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SUCESSÃO
LEI APLICÁVEL
RESIDÊNCIA HABITUAL
Sumário
I. À sucessão de um residente em Portugal é aplicável a lei portuguesa, por força do regime do Regulamento (UE) n.º 650/2012, que estabelece este critério como conexão substantiva e adjetiva relevante; II. O conceito jurídico de residência habitual estabelece-se conclusivamente a partir da matéria de facto que se apure, correspondendo ao lugar do centro de vida do falecido, à data da morte; III. Tal conclusão não tem que se estabelecer de modo absolutamente unívoco, podendo decorrer de ajuizamento de elementos considerados preponderantes, de entre vários, e da diferente valoração dos elementos de prova disponíveis; IV. O estabelecimento de um domicílio em Portugal no ano de 2016, mantendo com uma companheira um local arrendado onde faz centro de vida, mesmo que mantendo um imóvel próprio no Brasil, enquadra-se no conceito de residência habitual para efeitos de tal Regulamento; V. A circunstância de ter falecido no Brasil, na sequência de deslocação destinada a tentar um tratamento médico para as sequelas de pneumonia por Sars-Cov 2, não afeta a existência de tal nexo de ligação.
Texto Integral
Decisão: I. Caracterização do recurso: I.I. Elementos objetivos: - Apelação – 1 (uma), nos autos;
- Tribunal recorrido – Juízo Local Cível de Cascais - Juiz 4;
- Processo em que foi proferida a decisão recorrida – Ação de processo comum; - Decisão recorrida – Sentença; -Âmbito do recurso – De facto e direito. -- I.II. Elementos subjetivos: - Recorrente: - ---; - Recorridos: - ---;
- ---;
- ---. -- I.III. Síntese dos autos:
- Pediram os autores que seja determinada a aplicabilidade da lei portuguesa à regulação da sucessão por morte de --- e que seja julgada não verificada a exceção de litispendência, invocada pela Ré no âmbito de processo de Inventário.
- Sustentaram tais pedidos dizendo:
- Que no dia ... de ... de 2021 faleceu no Brasil ---, pai dos autores;
- Apesar de ter falecido no Brasil e ser brasileiro de nacionalidade, residia desde 2016 em Portugal;
- Que, no dia 9 de junho de 2021, requereram a abertura de inventário junto do Cartório Notarial de Cascais, indicando como lei aplicável à sucessão a lei portuguesa, por corresponder à lei do Estado onde o de cujus tinha residência habitual no momento do óbito;
- Nesse inventário notarial a requerida, aqui ré, deduziu oposição, designadamente defendendo a aplicação da lei brasileira à sucessão;
- O Notário proferiu despacho remetendo as partes para os meios comuns, para decisão acerca da lei aplicável e da existência de litispendência.
- A ré contestou, excecionando e impugnando.
- Sustentou que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes, dado que o decesso de --- ocorreu no Brasil, país onde tinha residência e onde corre inventário;
- Além dessa incompetência internacional, verifica-se também uma situação de litispendência;
- Mais sustenta que todos os bens do falecido se situam no Brasil, com exceção de uma conta bancária aberta em Portugal;
- Foi proferido despacho saneador, aí sendo julgadas improcedentes as exceções de incompetência internacional e de litispendência invocadas, bem como decidido parcialmente o mérito da ação, declarando inexistente uma situação de litispendência entre o processo notarial que corre termos em Portugal e o processo de inventário existente no Brasil;
- Delimitado o litígio e definidos os temas da prova, foi designada data para audiência final, que se realizou;
- Na sequência foi proferida sentença, cujo dispositivo tem o seguinte teor: - Julga-se a presente acção declarativa comum, proposta por (...) contra (...), totalmente procedente e, em consequência declara-se que é a lei portuguesa a aplicável à regulação da sucessão por morte de ---.
- Desta decisão, não se conformando, veio a ré apelar pelo presente recurso. –
-- II. Objeto do recurso: II.I. Conclusões apresentadas pela recorrente nas suas alegações:
1. O “thema dicidendum” é a determinação da lei aplicável à sucessão por morte de ---.
2. A recorrente considera que a Sentença recorrida julga erradamente, ao determinar a lei portuguesa como a lei aplicável.
3. Considera a Apelante que a douta Sentença recorrida não apreciou corretamente:
a. Os elementos fácticos que indicam a residência e o centro da vida do Falecido no Brasil;
b. A permanência da residência fiscal do Falecido no Brasil até ao fim da sua vida;
c. A aplicação do artigo 62º do Código Civil, que determina ser a lei pessoal do autor da sucessão a lei aplicável à sua sucessão;
d. A determinação da residência habitual do Falecido, de acordo com as regras do Regulamento (EU) N.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012;
e. Os elementos de conexão do Falecido com o seu Estado de Origem, designadamente a existência da grande maioria dos seus bens, da sua casa de morada, do seu património sucessório, da presença do círculo de relações sociais, da sua vida profissional e fiscal, e residência dos seus familiares, tudo no Brasil;
f. A ausência de aquisição de um imóvel para residência permanente em Portugal;
g. A ausência de uma declaração formal do De Cujus no sentido de uma cristalização da escolha da sua residência aquando do seu testamento;
h. E consequentemente a correta determinação da lei aplicável à sucessão por morte de ---.
--
Os recorridos, notificados, contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão.
-- II.II. Questões a Apreciar:
- A situação da residência do falecido, à data do óbito em 2021 e, genericamente, desde o ano de 2016, se em Portugal se no Brasil;
- A determinação da lei aplicável à sua sucessão. –
--
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. –
---
II.III. Apreciação do recurso:
II.III.I. Recurso relativo à decisão da matéria de facto:
Como acima sintetizado, a questão de facto que a recorrente pretende reapreciar é a determinação da residência efetiva do de cujus --- e a sua efetiva ligação a Portugal e ao Brasil;
--
a) A matéria de facto dada por provada e não provada na sentença recorrida:
É a seguinte a matéria assente nos autos: - Factos Provados;
1. No dia ... de ... de 2021, faleceu, no Hospital ---, sito na cidade de São Paulo, no Brasil, ---, de nacionalidade brasileira, pai dos Autores.
2. Na certidão de óbito, emitida no dia do falecimento e elaborada com base nas declarações de ---, consta que --- tinha residência na ---, São Paulo.
3. Todavia, --- residia, desde o ano de 2016, em Portugal.
4. No dia ...de 2016, --- fez a seguinte publicação na rede social Facebook: "Moved to Estoril – Portugal";
5. Quando chegou a Portugal, em 2016, --- residiu na R. ... em Cascais.
6. Em 14 de Agosto de 2017, a Ré e ---, outorgaram, no Brasil, um documento designado “Escritura Pública Declaratória”, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, e do qual constava, entre o mais, o seguinte: “(…) compareceram como outorgantes declarantes, --- (…) e --- (…) atualmente ambos residentes e domiciliados na --- Cascais, Portugal (…)”.
7. No dia 19 de Setembro de 2017, a ---, na qualidade de “Locatário” ou “Primeiro Contraente”, e ---, enquanto “Sublocatário” ou “Segundo Contraente”, outorgaram documento escrito, designado “Minuta de Contrato de Sublocação/Subarrendamento”, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, e do qual constava, entre o mais, o seguinte texto: “CLÁUSULA PRIMEIRA Em 25 de maio de 2017, o Primeiro Contraente, como locatário, celebrou um Contrato de Locação Financeira Imobiliária (…) tendo como objecto a fracção autónoma designada pelas letras “AN”, correspondente a habitação, no --- (…) CLÁUSULA SEGUNDA O Segundo Contraente e Sublocatário declarada conhecer integralmente e aceitar os termos e as condições do Contrato de Locação Financeira Imobiliária supra identificado (…) CLÁUSULA TERCEIRA Pelo presente contrato, o Primeiro Contraente dá em sublocação ao Segundo Contraente, que a aceita, o imóvel identificado na Cláusula Primeira, sendo o prazo efectivo de duração desta sublocação (…) de 5 (cinco) anos, com início em 1 de Janeiro de 2018 e termo em 31 de Dezembro de 2022, renovável por períodos sucessivos de 12 (doze) meses (…) CLÁUSULA QUARTA 1. Como contrapartida da presente sublocação o Segundo Contraente e Sublocatário obrigase a proceder ao pagamento ao Primeiro Contraente e Locatário da renda anual dos primeiros doze meses, de € 72.000,00 (…)”.
8. Em 09 de Outubro de 2017, --- adquiriu toda a mobília para o imóvel indicado em 7, tendo despendido a quantia de € 32.566,40.
9. Aquando do seu falecimento, ---, residia na ---, em Cascais, Portugal.
10. Em 02 de Novembro de 2017, --- obteve carta de condução portuguesa.
11. Para o efeito, teve de proceder à entrega e troca da carta de condução brasileira.
12. Em 27 de Maio de 2019, a Ré e ---, outorgaram, no Brasil, um documento designado “Escritura de Declaração e Dissolução de União Estável”, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, e do qual constava, entre o mais, o seguinte: “(…) A outorgante e reciprocamente outorgada ---, já desocupou o imóvel em que residia com o outorgante e reciprocamente outorgado ---, em Portugal, na cidade de Cascais, na rua --- (…)”.
13. --- era titular da conta de depósito à ordem n.º --- do Banco Millenium BCP.
14. Em 22 de Setembro de 2020, na ---, em Cascais, --- outorgou, perante Notária, um testamento público, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, e do qual consta, entre o mais o seguinte: “(…) --- (…) residente no local onde me encontro (…) E PELO TESTADOR FOI DITO: Que é divorciado, tem descendentes, e que faz o seu testamento (…) nos termos seguintes: - A --- (…) com quem reside em união de facto faz os seguintes legados: - A quantia mensal de dois mil e quinhentos euros (…) - A quantia de trezentos mil euros líquidos, a pagar em Portugal (…) - O recheio da casa em que ambos residem, sita no local acima identificado (…) - Mais manifesta a vontade de nos termos do artigo 1106.º número 1, do Código Civil, a sua companheira, ---, habitar o local arrendado (…)”.
15. --- era portador de título de residência temporária em Portugal, válido até ao dia 01 de Agosto de 2023.
16. ---, entre o ano de 2016 e a data do seu falecimento, apenas regressou ao Brasil para realizar visitas pontuais e receber tratamento médico.
17. O mesmo manteve a propriedade de um apartamento no Brasil, de forma a ter um local onde ficar quando se deslocava ao país e porque o seu filho ---, passou a aí residir.
18. Em Março de 2020, --- contraiu uma pneumonia hipoxemiante por SARS-COV.
19. Em virtude de tal circunstância foi admitido em unidade de cuidados intensivos.
20. Tal situação causou-lhe danos severos no seu estado de saúde, dos quais nunca recuperou.
21. --- esteve internado no Hospital 1, em Lisboa, proveniente do Hospital 2, entre 22 de Agosto de 2020 e 18 de Setembro de 2020, data em que lhe foi dada alta.
22. Foi no contexto de tal situação de saúde que se deslocou, em finais de 2020, ao Brasil.
23. Tal viagem tinha como exclusiva intenção procurar um tratamento para a sua doença no Hospital --- em São Paulo.
24. --- manteve sempre a intenção de regressar a Portugal após o fim dos tratamentos.
25. Entre Setembro e Outubro de 2020, --- procedeu ao pagamento de € 72.000,00, relativos às rendas do contrato mencionado em 7.
26. Em 07 de Fevereiro de 2021, --- encomendou, para entrega em Portugal, um novo automóvel da marca Tesla, modelo X Plaid, no valor de € 131.074,20.
27. Em 09 de Junho de 2021, os Autores apresentaram Requerimento de abertura de processo de Inventário de ---, junto do Cartório Notarial de Cascais – ---, ao qual foi atribuído o número de processo ---
28. Em 29 de Setembro de 2021, a Ré, Interessada nesse Inventário, apresentou oposição ao alegando, entre o mais, a aplicabilidade da lei brasileira para regular a sucessão de ---.
29. Em 27 de Dezembro de 2021, o Notário --- proferiu Despacho, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, e do qual constava, entre o mais o seguinte: “Os presentes autos de inventário destinam-se a colocar fim ao património hereditário de --- (…) O grande tema em debate pelas partes é a determinação da lei aplicável à sucessão do inventariado, se a brasileira se a portuguesa, uma vez que a qualidade e determinação dos interessados na partilha, (qualidade de herdeira ou de legatária da interessada ---) depende da determinação da lei aplicável à sua sucessão, ou seja, se a partilha a efectuar é abrangida pelo jurisdição de Portugal ou do Brasil; O factor de conexão nesta matéria é pois a determinação da última residência habitual do inventariado; Deverão pois as partes socorrer-se dos meios comuns intentando a acção competente para o efeito (…)”.
30. A Ré, nos autos do Inventário n.º ..., apresentou Requerimento, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, e do qual consta, entre o mais, o seguinte: “5. Vale destacar que embora tendo mantido o domicílio fiscal no Brasil, local onde também permaneceu o patrimônio que justifica o presente inventário, o casal a partir do ano de 2016 mantinha residência também em Cascais - Portugal, local onde residiam juntos (doc. 8) em um apartamento localizado na Rua ---(…)”.
31. Nesse processo, a Ré apresentou outro Requerimento, no qual refere, citando prova que faz juntar, entre o mais o seguinte: “(…) A partir de 2015 lembro bem das passagens sobre casamento, que veio a se concretizar algum tempo depois, a saber se no Brasil, Estados Unidos ou Portugal, última residência do casal (…) Mesmo com todo esforço para se recuperar, --- foi acometido por complicação grave de saúde, iniciou tratamento em Portugal e veio para o Brasil com sua esposa, ---, para submeter-se a tratamento no país (…) “Mas o que mais me transmitia o carinho da amizade do casal comigo era a ligação todos os anos no meu aniversário. Quando eles decidiram morar juntos em Portugal (…) O namoro dos dois virou casamento, foram morar juntos em Portugal (…) Em 2019 fui convidada pelo casal para passar férias em Cascais – Portugal onde eles viviam (…) Após ter notícias de que o casal tinha se mudado para Portugal, --- – cujos pais viviam em Portugal – sempre aproveitava a visita aos pais para reencontrar o casal de amigos naquele país (…) Conforme é de conhecimento deste Ilustre Juízo, --- e --- residiram temporariamente em Cascais, Portugal, de 2016 a 2020. Durante esses anos em que ali permaneceu, o casal fez amigos, os quais também atestam a qualidade de “esposo e esposa”, de ---do e mulher (…) Por sua vez, --- e ---foram contratados pelo casal em janeiro de 2017 para que o ajudassem a encontrar um apartamento, “morada de família” para que se instalasse em Portugal (…) A ida deles ao Brasil para tentativa de transplante e cura foi envolta de uma renúncia enorme de --- a tudo e a todos, apenas para ficar com o ---do, por semanas seguidas sem sair do hospital (…) Cite-se, em primeiro lugar, ---, que limpava semanalmente o apartamento em que o de cujus e a inventariante moravam juntos em Portugal (…)”.
-- - Factos não provados:
I. --- tinha uma relação familiar ou de amizade com ---.
II. --- conhecia ---.
III. Foram os Autores quem fizeram as declarações que deram base ao documento indicado em 2.
IV. Todos os bens de --- localizam-se no Brasil. -- b) A base da fundamentação da decisão recorrida:
A questão de facto em apreço, como referido, refere-se à residência do falecido a partir do ano 2016 e, particularmente, no momento da morte – se em Portugal ou no Brasil.
A sentença estabeleceu a residência em Portugal nos últimos anos de vida, valorizando um conjunto de elementos probatórios, e desvalorizando outros, que podem ser assim referidos:
Em primeiro lugar, considerando que os elementos de avaliação que poderiam propender para uma conclusão de maior ligação de vida ao Brasil foram considerados circunstanciais e desvalorizados.
Assim:
- O facto de --- ter falecido no Brasil, que está assente, foi meramente circunstancial, na sequência de deslocação com o propósito de receber tratamento à doença que o acometia desde que sofrera pneumonia devida ao vírus SARS-Cov2;
- O facto de constar no assento de óbito como residência uma morada em São Paulo, Brasil, bem como nunca ter deixado de ter domicílio fiscal no Brasil, foram também considerados meros elementos circunstanciais ou acessórios;
- O facto de manter um imóvel de sua propriedade no Brasil foi contextualizado pelo facto de se deslocar com alguma regularidade ao país, ter um filho aí residente e tendo, como quadro mais geral, a circunstância de ser uma pessoa que tinha grande desafogo económico;
Em segundo lugar, pelo contrário, os elementos indisputados de sinal contrário, i.e., fazendo propender uma maior ligação de vida a Portugal, foram considerados como constituindo prova direta e consistente.
Assim:
- O testamento, elaborado pelo falecido em 22/09/2020, no qual expressamente declarou residir em Cascais;
- O próprio teor do legado testamentário a favor da ré-recorrente, do valor de €300.000, em dinheiro e deixa de pagamento periódico, fazendo do mesmo constar que seria a pagar em Portugal, após a sua morte;
- O facto de, nesse mesmo testamento, ter declarado que a ré se manteria a residir no local arrendado, em Cascais, após a sua morte.
- O facto de ter solicitado a emissão de carta de condução portuguesa, sobretudo conjugando-o com a obrigação que tal impõe de proceder à entrega da equivalente brasileira;
- O facto de ter celebrado um contrato de arrendamento para a sua residência em Cascais, associado à circunstância de ter despendido valor considerado significativo (mais de € 30.000,00) na aquisição de mobiliário e decoração para a mesma;
- O facto, associado, de ter mobilado e decorado a casa de Cascais a seu gosto;
- O facto de despender €6.000,00 mensais no arrendamento dessa casa, i.e., um total €72.000,00 anuais, cuja importância (económica) reforça a sua importância (social) como centro de vida;
- O facto de ter publicado em rede social, no ano 2016, ter mudado a sua residência para Portugal, facto a que foi dado especial valor por ser pessoa ligada às tecnologias e à própria introdução da internet no Brasil e com notoriedade pública nesse país (tornando tal comunicação uma verdadeira informação pública da mudança de país de residência);
- A aquisição de um veículo automóvel, em fevereiro 2021, para ser entregue em Portugal, de valor superior a € 130.000,00, numa altura em que estava no Brasil procurando um tratamento;
- O pagamento, entre setembro e outubro de 2020, de todas as rendas da residência relativas ao ano de 2021;
- A aquisição, em março de 2021, de passagens aéreas para Portugal, com a data de 31 de Julho de 2021;
- Diversos documentos correspondentes a requerimentos apresentados pela própria ré, no contexto de outros processos, em que teria sustentado uma residência em Portugal (o indicado no facto 30 - o casal a partir do ano de 2016 mantinha residência também em Cascais (doc. 8); o documento intitulado Certificado de Registo de Cidadão da União Europeia, onde consta que vivia em união de facto com o falecido em 24 de novembro de 2017; uma declaração outorgada pelo falecido declarando residir em união de facto com a recorrente, em Cascais).
- Outra documentação junta e relativa a elementos requeridos pela ré-recorrente, para finalidades diversas da prova destes autos. A saber:
– Declaração da Junta de Freguesia de Cascais e Estoril (de 23/11/2017) atestando residência em Cascais, para efeitos de apresentação no Consulado de Itália em Portugal;
- Um escrito intitulado “Contrato de Prestação de Serviços”, outorgado entre a Ré e ---, com data de 1/2/ 2018, em que está indicada a morada de Cascais;
- Uma “Proposta de Seguro Automóvel”, com indicação da morada referida;
- Um “Documento Comprovativo da Declaração de Início/Reinício de Actividade”, entregue em 25 de Maio de 2018, no Serviço de Finanças de Cascais, e onde a Ré indica como domicílio fiscal na morada também já indicada;
- Um “Certificado”, da Universidade, de 2/2/2017, onde se refere que a Ré estava matriculada no curso de pós-graduação em gestão de pessoas na ....
Em terceiro lugar, valorando no sentido dado por provado outros elementos de prova complementares, que corroborariam uma ligação a Portugal, desvalorizando outros, de sinal contrário.
Assim, quanto a elementos valorados favoravelmente:
- Várias mensagens trocadas com o falecido, juntas ao processo, de onde é retirada a ligação a Portugal e a intenção de regressar a este país após o tratamento (que se frustrou); - Várias declarações e depoimentos no sentido dado por provado, designadamente:
- Da testemunha ---, qualificado como amigo muito próximo de ---, que teria corroborado a intenção de se fixar definitivamente em Portugal;
- Da testemunha ---, irmã do falecido, residente em Espanha, que também corroborou essa intenção do falecido se fixar em Portugal, aduzindo que o irmão, quando saiu do Brasil, se desfez de vários bens, como um avião privado, dois carros de coleção e quadros valiosos, mantendo um apartamento em São Paulo para o filho --- e para ter um sítio onde ficar quando voltasse ao Brasil.
Mais disse expressamente que o irmão foi ao Brasil tentar um tratamento das sequelas da Covid, sempre tendo tido o objetivo de regressar a Portugal (o que não ocorreria, pelo decesso); - Da testemunha ---, identificado como amigo do falecido há mais de 20 anos e com quem falaria com frequência semanal, que declarou que acompanhou a mudança do amigo para Portugal e que este se queria naturalizar português e viver o resto da vida no país.
Que passava pouco tempo no Brasil, aí ficando uma ou duas semanas e que, na altura do falecimento, foi em busca de tratamento para a doença que o acometeu, sendo que falava com ele diariamente e que declarava queria voltar para Portugal.
- De declarações de parte do Autor, no sentido de que o pai vivia em Portugal, onde tinha muitos amigos -, indo apenas uma vez por ano ao Brasil, onde ficava cerca de três semanas.
Em termos de contexto de saúde, declarou que o pai, em 2020, teve COVID-19 ficando internado nos cuidados intensivos durante 40 dias. No final de 2020 foi para uma unidade hospitalar em São Paulo, no Brasil, com esperança de uma cura, acabando por aí falecer à espera de transplante.
- Da testemunha ---, irmã do falecido, que declarou manter uma boa relação com o irmão, com quem falava semanalmente até ele falecer.
Também depôs no sentido de este residir em Portugal, que a deslocação ao Brasil no final de 2020 foi feita por estritas razões médicas, sendo o seu objetivo sempre o de regressar a Portugal.
Contextualizou também a manutenção do apartamento em São Paulo como residência do filho --- e, com relevo, a indicação da morada que ficou a constar na certidão de óbito, que teria sido indicada pela própria testemunha, porque como ele, na altura, estava no Brasil era mais simples, se fosse, por exemplo, necessário enviarem documentos.
- Da testemunha ---, amigo do falecido, declarando que o conheceu em Portugal em 2018/2019, tendo estado muitas vezes juntos e tendo vários amigos em comum, que confirmou que o amigo ia poucas vezes ao Brasil, tendo vendido o avião que tinha nesse país e que foi ao Brasil, sendo que a vontade dele foi sempre a de voltar para Portugal.
Quanto a elementos valorados desfavoravelmente, ou contextualizados de forma diversa do teor integral estrito da prova, foram considerados diversos depoimentos de testemunhas arroladas pela ré. A saber:
- Da testemunha ---, cujo depoimento foi apelidado de críptico e claramente parcial em favor da ré.
Foi indicada como tendo uma agência imobiliária e que teria sido contactada em 2016/2017 para arrendar pelo falecido e pela ré para arrendar uma casa.
O seu depoimento foi desvalorizado no que concerne à afirmação de que não teria conseguido que o falecido comprasse uma casa em Portugal porque ele, como não vivia em Portugal, não quis. Que gostava de vir a Portugal comer e estar com amigos, apesar de viver na casa de São Paulo, que frequentava a casa de Cascais, onde o falecido fazia almoços e jantares e convivia com os amigos.
O juízo desvalorizador assentou também na afirmação, constante da motivação, que se dirá decorrente de um juízo de experiência (ainda que o tribunal assim não o qualifique) com o seguinte teor - não deixa de ser curioso que alguém que não reside em Portugal consiga criar uma tão grande rede de amigos com quem estava regularmente.
- Da testemunha ---, indicada como amiga da Ré desde o ano 2014, cujo depoimento foi apodado de claramente, parcial em favor da Ré, declarando que frequentava a casa deles em Portugal.
Também quanto a este testemunho o tribunal formula um juízo que se dirá de experiência, também não identificado como tal, com o seguinte teor: – é também estranho que --- residisse no Brasil e não em Portugal e que fosse mais comum encontrarem-se na casa dele neste país do que naquela no Brasil.
- Da testemunha ---, identificado como amigo da ré e de ---, que, ao mesmo tempo que afirmou que o amigo vivia no Brasil e que estava a trabalhar com este para lançarem uma plataforma de criptomoeda no Brasil, não teria deixado de dizer que as últimas vezes se teriam encontrado em Portugal;
- Da testemunha ---, que se apresentou como amiga de --- e da Ré, quem se teria afirmado quase uma filha, cujo depoimento extratado deve ser qualificado de contraditório, dizendo que ela e o ---do se mudaram para Portugal e era no nosso país que se encontravam com ele, mas, ao mesmo tempo, que ele vivia em São Paulo, porque era nessa casa que tinha as coisas pessoais.
- Da testemunha ---, depoimento também apresentado como contraditório nos próprios termos, por afirmar que --- vivia no Brasil, mas se encontrava com ele 2 ou 3 vezes por semana em Portugal.
- Das declarações de parte da Ré, cujo teor foi grandemente desvalorizado em diversas passagens. A saber:
– A discordância da afirmação de que o falecido teria mantido residência no Brasil até ao fim da vida, tendo vindo para Portugal em 2016 para que ela tratasse da cidadania italiana, porque queriam passear pela Europa, fazendo do país uma “base”;
- A contradição entre a afirmação do estabelecimento neste país como uma simples "base" para viagens, com a fundamentação económica desse propósito - assim, evitavam gastar muito dinheiro em hotéis, incompatível com um pagamento mensal de seis mil euros por um arrendamento;
- A fraqueza da justificação dada para esse arrendamento – de o companheiro gostar de tomar banho na piscina.
- A fraqueza da explicação para a venda do avião no Brasil – os conturbados tempos políticos que se viviam no país;
- A pouca sustentação da justificação dada para o facto de constar no testamento a morada de Portugal, que teria sido colocada automaticamente pela notária e que davam a morada portuguesa para coisas europeias.
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c) A argumentação e os meios de prova invocados pela recorrente:
Face a tal estrutura da decisão do tribunal recorrido quanto à questão de facto sub judice, a primeira constatação a retirar refere-se à coerência e solidez interna dos juízos probatórios estabelecidos.
Pretende a recorrente infirmá-los com alguns juízos valorativos e com a indicação de meios de prova que, seguidamente, se analisarão.
Antes de avançar, todavia, importa fazer algumas precisões prévias que se afiguram relevantes a propósito da matéria de facto objeto de divergência.
Em primeiro, a própria noção, ou sentido, da expressão residência.
Esta palavra tem um conteúdo que abrange um substrato factual, mas também o de um conceito jurídico.
O que está em causa nesta primeira análise, antes da avaliação que se fará em sede jurídica, é apenas a relativa à situação de facto.
A nível factual, pode referir-se residência como o local de centro de vida, ou, de modo mais direto e imediato, o local onde, exclusiva ou predominantemente, se dorme, come e se desenvolve o essencial das atividades diárias (desde atos puramente pessoais até ao convívio com familiares e amigos).
Resulta desta indicação factual de enquadramento, ainda sem qualquer relação com o caso concreto, que, caso não seja possível estabelecer uma exclusividade, ou predominância, de um certo local como centro de vida, nada afasta, em tese, a possibilidade de se concluir pela existência de mais que um centro de vida.
Dizendo de outro modo, a afirmação de uma residência de facto em Portugal não afasta, liminarmente, a possibilidade de se estabelecer outra residência de facto no Brasil.
Em todo o caso, o critério decisório é claro – a determinação do local, exclusivo ou predominante, de centro de vida ou, se for o caso, a afirmação da existência de mais que um centro de vida (no caso de não ser possível afirmar tal predominância).
Dito isto, vertendo já ao caso concreto, há algo que é indisputado pela própria recorrente – que existiu na vida do falecido (e na sua própria, enquanto companheira), uma conexão de vida relevante com Portugal, traduzida na existência de uma casa arrendada e na permanência na mesma, desde o ano de 2016.
Assim, devidamente contextualizada, a posição da recorrente é a de que tal circunstância (a do falecido ter uma casa arrendada em Portugal desde o ano 2016 e permanecer na mesma, pelo menos, por alguns períodos) não afeta que o centro da sua vida se tenha mantido no Brasil.
Um segundo elemento de contexto se impõe afirmar a priori – o quadro alargado do litígio em que esta apreciação se insere.
Este processo declarativo surge no contexto de uma disputa hereditária entre os filhos e a companheira do falecido, quadro esse que, mesmo não sendo objeto destes autos, poderia ser útil conhecer mais detidamente e que permaneceu, em grande medida, obscuro.
Sem qualquer análise jurídica do sistema sucessório brasileiro, será relativamente linear inferir que a pretensão da aqui recorrente de ver o processo de partilha correr no Brasil será devida a uma putativa vantagem na sua posição jurídica, face à que teria de acordo com o regime nacional. O mesmo se poderá dizer, em sentido inverso, acerca da posição dos recorridos filhos.
Mais que este quadro que pode ser qualificado de pretensão de aforamento (e desaforamento), permanece largamente desconhecido o quadro substantivo da materialidade da herança, que poderia ser instrumentalmente relevante para a análise em apreço.
O falecido é apresentado como alguém que teria elevada capacidade económica, algo que é manifestamente vago, e cuja concretização se apresenta de modo relativamente superficial, ou, pelo menos, muito incompleto.
Foi apurado que seria proprietário de um avião no Brasil, de que se desfez antes de 2016; que mantém um apartamento em São Paulo (bem esse que não se mostra sequer caracterizado); que não teria outros bens ou ativos em Portugal, que não uma conta bancária (cujo saldo se desconhece) e o recheio da casa arrendada, cujo teria importado em pouco mais de €30.000.
Sabe-se também que suportava com a habitação uma renda mensal de €6.000, cuja teria pago antecipadamente por um ano, e que teria adquirido nos últimos meses de vida um automóvel do valor de cerca de €130.000.
Sabe-se ainda que fez testamento a favor da companheira, aqui recorrente, legando-lhe uma quantia mensal de €2.500; a acrescer a um legado único de €300.000, assim como o recheio da sua habitação comum.
Estes elementos, todos indisputados, permitem afirmar o tal juízo genérico de se tratar de alguém com desafogo económico, mas não permitem identificar valorativamente que herança é objeto de diferendo ou, sequer, qual a real situação económica e patrimonial do falecido, seja no Brasil seja em Portugal.
Mesmo considerando a natureza preliminar deste litígio, porque tem ligação direta com o litígio central, que é relativo a tal herança (ou à pretensão de à mesma aceder), seria certamente possível, e útil, conhecer-se mais elementos de facto referentes à mesma, algo que também poderia ser importante para ajuizar da ligação do falecido ao Brasil e a Portugal.
Na falta desses elementos, a base de análise é a que foi trazida pelas partes e que ora se analisa.
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Estalecido este contexto, estão definidas as bases que permitem fazer a apreciação dos argumentos e meios de prova apresentados pela recorrente.
Em primeiro lugar, reforça a recorrente o facto de o falecido ter mantido residência fiscal no Brasil, até à sua morte.
Este é um elemento factual relevante na definição da residência, mas, só por si, nunca poderá ser decisivo.
O conceito de domicílio fiscal reporta-se a uma declaração feita junto das Finanças e, só por essa circunstância, neste como em qualquer caso, poderá ser coincidente, ou não, com o local de efetivo centro de vida.
Acresce que é indisputado nos autos que o falecido cessara antes de 2016 a sua atividade profissional no Brasil e, portanto, a manutenção da residência fiscal poderá estar ligada a uma efetiva tributação de rendimentos nesse país (o antes referido acerca de desconhecimento da herança ganha aqui relevo), como pode tratar-se, pelo contrário, de uma simples inércia na promoção da alteração.
Um segundo elemento que a recorrente aponta é o teor da referência à residência do falecido em São Paulo, como constante da certidão de óbito.
No contexto da prova e da fundamentação apresentada a quo, ao contrário do anterior (domicílio fiscal), este facto está completamente explicado e não afeta a conclusão estabelecida.
Foi produzida prova direta, pela declarante do óbito, irmã do falecido, que fez constar tal dado por uma questão de facilidade, dir-se-ia de proximidade, face ao local onde ocorreu o decesso (indisputadamente, na cidade de São Paulo, no quadro de uma deslocação para tentar debelar o problema de saúde, sendo também incontroverso que o falecido mantinha um apartamento de sua propriedade nessa cidade).
Neste caso, essa declaração mostra-se claramente feita de modo acessório e com propósito absolutamente distinto da definição de uma efetiva legação. É, por isso, um elemento atendível, mas que, manifestamente, pouco suporte dá à posição da recorrente,
Os trechos assinalados das declarações da testemunha indicada (a irmã ---), aliás, correspondem exatamente a essa conclusão: Advogado da Recorrente: É… Quando o seu irmão faleceu, a Sra. --- estava no hospital? --- ---: Sim. Advogado da Recorrente: Estava? --- ---: Eu que fiz todo o óbito, todo o translado, toda, toda a documentação tem as minhas assinaturas ali. Advogado da Recorrente: Tudo, todas as declarações obrigatórias por lei, de se prestar para, para a declaração de óbito, documentação… --- ---: Tudo. Advogado da Recorrente: …foi prestada pela Sra. ---? --- ---: Sim, tudo.”
Os trechos assinalados confirmam a declaração, mas omitem o restante depoimento, onde é afirmada inequivocamente uma residência em Portugal e o referido circunstancialismo que envolveu a declaração.
Um terceiro argumento da recorrente refere-se ao valor dado à publicação feita pelo falecido na rede social facebook, em 2016, dizendo que se mudou para o Estoril, Portugal, sendo que o tribunal teria desvalorizado outra publicação nessa rede social, neste caso de 2020, sendo esta uma fotografia tirada no apartamento em São Paulo, com a legenda "em casa".
São meros elementos de ponderação, que o tribunal ajuizou, de forma que se pode considerar coerente, face à atividade pública, no domínio da internet que o falecido teria tido no Brasil. Não será a única valoração possível, mas não deixa de ser coerente e consistente.
Diga-se que é também indisputado que o falecido se deslocou ao Brasil na busca de tratamento para as sequelas da doença Covid-19 e, ainda que não se conheçam exatamente os períodos de internamento e alta, a referência a "estar em casa" no ano 2020 pode, consistentemente, ser inferida por referência a um momento de alta hospitalar e não a uma afirmação de residência nesse local (sendo que também não merece disputa o facto de aí residir um dos filhos).
Em todo o caso, repete-se, são meros elementos acessórios de ponderação, que permitem credivelmente ajuizar de mais que uma forma, sendo coerente o juízo formulado a quo.
Um 4.º elemento aduz a recorrente, relativo à morada do falecido constante de escrituras realizadas no Brasil, em 2017 e 2019, de afirmação de união estável com a recorrente (em 2017) e de sua dissolução (em 2019) – e as indicações de morada constantes das mesmas.
Diga-se, em primeiro lugar, que as circunstâncias, ou motivações, destas declarações permanecem absolutamente opacas, desconhecendo-se se correspondem a períodos de proximidade e afastamento no relacionamento comum entre o falecido e a recorrente (que, é também indisputado, era sua companheira à data da morte), ou se têm outro quadro explicativo, designadamente por algum contexto de litígio, real ou potencial, que existisse ou se perspetivasse com os filhos do falecido (e que, como estes autos documentam, se confirmou).
Como quer que seja, também aqui valem as demais avaliações anteriores – são elementos de ponderação, com valor contraditório, mas que se apresentam absolutamente descontextualizados pela recorrente, que não invoca qualquer alteração relevante na vida entre 2017 e 2019, fazendo sobrelevar um juízo que as declarações de residência constantes das escrituras foram meramente acidentais ou, pelo menos, independentes de da possibilidade de conformar a existência de uma verdadeira alteração da situação de vida (da recorrente e do falecido).
O mais argumentado pela recorrente, destinado a desvalorizar conclusivamente a substituição da carta de condução brasileira pela portuguesa e a autorização de residência emitida em Portugal e, pelo contrário, a valorizar a supra referida manutenção de uma residência fiscal no Brasil, não afeta a solidez da avaliação feita em 1.ª instância.
A decisão a quo, ao estabelecer que, efetivamente, o falecido teve o seu centro de vida em Portugal, desde o ano 2016 e até ao seu falecimento em 2021, não merece censura, não sendo afastado pela manutenção de uma relação com o Brasil, algo absolutamente normal num cidadão brasileiro, que mantinha bens e familiares diretos nesse país e aí se deslocava regularmente e onde veio a falecer.
Deve, assim, a decisão de facto ser mantida, o que se decide. –
-- I.III.II. Fundamentos de direito:
A despeito da manutenção da decisão de facto, solicita a recorrente que a decisão proferida seja revogada, alterando-se a determinação da lei aplicável à herança de ---, da portuguesa para a brasileira.
Convoca a recorrente duas linhas de argumentação jurídica para o sustentar – a lei nacional e o Regulamento europeu aplicável.
Assim, começa por invocar o disposto no art.º 62º do Código Civil (CC) que dispõe que a sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste.
Sendo o de cujus de nacionalidade brasileira, tal conduziria, na perspetiva da lei interna portuguesa, à devolução ao direito brasileiro da regulação da respetiva herança e partilha.
Por outro lado, avançando ainda no direito interno, rejeita também a recorrente a conclusão estabelecida na sentença da devolução ao direito português, pelo direito brasileiro, da regulação desta sucessão, por força do disposto nos artigos 7.º e 10.º do Decreto-Lei n.º 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro).
Fundamenta-o dizendo que é inaplicável este regime, que estabelece o domicílio como conexão relevante, na medida que os tribunais brasileiros teriam aceitado a existência de um domicílio do falecido no Brasil (diga-se, como acima resumido, que foi afirmada pela recorrente a existência de um inventário no Brasil e suscitada nestes autos incompetência internacional dos tribunais portugueses, questão anteriormente decidida).
Quer isto dizer que, na perspetiva da recorrente, a aceitação pelos tribunais brasileiros de um domicílio em São Paulo estabeleceria não só a competência internacional dos tribunais desse país, como também a existência de uma conexão relevante, determinativa da aplicação do direito sucessório brasileiro.
A simples apresentação desta argumentação faz emergir duas claras petições de princípio:
a. Nada existe nos autos que permita estabelecer que algum tribunal brasileiro tenha estabelecido que o domicílio do falecido, conexão relevante, se situava no Brasil, à data da morte;
b. A conexão relevante à luz do direito brasileiro, face à prova da residência em Portugal, conduziria à devolução ao direito português da situação da herança dos autos.
Ao nível europeu, sendo essa a base jurídica da sentença (que faz referência às normas ordinárias, mas suporta-se neste instrumento) dispõe o Regulamento UE n.º 650/2012, de 4 de julho, que a conexão relevante é residência habitual no momento do óbito (art.º 21.º, n.º 1).
Este Regulamento, aplicável às sucessões por morte, e respetivos processos de inventário pendentes em Estado-Membro da União Europeia, seja relativo a nacionais ou não nacionais, estabelece, portanto, como lei aplicável a do Estado da residência.
Este conceito de residência habitual será puramente de direito e deve corresponder ao de centro efetivo de vida (do falecido), apurando-se tal centro ao nível factual e, valendo, para o efeito, as considerações acima expendidas.
Veja-se, a propósito, o que foi decidido acerca do conceito paralelo de residência habitual da criança para efeitos do Regulamento (UE) 2019/1111, de 25 de Junho de 2019, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 14/9/2023 (Nuno Pinto Oliveira – dgsi,pt -Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça).
Olhando diretamente para o instrumento de Direito da União Europeia em causa - Regulamento (UE) n°. 650/2012, de 4/7, do Parlamento Europeu e do Conselho (Jornal Oficial da União Europeia de 27/7/2012), relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos actos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, que se mostra vigente em Portugal desde 16/8/2012 (cf. art. 83.º e 84.º &1), regulando sucessões que se tenham aberto em Portugal a partir de 17/8/2015 e, nessa medida, aplicável à sucessão em apreço, cumpre levar em consideração algumas questões relevantes.
Assim, deve referir-se, antes de mais, que, por força da integração de Portugal no espaço da União Europeia e da força obrigatória geral dos Regulamentos aprovados neste quadro (cf. art.º 288.º &2 do Tratado de Funcionamento (TFUE), e do chamado princípio do primado, que, inexoravelmente, caso seja aplicável este instrumento, mostrar-se-á derrogada a lei interna e, nessa medida, torna-se irrelevante qualquer devolução ao direito brasileiro feita pelo Código Civil português.
Este Regulamento n.º 650/2012 estabeleceu um quadro jurídico europeu, com relevo ao nível das normas de conflitos, mas também processuais, procurando resolver um conjunto de dificuldades verificadas e que, em última instância, foram entendidas como constituindo limitações à liberdade de circulação e fixação de residência no espaço europeu.
A questão em apreço compreende-se no âmbito material do Regulamento, que exclui algumas outras matérias, como as fiscais, aduaneiras e administrativas ( cf. art.º 1.º), mas expressamente abrange sucessão legal e voluntária (como é a dos autos).
Como referido, o Regulamento define como conexão relevante, seja a nível conflitual seja adjetivo, maxime de competência internacional o conceito de residência habitual do falecido (art.º 4 - são competentes para decidir do conjunto da sucessão os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em que o falecido tinha a sua residência habitual no momento do óbito e art. 21º do Regulamento).
Nos termos do próprio instrumento jurídico, a finalidade, ou teleologia. desta regra fica clara.
Assim, diz-se no seu Considerando 23 que tendo em conta a mobilidade crescente dos cidadãos e a fim de assegurar a boa administração da justiça na União e para assegurar uma conexão real entre a sucessão e o Estado-Membro em que a competência é exercida, o presente regulamento deverá prever como fator de conexão geral, para fins de determinação da competência e da lei aplicável, a residência habitual do falecido no momento do óbito.
Trata-se de prevenir e resolver litígios, como também o de assegurar uma finalidade geral de boa e uniforme administração da justiça no espaço europeu.
É certo que alguma (ou muita) opacidade do regime jurídico europeu, também comummente referida às próprias instituições europeias, é suscetível de gerar fenómenos de frustração de expetativas de cidadãos e residentes neste espaço comum.
Essas expetativas, que as jurisprudências nacional e europeia têm elaborado à luz do chamado princípio da confiança, pode ficar claramente em crise na área do direito sucessório, especialmente num país, como Portugal, com uma ampla comunidade emigrante e com uma cada vez mais ampla comunidade residente imigrante.
Não será difícil imaginar que, em muitos casos, seja de cidadãos portugueses residentes noutro país da União Europeia, seja de cidadãos de outros países, da União e de outros espaços geográficos, especialmente provenientes de países com proximidade histórica e cultural, como é o caso do Brasil, que possa existir a expetativa de que a respetiva sucessão seja regulada pela lei nacional.
Tal, todavia, não é a conexão atualmente relevante no ordenamento europeu e, porque nada existe nos autos acerca de alguma expetativa do falecido de ver a sua sucessão tratada no Brasil, neste caso, tais considerações são insuscetíveis de afetar, a qualquer nível, a substância do regime aplicável.
Diga-se que o art.º 22º do Regulamento prevê expressamente a possibilidade de afastamento da regra da residência e a declaração de preferência pela lei da nacionalidade, algo que, manifestamente, não foi feito no caso.
Quer isto dizer, concluindo estas asserções, que a conexão relevante em Portugal é a da residência habitual.
Diga-se também que o Regulamento prevê expressamente que das suas regras pode resultar a aplicação da lei de qualquer país, seja ou não da União Europeia, regra afirmada com o propósito de dar coerência global ao seu regime. Assim, diz-se no art.º 20.º, sob a epígrafe aplicação universal, que será aplicável a lei designada pelo presente regulamento, mesmo que não seja a lei de um Estado-Membro.
Quer isto dizer, portanto, que se se concluísse que o falecido residia no Brasil, a aplicação do Regulamento conduziria à aplicação do direito interno brasileiro à sucessão em causa.
O critério básico estabelecido no Regulamento é, repete-se, o da residência habitual (art.º 21.º n.º 1), mitigado pela ressalva constante do n.º 2 - se, a título excecional, resultar claramente do conjunto das circunstâncias do caso que, no momento do óbito, o falecido tinha uma relação manifestamente mais estreita com um Estado diferente do Estado cuja lei seria aplicável nos termos do n.º 1, é aplicável à sucessão a lei desse outro Estado.
Quer isto dizer que a avaliação a fazer à luz do Regulamento implica olhar para a regra e para a exceção previstas.
Diz-se a propósito do conceito-regra no referido Considerando 23 que a fim de determinar a residência habitual, a autoridade que trata da sucessão deverá proceder a uma avaliação global das circunstâncias da vida do falecido durante os anos anteriores ao óbito e no momento do óbito, tendo em conta todos os elementos factuais pertinentes, em particular a duração e a regularidade da permanência do falecido no Estado em causa, bem como as condições e as razões dessa permanência. A residência habitual assim determinada deverá revelar uma relação estreita e estável com o Estado em causa tendo em conta os objetivos específicos do presente regulamento.
A matéria estabelecida, relativa à permanência em Portugal desde o ano 2016, numa situação de reforma, ou de gozo da vida pós-laboral, com um arrendamento de valor elevado, em conjunto com uma companheira (a aqui recorrente); recebendo amigos e família; viajando pela Europa; substituindo a carta de condução brasileira pela portuguesa; vendendo meio de transporte especial (avião) anteriormente usado no Brasil, levam a afirmar a referida relação estreita e estável com Portugal, concretizadora do conceito de residência para este efeito.
Estabelecida a regra, também terá que se concluir que não se estabelece a exceção.
O falecido manteve sempre relação com o Brasil, relação que até se poderá qualificar de estreita (aí mantendo uma casa, vivendo um filho e deslocando-se com regularidade, sendo que o fez numa situação de especial dificuldade física, na busca de um tratamento que se viesse a mostrar eficaz para o problema de saúde que o afetava, algo que, mesmo que mal sucedido, não deixa de denotar uma particular relação de confiança com uma certa instituição de saúde situada no mesmo).
Todavia, a exceção prevista no Regulamento não se atém à demonstração de uma relação estreita. Exige uma afirmação comparativa face à jurisdição do Estado-Membro e que dessa avaliação resulte uma diferença notória e sensível – "manifestamente mais estreita com um Estado diferente do Estado cuja lei seria aplicável".
Isso não se apurou, pelo contrário.
Pode debater-se se a relação com o Brasil se manteve mais forte que a ligação a Portugal, mas é manifesto da matéria de facto estabelecida leva a concluir que a sua residência neste país, desde final do ano 2016 até à morte, em .../2021, onde viveu com uma companheira e onde fazia o centro da sua vida, ou, pelo menos, um centro muito relevante da sua vida, não permite afirmar nenhuma relação com o Brasil notoriamente mais forte.
É quanto basta para afastar a aplicação da exceção, fazendo valer a regra.
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Decorre de tudo o que foi dito que a sentença recorrida procedeu a uma correta aplicação do direito, ao convocar o instrumento europeu e a conexão de residência por este estabelecida, devendo, portanto, manter-se na íntegra.
É o que se decide. --
--- III. Decisão:
Face ao exposto, nega-se a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique-se e registe-se. –
--- Lisboa, 13-03-2025 João Paulo Vasconcelos Raposo Arlindo Crua Paulo Fernandes da Silva