solução de direito e mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente; Ac. TRG de 22.10.2020 (Maria João Matos) -” V. Por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(eis) de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil.” (acessíveis em www.dgsi.pt)
Em face do que fica dito, vejamos o caso dos autos, desde logo no sentido de verificar se as partes cumpriram convenientemente os citados ónus.
• Recurso da interessada A…
Diz a mesma na conclusão G-) Deve ser rectificada a matéria de facto dada como provada em 3-), e aditados a essa mesma matéria, pelo menos, os pontos 5), 6-), 7-), 8-), 9-) e 10-) nos termos infra indicados, ou seja:
“3- Por sentença datada de 11 de Fevereiro de 2020, foi decretado o divórcio entre a requerente e o cabeça de-casal, tendo sido declarado que os efeitos do mesmo retroagem a Janeiro de 2018, data em que ocorreu a separação de facto.” (com base no teor da certidão da sentença de divórcio proferida nos Autos do processo nº…/19.0T8FNC, a que os presentes Autos estão apensados, e cuja certidão, com nota do trânsito em julgado, também está nos presentes Autos);
“5- O Cabeça de Casal B…, no estado de casado com a Requerente A…, adquiriu a fracção autónoma, destinada a habitação, tipo T2, com 1 lugar de estacionamento e arrecadação com duas divisões, designada pela letra O, pertencente ao prédio urbano sito na Rua…, freguesia de…, concelho do funchal, inscrito na respectiva matriz sob o art. …e descrito na CRP do Funchal sob o nº…, através de escritura de compra e venda outorgada no ... Cartório Notarial do Funchal, no dia 13 de Abril de 2000” (com base na escritura pública de compra e venda junta aos Autos com a Reclamação da Relação de Bens da ora Recorrente, outorgada no ... Cartório Notarial do Funchal, perante a licenciada…., em 13/04/2000);
“6- Em Fevereiro de 2018, a Requerente e o Cabeça de Casal eram titulares de uma poupança associada à conta nº……, do Banco Santander Totta, titulada pela Requerente e pelo Cabeça de Casal.“ (com base no extracto bancário junto pela Requerente com a sua Reclamação de Bens, especialmente na 2ª página).
“7- Em 10/01/2018, tal poupança apresentava o saldo de €22.094,15, cuja totalidade desse valor ficou na posse do Cabeça de Casal.” (com base no extracto bancário junto pela Requerente com a sua Reclamação de Bens, especialmente na 2ª página).
“8 – A Requerente possui contribuições para o Regime Geral da Segurança Social desde o ano 1990 até ao ano de 1998 referente a trabalho dependente (cfr. valores constantes da certidão da SS junta aos Autos), e tem trabalhado como Funcionária Pública desde 19/09/1994 até, pelo menos, 30/10/2020.” (com base no extracto do portal do Portal do Funcionário Público da RAM- Carreira, e a certidão da Segurança Social referente à carreira Contributiva desta junto daquela entidade, juntos pela Requerente com a sua Reclamação de Bens).
“9 – O Requerido Cabeça de Casal apenas possui contribuições para o Regime Geral da Segurança Social desde o ano desde o ano 1987 até ao ano de 1999 (com excepção do ano de 1996) referente a trabalho dependente (cfr. valores constantes da certidão da SS junta aos Autos), não possuindo profissão desde então até, pelo menos, 30/10/2020.” (com base na certidão da Segurança Social referente à carreira Contributiva desta junto daquela entidade, juntos pela Requerente com a sua Reclamação de Bens, concatenando com os testemunhos da generalidade das testemunhas ouvidas, que referiram que este não trabalhava enquanto foi casado com a ora Recorrente).
“10 – Durante o período em que a Requerente e o Requerido Cabeça de Casal estiveram casados e coabitaram (... de ... de 1998 e ... de 2018), era a Requerida quem, quase exclusivamente, cuidava da filha de ambos, cuidava da limpeza da casa e tratava das roupas de toda a família, cozinhava, tratava dos assuntos da família e fazia as compras para o casal e a filha de ambos, depois do seu horário de trabalho.” (com base nos depoimentos, nomeadamente, das testemunhas AM… - min. 18.45 a 18.50, 19.00 a 19.20, 20.05, 20.30 a 20.35, e 21.00 a 21.10 do seu depoimento -, JS… - a mins. 15.55 a 16.10, 29.00 a 29.20, 29.50 a 30.05, e 30.10 a 30.30 do seu depoimento -, MS.. a mins. 15.15 a 15.30 do seu depoimento - e EM… (a mins. 10.40 a 10.50 do seu depoimento -, citados e transcritos nas alegações).
Vejamos em detalhe:
No que concerne à impugnação da interessada, mostram-se concretamente identificados os factos objeto de impugnação, tendo a mesma indicado a decisão diferente que pretende ver proferida e os meios de prova que a sustentam sendo que, relativamente à prova gravada, indicou as passagens das gravações que tem por relevantes.
Precedentemente, pede a recorrente que seja corrigido o lapso de escrita constante do ponto 3) dos factos provados na decisão recorrida, porque a sentença que decretou o divórcio foi proferida em 11.2.2020 e não na data constante desse ponto 3). A sentença de divórcio foi junta com o requerimento inicial do inventário e, efetivamente, a data da mesma é 11.2.2020 e não a que consta daquele ponto 3). Assim, impõe-se corrigir esse lapso de escrita passando o ponto 3) dos factos provados a ter a seguinte redação:
3-Por sentença datada de 11 de Fevereiro de 2020, foi decretado o divórcio entre a requerente e o cabeça-de-casal, tendo ficado declarado que os efeitos do mesmo retroagem a Janeiro de 2018, data em que ocorreu a separação de facto.
No mais, o primeiro facto que a recorrente pretende que seja considerado provado, é relativo à compra do imóvel, o qual está atestado no processo pela escritura pública. Assim, sem necessidade de mais considerações, verificando-se que o tribunal a quo embora se sustente na escritura, como, aliás, já acima se mencionou, não levou a factualidade pertinente ao elenco dos factos provados, deve ser aditado à matéria de facto o seguinte facto, provado por documento autêntico, (não se seguindo exatamente a redação proposta mas a que resulta comprovada do documento que lhe serve de prova):
5- Por escritura de compra e venda datada de 13/04/2000, o Cabeça de Casal, no estado de casado no regime da comunhão de adquiridos com A…, comprou a fração autónoma, unidade habitacional, designada pela Letra O, correspondente ao piso …, do bloco …, compreendendo o lugar de estacionamento n.º… e arrecadação “O”, do prédio urbano denominado “C”, ao Sítio da…., concelho do Funchal, descrito na CRP do Funchal sob o número…, pelo preço de 22.000.000$00 (correspondente à quantia de 109.735,54€).
Os segundos e terceiros pontos, (n.º6 e 7) na numeração da interessada, cujo aditamento dos factos respetivos se pretende, são atinentes à conta poupança, estribando-se a interessada no extrato bancário junto com a reclamação à relação de bens, o qual, efetivamente, não se mostra impugnado. Visto tal documento, do mesmo não resulta, por nada conter a esse respeito, que a conta fosse titulada também pela interessada; contudo, tal facto mostra-se admitido expressamente pelo cabeça de casal na resposta à reclamação sobre a relação de bens (ponto 19 do requerimento de 5.1.2021); por outro lado, deve atender-se à data a que respeita o extrato e não a outra que dele não resulte. Em conformidade, com exceção da data indicada pela interessada 10.1.2018 (cujo relevo da especificidade dessa data se não deslinda), procede a reclamação e adita-se o seguinte facto ao rol dos factos provados:
6-Em fevereiro de 2018 a conta bancária n.º…., do Banco Santander Totta, titulada pelo cabeça de casal e pela interessada A…, apresentava uma poupança associada que, à data, tinha o valor de €22.094,15.
Pretende, ainda, a requerente que se aditem os factos constantes dos ponto 8) e 9) da sua numeração, relativos aos descontos para o regime geral da segurança social, seus e do cabeça de casal, invocando as certidões da segurança social e os extratos no portal do funcionário público, juntos com a reclamação à relação de bens. Tendo em conta a natureza dos factos em causa, os mesmos, no que concerne às remunerações, (embora a requerente se reporte a contribuições, o extrato é de remunerações) haverão de resultar dos citados documentos, e analisados estes verifica-se que demonstram o período em que houve remunerações indicadas à segurança social, até à data dos ditos extratos e, bem assim, a entrada da interessada na função pública e sua manutenção até à data de obtenção do documento (30.10.2020). No segmento da impugnação relativo a “não possuindo profissão desde então até, pelo menos, 30/10/2020”, a impugnante, nas alegações de recurso, indica além dos documentos, em sustentação da prova daquele segmento o depoimento da testemunha EM.., indicando as passagens gravadas deste que tem por relevantes. Concatenando tal depoimento com o teor dos documentos, é verosímil que o cabeça de casal não exercesse profissão remunerada e regular, caso em que seria mister que a dita documentação também atestasse as remunerações correspondentes, o que não sucede; por outro lado, embora aqui não invocados expressamente, mas constando dos autos e não estando este tribunal inibido de os analisar e considerar, das declarações de IRS, juntas pelo cabeça de casal, relativas aos anos de 2016 e 2017, também não resulta a declaração pelo cabeça de casal de quaisquer rendimentos provenientes do trabalho profissional. Donde, extrai-se a convicção de que o cabeça de casal não exercia profissão, pelo menos, com caráter de regularidade. Assim, com base nesses meios de prova, e concedendo-se que os mesmos tenham ainda acolhimento no alegado em 6) da reclamação à relação de bens, aditam-se os seguintes factos:
7-A interessada A…apresentou remunerações relativas a trabalho dependente, para efeito de inserção no regime da segurança social no período de 1990 a 1998 e entrou na função pública em 19.9.1994, vínculo que se mantinha à data de 30.10.2020.
8-O cabeça de casal no período de 1987 a 1999, com exceção do ano de 1996, apresentou remunerações para efeito de inserção no regime geral da segurança social, não exercendo desde então e até 30.10.2020, pelo menos, com caráter regular, profissão.
E resta, relativamente à impugnação desta recorrente, o facto que a mesma indica no ponto 10) da conclusão G), que pretende ver dado como provado, ou seja “Durante o período em que a Requerente e o Requerido Cabeça de Casal estiveram casados e coabitaram (... de ... de 1998 e ... de 2018), era a Requerida quem, quase exclusivamente, cuidava da filha de ambos, cuidava da limpeza da casa e tratava das roupas de toda a família, cozinhava, tratava dos assuntos da família e fazia as compras para o casal e a filha de ambos, depois do seu horário de trabalho.” (com base nos depoimentos, nomeadamente, das testemunhas AM.. - min. 18.45 a 18.50, 19.00 a 19.20, 20.05, 20.30 a 20.35, e 21.00 a 21.10 do seu depoimento -, JS - a mins. 15.55 a 16.10, 29.00 a 29.20, 29.50 a 30.05, e 30.10 a 30.30 do seu depoimento -, MS a mins. 15.15 a 15.30 do seu depoimento - e EM… (a mins. 10.40 a 10.50 do seu depoimento -, citados e transcritos nas alegações), sendo este o facto concreto objeto da impugnação, relativamente ao qual são indicados os meios de prova, não relevando o que de forma algo conclusiva consta da conclusão G) do recurso, o que se deixa devidamente esclarecido.
Este facto – ponto 10) da conclusão G- está em oposição apenas com parte do facto não provado constante da decisão recorrida, vertido em D), - Também não ficou provado que terá sido com o salário da interessada que foram pagas todas as despesas gerais e pessoais do agregado familiar, bem como era ela que desempenhava as tarefas domésticas do agregado familiar, bem como era ela que prestava os cuidados à sua filha (escolares e médicos) bem como ao próprio cabeça de casal.”, ou seja, a parte constante desta alínea D) – “Também não ficou provado que terá sido com o salário da interessada que foram pagas todas as despesas gerais e pessoais do agregado familiar,” não vem impugnada no recurso, pelo que, se mantém.
Na parte restante “bem como era ela que desempenhava as tarefas domésticas do agregado familiar, bem como era ela que prestava os cuidados à sua filha (escolares e médicos) bem como ao próprio cabeça de casal.”, a impugnação encerra, então, uma dupla intenção, posto que se não pode dar como provado o facto que a requerente pretende seja aditado e mantido este segmento da alínea D) dos factos não provados, o que estaria em contradição, pelo que, se impõe concluir que a impugnação nesta matéria visa talqualmente esse segmento da matéria não provada, que teria, na medida da procedência da impugnação, que ser considerada provada. Esta factualidade prende-se com o pedido da requerente formulado em sede de reclamação à relação de bens atinente ao “relacionamento de um crédito de compensação a favor da ora Requerente, nos termos do disposto no art.1676º, nº 2, do C. Civil, a fixar de acordo com juízos de equidade”.
E analisada a prova produzida, desde logo os depoimentos das testemunhas – ouvidos na íntegra - que a recorrente indica em sustentação da sua pretensão, mas, também, o depoimento da filha do casal que é mencionado na decisão recorrida e que foi considerado pelo tribunal a quo, como se infere da decisão e, bem assim, invocado pelo cabeça de casal nas contra-alegações de recurso em sustentação da posição inversa, igualmente ouvido integralmente, impõe-se concluir, adiantamos já, que a prova não suporta, de forma bastante e sustentada e para além de dúvida séria, o facto que se pretende aditar e, em decorrência, afastar o facto correspondente não provado. Efetivamente, a testemunha AM.., irmã da recorrente, declarou, no que agora releva que “A mulher é que tratava da lide da casa. Ele é antigo. Não digo que não ajudasse, mas a comida…roupas …limpeza era a irmã”, acrescentando, quanto aos cuidados com a filha do casal, que era mãe, para em seguida dizer que parte era mãe, eram os dois, “ele levava a filha à escola”, “não diz que não colaborasse alguma coisa”, e já na parte final do depoimento, novamente perguntada, refere “ele não ajudava”, eles tinham uma empregada que engomava, e a irmã é que pagava. Também a testemunha JS.., irmão da interessada, declarou que a irmã fazia as compras, ele era machista, não fazia comida, entendia que isso é trabalho de mulher, mas também declarou que o cabeça de casal levava e ia buscar a mulher e a filha, entenda-se ao trabalho daquela e escola desta, nada mais de relevante e concreto daí se extraindo. No que concerne ao depoimento da testemunha MS…, há que dizer que, naquilo que aqui releva, o declarado, “ele não fazia nada” resulta essencialmente – o que a testemunha menciona – daquilo que a interessada lhe dizia, não se evidenciado um conhecimento direto e circunstanciado dos factos atinentes às tarefas domésticas ou cuidados com a filha do casal, sendo que a matéria factual que ora nos ocupa é mencionada pela testemunha sempre em termos muito associados com aquela atinente ao custeio das despesas familiares, e que a testemunha relata de forma mais circunstanciada, em face da ideia que tem do cabeça de casal, “classifico-o como um avarento”. Já no que respeita ao testemunho de EM.., das passagens da gravação indicadas pela recorrente nada resulta de importante quanto a esta matéria, posto que o declarado pela testemunha se reporta à circunstancia de não conhecer profissão ao cabeça de casal, e, de alguma forma, à comparticipação económica; desse depoimento, resulta, ainda, em passagem que não vem indicada pela requerente, mas que releva e está mais relacionada com a vida doméstica do casal, que - reportando-se a testemunha essencialmente às alturas dos convívios das filhas, sua e do ex-casal - a testemunha, admitindo que pudesse ver mais a mãe do que o pai, afirma “não pode dizer se um mais do que outro”, pelo que, este depoimento, na sua generalidade, não atesta os factos que ora estamos a apreciar. Mas há, também, que atentar no depoimento da filha do casal, C…, que se encontra a viver com o pai mas cujo depoimento se mostra prestado de forma serena, sem exaltações, com explicações adicionais sobre algumas respostas que dava, sempre que se impunha em face das questões colocadas (tendo explicado por exemplo porque é que na altura da pandemia (ou seja depois da separação do casal) levava comida da escola, dizendo que foram suspensas as rendas e o pai não recebia esse rendimento, questão que uma testemunha havia referenciado e que se percebe que havia suscitado alguma incompreensão e, por isso, foi sobre a mesma questionada), não persistindo em afirmações que não tinha certeza (v.g. quanto a saber de quem era o dinheiro para compra do apartamento, relatou o que sempre lhe foi dito, mas não sabe de quem era o dinheiro, sem insistir no que era relatado) e do depoimento não ressalta, a nosso ver, qualquer “tomada de partido” na contenda dos pais, nem qualquer exasperação relativamente a qualquer deles, que a descredibilize em prol das demais testemunhas, duas delas irmãos da interessada A… e, por isso, também, com laços familiares estreitos e cujo distanciamento (e com isto a objetividade) relativamente aos interesses da irmã, sobretudo da testemunha JS…, nem sempre foi conseguido, na nossa perceção. Resulta confirmado pela testemunha C… que o casal tinha uma empregada, que primeiramente se ocupava da limpeza da casa e mais tarde apenas da tarefa de engomar a roupa, mas que o pagamento não era assegurado apenas pela mãe, “um mês pagava a mãe outro o pai”, explicando a proveniência dos rendimentos do pai (rendas de imóvel, o que também se atesta face às já mencionadas declarações de IRS onde são declarados tais rendimentos, referido ainda o recebimento de quantias de familiares emigrados a troco da “gestão” de uns imóveis destes, o que abaixo melhor se dá conta). Ora, se o casal tinha empregada a fazer limpeza e mais tarde engomadoria da roupa, embora não resulte da prova o período total em que tal sucedeu, não se pode adquirir convicção que era a requerente quem, desde o início do casamento até à separação, se ocupava quase em exclusivo quer da limpeza da casa, quer das roupas da família, o que é independente até de saber quem pagava tais serviços. Por outro lado, o declarado pela testemunha C…, infirma que fosse a requerente quem tratava sempre das refeições, dizendo que o pai também fazia refeições (o pai fazia o almoço, quando tinha treino a mãe fazia o jantar), que o pai a levava à escola e levava a mãe ao trabalho (só mais tarde a mãe passou a ir de carro por si conduzido), mas a partir do 9.º ano passou a ir de transportes (já tinha passe e já não gostava que o pai a levasse), depoimento esse que não permite retirar do declarado pela testemunha AM…, anteriormente indicada, a convicção segura de que era a interessada quem quase exclusivamente se ocupava de todas essas tarefas. Ademais, no que concerne aos cuidados à filha do casal, o que resulta desses depoimentos, no seu conjunto, é que era o cabeça de casal que se ocupava de a levar e buscar à escola, enquanto a mesma o não fazia por si; pode ainda extrair-se do declarado pela filha do casal, que quando a mesma tinha treino era o cabeça de casal que a levava, pois é a mesma que refere tal situação para declarar que nesses dias era a mãe que fazia o jantar. Tendo o casamento durado cerca de vinte anos, há que admitir que nesse longo período, o comportamento das partes não se mantenha inalterado, sendo razoável supor que no período que antecedeu a separação se tenha degradado, pelo que, acaba por assumir alguma relevância distintiva os anos em que a filha do casal era mais nova, exigindo maiores cuidados e, nesse período, não se evidencia com segurança da prova invocada pela recorrente, e do depoimento da filha do casal, que apenas a interessada dela cuidasse ou o fizesse quase em exclusivo; aliás, não resulta desses meios de prova informação quanto a cuidados de saúde que houvessem de ser prestados à menor, e relativamente aos quais o cabeça de casal se demitisse, nada de relevante tendo declarado as testemunhas em que a recorrente se estriba (nada é declarado de onde decorra, por exemplo, que estando o cabeça de casal maioritariamente em casa, pois não exercia profissão regular – o que de facto se extrai da prova – era a interessada quem tinha que faltar ao trabalho nas doenças da filha, ou quem tinha que a levar ao médico em prejuízo do trabalho ou do seu descanso, etc.). Importa ainda referir que quanto às compras, sobretudo de supermercado, a testemunha C… declarou que iam os três ao supermercado mas era a mãe quem fazia as escolhas ou decidia o que comprar, o pai ocupava-se do carrinho, o que, se não na totalidade do período, se afigura verosímil ter ocorrido nos anos iniciais posto que a mesma testemunha declarou que o pai levava a mãe ao trabalho pois esta começou a conduzir mais tarde, razão pela qual se afigura que o cabeça de casal acompanharia, até por tal motivo, a família nessas compras. Note-se que mesmo a testemunha MS…, relativamente às compras de supermercado declarou - segundo o que a interessada lhe relatava – que apenas iam às compras mensalmente quando a A… recebia o ordenado, o que aponta no sentido de que o casal e não apenas a interessada, se ocupava dessa tarefa. Também não se evidencia, até pelo que já foi dito, com segurança, que fosse a interessada quem quase em exclusivo “tratasse dos assuntos da família”, assuntos que não concretiza, sendo que a filha do casal refere que o pai pagava a luz e o condomínio (há uma testemunha que também refere que ele esteve ligado à administração do condomínio, mas saiu porque não trabalhava), e tratava das questões relativas a uns apartamentos de familiares emigrados, recebendo as rendas e tratando das questões desses condomínios, recebendo por isso uma quantia de 6 em 6 meses que lhe davam esses familiares. Ressalta ainda desses depoimentos que numa fase inicial do casamento o casal (e não apenas a requerente) se dedicou à venda de aspiradores. E é, ainda, impressivo que, contrariando o depoimento de C… os factos cuja prova se pretende, a recorrente, porém, nada diz no sentido de apontar quaisquer razões que devam descredibilizar tal testemunho. Assim, do conjunto dessa prova ressalta que a interessada era o membro do casal mais ativo, até porque exercia profissão fora de casa e o cabeça-de-casal não, desempenhando tarefas esporádicas (v.g. a gestão dos ditos apartamentos), tendo como rendimento o pagamento de uma renda de prédio que lhe pertencia, mas a mesma prova não permite sustentar com segurança o facto que a interessada pretende ver provado, de que era ela quase exclusivamente que se ocupava, também, de tudo o resto, da filha, da casa, das compras e todos os restantes assuntos, pelo que, nesta matéria não divergimos do entendimento do tribunal recorrido espelhado no facto de ter considerado não provado que “era ela que desempenhava as tarefas domésticas do agregado familiar, bem como era ela que prestava os cuidados à sua filha (escolares e médicos) bem como ao próprio cabeça de casal.”. Em conformidade, julga-se improcedente a impugnação não se aditando tal facto aos factos provados, mantendo-se inalterada a alínea D) dos factos não provados constantes da sentença.
• Recurso do cabeça de casal:
Invoca o recorrente na alínea “H. Ademais, e de acordo com a prova documental junta aos autos e da prova testemunhal ouvida deveria igualmente ser julgado provado que:
A. Por escritura de compra e venda datada de 13/04/2000 o Cabeça de Casal adquiriu no estado de casado no regime da comunhão de adquiridos a fração autónoma destinada a habitação, tipo T2m com 1 lugar de estacionamento e arrecadação com duas divisões, designada pela Letra O, pertencente ao prédio sito na Rua…., freguesia de ….concelho do Funchal, inscrito na matriz sob o artigo ….e descrito na CRP do Funchal sob o número…, pelo preço de 22.000.000$00 (correspondente à quantia de 109.735,54€);
B. Por escritura datada de 05/08/1999, o Cabeça de Casal vendeu a casa que tinha herdado da sua mãe pelo preço 60.000.000$00, tendo-lhe rendido a quantia de 30.000.000$00 (corresponde a 149.639,37€),
C. O Cabeça de Casal vendeu igualmente um outro imóvel da herança dos seus pais pelo valor de 45.000.000$00, tendo-lhe rendido a quantia de 22.500.0000$00 (que corresponde a 112.229,53€);
D. A Interessada à data da aquisição não tinha recebido qualquer herança (porque a recebeu em 2012), nem tinha quaisquer poupanças que lhe permitissem adquirir o imóvel referido em a.;
E. A aquisição do imóvel em a., do recheio da casa, e dos veículos automóveis foi efetuado por pagamento da conta do BPI;
F. Por contrato de compra e venda datado de 17 de dezembro de 2012, referente à alienação da parte titulada (3/32) pela Interessada na casa propriedade de seus pais, a Autora recebeu a quantia de € 8.385,88 (Cláusula Segunda do documento junto aos presentes autos);
G. O cabeça de casal e a Interessada não tinham contas bancárias em comum, sendo a conta do Millennium BCP, CGD e Montepio da Interessada e as do BPI e Santander eram do cabeça de casal;
No que concerne ao ponto A), já acima se determinou o aditamento do facto que resulta da dita escritura, na sequência da apreciação da impugnação da outra recorrente.
Relativamente ao facto vertido em B), a venda resulta da escritura que está junta ao processo; porém, no estrito limite do que o documento demonstra, o que não inclui o preço alegado de 60 mil contos, sem respaldo nesse documento; e, em face dos documentos juntos com o requerimento de 5.1.2021, relativos à herança e relação de bens, atesta-se ainda que o imóvel provinha da herança da mãe, pelo que, se adita o seguinte facto:
9- Por escritura de compra e venda datada de 5/08/1999, o Cabeça de Casal, e AF… venderam, pelo preço de vinte milhões de escudos, o prédio urbano, sito no…, concelho do Funchal, descrito na CRP do Funchal sob o número…., que fazia parte da herança da mãe deles.
Quanto ao facto vertido em C), inexiste nos autos documento que demonstre essa venda, e esse documento também não vem identificando pelo recorrente.
Relativamente ao facto vertido em F), que consome em parte o facto mencionado em D), consta dos autos o contrato de compra e venda, junto com o requerimento de 22.3.2022, pelo que, estando o facto provado por documento, adita-se o seguinte:
10-Por contrato escrito, datado de 17.12.2012, DS…, A…, MV…, e a sociedade Bem…- Formação, Consultoria e Serviços, Lda., venderam o total de 29/32 avos que detêm sobre o prédio urbano composto por casa com 4 pavimentos, descrito na CRP do Funchal sob o n.º…., pelo preço de 90 mil euros, cabendo do mesmo a quantia de €8.385,88 à vendedora A…corresponde ao seu direito no imóvel (3/32 avos).
Relativamente aos aditamentos determinados acima relativos à impugnação do cabeça-de-casal, os mesmos suportam-se em documentos juntos ao processo com força probatória dos factos que atestam.
Já no mais, tendo em conta a numeração do recorrente que vimos seguindo, parte da factualidade referida em D) –(a interessada não tinha poupanças), e a factualidade referida em E) e em G) – esta se interpretada no sentido de que a alegada inexistência de contas “em comum” não se prende com a titularidade da conta, posto que relativamente à titularidade resulta admitido no autos por acordo que as contas eram tituladas por ambos; aliás perpassa dos autos que as partes confundem a titularidade da conta com a propriedade do respetivo saldo, o que não contribui para o rigor e clareza das respetivas alegações nesta matéria - e, ainda, o preço diferente do atestado na escritura, referido em B), ou eventual venda não titulada referida em C), impunha-se ao cabeça de casal que indicasse, em obediência ao disposto no art.640.º do CPC, cujos ónus que dele decorrem foram acima detalhadamente analisados, quais os concretos meios de prova constantes do processo que suportam a prova de tais factos, e, adicionalmente, impunha-se-lhe que indicasse, relativamente ao depoimento das testemunhas e outra prova gravada, as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de as poder transcrever (al a) do n.º2 do art.640.º), sob pena de rejeição do recurso.
É certo que o cumprimento de tais ónus, mormente o ónus secundário dessa alínea a), como vem sendo entendimento do STJ, haverá de ser avaliado de forma equilibrada e proporcional, afastando-se uma interpretação demasiado formalista da norma que leve à rejeição do recurso, em casos em que não obstante não tenham sido indicadas as passagens exatas da gravação, ainda assim houve uma indicação que permite localizar, de forma aproximada as passagens relevantes em termos de permitir ao tribunal, sem demasiado esforço, no conjunto da prova saber as partes dos depoimentos em que o recorrente se baseia e permitir à parte contrária exercer o contraditório. Como se escreve no Ac. STJ de 21.6.2022 (rel. Jorge Arcanjo), na parte relevante “III - O ónus de especificação, imposto no art. 640 nº 1 a), b) e c) e nº 2 a) CPC, visa afastar a possibilidade de uma impugnação generalizada, e os concretos pontos de facto impugnados devem ser feitos nas respectivas conclusões, porque delimitadoras do âmbito do recurso e constituírem o fundamento da alteração da decisão. Já quanto à especificação dos meios probatórios, a lei não impõe que seja feita nas conclusões, podendo sê-lo no corpo da motivação, mas em todo o caso exige-se a obrigatoriedade de cerzir cada facto censurado com os elementos probatórios correspondentes. IV - Ainda que o ónus secundário (art. 640 nº 2 a) CPC) se revele deficiente, o recurso não deve ser rejeitado se o apelante indicou, embora sem integral precisão, as passagens da gravação, mas procedeu à transcrição das passagens que entendeu relevantes, a apelada compreendeu perfeitamente os fundamentos da impugnação, respondendo com a análise da prova. V - O art. 640 nº 2 a) CPC deve ser interpretado restritivamente, no sentido de que a letra diz mais do que o seu espírito, ou seja, em face do objectivo da norma, a rejeição só se impõe quando haja total omissão da indicação das passagens da gravação de cada uma das testemunhas, e por via disso se ignore em que passagens do depoimento o recorrente se baseia. A não ser assim, a norma seria materialmente inconstitucional por violação do princípio da proporcionalidade, porque não se podendo considerar excessivo o ónus (secundário), o mesmo não sucede com a gravidade das consequências que se revela claramente excessiva e por consequência desproporcionada, quando tal deficiência não inviabiliza análise pelo tribunal, nem o contraditório da contraparte.” (sublinhado nosso) (acessível em www.dgsi.pt).
No caso concreto, havia o recorrente de indicar relativamente a cada um dos pontos concretos de facto que pretende ver dados como provados, os meios probatórios em que se funda, e, no que concerne à prova gravada, indicar as passagens da gravação relevantes, mesmo que quanto a estas se admita, como se viu, o cumprimento desse ónus sem particular exigência quanto à exatidão dessas passagens. Contudo, visto o recurso na sua globalidade, quer as conclusões quer estas conjugadamente com as alegações, impõe-se concluir que o cabeça de casal não deu cabal cumprimento a esses ónus. Na alínea H) das conclusões de recurso, o recorrente limita-se a dizer “de acordo com a prova documental junta aos autos e da prova testemunhal ouvida deveria igualmente ser julgado provado..”, sem qualquer indicação dos meios de prova concretos em que sustenta cada um dos factos; nas alegações de recurso, resultando embora evidenciada a discordância quanto à decisão da matéria de facto, o recorrente diz “…até porque a prova documental e testemunhal apresentada aos presentes autos, a decisão devia ser outra.”, nada especificando, referindo a seguir que o tribunal ouviu 5 testemunhas da interessada e 5 testemunhas por si arroladas, mas não indica o motivo porque não valorizou a prova arrolada pelo cabeça de casal, acrescentando, a seguinte passagem “…conforme documentação junta, coadjuvada com toda a prova testemunhal junta duvidas não podem restar no sentido de ter sido o cabeça de casal única e exclusivamente a pagar o preço da casa de morada de família com o seu dinheiro próprio…”. É certo que a seguir alude aos depoimento de R… e V…, aduzindo o seguinte “os depoimentos da Dra. R.., sobrinha do Cabeça de Casal e comadre do casal, e do Sr. V…, comprador da casa da mãe do Cabeça de Casal, foram muito claros, isentos e credíveis, devendo os mesmos ter sido valorizados pelo Tribunal, nomeadamente no que respeita à aquisição da casa morada de família.” Mas, relativamente a estes depoimentos, omitiu totalmente a indicação das passagens relevantes da respetiva gravação; exigindo a lei que sejam indicadas as passagens da gravação, e ainda que tal exigência deva ser interpretada de forma adequada e proporcional, não temos tal ónus por cumprido no caso de ser completamente omitida, sem nenhuma referência, por mínima que seja, à gravação dos depoimentos e partes relevantes deles para o sustento da impugnação, caso em que não se trataria de fazer uma interpretação da norma com proporcionalidade e sem demasiado rigor e exigência, mas ignorar tal imposição da lei. O recorrente nada diz em absoluto, nem sequer identifica, nas várias sessões do julgamento, qual aquela em que o depoimento foi prestado, e não o sinaliza de nenhuma forma na prova gravada existente no processo, não efetuando, também, nenhuma transcrição, nem mínima que seja do que foi declarado pelas testemunhas na parte relevante. Por outro lado, relativamente à factualidade atinente ao pagamento dos veículos automóveis, limita-se a transcrever parte da motivação do tribunal a quo constante da sentença e a concluir “Com esta prova não pode nunca resultar que os veículos automóveis foram pagos da Conta conjunta, porque esta não existia, conforme declarações das próprias partes. Os veículos foram pagos através das contas do BPI e Santander, conforme documentos juntos aos presentes autos e como tal, sendo estas contas da titularidade do cabeça de casal, são seus bens próprios.”, não indicando mais uma vez, de nenhum modo, as passagens das declarações das partes (extensas, produzidas em diversas sessões) em que se sustenta para tirar a referida conclusão; acresce que, mesmo na parte em que alude aos documentos, sem os identificar, como também lhe competia, não se detetou nenhum documento que só por si corrobore que Os veículos foram pagos através das contas do BPI e Santander conforme documentos juntos aos presentes autos e como tal, sendo estas contas da titularidade do cabeça de casal,” de modo a considerar de algum modo prejudicada a relevância das ditas declarações das partes. Ademais acrescenta ainda relativamente a esta factualidade “Ora, daqui decorre de igual forma clara e inequívoca que as contas do BPI e Santander, eram do cabeça de casal, aqui recorrente. Ou seja, o dinheiro existente nessas contas era seu, conforme confirmou a própria interessada.”, mas, mais uma vez, sem qualquer indicação, por mínima que seja, da parte das declarações da interessada relevantes para o caso. Não obstante a indicação desses meios de prova o requerente conclui nas alegações “a matéria que se crê ter de ser aditada à matéria provada decorre dos documentos juntos aos autos, coadjuvado com o depoimento das testemunhas arroladas pelo Cabeça de Casal e próprio depoimento da Interessada.”, sem novamente precisar os depoimentos concretos, posto que indicou 5 testemunhas e agora as menciona a todas, quando antes se referiu apenas a duas delas, e sem fazer nenhuma alusão às passagens dos depoimentos gravados, nem qualquer transcrição mínima desses depoimentos e gravações. Terá o recorrente eventualmente entendido que ao assim alegar, impunha ao tribunal de recurso uma nova audição de toda a prova gravada e análise de toda a documentação junta, tal como sucede ao nível da primeira instância, mas como se viu dos ónus impostos por lei ao impugnante da decisão de facto, não é isso que resulta da lei por forma a efetuar uma impugnação válida e eficaz. Em conformidade, por não terem sido indicados os concretos meios de prova em sustento de cada um dos factos, apelando-se à generalidade da prova, e tendo sido completamente omitida a indicação das passagens gravadas dos depoimentos em que sustenta (em parte), relativamente a cada um dos factos a prova deles, não se podem considerar cumpridos os ónus de impugnação (art.640.º n.º1 b) e n.º 2 a) do CPC), impondo-se nesta parte a rejeição do recurso, o que se decide.
*
Impõe-se, ainda, fazer constar do elenco dos factos provados, dois factos que, apesar da sentença recorrida os pressupor como adquiridos no processo, como resulta do dispositivo “Aditar à relação de bens, um veículo automóvel (…), com matricula…., adquirido na constância do matrimónio, (…) d) Aditar à relação de bens um veículo automóvel com a matrícula…., adquirido na constância do casamento,” não os fez constar, expressamente, do elenco dos factos provados, sendo que tais factos estão admitidos por acordo, e resultam dos “documento único automóvel” pertinentes aos veículos e juntos aos autos e não estão postos em causa pela partes.
E o mesmo ocorre relativamente aos bens móveis (recheio da habitação), que ambas as partes aceitam que foi adquirido na pendência do casamento (vide ponto 3 da resposta do cabeça de casal à reclamação da interessada onde expressamente consta “…não foram relacionados porque, não obstante terem sido adquiridos durante o casamento..”) , tomando a sentença por base tal factualidade, mas não a identificou expressamente nos factos provados.
Assim, passa também a constar expressamente dos factos provados:
11. Foram adquiridos na pendência do casamento os veículos automóveis com a matrícula ….(Volkswagen Polo) e com a matrícula ….(Opel Frontera).
12- Os móveis que compõem o recheio da habitação foram adquiridos durante o casamento.
*
Na decorrência do acima decidido a matéria de facto provada a considerar é a seguinte:
1. O cabeça-de-casal e a requerente contraíram casamento católico um com o outro, no dia ... de ... de 1998, sem convenção antenupcial.
2. Em 1 de Março de 2019, a requerente instaurou contra o cabeça-de-casal uma acção de divórcio.
3.Por sentença datada de 11 de Fevereiro de 2020, foi decretado o divórcio entre a requerente e o cabeça-de-casal, tendo ficado declarado que os efeitos do mesmo retroagem a Janeiro de 2018, data em que ocorreu a separação de facto.
4. De tal sentença não foi interposto recurso.
5. Por escritura de compra e venda datada de 13/04/2000, o Cabeça de Casal, no estado de casado no regime da comunhão de adquiridos com A…, comprou a fração autónoma, unidade habitacional, designada pela Letra O, correspondente ao piso …, do bloco .., compreendendo o lugar de estacionamento n.º.. e arrecadação “O”, do prédio urbano denominado “C”, ao Sítio…., concelho do Funchal, descrito na CRP do Funchal sob o número…., pelo preço de 22.000.000$00 (correspondente à quantia de 109.735,54€).
6.Em fevereiro de 2018 a conta bancária n.º…., do Banco Santander Totta, titulada pelo cabeça de casal e pela interessada A…, apresentava uma poupança associada que, à data, tinha o valor de €22.094,15.
7.A interessada A…apresentou remunerações relativas a trabalho dependente, para efeito de inserção no regime da segurança social no período de 1990 a 1998 e entrou na função pública em 19.9.1994, vínculo que se mantinha à data de 30.10.2020.
8.O cabeça de casal no período de 1987 a 1999, com exceção do ano de 1996, apresentou remunerações para efeito de inserção no regime geral da segurança social, não exercendo desde então e até 30.10.2020, pelo menos, com caráter regular, profissão.
9. Por escritura de compra e venda datada de 5/08/1999, o Cabeça de Casal, e AF… venderam, pelo preço de vinte milhões de escudos, o prédio urbano, sito no Sítio…, concelho do Funchal, descrito na CRP do Funchal sob o número…, que fazia parte da herança da mãe deles.
10.Por contrato escrito, datado de 17.12.2012, DS.., A…, MV.., e a sociedade Bem…- Formação, Consultoria e Serviços, Lda., venderam o total de 29/32 avos que detêm sobre o prédio urbano composto por casa com 4 pavimentos, descrito na CRP do Funchal sob o n.º…, pelo preço de 90 mil euros, cabendo do mesmo a quantia de €8.385,88 à vendedora A….corresponde ao seu direito no imóvel (3/32 avos).
11. Foram adquiridos na pendência do casamento os veículos automóveis com a matrícula ….(Volkswagen Polo) e com a matrícula ….(Opel Frontera).
12- Os móveis que compõem o recheio da habitação foram adquiridos durante o casamento.
*
2.3.3- impossibilidade/inoportunidade do tribunal relegar os interessados para os meios comuns
A recorrente insurge-se contra a parte da decisão do tribunal a quo que remeteu os interessados para os meios comuns, no que concerne à verba atinente à conta bancária (saldo da poupança associada) e, bem assim, quanto ao crédito por compensação a atribuir à interessada ao abrigo do art.1676.º do C.C. Invoca a este respeito que se o tribunal recorrido entendia que existia complexidade da prova que justificava a remessa, a decisão devia ter sido tomada antes da extensa produção de prova que teve lugar e não após e não se justifica tal remessa com o argumento de que a decisão no inventário diminuiria as garantias das partes e a prova produzida permite uma decisão sobre tais matérias.
O cabeça de casal, nas contra-alegações que apresentou não discute diretamente a questão da remessa para os meios comuns, opondo-se à prova dos factos relacionados com as verbas em causa.
O art.1093.º do CPC estabelece que “1 - Se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados diretos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns.”
São pressupostos da remessa para os meios comuns a complexidade da matéria de facto subjacente à questão, da qual decorra inconveniência na apreciação por implicar redução das garantias das partes. Desta feita não justifica ou legitima o tribunal a remeter os interessados para os meios comuns a complexidade jurídica da questão (que note-se pode não estar associada à complexidade de facto), nem qualquer inconveniência que se não traduza na redução da garantia das partes, v.g. uma inconveniência meramente processual por impor uma decisão algo mais demorada ou mais extensa produção de prova; Devemos, por isso, estar em presença de uma questão para cujo conhecimento cabal e com observância de todas as garantias das partes exija complexa matéria de facto, cujo apuramento e indagação – justamente porque se trata de realidade complexa – não se apresenta poder fazer-se no âmbito do incidente com respeito por todas as garantias de defesa próprias dos meios comuns. E nestas garantias de defesa não estão apenas as relativas a prazos, estão todas aquelas que, resultando das regras aplicáveis aos incidentes (cfr. art.1091.º do CPC que manda aplicar aos incidentes do inventário – salvo disposição em contrário – as regras dos incidentes da instancia), se asseguram no processo, quer aquando da introdução da pretensão em juízo, quer aquando da defesa do réu, quer ao longo de todo o processo, incluindo naturalmente a prova. Por outro lado, a remessa dos interessados para os meios comuns, como decorre do artigo citado, não pode constituir um poder discricionário do juiz, posto que tal decisão só pode ser tomada na medida em que se afirmem e colham ao caso os pressuposto legais acima mencionados e, como já se aflorou, não pode ser determinada por questões de comodidade ou facilitismo na resolução dos problemas suscitados no inventário, pressupondo, ao invés, que a tramitação no processo de inventário se não adeque, face à complexidade da matéria de facto e garantias das partes. Trata-se, outrossim, de situação excecional, já que no inventário devem ser tratadas todas as questões que ao mesmo interessem. Como se escreve no sumário do Ac. TRL de 4.7.2024 (rel. Arlindo Crua), “I – Em todo o processo, na consideração dos princípios da concentração dos actos processuais, da suficiência, da celeridade e da economia de meios, o princípio nuclear é o de todas as questões e pretensões sejam no mesmo decididas; II – tal princípio é naturalmente extensível ao processo de inventário, onde, na procura da partilha justa e equitativa de um património comum ou hereditário, todas as questões, em princípio, devem ser resolvidas no seu âmbito (princípio da autossuficiência); III - existem, todavia, certas questões que, pelo seu relevo, especialidade ou complexidade impõem que o seu conhecimento não possa ser efectivado no processo de inventário, antes o devendo ser nos meios judiciais comuns; IV - nestas situações, a aludida suficiência do processo de inventário é limitada, o que sucede principalmente quando se reconhece complexidade na apreciação da matéria de facto subjacente às questões sob apreciação; V- assim, e nomeadamente, estando em equação questão prejudicial da qual dependa a admissibilidade do processo de inventário ou a definição de direitos de interessados directos na partilha, que impõe a apreciação de complexa matéria factual, não pode a mesma ser incidentalmente decidida, antes se impondo a suspensão da instância do inventário e consequente remessa das partes para os meios judiciais comuns (o artº. 1092º, nºs. 1, alín. b) e 2, do Cód. de Processo Civil); VI - o que sucederá, igualmente, na situação em que, estando em equação questão prejudicial de idêntica jaez, a específica e concreta natureza desta imponha igual solução; VII - tal solução tem plena justificação, pois, sendo complexa a matéria de facto aprecianda, tal é dificilmente coadunável com as necessárias limitações probatórias a produzir no âmbito do incidente de inventário – os artigos 292º a 295º, ex vi do nº. 1, do artº. 1091º, todos do CPC -, o que poderia afectar, de forma inaceitável, as garantias probatórias das partes; VIII - todavia, tal solução já não será equacionável quando a aludida complexidade se reporte a questões de direito, as quais devem ser apreciadas pelo juiz no próprio processo de inventário, nos termos do nº. 1, do artº. 91º, do Cód. de Processo Civil pois, nestas situações, já não se poderá falar em efectiva redução das garantias dos interessados, relativamente às conferidas ou alcançadas através dos meios comuns;(..)”; em sentido concordante Ac. TRL de 24.10.2024 (rel. Inês Moura), com o seguinte sumário no que releva “(…)2.O tribunal apenas deve remeter os interessados para os meios comuns, quando as questões prejudiciais a resolver, pela sua natureza ou complexidade da matéria de facto que lhe está subjacente, não devam ser incidentalmente decididas, tal como expressamente previsto quer no art.º 1092.º n.º 1 al. b), quer no art.º 1093.º n.º 1 do CPC, não contemplando como razão para o efeito a eventual complexidade na resolução das questões de direito. 3. O despacho do juiz de remeter as partes para os meios comuns não é uma decisão discricionária, já que objetivamente vai levar não só um protelamento da decisão, mas também à sujeição das partes a novas despesas e incómodos com um novo processo, apenas se justificando se a decisão incidental se revela inconveniente ou desadequada, atenta a complexidade da matéria de facto subjacente, pela compressão das garantias das partes, sendo a regra a de que o tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantam, como prevê o art.º 91.º n.º 1 do CPC.”, ainda no mesmo sentido Ac. TRL de 4.4.2024, (rel. António Santos), de cujo sumário consta, no que a aqui releva: “1– É no processo de inventário que, por regra, devem ser suscitadas , apreciadas e resolvidas todas as questões que importem à exacta definição do acervo patrimonial a partilhar, maxime as que são objecto de reclamação de relação de bens. 2. - Na sequencia do referido em 4.1., e nos termos do artº 1093º, nº 2, ex vi do artº 1105º,nº 3, ambos do CPC, a apreciação e julgamento de qualquer questão suscitada em reclamação de relação de bens só pode e deve , excepcionalmente, ser relegada pata os meios comuns caso a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes.”; e, embora proferido no âmbito da lei anterior, mas com interesse para o que nos ocupa, antecipando já questões a que infra nos referiremos, Ac. TRL de 30.6.2011 (rel. Manuel Ribeiro Marques), em cujo sumário se deixou escrito: “I- O critério legal que emana dos artºs 1336º, 1349º e 1350º , todos do CPC, é no sentido de que no processo de inventário devem ser decididas definitivamente todas as questões de facto de que a partilha dependa salvo se essa decisão não se conformar com a discussão sumária comportada pelo processo de inventário e exigir mais ampla discussão no quadro do processo comum. II - No âmbito das questões a decidir que justificam que sejam os interessados remetidos para os meios comuns, não se integra a circunstância de algum dos interessados não ter carreado para os autos, quando o podia ter feito, os meios de prova conducentes à demonstração dos factos, mas apenas se for de admitir que nos meios comuns tais factos poderão ser mais largamente investigados. III- Assim, não tendo a cabeça de casal junto todos os documentos conducentes à prova dos factos (nomeadamente documentos bancários) e arrolado testemunhas que dos factos tivessem conhecimento, nem impugnado a factualidade considerada não provada, tal apenas a si é imputável e não a qualquer impossibilidade ou dificuldade de o fazer no âmbito do incidente a que aludem os artº 1348º a 1350º, do CPC.” (acessíveis em www.dgsi.pt)
Assentemos, então, que a remessa para os meios comuns, a qual, no caso concreto, só poderia ter abrigo no citado artigo 1093.º, porquanto, as questões relativamente às quais se determinou tal remessa não se prendem com a admissibilidade do processo nem com a definição de direitos de interessados diretos na partilha, só é consentida se a complexidade da matéria de facto o aconselhar por se evidenciar que as garantias de defesa das partes não seriam cabalmente asseguradas através da tramitação no inventário. Sendo mister do processo de inventário a partilha dos bens, é inerente ao processo a apresentação da relação dos bens a partilhar, decorrendo daí o direito dos interessados dela reclamarem, para o que dispõem do prazo de 30 dias (art.1104.º n.º1 d) do CPC), correndo a favor dos demais não reclamantes igual prazo de 30 dias para responderem, devendo as provas ser indicadas com tais requerimentos (art.1105.º) e as questões são decididas depois de efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz. Face a tal legal tramitação, com prazo de 30 dias, quer para apresentar reclamação quer para a resposta à mesma, prevendo a lei que sejam produzidas as provas necessárias, podendo o juiz, por isso, se entender pertinente, determinar a realização das diligências probatórias convenientes, sem sujeição às indicadas, há que concluir que apenas em casos excecionais as questões aportadas pela reclamação à relação de bens, não poderão ser cabalmente apreciadas no inventário.
No caso concreto, face à reclamação da interessada, está em causa saber se deve ser aditado à relação de bens o saldo de uma conta bancária e, ainda, embora se não reconduza exatamente a uma questão de reclamação contra a omissão de bens, se deve ser fixada compensação à mesma interessada por ter contribuído para os encargos da vida familiar em termos consideravelmente superiores ao outro cônjuge.
O tribunal recorrido, avançou a seguinte argumentação para remeter os interessados para os meios comuns “Assim, não havendo acordo quanto a esta questão, e não tendo sido junta prova documental que permita chegar a qualquer conclusão quanto à titularidade destas contas bancárias, temos que os elementos de que dispomos não são suficientes para o completo enquadramento da situação de facto e de direito inerente à referida reclamação, entendemos que as questões suscitadas a propósito desta verba permitem configurar uma verdadeira questão de facto e de direito, que é relevante, mas que envolve a alegação e prova de factos complexos que exigem larga averiguação, a qual só se compadece com os meios comuns, tornando assim inconveniente a decisão incidental no presente inventário por implicar redução das garantias das partes. Nestes termos, decide-se remeter os interessados para os meios comuns, no que concerne à reclamação relativa à verba relativa às contas bancárias, não incluindo no inventário o referido bem.”, e quanto à compensação aduziu “Da prova testemunhal foi confirmado que o cabeça de casal apenas tinha trabalhado durante algum tempo, durante o seu casamento, no entanto não se conseguiu apurar que valor recebia este de rendas, nem que despesas eram pagas por cada um dos interessados. Também da prova documental apurada (das pesquisas efetuadas e acima referidas), não é possível apurar quais os valores que o cabeça de casal contribuiu para a vida do casal. Em face do exposto a factualidade alegada como fundamento do direito à compensação pela “contribuição consideravelmente excessiva para os encargos da vida familiar” é bastante complexa e de difícil indagação, não se coadunando com a prova sumária que nos é aqui permitido realizar, pelo que a questão suscitada não pode ser decidida em consciência neste inventário, por carecer de larga, aturada e complexa indagação, implicando a decisão nestes autos a redução das garantias das partes, pelo que nos abstemos de proferir decisão, relegando os interessados para os meios comuns a fim de aí definirem os direitos em conflito, nos termos do art 1105.º e 1093.º do Código de Processo Civil. (ver neste sentido o Ac. da RL, 14.04.2011).”.
Donde, quanto às contas bancárias a fundamentação do tribunal a quo tem subjacente a falta de acordo dos interessados, que não pode colher já que se houvesse acordo, nada havia a decidir nesta matéria, e, no mais, a falta de prova documental (o que não é completamente certo tendo em conta o facto que se aditou comprovado por documento junto aos autos), evidenciando-se, nesta parte, que a remessa é determinada não pela complexidade objetiva da questão, mas por via da invocada falta de prova, porquanto, não obstante se referenciar na decisão que as questões envolvem a alegação e prova de factos complexos, que exigem larga averiguação, não se enunciam, sobretudo, em face do que foi alegado pelas partes, quais os factos complexos (alegados) que impunham larga indagação. Ademais, vista a reclamação da relação de bens o que é alegado não reveste complexidade, dizendo a reclamante que existia à data da separação do casal uma conta bancária, indicando o respetivo saldo e juntando documento demostrativo do mesmo. É certo que o cabeça de casal refutou que a quantia fosse comum, aliás, como refutou que outros bens cujo falta foi acusada, eram comuns, mas tal desacordo, não transmuta a questão em questão factualmente complexa. Ademais, eventual falta de prova sobre qualquer facto relevante, não impõe também a remessa para os meios comuns, apenas a aplicação da regras sobre o ónus da prova (nesse sentido Ac. TRL de 30.6.2011 (rel. Manuel Ribeiro Marques), já acima citado). Se a eventual falta de prova sobre certos factos (ou a aliada falta de convencimento do tribunal), justificasse a remessa para os meios comuns, estaríamos a erigir tal facto em requisito da remessa não previsto legalmente. Acresce que tendo as partes arrolado ao todo 10 testemunhas, que foram ouvidas, tendo sido admitidas e prestadas declarações por ambas as partes e, além disso, como resulta de quanto já disse, junto documentos, não se antevê sequer que nos meios comuns - o que nenhuma das partes sequer requereu - viessem a ser asseguradas garantias de defesa que aqui tivessem sido preteridas, levando em conta, evidentemente, que a decisão veio a ser proferida após a produção da totalidade da prova. Resulta algo incompreensível que após produção de prova com tal extensão o tribunal a quo entenda que os elementos não são suficientes, tornando inconveniente a decisão, posto que, como já se viu, se entendia necessária outra prova, mormente documental, nada impedia que pela mesma tivesse diligenciado, sendo certo que nenhuma das partes solicitou que o tribunal diligenciasse pela obtenção de qualquer prova que não estivesse ao seu alcance carrear para o processo. Aliás, a questão de saber se o saldo da conta é bem comum ou próprio do cabeça de casal coloca-se de igual modo relativamente aos demais bens cujo aditamento foi determinado, até com maior acuidade relativamente ao imóvel, pelo que, não se vê razão para, quanto à questão da conta bancária, as garantias de defesa pudessem ser afetadas mas não já quanto aos demais bens. Como se escreve no sumário do Ac. TRG de 9.2.2023 (rel. Afonso Cabral)“(…) 2. Nos termos do disposto nos artigos 1092º e 1093º CPC, e salvo situações absolutamente excepcionais, não devem ser remetidas para os meios comuns questões como as de determinar quais as benfeitorias a relacionar e respectivo valor, pois tais questões não são prejudiciais ao inventário, antes fazem parte integrante do processo de inventário. 3. Não é aceitável que a decisão de remeter as partes para os meios comuns, com fundamento na complexidade da prova, seja tomada depois de produzida toda a prova apresentada pelas partes.”.
E, embora com algumas especificidades, colhe relativamente à questão da compensação, no essencial, a argumentação que acima desenvolvemos. É verdade que esta matéria não constitui uma mera reclamação de falta de relacionamento de bens, apesar da interessada a ter suscitado nessa altura e aparentemente enquanto tal. Mas, visto o que foi alegado para sustentar a fixação dessa compensação e o relacionamento do crédito correspondente, também, aqui não podemos conceder que a matéria de facto alegada revista complexidade que afaste a sua decisão no inventário. Parte do que vinha alegado, remete a interessada a sua prova para a documentação que então juntou, e o demais resume-se a quatro artigos essenciais, a cuja matéria se destinaria, também, a prova testemunhal indicada. Aliás, alguma maior complexidade nesta matéria é mais jurídica do factual, não se revelando os factos alegados de particular exigência investigatória, contrariamente ao que parece ter sido suposto na decisão recorrida. E, repete-se, a falta de prova, no sentido de que embora produzida não determinou convicção positiva dessa factualidade não é razão para a remessa para os meios comuns. No caso, temos até por incompreensível tal remessa já que o tribunal a quo produziu decisão sobre factualidade relevante que fez constar dos factos não provados e que veio a ser impugnada no recurso.
Não se enjeitando em absoluto que possa haver decisão de remessa para os meios comuns após produção de alguma prova, em situações que se apresentem com particulares especificidades, no caso concreto, pelo que já disse, afigura-se-nos, injustificada a decisão de remeter os interessados para os meios comuns após a prodição integral da prova, sem que nada haja que demonstre qualquer intenção das partes em ver produzidas outras provas, e não se patenteando sequer que numa ação comum as partes lograssem produzir outras provas que não tenham carreado para o inventário ou que para ele não pudesse carrear com a mesma diligência de uma ação comum.
Em conformidade, deve ser revogada a decisão do tribunal a quo que remeteu as partes para os meios comuns.
E vindo requerida pronúncia quanto à inclusão de tais bens na relação de bens e fixação da compensação, (que são as questões que ficaram prejudicadas pela parte da decisão ora revogada), por decorrência das impugnações da decisão sobre a matéria de facto, levando em conta os factos provados e não provados decorrentes do resultado das impugnações, nada impede, antes se impõe, à luz do art.665.º n.º2 do CPC, que as questões quanto à reclamação nesse particular e, bem assim, a relativa à compensação sejam decididas em face dos factos pertinentes, que as partes lograram ou não lograram provar, o que se analisará em seguida, no âmbito da apreciação do mérito da decisão recorrida, por imporem, pelo menos em parte, abordagem não essencialmente divergente.
2.3.4. mérito da decisão recorrida.
Quanto a esta questão, atinente ao mérito do que foi decidido, as partes aportavam essencialmente diferente factualidade a dever ser considerada provada/não provada, consoante os respetivos interesses em ver ou não relacionados os bens, e, por decorrência dos erros apontados à decisão de facto do tribunal a quo e à que entendiam dever ser tomada por via das respetivas impugnações de facto, propugnavam a alteração do decidido.
A decisão recorrida decidiu aditar à relação de bens a fração autónoma. O recorrente insurgia-se contra o assim decidido, pugnando pela prova de factos de onde decorreria que o preço tinha sido pago exclusivamente com dinheiro próprio. Não logrou ver levada à matéria de facto a factualidade correspondente, pelo que, está somente provado que o imóvel foi adquirido na constância do casamento, e nada consta da citada escritura quanto à origem do dinheiro que serviu o pagamento do preço. Tendo o imóvel sido adquirido durante o casamento, e sendo as partes casadas no regime de bens comunhão de adquiridos, nos termos do art.1724.º do C.C., há que considerar o imóvel comum, pelo que, tem que ser relacionando.
Mais se determinou aditar à relação de bens os veículos automóveis ….e…., ambos adquiridos durante o casamento como expressamente se refere na decisão recorrida. Também aqui o cabeça de casal pretendia alterar tal decisão por via da visada procedência da sua impugnação da matéria de facto, o que não logrou, pelo que, deve ser mantida a decisão nesse segmento por se tratar de móveis adquiridos na constância do casamento e não resultando provado que o fossem com dinheiro próprio do cabeça-de casal.
E igual solução se impõe quanto aos bens móveis que constituem o recheio da habitação, por não ter decorrido da impugnação da decisão de facto a prova de qualquer facto que ateste que foram pagos com dinheiro próprio do cabeça de casal.
No que concerne ao saldo da conta, procedendo pelas razões acima mencionadas, a pretensão da interessada de ver tal questão apreciada no inventário, com revogação da decisão que remeteu as partes para os meios comuns, e resultando provado que à data da separação existia uma conta bancária com o saldo no valor constante dos factos provados, não se tendo provado que tal quantia provenha de dinheiros próprios do cabeça de casal, (alegadas poupanças derivadas de venda de bens herdados), impõe-se que tal valor seja relacionado no inventário pelo que se determina:
- seja aditado à relação de bens o valor de €22.094,15, relativo ao saldo da poupança associada à conta bancária n.º…., do Banco Santander Totta.
• Compensação requerida pela interessada (art.1676.º n.º2 do C.C.)
Vejamos agora a questão atinente à compensação que a interessada pretende que lhe seja fixada, nos termos do art.1676.º do C.C., normativo com a epígrafe “Dever de contribuir para os encargos da vida familiar” e do qual consta:
1. O dever de contribuir para os encargos da vida familiar incumbe a ambos os cônjuges, de harmonia com as possibilidades de cada um, e pode ser cumprido, por qualquer deles, pela afectação dos seus recursos àqueles encargos e pelo trabalho despendido no lar ou na manutenção e educação dos filhos.
2 - Se a contribuição de um dos cônjuges para os encargos da vida familiar for consideravelmente superior ao previsto no número anterior, porque renunciou de forma excessiva à satisfação dos seus interesses em favor da vida em comum, designadamente à sua vida profissional, com prejuízos patrimoniais importantes, esse cônjuge tem direito de exigir do outro a correspondente compensação.
3 - O crédito referido no número anterior só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação.
4. Não sendo prestada a contribuição devida, qualquer dos cônjuges pode exigir que lhe seja directamente entregue a parte dos rendimentos ou proventos do outro que o tribunal fixar.
O aqui estabelecido decorre do princípio geral consagrado no art.1671.º do CC., onde se afirma no seu n.º1 que “O casamento baseia-se na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges” e “A direcção da família pertence a ambos os cônjuges, que devem acordar sobre a orientação da vida em comum tendo em conta o bem da família e os interesses de um e outro.”, e está relacionado, outrossim, com o que se dispõe no art.1675.º: “1. O dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir para os encargos da vida familiar.”, precisando o já transcrito art.1676.º que o dever de contribuir para os encargos da vida familiar incumbe a ambas os cônjuges de harmonia com as possibilidades de cada um, pelo que, a contribuição de cada um haverá de ser aquela que se harmoniza com as suas possibilidades, e o dever pode ser cumprido quer com a afetação de recursos, desde logo provenientes do seu trabalho profissional ou dos seus rendimentos, mas, também, pelo trabalho despendido no lar (tarefas domésticas e cuidado da casa) ou com a manutenção e educação dos filhos. Por conseguinte, o dever de assistência pode ser cumprido em harmonia com as suas possibilidades, por ambos os cônjuges mesmo quando apenas um se dedica a um trabalho profissional e o outro tem a seu cargo o labor da casa, o cuidado com os filhos e educação destes. Assim, haverá de ser em face da situação concreta e sua configuração que se pode avaliar do cumprimento do correspetivo dever por ambos ou cônjuges ou de eventual incumprimento de qualquer deles. O art.1676.º tem em vista, como dele se colhe, efetivar o equilíbrio entre os cônjuges no que concerne ao dever de assistência a que estão vinculados, em casos em que se pateteie, pelas razões indicadas na norma, uma contribuição de um dos cônjuges para os encargos da vida familiar consideravelmente superior ao que seria devido de harmonia com as suas possibilidades. Como escreve Sandra Passinhas, “O Crédito Compensatório Previsto no Artigo 1676, n.º 2, do Código Civil Português: O que o Legislador Disse e o que Realmente Quis Dizer”, acessível em https://www.fd.uc.pt/~sandrap/pdfs/Sandra_Passinhas_pp_70-89.pdf “..esta norma foi pensada para restabelecer o equilíbrio entre os cônjuges, nas situações em que um deles se sacrificou excessivamente em prol da vida comum, isto é, renunciou à satisfação dos seus interesses individuais em favor da vida familiar, nomeadamente através de trabalho não remunerado. Sempre que, em face dos efeitos patrimoniais do divórcio, agora desligados da declaração de culpa e recusando as sanções económicas que lhe iam associadas, um dos cônjuges sofrer um prejuízo patrimonial importante relativamente ao outro cônjuge - que, em virtude do alívio de que beneficiou ao longo da vida em comum, no período pós-divórcio vai ainda beneficiar do que foi acumulando ao longo da relação conjugal: o tempo para se retemperar e valorizar, para investir em si e eventualmente na sua vida profissional -, cabe ao juiz, em função das circunstâncias do caso concreto, arbitrar-lhe um crédito que atenue ou compense esse desequilíbrio.”
Mas da norma em causa, como se aflorou, não resulta a exigência de uma contribuição igualitária, posto que a medida dessa contribuição se faz pelas possibilidades de cada cônjuge, admitindo-se por isso que possa existir algum desequilíbrio quantitativo ou de alguma especifica natureza, o qual não redundará num incumprimento do cônjuge com uma contribuição menor ou diferente. A contribuição de cada um dos cônjuges será ajustada ao seu dever se, em termos proporcionais às suas possibilidades e capacidades, em termos globais, se encontrar em paridade com o outro cônjuge. Daí que a lei apenas contemple a atribuição da compensação ao cônjuge que tenha tido uma contribuição consideravelmente superior, e, por via disso, renunciou de forma excessiva à satisfação dos seus interesses em favor da vida em comum e, numa segunda decorrência, teve prejuízos patrimoniais importantes. Referindo esta dupla causalidade, Carla Câmara, “A partilha e os Créditos Compensatórios”, III Jornadas de Direito das Famílias e das Crianças, ebook, acessível em https://cej.justica.gov.pt/E-Books, nos seguintes termos “Daqui resulta que para a atribuição do crédito compensatório terão que estar apurados dois nexos causais: O contributo consideravelmente superior ocorreu em razão da renúncia excessiva; Que o prejuízo patrimonial importante seja causado por essa renúncia.”
A lei apela a conceitos indeterminados (“cláusulas gerais”), que haverão de ser densificados caso a caso, mas pode extrair-se de antemão que só há lugar à compensação se a contribuição superior for considerável, irrelevando para o efeito uma contribuição superior que não seja relevante, importante, apelando-se a uma ordem de grandeza significativa, superior. Por outro lado, ainda que a contribuição se tenha por consideravelmente superior se dela não resulta uma renúncia à satisfação dos interesse do cônjuge maior contribuinte, e, se mesmo havendo renúncia, esta não poder considerar-se excessiva (para além do aceitável, do razoável), não há lugar à compensação; e, finalmente, os prejuízos daí decorrentes têm que ser importantes. Quer isto dizer que não é suficiente que o cônjuge que pretenda ser compensado, invoque que participou mais que o outro cônjuge nos encargos da vida familiar, terá que alegar e provar (sobre si impede o ónus probatório) os factos necessários ao preenchimento de todos os indicados requisitos legais, constitutivos do direito à compensação. “Caberá, agora, ao cônjuge prejudicado e que pretenda exigir do outro a correspondente compensação o ónus de provar os factos constitutivos da sua pretensão, de acordo com as regras gerais do ónus da prova: que a sua contribuição para os encargos da vida familiar foi consideravelmente superior ao previsto no n. 1 da mesma norma, porque renunciou de forma excessiva à satisfação dos seus interesses em favor da vida em comum, com prejuízos patrimoniais importantes.” (Sandra Passinhas, ob. cit.).
O direito de um dos cônjuges exigir do outro a referida compensação depende, assim, da alegação e prova dos factos suscetíveis de integrar cada um dos requisitos legais e demostrativos da dupla causalidade já acima identificada. Como salienta Carla Câmara, ob cit. “No preenchimento da previsão que estes conceitos albergam e dos identificados nexos, veja-se a necessidade de alegar factos tendentes a apurar que a contribuição consideravelmente superior se deveu à renúncia (por exemplo, à vida profissional, renúncia total ou parcial) e que desta renúncia advieram, para o renunciante, prejuízos patrimoniais importantes. O trabalho doméstico excessivamente realizado só é compensado porque renunciou à satisfação dos seus interesses, nomeadamente profissionais, daqui advindo prejuízos patrimoniais importantes. A referida renúncia tem de estar relacionada com a vida em comum, a causa única dessa renúncia tem de assentar na opção pela vida em comum, tem de ser em favor dela e por causa dela, e não por qualquer outro motivo. Pode haver renúncia sem prejuízos patrimoniais: O cônjuge pode renunciar a outra ocupação profissional ou a uma formação profissional, sem que dai advenha qualquer melhoria remuneratória a curto ou médio prazo ou a evolução na sua carreira profissional; E sem que tal renúncia seja em razão da contribuição consideravelmente superior que pretende realizar para os encargos da vida familiar, atinentes ao trabalho despendido no lar ou manutenção e educação dos filhos. (…).Por outro lado, não basta a existência de prejuízos patrimoniais, estes têm de ser expressivos, sob pena de não serem compensados. A compensação a atribuir, na situação, por exemplo, de renúncia total ou parcial à vida profissional, há-de ter a medida da perda de capacidade aquisitiva do cônjuge cujo contributo foi consideravelmente superior e, assim, há-de corresponder à diferença entre o rendimento profissional alcançável nas suas circunstâncias e o rendimento profissional que esse cônjuge previsivelmente obteria se não tivesse renunciado, como renunciou, em benefício da vida familiar. O que se pretende, com o reconhecimento deste crédito de que um cônjuge é detentor sobre o outro, é ressarcir o empobrecimento daquele cônjuge, precavendo o aproveitamento injustificado, pelo outro, dos benefícios resultantes do trabalho não remunerado desenvolvido em favor da vida em comum.”, ou, em sentido que temos, neste aspeto, por concordante, como escreve Sandra Passinhas, ob. cit. “O legislador veio esclarecer que a contribuição é superior ao exigível face ao dever de contribuir para os encargos da vida familiar, e está para além do expectável de cada um dos cônjuges, quando o cônjuge “renunciou de forma excessiva à satisfação dos seus interesses em favor da vida em comum”. O critério para a compensação não é, pois, o da desigualdade da contribuição dos cônjuges, mas o do sacrifício da contribuição, o sacrifício de um dos cônjuges em prol da vida familiar. É este sacrifício, esta renúncia excessiva à satisfação dos seus interesses, que vai ser objecto de compensação.”. Contudo, concluir pela verificação desse desequilíbrio, afirmando a presença de uma renúncia excessiva de um dos cônjuges, não é uma evidência, sobretudo, como dá boa nota Carla Câmara, “Nos regimes da comunhão (geral ou adquiridos), o produto do trabalho do cônjuge, que exerce a actividade profissional remunerada, integra a comunhão, pelo que dele dispõem ambos os cônjuges; Ainda aqui, o enriquecimento do cônjuge que exerce a actividade remunerada cujo produto é bem comum, poderá configurar-se o adveniente da maior disponibilidade para se dedicar à sua actividade profissional ou à sua valorização (profissional ou de outra ordem) em razão da menor oneração com o trabalho no lar e a educação dos filhos.” (ob. cit.) .
Decorre do n.º3 do art.1676.º que o crédito compensatório só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação, pelo que, haverá de ser exigido aquando da partilha, em inventário se a ele houver lugar. Compreende-se que tal exigência dependa da dissolução do casamento e se situe na altura da partilha, na medida em que, como já se viu, o direito à compensação visa restaurar o equilíbrio do contributo dos cônjuges durante a vida em comum e restaurar a paridade entre os cônjuges no cumprimento do dever de assistência a que ambos estavam vinculados em virtude do casamento. Se provados os demais requisitos legais, a fixação do montante do crédito está balizada pelos prejuízo importante que venha a provar-se, e, se necessário, à mingua de outros elementos, com recurso à equidade.
Traçadas as linhas gerais do direito à compensação, cuja fixação foi requerida pela interessada, cabe atentar no caso dos autos. A interessada alicerçava o seu pedido nas seguintes alegações “as despesas do dia a dia do casal foram sempre suportadas quase exclusivamente com o salário que a Requerente auferia no exercício da sua actividade profissional”, “uma vez que, ao contrário da Requerente que sempre trabalhou por conta de outrém durante todo o casamento (…)o Cabeça de Casal praticamente só exerceu actividade profissional remunerada durante o primeiro ano do casamento,, “durante o casamento foi também sobre a Requerente que quase sempre recaiu todas as obrigações relacionadas com as tarefas domésticas e a gestão dos cuidados médicos de todo o agregado familiar, bem como o tratamento da maioria dos assuntos administrativos”, e “sempre executou sozinha todas as tarefas domésticas do agregado familiar (limpeza da habitação, manutenção do vestuário de toda a família, preparação das refeições da família…”, concluindo que “em face da supra referida contribuição consideravelmente excessiva para os encargos da vida familiar que a Requerente efectuou com o seu salário mensal como em trabalho em espécie no âmbito da vida familiar ao longo de toda a duração do casamento entre ambos, face à diminuta contribuição salarial e em espécie do Cabeça de Casal, … é de inteira justiça que seja relacionado e reconhecido um crédito a favor da aqui Requerente a título de compensação”. (requerimento de 20.11.2020). Mas, como se deixou dito, o direito à compensação não decorre apenas de um maior contributo financeiro de um dos cônjuges para os encargos da vida familiar, através do produto do seu trabalho, tanto mais que, como também se viu, sendo os cônjuges casados no regime da comunhão de adquiridos o salário ou vencimento integra a comunhão, ou seja, não é um bem próprio do cônjuge que o aufere (art.1724.º do C.C). Ademais, o direito à compensação depende da prova de factos que demonstrem que a contribuição consideravelmente superior para os encargos decorre da renúncia excessiva à satisfação dos interesses do cônjuge renunciante, designadamente, da sua vida profissional, o que lhe causou prejuízo importante. A interessada não logrou provar quaisquer factos suscetíveis de demonstrar tais requisitos, nem factos que evidenciem a necessária causalidade exigida por lei, tanto mais que, exercendo atividade profissional tal como alega durante todo o período do casamento, não havendo renúncia ao exercício de uma profissão, haveria de demonstrar ter o seu mais considerável contributo para a vida em comum implicado a renúncia a outros interesses pessoais, posto que é desta renúncia que haverão de resultar os prejuízos importantes e não já daquela maior comparticipação. Vistos os factos a interessada não logrou provar que era sobre ela que recaía quase em exclusivo as tarefas domésticas e cuidados com a filha, nem que era com o produto do seu trabalho que eram pagas as despesas comuns familiares, o que, ainda assim, seria manifestamente insuficiente porque haveria de provar também a renúncia a outros interesses e quais, e que por ser excessiva lhe causou prejuízos importantes. É pois, indubitável, que o pedido de fixação da compensação tem que improceder, o que se decide.

III- Decisão:
Pelo exposto, acordam os juízes da 8.ª Secção Cível:
a) Julgar improcedente o recurso do cabeça de casal, mantendo-se a decisão recorrida que determinou o aditamento dos bens nela identificados.
b) Julgar parcialmente procedente o recurso da interessada A…, e, em consequência, revogar a decisão recorrida na parte em que remeteu os interessados para os meios comuns e, conhecendo dessas questões, determinar:
-o aditamento à relação de bens do valor de €22.094,15, relativo ao saldo da poupança associada à conta bancária n.º…, do Banco Santander Totta.
-julgar improcedente o pedido de fixação de uma compensação a seu favor ao abrigo do n.º2 do art.1676.º do C.C., dele absolvendo o cabeça de casal.
Custas do recurso do cabeça de casal pelo recorrente;
Custas do recurso da interessada, pela mesma e pelo recorrido cabeça de casal, na proporção de 50% para cada um.

Lisboa, 13.3.2025
Fátima Viegas
Ana Paula Nunes Duarte Olivença
Rui Manuel Pinheiro de Oliveira