CONSUMIDOR
GARANTIA DE BOM FUNCIONAMENTO
GARANTIA DE BOM ESTADO
COMPRA E VENDA
COISA DEFEITUOSA
Sumário

I - Da interligação dos regimes estabelecidos na Lei nº 24/96 de 31/07 e no DL nº 67/2003 de 08/04, o consumidor beneficia da garantia de bom estado e bom funcionamento do bem no período da garantia fixada nos termos legais, sendo que esta garantia de bom funcionamento tem o significado e os efeitos de uma obrigação de resultado, na medida em que durante a sua vigência o vendedor assegura o regular funcionamento da coisa vendida (artº 4º da Lei 24/96 de 31/07 e artºs 2° e 5º nº 1 do Decreto-Lei 67/2003 de 8/4), sendo por isso que dessa garantia resulta a presunção, embora ilidível, de que o vício ou defeito que a coisa móvel venha a revelar nos dois anos após a entrega já existia nessa data (cfr. já citado artº 3° nº 2 do Decreto-Lei 67/2003 de 8/4), com os consequentes reflexos ao nível do ónus probatório: para o exercício dos direitos cobertos pela garantia de bom funcionamento o comprador apenas terá de alegar e provar o mau funcionamento, vício ou defeito do bem móvel no prazo de dois anos, sem necessidade de alegar e provar a específica causa e a sua existência à data da entrega.
II - Se se encontra já decorrido aquele prazo o consumidor não pode beneficiar daquela garantia legal nem dos respectivos reflexos ao nível do ónus probatório decorrentes da mencionada presunção legal.
III - No entanto, como a par dos meios de tutela estabelecidos na Directiva 1994/44/CE, de 25/5, e no Decreto-Lei nº 67/2003, de 8/4, o consumidor goza também do direito a ser indemnizado nos termos gerais, isoladamente ou em conjunto com outros direitos de acordo com as circunstâncias do caso concreto (direito indemnizatório esse contemplado pelo artº 12º nº 1 da Lei 24/96, de 31/7, e pelo artº 8º nº 1 daquela Directiva), tal remete para o regime geral, comum, da compra e venda de coisa defeituosa e significa que, nos termos das disposições conjugadas dos artºs 913º, 914º e 342º nº 1 do CCivil, para efeitos de ressarcimento pelos danos resultantes do invocado defeito, o A. terá de alegar e provar que o evento causador dos danos foi originado por um concreto e especificado defeito do bem e existente à data da entrega do mesmo, ainda que eventualmente oculto.

Texto Integral

Acordam as Juízes na 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
AA, contribuinte fiscal nº … com residência no …,
intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma única de processo comum, contra
“M.M. - Madeira Motores, Lda”, com o NIPC 511 040 474, com sede na Rua D. Ernesto Sena de Oliveira nº 123, 9050-092 Funchal,
tendo no decurso da acção sido chamada a “BMW Portugal, Lda”, por incidente requerido pela Ré.
Alegou o Autor, em síntese, que em 03/09/2021 o veículo automóvel que havia adquirido à Ré sofreu combustão na zona de saída do ar condicionado, causando-lhe estragos, sendo que veículos da mesma série do do Autor estavam abrangidos por uma acção técnica de iniciativa da BMW Portugal e o Autor não recebeu qualquer comunicação para recolha da sua viatura para verificação e substituição de sistemas que poderiam desencadear um incêndio, como outros proprietários de veículos daquela série receberam.
Após o incêndio o veículo foi rebocado para a oficina da Ré, onde permanece há seis meses (reportado à data da petição) sem reparação e sem qualquer comunicação ao A., não obstante interpelação deste para que lhe seja cedido o relatório das causas prováveis do incêndio.
A inerente privação de uso da viatura causa transtornos e danos patrimoniais de pelo menos € 200,00 mensais.
Deste modo concluiu pedindo a condenação da Ré “na assumpção do nexo de causalidade entre a deficiência técnica detetada pelos serviços da Ré, que originou a chamada dos respectivos proprietários para revisão das ditas viaturas e cujas o Autor jamais recebeu e consequente reparação dos danos causados pela deficiência técnica originária e culposa da Ré.
Nos mesmos termos deverá a Ré ser condenada no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais pela privação do uso da viatura pelo tempo supra descrito em não menos de três mil e seiscentos euros.”
A Ré apresentou contestação declinando a responsabilidade pelo pagamento de qualquer indemnização com fundamento, em suma, em que o A. lhe adquiriu o veículo em causa em Setembro de 2013 no estado de usado, não estando já coberto aquando do evento pela garantia fixada em 2 anos pelo DL nº 84/2008, de 21/05 [que alterou o DL nº 67/2003, de 08/04].
Por outro lado, e quanto às comunicações a que o A. alude enviadas a proprietários de veículos do mesmo modelo do do A., sabe que a representante da marca a nível nacional, “BMW Portugal, Ldª”, enviou comunicações da natureza da referida pelo A., não sabendo se foi ou não enviada comunicação equivalente a este e se ele a recebeu ou não. No entanto a Ré, cerca de 3 meses antes da ocorrência, enviou sms daquele índole para o telemóvel que o A. lhe havia indicado como sendo o seu contacto pessoal; contudo o A. não se apresentou nas oficinas para que fosse feita a verificação ao seu veículo. Acresce que não existe evidência de que o evento tenha ficado a dever-se a anomalia no acessório cuja verificação a Ré se dispôs a fizer e comunicou por aquele sms, não tendo sido possível apurar as causas do sinistro no veículo.
Mais pugnou pela irregularidade do mandato e requereu a intervenção provocada da “BMW Portugal, Lda”, em essência por entender que “(…) se alguma responsabilidade vier a ser atribuída à ora R. M. M. – Madeira Motores, Lda., na qualidade de concessionária da marca BMW na Região Autónoma da Madeira, essa responsabilidade será solidária com a representante nacional da marca – a BMW Portugal, Lda., com sede em Lagoas Park, Edifício 11, 2º andar, 2740-244 PORTO SALVO – nos quadros do artº. 497º, nº. 1 do Cód. Civ., assistindo à primeira direito de regresso relativamente às quantias que possa ter de vir a desembolsar, nos termos estabelecidos no nº. 2 do mesmo preceito. (…)”.
O mandato foi regularizado.
Muito embora tenha sido tão só determinada a notificação a que alude o artº 318º nº 2 CPC, a “BMW Portugal, Lda” foi citada e apresentou contestação arguindo a sua ilegitimidade, assim pugnando pela improcedência da sua intervenção.
Arguiu ainda a caducidade dos hipotéticos direitos do Autor à luz do DL nº 383/89, impugnou os factos alegados pelo A. por não conhecer nem ter de conhecer; mais alegou que a circunstância de um veículo se encontrar abrangido por uma acção técnica não significa que padeça de qualquer anomalia ou defeito e, ainda, que os danos causados no veículo e a sua reparação, assim como a privação de uso, não são ressarcíveis de acordo com o regime do DL nº 383/89.
O A. foi notificado para exercer o contraditório relativamente à matéria de excepção aduzida pela ““BMW Portugal, Lda”, porém nada disse.
Notificado para tanto, em sede de audiência prévia realizada em 22/05/2023, o Autor liquidou o pedido relativo à reparação do veículo em € 4.400,00 e o pedido relativo à indemnização pela privação de uso em € 3.600,00.
A Ré e a “BMW Portugal, Ldª” exerceram o contraditório.
Foi proferido despacho saneador no qual, além do mais, dando nota de ainda não ter recaído decisão sobre o incidente de intervenção da “BMW Portugal, Lda”, se entendeu que a circunstância de esta ter intervindo nos autos, designadamente com comparência em audiência prévia, sem ter suscitado a questão conduziu à sanação da eventual irregularidade/nulidade, não arguida, atenta a pacífica intervenção e participação activa da mesma nos autos, e assim se teve a mesma como Ré nos autos.
Seguindo os autos a sua tramitação, foi a final proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu dos pedidos as Rés “M.M. - Madeira Motores, Lda” e “BMW Portugal, Lda”.
Inconformado, veio o Autor interpor o presente recurso de apelação, pretendendo a revogação da sentença proferida, extraindo das suas alegações as seguintes
Conclusões



A Ré contra-alegou pugnando pela confirmação do julgado, alinhando as seguintes
Conclusões
1ª – A relação jurídica em causa é enquadrável na Lei nº. 24/96, de 31 de Julho, que estabelece o regime legal aplicável à defesa dos consumidores, considerado como tal todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados ao uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.
2ª – No dia 3 de Outubro de 2021, em que ocorreu o sinistro de que se ocupam os autos, a viatura marca BMW, matrícula ..-DV-.. não beneficiava de qualquer garantia associada à respectiva venda.
3ª – No caso “sub judice” não se provou qualquer factualidade subsumível a um eventual incumprimento contratual por parte da R. M. M. – Madeira Motores, Lda..
4ª – “In casu”, não se apurou a existência de responsabilidade civil extracontratual por parte da Ré acabada de referir, na medida em que não estão preenchidos os respectivos pressupostos, “maxime” o nexo de causalidade entre a conduta daquela e o evento ocorrido no dia 3 de Outubro de 2021 com a viatura marca BMW, matrícula ..-DV-...
5ª – Constituem pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos os seguintes: i) a existência de um facto voluntário praticado pelo agente; ii) a ilicitude; iii) a culpa; iv) o dano e v) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
6ª – A declaração que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida; as outras, logo que a vontade do declarante se manifesta de forma adequada.
7ª – Considera-se também eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida.
8ª – Ao declarante incumbe o ónus da alegação e prova da expedição ou notificação da declaração e da expedição ter sido feita para o destino a que corresponde a esfera de acção e recepção do destinatário/declaratário antecipadamente conhecido e ou acordado.
9ª – Incumbe ao destinatário/declaratário a contra-prova da falta de concretização da recepção no destino da declaração.
10ª – No caso “sub judice”, o Apelante não logrou demonstrar que a alegada não recepção das mensagens que lhe foram enviadas pela Apelada M. M. – Madeira Motores, Lda. para efectuar a verificação da ficha do estágio final do ventilador da viatura marca BMW, matrícula ..-DV-.., tenha ficado a dever-se a causa imputável à segunda.
11ª – No caso em apreço, o Recorrente não conseguiu provar a existência de nexo de causalidade entre a falta da verificação técnica a que alude a cláusula precedente e o sinistro ocorrido na sua identificada viatura.
12ª – A “prova livre” significa prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos, ditados pela lei.
13ª – A questão da credibilidade ou não de uma testemunha insere-se no âmbito da livre apreciação das provas pelo julgador, estando a sua sindicância fora das competências do Tribunal de recurso, excepto se existirem outras provas que imponham decisão diversa.
14ª – Quando a decisão de facto se mostre suficientemente motivada, o recorrente que a impugne, mormente, por discordar do modo como foram valorados (ou não valorados) determinados depoimentos, não poderá limitar-se a alegar vagamente o seu desacordo; deverá identificar clara e concretamente as suas razões, sob pena – caso não tenha observado os ónus formais da impugnação – de improcedência do recurso, numa argumentação lógico-racional alternativa à da sentença.
15ª – Para colocar em causa a convicção formada pelo Tribunal “a quo”, é necessário demonstrar que a mesma assenta em pressupostos que são logicamente inaceitáveis ou impossíveis, designadamente por contrariarem regras de experiência comum.
16ª – Caso se considere que no recurso interposto o Apelante impugna também a matéria de facto provada e não provada, nesta parte o recurso deve ser liminarmente rejeitado, na medida em que, manifestamente, não cumpre os ónus previstos nas alíneas a), b) e c) do nº. 1 do artº. 640º do Cód. Proc. Civ., bem como na alínea b) do nº. 2 do mesmo preceito.
17ª – Em sede de apelação, é possível reconduzir a impugnação da decisão de facto a três grandes conjuntos de motivos: i) insuficiência/deficiência da motivação, em si mesma; ii) vícios de raciocínio expressos na motivação; e iii) falhas objectivas de exactidão.
18ª – Relativamente ao recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não há lugar a despacho de aperfeiçoamento das conclusões das alegações, na medida em que, como decorre das disposições conjugadas dos artºs. 639º, nº. 3 e 652º, nº. 1, alínea a) do Cód. Proc. Civ., tal convite apenas é legalmente admissível quanto à matéria de direito.
19ª – A douta sentença recorrida fez uma correcta aplicação do direito à matéria de facto, aliás, criteriosamente apurada, “maxime” do disposto nos artºs. 224º, nºs. 1 e 2; 487º e 879º do Cód. Civ. e, bem assim, dos artºs. 607º, nºs. 2, 3, 4, 5 e 6 e 608º, nº. 2 do Cód. Proc. Civ..
20ª – Procedem as Conclusões 3, 1ª parte; 5 – excepto quanto aos adjectivos “lacónicos e mal escritos” – do recurso interposto; improcedem as Conclusões 2; 3, 2ª parte; 4; 6 e 8 e as demais mostram-se inócuas.
Termos em que, não só pelo modestamente alegado, mas, sobretudo, pelo que doutamente vier a ser suprido, deve ser negado provimento ao recurso interposto e confirmada integralmente a douta sentença recorrida.
Também a Interveniente contra-alegou, defendendo o acerto da sentença, terminando com as seguintes
CONCLUSÕES
A. O presente recurso vem interposto de sentença datada de 13.05.2024, nos termos da qual o Tribunal a quo julgou a ação totalmente improcedente, absolvendo as Rés dos pedidos contra si formulados.
B. Entendeu o Tribunal a quo que, não estando o Veículo coberto por qualquer garantia à data do incidente térmico, e não se verificando qualquer facto ilícito praticado pelas Rés, não podiam as Rés, ora Recorridas, ser responsabilizadas nos termos peticionados.
C. Inconformado, o Autor, ora Recorrente, veio interpor recurso, por entender que se trata de um potencial defeito de fabrico.
D. Contudo, não lhe assiste razão, devendo manter-se a sentença recorrida, a qual não merece qualquer reparo. Vejamos.
E. O Recorrente alega que foram erradamente dados como provados os factos H) e I), referentes a mensagens SMS enviadas da 1ª Ré para o telemóvel n.º …, que o Recorrente havia deixado como sendo o respectivo contacto pessoal, informando sobre a necessidade de verificação da ficha do estágio final do ventilador.
F. Considera o Recorrente não estar demonstrado que o condutor habitual do Veículo tenha recebido as mensagens em questão.
G. Acontece que, em audiência de julgamento, a testemunha …, funcionária da 1.ª Ré, comprovou o envio de três mensagens SMS, nas quais se informava acerca da ação técnica em causa, mensagens que foram recebidas pelo seu destinatário.
H. De igual modo, o condutor habitual de Veículo confirmou, aquando do seu depoimento na audiência de julgamento, que o número de telemóvel para o qual foi enviada a mensagem é seu, sendo esse o contacto deixado pelo Recorrente como contacto pessoal.
I. Conclui-se, pois, que o condutor habitual do Veículo foi notificado para se dirigir à oficina para realização da campanha técnica, tendo optado por não o fazer.
J. Acresce que, nos termos do artigo 224.º, n.º 1, do Código Civil, “a declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida”.
K. Por sua vez, nos termos do n.º 2 e n.º 3 daquele artigo a contrario, a declaração negocial presume-se eficaz a não ser que o destinatário prove que, sem culpa sua, não tomou conhecimento da mesma.
L. Assim, não tendo o Recorrente logrado provar que não rececionou aquelas mensagens, tem-se por demonstrado que o mesmo as recebeu, mostrando-se, assim, devidamente cumprida a obrigação que sobre as Rés impendia.
M. O Recorrente refere ainda, a este propósito, a estranheza subjacente aos diversos métodos usados pelas Rés para a notificação acerca da campanha técnica. Também este argumento não pode proceder.
N. No âmbito de uma ação técnica, cabe aos concessionários, uma vez notificados pela BMW, notificar os proprietários dos veículos abrangidos pela campanha técnica da forma mais célere possível, recorrendo aos meios que tenham imediatamente ao seu dispor.
O. Ora, o envio de três mensagens SMS para o contacto indicado como sendo do proprietário do Veículo é um meio idóneo ao fim em causa.
P. Invoca, também, o Recorrente a inexistência de um relatório de causas do incidente térmico.
Q. Não obstante, foi o próprio Recorrente, ou o condutor habitual do Veículo, que se desinteressou pelas causas do incidente térmico, nada tendo feito no sentido de apurar as causas do mesmo.
R. Ademais, ao contrário do que o Recorrente alega, nenhuma acusação foi feita no sentido de a causa do objeto em litígio se dever à realização das revisões do Veículo em concessionário não autorizado da BMW.
S. Simplesmente, a BMW Portugal desconhece se as manutenções recomendadas pela marca para o Veículo em causa foram feitas e, em caso afirmativo, se o foram de forma atempada e adequada.
T. Contrariamente ao que o Recorrente pretende estabelecer, não resulta da prova dos autos, mormente do depoimento da testemunha …, que o Veículo em causa padecia de um qualquer defeito de fabrico, mas tão-somente a existência de uma campanha técnica de mera verificação, no âmbito da qual, apenas em caso de necessidade, haveria que proceder à substituição de algum componente.
U. Por fim, quanto ao ónus da prova, alega o Recorrente que a sentença deverá ter por base as regras da experiência comum.
V. De qualquer modo, sempre se diga que, no caso em apreço, as regras da experiência jogam a favor das Rés: (i) o Veículo em causa tem data de primeira matrícula de 2007, i.e., 14 anos antes do incidente térmico, (ii) as revisões e/ou manutenções foram sendo efetuadas em concessionários não autorizados da rede BMW, (iii) o condutor do Veículo foi informado da existência de uma campanha técnica e necessidade de levar o Veículo a uma oficina para o mesmo ser revisto, não o tendo feito e (iv) mesmo depois do incidente térmico, o Recorrente abandonou o Veículo nas instalações da 1.ª Ré, nunca tendo demonstrado interesse no levantamento do mesmo.
Sem prescindir,
W. Acresce que, pelo menos na última parte das alegações a que ora se responde, o Recorrente não cumpre, ainda que minimamente, com o ónus que sobre si impende nos termos do artigo 640.º, n.º 1, do CPC.
X. Pelo que, o presente recurso deverá ser liminarmente rejeitado.
Y. Conclui-se, assim, que a decisão ora em crise não padece de um qualquer erro na interpretação dos factos e das normas jurídicas, não tendo o Tribunal a quo incorrido num qualquer erro de julgamento.
Nestes termos, e demais de Direito que V. Exas., Venerandos Desembargadores, não deixarão de suprir, deve ser julgado totalmente improcedente o recurso interposto pelo Recorrente e, consequentemente, mantida a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo.
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Colhidos os vistos, importa apreciar e decidir.
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O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das partes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 662º nº 2, todos do Código de Processo Civil), sendo que o Tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. artº 5º nº3 do mesmo Código).
Assim no caso, as questões a decidir são as seguintes:
- da impugnação da matéria de facto
- da revogação da decisão de mérito
Questão Prévia
A tramitação processual, da qual respigámos as incidências mais relevantes constantes do relatório supra, demonstra que a “BMW Portugal, Lda” foi chamada aos autos como interveniente, pelo que, sem prejuízo do que abaixo explanaremos, o rigor processual impõe que seja nessa qualidade que a mesma deva ser referida; razão pela qual na matéria de facto infra a menção que lhe é feita como 2ª Ré deva ser lida como interveniente.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A) DE FACTO
Na sentença sob recurso foi considerada a seguinte a factualidade:
Factos provados
«A) A 2.ª ré BMW Portugal dedica-se a actividades de importação, distribuição, comércio, reparação e manutenção de veículos, nomeadamente de automóveis e motociclos, incluindo peças e acessórios, bem como outras actividades com estas, direta ou indiretamente, relacionadas ou conexas.
B) A 2.ª ré, regra geral, não vende viaturas a clientes finais, nem procede à sua reparação; de um modo geral, apenas estabelece relações contratuais com os seus concessionários e reparadores autorizados, i.e., não tem actividade de retalho conexas.
C) A 1.ª ré M.M. - Madeira Motores, Lda. é concessionária da marca BMW, na Região Autónoma da Madeira.
D) O autor AA adquiriu junto da 1.ª ré um veículo automóvel da marca BMW, modelo 320, com a matrícula ….
E) A 2.ª ré não produziu o veículo automóvel da marca BMW, modelo 320, com a matrícula ….
F) O ano de primeira matrícula veículo automóvel da marca BMW, modelo 320, com a matrícula … é 2007.
G) Desde 25 de Setembro de 2013 que a propriedade veículo automóvel da marca BMW, com a matrícula …, se encontra registada a favor do autor, por compra à 1.ª ré, no estado de usado.
H) Em 17 de Maio de 2021, a 1.ª ré enviou ao autor um SMS para o telemóvel n.º …, que o mesmo havia deixado como sendo o respectivo contacto pessoal, do seguinte teor:
“Boa Tarde. O seu BMW 320 … tem de efectuar uma verificação da ficha de estágio final do ventilador. Para agendar o mais breve possível a verificação 291930304. Informamos que a execução da medida é gratuita. Obrigado Madeira Motores, Lda.”
I) Em 07/06/2021 e em 25/06/2021, a 1.ª ré reenviou ao autor o SMS identificado em H).
J) Não obstante o envio das mensagens referenciadas em H) e I), o proprietário da viatura em causa, ora autor, nunca se apresentou nas oficinas da 1.ª ré, a fim de efectuar a verificação do equipamento nos termos solicitados.
K) No dia 03 de Setembro de 2021, o veículo automóvel com a matrícula …, conduzido por BB, sobrinho do autor e devidamente autorizado, enquanto se encontrava estacionado no espaço reservado ao estabelecimento comercial “Recheio”, sito no Funchal, sofreu incêndio na zona da saída do ar condicionado, lado direito.
L) Tendo danificado o tablier, guarda-luvas, fios eléctricos, tubagens.
M) Posteriormente ao evento, no mesmo dia, o veículo automóvel foi rebocado até à oficina da 1.ª é, onde permanece.
N) O autor teve conhecimento que proprietário de veículo automóvel da marca BMW, modelo 318D UL recebeu uma missiva da 2.ª ré, sob o assunto “acção técnica” com o seguinte teor:
“De acordo com os nossos registos, é o(a) proprietário(a) do BMW supramencionado.
No âmbito dos controlos de qualidade constantemente realizados na BMW, verificou-se que, com o tempo, poderá ocorrer uma deterioração da ligação de ficha da cablagem para o estágio final do ventilador. Nalguns casos, tal poderá provocar um sobreaquecimento e um curto-circuito no contacto de encaixar. Em casos raros, poderá provocar um incêndio.
Gostaríamos de nos certificar de que a sua viatura se encontra em perfeitas condições, pelo que a ligação de ficha de estágio final do ventilador deve ser verificada e retificada. Caso se mostre necessário, o estágio final do ventilador será substituído.
Por isso, pedimos-lhe que agende uma visita à oficina do seu Concessionário, ou ao seu Reparador Autorizado BMW, a curto prazo. A execução da medida é, obviamente, gratuita para si. (…)”
O) A 1.ª ré, através do seu Il. Mandatário, informou a Ilustre Mandatária do autor que após ter analisado o veículo em conjunto com a BMW Portugal, no estado em que o mesmo se encontra e sem desmontagem de componentes, não foi possível apurar quais as causas do sinistro no veículo.
P) A 1.ª ré não reparou o veículo automóvel com a matrícula ….
Q) A circunstância de o veículo automóvel com a matrícula … se encontrar abrangido por uma acção técnica não significa que o mesmo padecesse de qualquer anomalia de funcionamento.
R) As acções técnicas são procedimentos transversais a todas as marcas, em que, regra geral, os concessionários, com o apoio da marca, procedem à análise e eventual substituição ou reparação de componentes.
S) A campanha técnica não significa por si só a existência de um defeito.
T) Pelo contrário: a maioria dos veículos abrangidos pela campanha técnica não são objecto de qualquer intervenção, por os veículos não terem qualquer defeito passível de originar um incidente térmico.
U) Com efeito, a função do concessionário seria de verificação e, apenas em caso de necessidade, trocar o estágio final do ventilador.»
Factos não provados
«1) Carta que o autor jamais recebeu.
2) Não obstante interpelação para cedência de relatório das causas prováveis do incêndio, no dia 21 de Outubro de 2023, a 1.ª ré continua nada transmitiu atinente ao estado do veículo automóvel.
3) A privação de uso da viatura pelo proprietário ou a quem o mesmo designar causou transtornos e danos patrimoniais avaliados em pelo menos duzentos euros mensais.».
B) DE DIREITO
Da impugnação da matéria de facto
Da motivação das suas alegações alcança-se que o A. se insurge contra o facto provado H), embora se lhe refira como G).
É sabido ser ónus imposto ao Recorrente a apresentação de alegações, nas quais deve concluir, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão (cfr. artº 639º nº 1 CPC), sendo as conclusões que delimitam a área de intervenção do Tribunal ad quem (cfr. artº 635º nº 4 CPC), equivalendo as mesmas ao pedido.
Por outro lado, é igualmente sabido que o artº 640º CPC impõe ao Recorrente ónus próprios quando impugne a decisão da matéria de facto.
De acordo com o estipulado no seu nº 1 als. a), b) e c), quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto deve o Recorrente, sob pena de rejeição, obrigatoriamente especificar na motivação da alegação os concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios que impunham diversa decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, e a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; e quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao Recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes (nº 2 al. a) do citado artº 640º).
Já quanto às conclusões, atenta a sua essência sintética mas tendo em conta as suas funções delimitadora e definidora do âmbito do recurso, delas deve obrigatoriamente constar a especificação dos concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados, não sendo forçoso que delas conste a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações, nem a decisão alternativa pretendida [cfr. Acórdão do STJ de 12/07/2018, proc. 167/11.2TTTVD.L1.S1, in www.dgsi.pt e Acórdão Uniformizador nº 12/2023, de 17/10/2023 (proc. 8344/17.6T8STB.E1‑A.S1) publicado no Diário da República I série, de 14/11/2023].
Da motivação das alegações vê-se que o Recorrente se insurge contra o facto provado H), apesar de se lhe referir como G, mas delas não se descortina qual a decisão que no seu entender deveria recair sobre esse facto, pois o mesmo não diz em que sentido deveria ser aquele facto considerado: deveria ser tido por não provado, provado com outra redacção, com algum aditamento? Ou (numa leitura possível do ponto 9 da motivação) pretenderia porventura o aditamento de um novo facto relativo à não recepção das mensagens sms?
Por outro lado, o Recorrente funda a sua discordância quanto ao facto provado H) no depoimento de MP, mas não indica com exactidão as passagens da gravação desse depoimento em que se baseia, nem sequer transcreve excertos do depoimento que considere relevantes, remetendo, sim, para a integralidade da transcrição do depoimento que constitui documento anexo à motivação de recurso.
Apesar de aludir aos depoimentos de JR e de JU fá-lo apenas para manifestar a sua estranheza por ter sido atribuída maior credibilidade a esses depoimentos do que ao de MP, sendo que quanto à testemunha JR remete também para a totalidade da transcrição do respectivo depoimento, mediante indicação de que o mesmo ocorreu no dia 18/03/2024 com início às 11h13 e fim às 11h18m40s.
E nas conclusões, que exercem a função de pedido, não especifica o facto ou factos que pretenderia ver reponderados.
É, assim, patente que o Recorrente não satisfez os ónus impostos pelo artº 640º CPC, os quais expressam o princípio da auto-responsabilização das partes, que de modo inequívoco devem transmitir ao Tribunal de recurso o objecto sobre o qual pretendem que exerça a sua função de reapreciação e sindicância.
Acresce que o conhecimento da impugnação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação haverá de se revelar necessário e relevante para a apreciação das questões objecto do recurso, donde, evidenciando-se que a alteração dos factos pretendida não tem a virtualidade de se repercutir na decisão final do recurso, alterando ou modificando os termos da questão a apreciar, o Tribunal superior não tem que conhecer do recurso sobre a impugnação da matéria de facto (ou conhecê-lo na sua totalidade). Neste sentido, entre outros, Ac. STJ de 03/11/2023 (Mário Belo Morgado) e Ac. TRL de 26/09/2019 (Carlos Castelo Branco).
E no caso, como se demonstrará de seguida, mesmo que cabalmente satisfeitos os ónus estabelecidos pelo artº 640º CPC, a reapreciação de facto sempre se mostraria inútil por a decisão a tomar se colocar do estrito domínio do Direito.
Deste modo, improcede este aspecto do recurso.
Da revogação da decisão de mérito
A presente acção foi intentada por AA contra “M.M. - Madeira Motores, Lda” que lhe vendeu o veículo da marca BMW matrícula … no estado de usado e no qual eclodiu um incêndio quando estava estacionado, peticionando aquele a condenação desta “na assumpção do nexo de causalidade entre a deficiência técnica detetada pelos serviços da Ré, que originou a chamada dos respectivos proprietários para revisão das ditas viaturas e cujas o Autor jamais recebeu e consequente reparação dos danos causados pela deficiência técnica originária e culposa da Ré.
Nos mesmos termos deverá a Ré ser condenada no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais pela privação do uso da viatura pelo tempo supra descrito em não menos de três mil e seiscentos euros.”, tendo o Autor, a convite do Tribunal, vindo a liquidar o pedido relativo à reparação do veículo em € 4.400,00 e o pedido relativo à indemnização pela privação de uso em € 3.600,00.
A despeito de tal não resultar expresso na petição, do pedido formulado se alcança que o A. sustenta a sua pretensão em alegado defeito do veículo que terá estado na origem do incêndio que espontaneamente nele deflagrou e lhe causou danos cuja reparação o A. reclama, além de indemnização pela inerente paralisação do veículo.
Não tendo o A. apresentado qualquer enquadramento jurídico para a sua pretensão (quer na petição, quer agora em sede de recurso), atenta a invocada relação contratual é de entender que o A. sustenta a sua pretensão no confronto com a Ré “M.M. - Madeira Motores, Lda” no regime da compra e venda de coisa defeituosa.
O regime previsto nos artºs 913° e seguintes do Código Civil não é o único que rege a venda de coisas defeituosas; também o regime relativo à venda de bens de consumo o faz, e este apresenta variadas especificidades.
A Directiva 1994/44/CE, de 25/5, veio regular determinados aspectos da venda de bens de consumo e das garantias dos consumidores, vindo a ser transposta para o direito interno pelo Decreto-Lei nº 67/2003, de 8/4 [cujo regime é aplicável ao caso dos autos porquanto o DL nº 84/2021, de 18/10, que o revogou, entrou em vigor em 01/01/2022 (cfr. seu artº 55º) e em matéria de contratos de compra e venda de bens móveis e de bens imóveis apenas é aplicável aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor – cfr. seu artº 53º nº 1].
Essa Directiva, enquadrando-se nos propósitos de contribuição para a realização de um nível elevado de defesa dos consumidores na União Europeia, da criação de regras comuns de Direito do Consumo, procura proteger os consumidores relativamente à aquisição de bens defeituosos, reportando-se à venda de bens de consumo efectuada por vendedor profissional a comprador que seja consumidor (cfr. se vê dos artºs 1º nº 1 e 1º-A nº 1 do Decreto-Lei nº 67/2003, na redacção aplicável ao caso vertente).
Bem de consumo é qualquer bem imóvel ou móvel corpóreo, incluindo os bens em segunda mão (cfr. artº 1º-B al. b); vendedor, nos termos do artº 1º-B al. c), é qualquer pessoa singular ou colectiva que, ao abrigo de um contrato, vende bens de consumo no âmbito da sua actividade profissional; e é consumidor aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do nº 1 do artigo 2º da Lei nº 24/96, de 31 de Julho (cfr. artº 1º-B al. a) do citado DL), assim remetendo expressamente para o conceito de consumidor previsto na Lei nº 24/96, de 31/07.
Estabelece-se no artº 2º nº 1 do Decreto-Lei 67/2003, de 8/4, a regra de que os bens devem ser conformes com o contrato de compra e venda, enunciando o nº 2 do mesmo normativo os casos em que se presume que os bens de consumo não são conformes com o contrato.
De acordo com o artº 3º nº 1 do Decreto-Lei 67/2003 de 8/4, o vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue, acrescentando o nº 2 do preceito que as faltas de conformidade que se manifestem no prazo de dois anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea (no que ao caso interessa) presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade.
Portanto, o vendedor responde pelo falta de conformidade existente no momento em que entrega o bem móvel ao consumidor e estabelece-se a presunção de que as faltas de conformidade manifestadas no prazo de dois anos a partir da entrega já existiam nessa data.
Trata-se de presunção legal instituída a favor do consumidor, em coerência com os fins de protecção do consumidor a que se destinam o diploma legal e a Directiva que ele transpõe, o qual, não fora essa presunção, suportaria um duplo ónus : o de alegar e provar a falta de conformidade e o de alegar e provar que o defeito, embora manifestado ou exteriorizado em momento ulterior, já se verificava aquando da entrega do bem.
Esta presunção legal, de que o defeito já se verificava à data da entrega do bem, não é aplicável quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade (cfr. artº 3º nº 2, “in fine”, acima citado), exclusão concebida pelo legislador para os casos em que o bem esteja sujeito a um prazo de validade ou seja de consumo de curto prazo.
Os direitos do consumidor, como decorre do já citado artº 1º-B al. b), são tutelados em caso de venda de coisas móveis usadas, e neste caso o prazo mínimo de protecção pode ser reduzido a um ano mas apenas se houver acordo das partes (artº 5º nº 2 do Decreto-Lei 67/2003 de 8/4), o que os autos não revelam se tenha verificado, como igualmente não se mostra em causa o estabelecimento de “garantias voluntárias” reguladas pelo artº 9º do diploma, as quais, de todo o modo, não podem afastar o conteúdo mínimo da garantia/tutela legal (cfr. se vê do artº 9º nº 3 al. a)).
Um dos meios de tutela do consumidor consiste na reposição do bem, sem encargos, por meio de reparação ou de substituição (cfr. artº 4º nº 1 do Decreto-Lei 67/2003 de 8/4), sendo precisamente a reparação que o A. pretende, só se encontrando afastado o exercício daquele ou de qualquer dos direitos conferidos ao consumidor no artº 4º nºs 1 a 4 do DL 67/2003 de 8/4, se o direito pretendido exercer se manifestar impossível ou constituir abuso de direito nos termos gerais (cfr. artº 4º nº 5 daquele diploma, em clara remissão para o artº 334º do CCivil).
A par dos meios de tutela enunciados na Directiva e no Decreto-Lei acima mencionados, o consumidor goza também do direito a ser indemnizado, podendo esta faculdade ser usada isoladamente ou em conjunto com outros direitos, de acordo com as circunstâncias do caso concreto.
É que, apesar de não estar expressamente previsto na Directiva nem no DL 67/2003 de 8/4, que a transpôs (e aplicável ao caso dos autos), o direito a indemnização deve considerar-se aplicável por recurso às regras gerais, nomeadamente por aplicação do artº 12º nº 1 da Lei 24/96, de 31/07 (Lei de Defesa do Consumidor), tendo ademais em vista que um dos objectivos da Directiva foi o estabelecimento de um conteúdo mínimo de protecção do consumidor, e nessa senda prescreveu que o exercício dos direitos dela resultantes não prejudica o exercício de outros direitos que o consumidor possa invocar ao abrigo de outras disposições nacionais relativas à responsabilidade contratual ou extracontratual (cfr. artº 8º nº 1 da Directiva).
Atentemos então no caso em apreço.
Os factos provados C e D denotam que, nos termos e para os efeitos da Lei nº 24/96 de 31/07 e do DL nº 67/2003 de 08/04, o A. tem a qualidade de consumidor e a R. tem a qualidade de vendedor.
Tal significa, face ao regime que acima explanámos, que o A. beneficiava da garantia de bom estado e bom funcionamento do veículo no período da garantia fixada nos termos legais, sendo que esta garantia de bom funcionamento tem o significado e os efeitos de uma obrigação de resultado, na medida em que durante a sua vigência o vendedor assegura o regular funcionamento da coisa vendida (artº 4º da Lei 24/96 de 31/07 e artºs 2° e 5º nº 1 do Decreto-Lei 67/2003 de 8/4), sendo por isso que dessa garantia resulta a presunção, embora ilidível, de que o vício ou defeito que a coisa venha a revelar nos dois anos após a entrega já existia nessa data (cfr. já citado artº 3° nº 2 do Decreto-Lei 67/2003 de 8/4), com os consequentes reflexos ao nível do ónus probatório nos termos que acima explanámos, isto é : para o exercício dos direitos cobertos pela garantia de bom funcionamento o comprador A. apenas terá de alegar e provar o mau funcionamento, vício ou defeito do veículo, coisa móvel, no prazo de dois anos, sem necessidade de alegar e provar a específica causa e a sua existência à data da entrega.
Ora, no caso o A. adquiriu o veículo à Ré em Setembro de 2013, como decorre do facto provado G, e o incêndio causado pelo alegado defeito ocorreu em Setembro de 2021 (a 03/09) como revela o facto provado K, portanto 8 anos depois da aquisição, não podendo, por conseguinte, o A. beneficiar da garantia legal a que aludimos nem dos reflexos ao nível do ónus probatório decorrentes da presunção legal mencionada, que constituem garantias (em sentido amplo) que o Decreto-Lei 67/2003 de 8/4, nos termos supra ditos, confere ao comprador consumidor.
No entanto, como acima tivemos oportunidade de enunciar, a par dos meios de tutela estabelecidos na Directiva 1994/44/CE, de 25/5, e no Decreto-Lei nº 67/2003, de 8/4, o consumidor goza também do direito a ser indemnizado nos termos gerais, isoladamente ou em conjunto com outros direitos, de acordo com as circunstâncias do caso concreto, encontrando-se esse direito indemnizatório contemplado pelo artº 12º nº 1 da Lei 24/96, de 31/7, e pelo artº 8º nº 1 daquela Directiva.
Tal remete-nos para o regime geral, comum, da compra e venda de coisa defeituosa e significa que, nos termos das disposições conjugadas dos artºs 913º, 914º e 342º nº 1 do CCivil, para efeitos de ressarcimento pelos danos resultantes do invocado defeito, o A. teria de alegar e provar que o incêndio causador dos danos foi originado por um concreto e especificado defeito do veículo existente à data da entrega do bem, ainda que eventualmente oculto. E o Autor não alegou na petição - momento processual próprio para tanto - nenhuns factos tendentes a essa prova.
Assim, afastada a responsabilidade contratual da Ré, apenas por via da responsabilidade extracontratual o A. lograria alcançar a indemnização reparatória dos danos.
No seio da responsabilidade extracontratual a lei distingue entre responsabilidade por factos ilícitos – que encontra o seu regime nos artºs 483º ss. do CCivil – e responsabilidade pelo risco – que se mostra regulada nos artºs 499° a 510° do mesmo compêndio legal [sem prejuízo de na regulamentação desta fazer frequentes apelos à culpa, como acontece nos artºs 500° nº 3, 503 nº 3 e 506° todos do Código Civil, e de mandar cumprir, na parte aplicável e na falta de preceitos legais em contrário, as disposições que regulam a responsabilidade por factos ilícitos – cfr. artº 499° do CCivil].
Quanto à responsabilidade por factos ilícitos estabelece o artº 483º CCivil, consagrando os respectivos princípios gerais, que "Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".
Por isso, atento o disposto pelos artºs 487º nº 1 e 342º nº 1 CCivil, para alcançar o seu desiderato o A. teria que fazer prova sobre os factos integradores de todos os pressupostos, porque eles são de verificação cumulativa, da responsabilidade por factos ilícitos, a saber : a) o facto lesivo; b) a ilicitude; c) a imputação do facto ao lesante; d) o dano; e) um nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano.
Ora, no caso não foram alegados e, por conseguinte, não foram provados factos susceptíveis de imputar responsabilidade dessa natureza à Ré.
Na verdade, se tivermos presente que o facto se reporta ao facto lesivo praticado voluntariamente pelo agente lesante [doloso ou negligente, por acção ou omissão], no sentido de acto/facto dominável pela vontade, teremos de concluir que tal pressuposto da responsabilidade civil não se verifica : por um lado, o facto lesivo radica no incêndio cuja eclosão ocorreu de modo espontâneo, não podendo ser, e não foi, imputado a qualquer conduta da Ré, à qual, neste domínio foi imputada, outrossim, a não comunicação ao Autor da necessidade de recolha da sua viatura para verificação e (se necessária) substituição de sistemas que poderiam desencadear um incêndio, facto este que é refutado pela matéria de facto provada, uma vez que a Ré enviou para o número de telemóvel que o A. lhe havia deixado como sendo o respectivo contacto pessoal três sms`s, a saber em 17/05/2021, 07/06/2021 e 25/06/2021, comunicando que o veículo do A. tinha de efectuar uma verificação da ficha de estágio final do ventilador, para agendar o mais breve possível essa verificação, com indicação do contacto telefónico para o efeito e que a execução da medida era gratuita (cfr. factos provados H e I).
Essas mensagens telefónicas constituem declarações reptícias às quais é aplicável o disposto pelo artº 224º do CCivil, cujo nº 1 estabelece que a declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida, sendo que de acordo com o seu nº 2 é também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida.
Ora, no caso as ditas mensagens foram enviadas para o telemóvel que o A. havia deixado à Ré como sendo o respectivo contacto pessoal, pelo que a eventual não recepção das mesmas apenas ao A. pode ser assacada, sendo, portanto, essas mensagens eficazes. Desse modo, a circunstância de o Autor nunca se ter apresentado nas oficinas da R. para efectuar a verificação daquele componente (cfr. facto provado J) apenas a ele é imputável e não à Ré.
Uma vez que, como dito, os requisitos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos são de verificação cumulativa, quanto antecede basta para concluir pela irresponsabilidade da R. a esse título.
Mas se a responsabilidade por factos ilícitos, a que nos vimos referindo, é de índole subjectiva, importando um facto voluntário [doloso ou negligente, por acção ou omissão] sendo‑lhe inerente a ilicitude e a culpa, já a responsabilidade pelo risco é de índole objectiva sendo sua nota dominante a ausência do elemento subjectivo, maxime da culpa.
E assim é porque o fundamento da responsabilidade pelo risco não reside no propósito de um acto culposo, mas sim no controle de um risco, ou, com maior rigor, no controle de potenciais danos, aliado ao princípio da justiça distributiva, segundo a qual quem tiver o benefício de uma certa coisa deve suportar os correspondentes encargos, de acordo com o princípio ubi commodum ibi incommodum.
Deslocado agora o foco da apreciação para este domínio, o caso vertente remete-nos para o artº 503º nº 1 do CCivil segundo o qual “Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação” [sublinhado nosso].
Acerca dos riscos próprios do veículo Dário Martins de Almeida (in “Manual de Acidentes de Viação”, 9ª Edição, Almedina, 1980, pág. 314-317) assinala que «É difícil definir com precisão o que sejam os riscos próprios do veículo. Estamos perante aquilo que, de algum modo, é possível arrumar na categoria de conceito normativo, de fronteiras pouco definidas, funcionando, portanto, como conceito indeterminado, a preencher, na sua revelação concreta, por processos casuísticos (…). No risco, compreende-se tudo o que se relacione com a máquina enquanto engrenagem de complicado comportamento, com os seus vícios de construção, com os excessos ou desequilíbrios da carga do veículo, com o seu maior ou menor peso ou sobrelotação, com a sua maior ou menor capacidade de andamento, com o maior ou menor desgaste das suas peças, ou seja, com a sua conservação, com a escassez de iluminação, com as vibrações inerentes ao andamento de certos camiões gigantes, susceptíveis de abalar os edifícios ou quebrar os vidros das janelas. É o pneu que pode rebentar, o motor que pode explodir, a manga de eixo ou a barra da direcção que podem partir, a abertura imprevista de uma porta em andamento, a falta súbita de travões ou a sua desafinação, a pedra ou gravilha ocasionalmente projectadas pela roda do veículo (…).”
Esse enquadramento do que configuram riscos próprios do veículo merece o acolhimento da Jurisprudência, certo, porém, que nos termos legais, como vimos, a responsabilidade objectiva pelos riscos próprios do veículo é imputável àquele que tiver a direcção efectiva do mesmo. E esta traduz-se no domínio material sobre o veículo, no poder real, de facto, sobre ele, portanto recai naquele que de facto goza ou usufrui das suas vantagens (cfr. por todos, e a título de exemplo, Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, Volume I, em anotação ao artº 503º).
Ora, desde o momento da venda do veículo, com a inerente entrega do mesmo ao A., a R. não tem a direcção efectiva do veículo, e, por conseguinte, é insusceptível de lhe ser imputada qualquer responsabilidade pelo risco.
Aqui chegados, bem se vê que à Ré não pode ser assacada responsabilidade a qualquer título: contratual ou extracontratual (quer por factos ilícitos, quer pelo risco).
*
Embora nas suas alegações de recurso o A. não o refira de modo inequívoco, pode delas extrair-se – perante as referências que faz às Rés – que ao propugnar a revogação da sentença, que a ambas absolveu, pretende a condenação da “M.M. - Madeira Motores, Lda” e da “BMW Portugal, Lda” nos pedidos que formulou.
Por isso, não podemos deixar de atentar na posição processual da “BMW Portugal, Lda”.
Esta foi nos autos tratada como ré a par da “M.M. - Madeira Motores, Lda”, que requereu a sua intervenção principal provocada embora tenha referido que o chamamento se devia à circunstância de em caso de condenação ter contra ela direito de regresso, o que nas especificidades do caso concreto sugere que teria em vista a aplicação do regime prevenido nos artºs 7º e 8º do DL nº 67/2003, de 8/4, segundo os quais «Artigo 7.º Direito de regresso - “1 - O vendedor que tenha satisfeito ao consumidor um dos direitos previsto no artigo 4.º bem como a pessoa contra quem foi exercido o direito de regresso gozam de direito de regresso contra o profissional a quem adquiriram a coisa, por todos os prejuízos causados pelo exercício daqueles direitos. 2 - O disposto no n.º 2 do artigo 3.º aproveita também ao titular do direito de regresso, contando-se o respectivo prazo a partir da entrega ao consumidor. (…)» e «Artigo 8.º Exercício do direito de regresso – 1 - O profissional pode exercer o direito de regresso na própria acção interposta pelo consumidor, aplicando-se com as necessárias adaptações o disposto no n.º 2 do artigo 329.º do Código de Processo Civil. (…)» [actual artº 317º CPC].
Se é certo que o produtor ou o seu representante - nos conceitos latos dados pela definição contida no artº 1º-B als. d) e e) do DL nº 67/2003 (aditado pelo DL nº 84/2008, de 21/05) - podem responder directamente perante o consumidor, podendo este, sem prejuízo dos direitos contra o vendedor, intentar acção contra o produtor ou seu representante nos termos do artº 6º nº 1 e nº 3 do DL nº 67/2003 – «Artigo 6.º Responsabilidade directa do produtor - 1 - Sem prejuízo dos direitos que lhe assistem perante o vendedor, o consumidor que tenha adquirido coisa defeituosa pode optar por exigir do produtor a sua reparação ou substituição, salvo se tal se manifestar impossível ou desproporcionado tendo em conta o valor que o bem teria se não existisse falta de conformidade, a importância desta e a possibilidade de a solução alternativa ser concretizada sem grave inconveniente para o consumidor. (…) 3 - O representante do produtor na zona de domicílio do consumidor é solidariamente responsável com o produtor perante o consumidor, sendo-lhe igualmente aplicável o n.º 2 do presente artigo.» – foi possibilidade pela qual o Autor não optou, não tendo o mesmo demandado nem dirigido qualquer pretensão contra a “BMW Portugal, Lda”, que foi chamada a intervir nos autos pela Ré para os limitados efeitos do exercício do direito de regresso nos moldes especialmente regulados no 8º do DL nº 67/2003, de 8/4, acima mencionados; pelo que a “BMW Portugal, Lda”, na conformação da presente acção, jamais poderia ser condenada a ressarcir directamente o Autor.
Aqui chegados já vê que a apelação improcede e se deve manter a sentença sob recurso, embora com fundamentos não exactamente coincidentes.

III - DECISÃO
Nestes termos e pelos fundamentos supra expostos, acorda-se em julgar a apelação improcedente, mantendo-se a sentença de 1ª instância, embora com fundamentos não exactamente coincidentes.
Custas a cargo do Recorrente.
Notifique.

Lisboa, 13/03/2025
Amélia Puna Loupo
Carla Flora Figueiredo
Marília Leal Fontes