EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
PENHORA DE DIREITOS
PENHORA DE CRÉDITOS
BENS IMPENHORÁVEIS
INDEMNIZAÇÃO
DESPEDIMENTO ILÍCITO
CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
PRESTAÇÕES PERIÓDICAS
CONSTITUCIONALIDADE
RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Sumário

A indemnização atribuída ao trabalhador ilicitamente despedido, em substituição da reintegração, é parcialmente impenhorável, nos termos do n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil.

Texto Integral


Processo n.º 777/07.2TBBCL-F.G1.S1-A

Recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência

Acordam no Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça:

Relatório

No âmbito da execução instaurada pela Cooperativa Agrícola de Barcelos, CRL, contra AA, BB e CC, foi proferida a decisão na qual o Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Execução de ..., Juiz ..., determinou que “o Sr. Agente de Execução” restituísse “à executada o montante penhorado que excedeu o valor de 1/3: a) Da indemnização líquida de €21.855,00; b) Do valor das retribuições correspondentes ao período que decorreu entre a data do despedimento e o dia 27.11.2006 (um mês depois do início do período de incapacidade para o trabalho), à razão mensal de €690,00+€15,00+€10,00+€4,00”.

Para assim decidir, o tribunal entendeu que cabia no n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil (“Bens parcialmente penhoráveis”, “1. São impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”), na expressão “prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”, a indemnização por despedimento, porque “pese embora não tenha natureza de salário, é calculada com base no salário do trabalhador e no lapso temporal em que desempenhou funções para a entidade patronal, e visa compensar o trabalhador pelo despedimento e assegurar-lhe um meio de subsistir economicamente durante algum tempo”. Assim sendo, é-lhe aplicável “o regime de impenhorabilidade previsto no referido artigo 738.º”, o que tem como consequência, “atento o montante das indemnizações fixadas, ainda que ao mesmo acrescentemos o valor auferido pela executada a título de pensão de invalidez (ainda que se desconheça o valor auferido por baixa), o valor do rendimento auferido pela executada nunca seria superior a três vezes o salário mínimo nacional (SMN).

Deste modo, da indemnização líquida de €21.855,00 atribuída à executada/trabalhadora, apenas é possível a penhora de 1/3 desse montante.

Também do valor das retribuições correspondentes ao período que decorreu entre a data do despedimento e o dia 27.11.2006 (um mês depois do início do período de incapacidade para o trabalho), à razão mensal de €690,00+€15,00+€10,00+€4,00, acrescida dos juros de mora a contar da data de vencimento de cada uma dessas prestações, à taxa de 4%, será possível penhorar 1/3 desse montante.

Já o valor recebido a título de indemnização por danos não patrimoniais não cabe no referido preceito de impenhorabilidade”.

O Tribunal da Relação de Guimarães concedeu provimento parcial ao recurso de apelação interposto pela exequente, confirmando a decisão recorrida “quanto à impenhorabilidade de 2/3 do direito à indemnização por despedimento ilícito de € 21.855,00, com a consequente restituição à executada do valor respectivo, caso tenha sido apreendido”, e julgando “ineficaz a decisão recorrida de impenhorabilidade de 2/3 do valor das retribuições referidas na al. b) da decisão recorrida e respectivas retribuições, por falta de penhora das mesmas ou do direito de crédito sobre as mesmas”. Considerou, igualmente, que a indemnização por despedimento ilícito cabe na “nova categoria geral de rendimentos parcialmente impenhoráveis prevista no actual n.º 1 do art. 738.º do CPC como «prestações de qualquer outra natureza que assegurem a subsistência do executado»”, sendo impenhorável “na proporção de 2/3”.

A exequente recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça – recurso que foi admitido ao abrigo do disposto na al. d) do n.º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil, com fundamento em contradição com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Março de 2018, proc. n.º 1034/10.2TBLSD-E.P1.S2, www.dgsi.pt, cuja cópia foi junta com as alegações de recurso, mas o Supremo negou provimento ao recurso.

Notificada do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, a exequente interpôs recurso para uniformização de jurisprudência, invocando a contradição com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Março de 2018 - no qual se decidiu no sentido da não inclusão da indemnização por cessação do contrato de trabalho no n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil, sustentando, nas alegações que apresentou, que o acórdão recorrido devia ser revogado, julgando-se que “nenhuma limitação de penhorabilidade deverá existir no tocante ao montante atribuído como indemnização de antiguidade”

Para o efeito, formulou as seguintes conclusões:

“I. A Cooperativa Agrícola de Barcelos, CRL interpôs recurso de Revista para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo sido proferido acórdão que entendeu: “(...) Reconhecendo tratar-se de uma questão controvertida, quer na jurisprudência, quer na doutrina, entende-se que a indemnização atribuída em substituição da reintegração do trabalhador se deve considerar abrangida pelo n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil, sendo parcialmente impenhoráveis, atenta a função que desempenha.”

II. O acórdão proferido está em manifesta oposição com o acórdão do STJ de 20 de Março de 2018, Revista n.º 034/10.2TBLSD-E.P1.S2 - 6.ª Secção, que decidiu:

“São os rendimentos provenientes do trabalho que constituem, normalmente, a base de subsistência do indivíduo, sendo com os mesmos que cada um suporta as despesas correntes do dia a dia.

São esses rendimentos, traduzidos no seu montante líquido mensal, que balizam a impenhorabilidade parcial fixada no artigo 738º, nº1 do CPCivil e, tratando-se do salário mínimo nacional, a sua impenhorabilidade total, por se entender que tal quantia corresponderá ao montante considerado indispensável a uma subsistência dignado respetivo titular.

Na espécie, para além de se desconhecer de todo em todo a situação económica do Executado, a quantia penhorada aqui objeto de questionamento, não quadra aquela situação, por um lado por não corresponder a uma qualquer prestação periódica ou equiparável, por outro lado por não poder ser subsumível àquela parcela de rendimentos considerada necessária para assegurar a dignidade do trem de vida daquele.

E, nem se poderá chegar à asserção tirada no Acórdão recorrido através, quiçá, da interpretação extensiva, possível, nestes casos: é que a interpretação que foi dada ao artigo 738º, nº1 do CPCivil não se encontra compreendida nem na letra nem no espírito daquela regra, a qual se refere especificamente, como dela se extrai, às prestações periódicas.”

III. Ora, resulta do disposto no artigo 735º do CPC que estão sujeitos à execução todos os bens do devedor.

IV. O artigo 738º do CPC determinou a impenhorabilidade parcial que não se aplica aos créditos devidos ao trabalhador pela cessação do seu contrato de trabalho.

V. As normas processuais referentes à impenhorabilidade de bens, são normas excecionais, que como se estabelece no artigo 11º do CC, insuscetíveis de aplicação analógica, embora admitam a interpretação extensiva.

VI. Torna-se por demais evidente que a Lei ao falar da impenhorabilidade parcial de prestações periódicas provenientes, além do mais, do exercício da atividade laboral se quis apenas referir a estas e não já a quaisquer outros créditos.

VII. São os rendimentos provenientes do trabalho que constituem, normalmente, a base de subsistência do indivíduo, sendo com os mesmos que cada um suporta as despesas correntes do dia a dia. São esses rendimentos, traduzidos no seu montante líquido mensal, que balizam a impenhorabilidade parcial fixada no artigo 738º, nº1 do CPCivil e, tratando-se do salário mínimo nacional, a sua impenhorabilidade total, por se entender que tal quantia corresponderá ao montante considerado indispensável a uma subsistência digna do respectivo titular.

VIII. Partindo da natureza remuneratória/retributiva, ou não, das importâncias devidas ao trabalhador executado e visto o enquadramento normativo traçado pelo art.º 738º, n.º 1 do CPC, é de admitir a penhorabilidade relativa de todos os valores pagos a título de salários/remunerações (valor base e acréscimos remuneratórios, pouco importando a natureza, o carácter ou a forma da remuneração), férias e subsídios de férias e de Natal, mas nenhuma limitação da penhorabilidade deverá existir no tocante ao montante atribuído como indemnização de antiguidade.

IX. Entendimento contrário, cremos, não levará em devida conta que as situações de impenhorabilidade devem já ser consideradas em geral absolutamente excecionais, quer por poderem originar um amolecimento ósseo das obrigações civis, quer por serem possíveis fontes de flagrante injustiça relativa, e que ainda mais excecionais terão de ser os casos em que a garantia da dignidade humana, como valor no qual se funda a República Portuguesa, impõe a consagração de uma impenhorabilidade.

X. Assim que a decisão recorrida, ao decidir como decidiu, decide contra a jurisprudência que se junta, impondo-se uma decisão que uniformiza a jurisprudência.

Termos em que deve ser proferida decisão de uniformização de jurisprudência, devendo V. Exas., verificando-se a existência de contradição jurisprudencial, revogar o acórdão recorrido, substituindo-o por outro que decida a questão controvertida, assim se fazendo JUSTIÇA!”

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso para uniformização de jurisprudência foi admitido liminarmente, nos termos do art. 692.º, n.º 5, do CPC.

O Ministério Público emitiu parecer que concluiu assim:

“…somos de parecer que o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência deverá ser julgado improcedente, mantendo-se o acórdão recorrido e fixando-se a jurisprudência no seguinte sentido:

«A indemnização atribuída ao trabalhador ilicitamente despedido, em substituição da reintegração, é parcialmente impenhorável, nos termos do n.º 1 do artigo 738.º, por se tratar, em regra, de prestação que assegura a sobrevivência do executado».

Admissibilidade do recurso

O despacho liminar de admissão do recurso apreciou a verificação de tais pressupostos nos seguintes termos:

“ (…) 3. O acórdão invocado como fundamento para o recurso e junto com as alegações foi o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de Março de 2018, no qual se decidiu no sentido da não inclusão da indemnização por cessação do contrato de trabalho no n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil:

“As normas processuais relativas à impenhorabilidade dos bens, são normas excepcionais relativamente à regra geral da afectação do património do devedor à satisfação dos direitos do credor (…).

No caso sujeito torna-se por demais evidente que a Lei ao falar da impenhorabilidade das prestações periódicas provenientes, além do mais, do exercício da actividade laboral se quis apenas referir a estas e não já a quaisquer outros créditos, vg, indemnizações e/ou compensações devidas pela cessação de funções exercidas a esse título, pois aqui entramos na penhora de direitos de crédito, tout court, a que alude o artigo 773.º do CPCivil.

Sem embargo da aludida indemnização ter sido proveniente do exercício da actividade profissional do executado (…), bem como o respectivo cálculo ter tido apoio no vencimento mensal então auferido, a mesma não poderá ser considerada como um lugar paralelo equivalente a «prestação periódica», por forma a daí se poder extrair a asserção de que a sua impenhorabilidade parcial se destinará a assegurar aquele mínimo absolutamente necessário para uma sobrevivência humanamente digna (…).

São os rendimentos provenientes do trabalho que constituem, normalmente, a base de subsistência do indivíduo, sendo com os mesmos que cada um suporta as despesas correntes do dia a dia.

São esses rendimentos, traduzidos no montante líquido mensal, que balizam a impenhorabilidade parcial fixada no artigo 738.º, n.º 1 do CPCivil e, tratando-se do salário mínimo nacional, a sua impenhorabilidade total, por se entender que tal quantia corresponde ao montante considerado indispensável a uma subsistência digna do respectivo titular.

Na espécie, para além de se desconhecer de todo em todo a situação económica do Executado, a quantia penhorada aqui objecto de questionamento, não quadra aquela situação, por um lado por não corresponder a uma qualquer prestação periódica ou equiparável, por outro lado por não poder ser subsumível àquela parcela de rendimento considerada necessária para assegurar a dignidade do trem de vida daquele.

E, nem se poderá chegar à asserção tirada no Acórdão recorrido [ que considerou o n.º 1 do artigo 738.º aplicável à indemnização por cessação do contrato de trabalho, por paridade de razão com as situações ali previstas] através, quiçá, da interpretação extensiva, possível, neste casos: é que a interpretação que foi dada ao artigo 738, n.º 1 do CPCivil não se encontra compreendida nem na letra nem no espírito daquela regra, a qual se refere especificamente, como dela se extrai, às prestações periódicas”.

4. Cumpre proceder à apreciação preliminar da admissibilidade do recurso, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 692º do Código de Processo Civil.

Em primeiro lugar, estão preenchidos os requisitos genéricos da admissibilidade de recurso, vistos na perspectiva de um recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência (cfr. n.º 1 do artigo 692.º e n.º 2 do artigo 641.º do Código de Processo Civil): o recurso é admissível, pois foi interposto de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça transitado em julgado e que não se encontra em contradição com “jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça” (artigo 688.º do Código de Processo Civil), é tempestivo (n.º 1 do artigo 689.º do Código de Processo Civil) e a recorrente tem legitimidade para o interpor, pois é parte principal e ficou vencida no acórdão recorrido (n.º 1 do artigo 631.º do Código de Processo Civil); acresce que a alegação da recorrente contém conclusões e foi junta com o requerimento de interposição de recurso (al. b) do n.º 2 do artigo 641º), tal como a cópia do acórdão indicado como fundamento (n.º 2 do artigo 690.º).

Em segundo lugar, verifica-se a contradição relevante de julgados exigida pelo n.º 1 do artigo 688.º.

Os acórdãos em confronto, recorrido e fundamento, tiveram em consideração situações de facto idênticas quanto ao respectivo núcleo essencial (Cfr. o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência de 19 de Setembro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 391/06.0TBBNV. E1.S1-A: “(…) exige-se, ao reconhecimento da contradição de julgados, a identidade substancial do núcleo essencial das situações de facto que suportam a aplicação, necessariamente diversa, dos mesmos normativos legais ou institutos jurídicos (…))” e adoptaram explicitamente (cfr. acórdão do Pleno das Secções Cíveis de 17 de Maio de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 2643/12.0TBPVZ.P1.S1-A) interpretações divergentes da mesma norma, contida no n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil, que foram determinantes para o sentido das decisões (cfr. o acórdão deste Supremo Tribunal de 11 de Abril de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 1256/07.3TBMCN.P1.S1-A, ou o acórdão de uniformização de jurisprudência proferido em 27 de Novembro de 2019 no processo n.º 1086/09.8TJVNF.G1.S1-A, exigindo que a divergência tenha sido “decisiva para as soluções perfilhadas num e noutro acórdão, desconsiderando-se argumentos ou razões que não encerram uma relevância determinante”).

Assim, no acórdão recorrido, e quanto ao que releva para o presente recurso, deu-se como provado que:

“1. Por auto de penhora, datado de 07-08-2017, foi penhorado pelo senhor AE o crédito que a executada AA detém em consequência da indemnização que venha a receber nos autos de processo 735/07.7..., que corre termos no Tribunal da Comarca de Braga - ... - Inst. Central - ...ª Secção Trabalho - J....

2. No âmbito do processo nº 735/07.7... foi proferida a sentença, cuja cópia se encontra junta aos autos e cujo teor se dá aqui reproduzido, que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:

1) Julgou ilícito o despedimento da autora AA, ocorrido por decisão proferida em procedimento disciplinar a 20.10.2006, levado a cabo pela ré entidade empregadora “Cooperativa Agrícola de Barcelos, C.R.L.”.

2) Condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 21.855,00 a título de indemnização em substituição da reintegração, acrescida de juros a contar da data da presente decisão, à taxa de 4%. (…)”.

No acórdão fundamento teve-se como provado que:

“- Foi penhorada nos autos, em 15.12.2015, a quantia global de 42.693,96 €, referente a crédito detido pelo identificado executado sobre a sociedade L., SA, reconhecido no âmbito do processo de insolvência n.º…, originado pela cessação do respectivo contrato de trabalho.

- Realizada tal penhora, o executado deduziu oposição à mesma, alegando, em suma, que o crédito que detém sobre a referida sociedade, correspondendo a indemnização pela cessação do contrato de trabalho que com ela mantinha, apenas é penhorável na proporção de 1/3.

- A exequente contestou alegando que o referido crédito não é relativamente impenhorável, posto que não tem a natureza de salário ou de prestação periódica.

- Foi proferida decisão que julgou parcialmente procedente o incidente deduzido de oposição à penhora, determinando consequentemente a redução da penhora a 1/3 desse crédito”.

Para a questão que se colocou em ambas as revistas, e para se concluir que o núcleo essencial das situações de facto consideradas é idêntico, é irrelevante a diferença respeitante à causa da cessação do contrato de trabalho.

Nas decisões proferidas em ambos os acórdãos, foi aplicada a mesma versão do n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil e foi expressamente considerada a questão de saber como esse preceito devia ser interpretado: no acórdão recorrido considerou-se directamente aplicável, tendo em conta “a finalidade de prover à subsistência do trabalhador”, não relevando não se tratar de prestação periódica; no acórdão fundamento considerou-se não aplicável o mesmo preceito, “por um lado por não corresponder a uma qualquer prestação periódica ou equiparável, por outro lado por não poder ser subsumível àquela parcela de rendimentos considerada necessária para assegurar a dignidade do trem de vida daquele”. As interpretações divergentes foram determinantes para as decisões em confronto.

Nestes termos, admite-se o recurso para uniformização de jurisprudência interposto pela Cooperativa Agrícola de Barcelos, C.R.L., com efeito meramente devolutivo (artigo 693.º do Código de Processo Civil).”

Como é sabido, o despacho do relator que admite o recurso extraordinário para uniformização de jurisprudência e determina a remessa dos autos à distribuição não vincula o Pleno das Secções Cíveis (art. 692.º, n.º 4, do CPC).

Porém, no caso presente, e analisados os acórdãos em confronto, não se vislumbram fundamentos para divergir do despacho de admissão do recurso para uniformização já proferido, que se subscreve, assim, por inteiro.

Objecto do recurso

A questão objecto do recurso consiste em saber se a indemnização paga ao trabalhador em substituição da sua reintegração, em caso de despedimento ilícito (art. 439.º do Código do Trabalho – CT de 2003, aqui aplicável, correspondente ao art. 391.º do Código de Trabalho de 2009), está ou não abrangida pela impenhorabilidade parcial prevista no n.º 1 do art. 738.º do CPC.

Fundamentação de facto

Vem provado o seguinte (transcreve-se do acórdão recorrido):

“1. Por auto de penhora, datado de 07-08-2017, foi penhorado pelo senhor AE o crédito que a executada AA detém em consequência da indemnização que venha a receber nos autos de processo 735/07.7..., que corre termos no Tribunal da Comarca de Braga - ... - Inst. Central - ...ª Secção Trabalho - J....

2. No âmbito do processo nº 735/07.7... foi proferida a sentença, cuja cópia se encontra junta aos autos e cujo teor se dá aqui reproduzido, que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:

1) Julgou ilícito o despedimento da autora AA, ocorrido por decisão proferida em procedimento disciplinar a 20.10.2006, levado a cabo pela ré entidade empregadora “Cooperativa Agrícola de Barcelos, C.R.L.”.

2) Condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 21.855,00 a título de indemnização em substituição da reintegração, acrescida de juros a contar da data da presente decisão, à taxa de 4%.

3) Condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 2.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros a contar da data da presente decisão, à taxa de 4%.

4) Condenou a ré a pagar à autora as retribuições correspondentes ao período que decorreu entre a data do despedimento e o dia 27.11.2006 (um mês depois do início do período de incapacidade para o trabalho), à razão mensal de € 690,00 + € 15,00 + € 10,00 + € 4,00, acrescida dos juros de mora a contar da data de vencimento de cada uma dessas prestações, à taxa de 4%, cujo apuramento se relega para incidente de liquidação de sentença.

3. Resulta provado da sentença referida em 2 que:

i) A ali autora, atenta a sua doença depressiva, iniciou, em 27-10-2006, período de baixa médica, ininterruptamente.

ii) A partir de 13-12-2011, a autora passou a receber pensão por invalidez através do Centro Nacional de Pensões, no valor de € 431,01.”

Fundamentação de direito

O acórdão recorrido, publicado nas bases jurídico-documentais do IGFEJ, encontra-se sumariado pela seguinte forma:

“I – O critério para a aplicação da impenhorabilidade parcial prevista no n.º 1 do artigo 738.º, do Código de Processo Civil de 2013 não é o da periodicidade, mas sim o da função da prestação a que o executado tem direito: destinar-se a assegurar a subsistência do executado.

II – A indemnização atribuída ao trabalhador ilicitamente despedido, em substituição da reintegração, tem também essa função, sendo parcialmente impenhorável, nos termos do citado n.º 1 do artigo 738.º”

Por sua vez, o acórdão fundamento, publicado igualmente nas mesmas bases do IGFEJ, mostra-se sintetizado do seguinte modo:

“I – Resulta do disposto no artigo 735.º, n.º 1, do CPC, que «Estão sujeitos à execução todos os bens do devedor suscetíveis de penhora que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda»

II – Não obstante em abstrato o património do devedor na sua totalidade esteja afeto ao ressarcimento das suas obrigações, a Lei estabelece limitações a tal princípio, v.g. decorrentes de interesses vitais do executado, que o sistema entende deverem sobrepor-se aos do credor exequente, sendo que as mesmas podem resultar numa impenhorabilidade absoluta e total, numa impenhorabilidade relativa, ou numa impenhorabilidade parcial.

III – O artigo 738.º, n.º 1, do CPC, ressalva da possibilidade de serem penhorados «dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado»

IV – Quando a Lei, ao falar da impenhorabilidade parcial das prestações periódicas provenientes, além do mais, do exercício da atividade laboral, quis apenas referir-se a estas e não já a quaisquer outros créditos, v.g. indemnizações e/ou compensações devidas pela cessação das funções exercidas a esse título, pois aqui entramos na penhora de direitos de crédito, tout court, a que alude o artigo 773.º, do CPC.

V – As normas processuais referentes à impenhorabilidade de bens são normas excecionais relativamente à regra geral da afetação do património do devedor à satisfação dos direitos do credor, apanágio da garantia geral das obrigações, aludida no artigo 601.º do CC, normas essas que são insuscetíveis de aplicação analógica – artigo 11.º do CC.

VI – Uma indemnização proveniente da cessação do exercício da atividade profissional do executado, não obstante o respetivo cálculo tenha tido apoio no vencimento mensal então auferido, não poderá ser considerada como um lugar paralelo equivalente a «prestação periódica» e por isso não está o seu montante sujeito às limitações do n.º 1 do artigo 738.º do CPC, podendo ser penhorada na sua totalidade.”

Considerando o objecto do recurso para uniformização de jurisprudência supra identificado – impenhorabilidade parcial da indemnização em substituição da reintegração do trabalhador – apresentam-se de forma sumária, com base na fundamentação dos acórdãos, os principais argumentos em confronto:

Do acórdão fundamento:

- as normas processuais referentes à impenhorabilidade de bens, são normas excepcionais relativamente à regra geral da afectação do património do devedor à satisfação dos direitos do credor, apanágio da garantia geral das obrigações aludida no art. 601.º do CC;

- nos termos do art. 11.º do CC as normas excepcionais são insusceptíveis de aplicação analógica, embora admitam a interpretação extensiva;

- a lei no art. 738.º do CPC ao falar da impenhorabilidade parcial de prestações periódicas provenientes, além do mais, do exercício da actividade laboral, quis apenas referir-se a estas e não já a quaisquer outros créditos, v.g., indemnizações e/ou compensações devidas pela cessação das funções exercidas a esse titulo, pois aqui entramos na penhora de direitos de crédito, tout court, a que alude o art. 773.º do CPC;

- apesar da indemnização ser proveniente do exercício da actividade profissional, bem como o respectivo cálculo ter apoio no vencimento mensal, não poderá ser considerada como um lugar paralelo equivalente a «prestação periódica», nem se pode extrair a asserção de que a sua impenhorabilidade parcial se destinará a assegurar aquele mínimo absolutamente necessário para uma sobrevivência humanamente digna;

- não se colocam as questões de inconstitucionalidade suscitadas na vigência do anterior art. 824.º do CPC, quando o TC declarou inconstitucional essa norma na parte em que permitia a penhora de uma parcela do salário do executado, que não é titular de outros bens penhoráveis suficientes para satisfazer a dívida exequenda, e na medida em que priva o executado da disponibilidade de rendimento mensal correspondente ao salário mínimo nacional;

- são os rendimentos provenientes do trabalho que constituem, normalmente, a base de subsistência do individuo, sendo com os mesmos que cada um suporta as despesas correntes do dia a dia, não se enquadrando a indemnização em substituição da reintegração naquela situação, por um lado por não corresponder a uma qualquer prestação periódica ou equiparável, por outro lado por não poder ser subsumível àquela parcela de rendimentos considerada necessária para assegurar a dignidade do trem de vida do executado;

- não se pode chegar a conclusão diversa através da interpretação extensiva, possível, nestes casos, pois tal interpretação do art. 738.º, n.º 1 do CPC não se encontra compreendida nem na letra nem no espírito daquela regra, a qual se refere especificamente, como dela se extrai, às prestações periódicas.

Do acórdão recorrido:

- da conjugação do art. 738.º, n.º 1 com os demais n.os do mesmo preceito, e dando especial atenção ao poder conferido ao juiz de reduzir ou isentar de penhora durante um certo período de tempo ponderando o montante e a natureza do crédito exequendo, bem como as necessidades do executado e do seu agregado familiar, conclui-se que o objectivo da redução prevista no n.º 1 é a protecção da subsistência do executado (cfr. a Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII, correspondente ao CPC de 2013):

- tal decorre da aplicação do princípio fundamental da dignidade humana (art. 2.º da CRP), fazendo o legislador, na medida da impenhorabilidade, prevalecer este princípio sobre os interesses do credor, protegendo o executado;

- a exigência de periodicidade das prestações foi afastada pelo art. 738.º do CPC de 2013, que tomou como critério a função da prestação a que o executado tem direito: destinarem-se a assegurar a subsistência do executado, sendo, por isso, decisivo a função da prestação e não a sua periodicidade;

- saber se a indemnização paga ao trabalhador em substituição da sua reintegração, em caso de despedimento ilícito (art. 439.º do CT de 2003, correspondente ao actual art. 391.º do CT), está ou não abrangida pela impenhorabilidade parcial prevista art. 738.º, n.º 1, do CPC implica determinar se essa indemnização tem (também) por função assegurar a subsistência do trabalhador/executado;

- é habitual reconhecer à indemnização atribuída em substituição de reintegração, em caso de despedimento ilícito, uma dupla função, ressarcitória e punitiva; essa dupla função reflecte-se desde logo nos critérios de cálculo – o valor da retribuição e o grau de ilicitude do despedimento;

- essa dupla função, todavia, não exclui a finalidade de prover à subsistência do trabalhador, pois, na verdade, a indemnização em substituição da reintegração é uma “indemnização sucedânea” da restauração natural (a reintegração), o que demonstra a função de “prestação alimentícia”, ou seja, de prestação que assegura “a manutenção da vida financeira básica do executado”, embora não assuma a natureza de rendimento periódico;

- esta mesma função resulta ainda de o seu cálculo ter em conta o montante das retribuições auferidas, dispondo o juiz de uma margem de decisão que lhe permite adequar o valor da indemnização à situação concreta do trabalhador, adaptando-o ao dano que a perda da retribuição, decorrente da extinção do contrato de trabalho, lhe pode trazer;

- a relevância do montante das retribuições no cômputo da indemnização mostra a função substitutiva da remuneração que esta indemnização desempenha.

A questão, objecto do recurso, reside, como se disse, em saber se a indemnização paga ao trabalhador em substituição da sua reintegração, em caso de despedimento ilícito (art. 439.º do Código do Trabalho – CT de 2003, aqui aplicável), está (ou não) abrangida pela impenhorabilidade parcial prevista no n.º 1 do art. 738.º do CPC.

Para esse efeito, interessa esclarecer se a indemnização em substituição da reintegração, a que se refere o art. 439.º do CT de 2003 ( a que corresponde o actual art. 391.º do CT de 2009), constitui uma prestação que deva ser qualificada como fazendo parte das “prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado” em relação às quais o preceito prevê a impenhorabilidade de 2/3 da parte líquida.

Assim, a solução a dar ao recurso passa, essencialmente, por proceder à interpretação da norma do art. 738.º, n.º 1, do CPC, tendo, também, em vista o disposto no art. 439.º do CT de 2003.

Preceitua o art. 738.º, n.º 1, do CPC ( “ Bens parcialmente penhoráveis”):

“São impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”.

Dispõe, por sua vez, o art. 439.º do Código do Trabalho de 2003, aprovado pela Lei nº 99/2003 de 27.08.2003 (“ Indemnização em substituição da reintegração), nos nºs 1 e 2:

“1- Em substituição da reintegração pode o trabalhador optar por uma indemnização, cabendo ao tribunal fixar o montante, entre 15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade, atendendo ao valor da retribuição e ao grau de ilicitude decorrente do disposto no artigo 429.º;

2- Para efeitos do número anterior, o tribunal deve atender a todo o tempo decorrido desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão judicial.”

Para arredar a aplicação do disposto no n.º 1 do art. 738.º do CPC, recorreu o acórdão fundamento a um argumento de ordem sistemática.

Argumentou-se no referido acórdão que as normas processuais referentes à impenhorabilidade de bens são normas excepcionais relativamente à regra geral da afectação do património do devedor à satisfação dos direitos do credor- apanágio da garantia geral das obrigações aludida no art. 601.º do Código Civil- normas essas que são, nos termos do art. 11.º do mesmo Código, insusceptíveis de aplicação analógica (embora admitam a interpretação extensiva), o que impedirá, do ponto de vista do acórdão, a asserção de que a indemnização atribuída ao trabalhador ilicitamente despedido se mostra incluída na previsão do n.º 1 do art. 738.º do CPC.

Porém, como assinala Gil Valente Maia, em artigo intitulado “Considerações Acerca da (Im)Penhorabilidade das Indemnizações por Despedimento”, publicado na Revista Jurídica Luso Brasileira, Ano 7 (2021), n.º 2, a págs. 873 e 874, https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/2021/2/2021_02_0863_0879.pdf, “o argumento da insusceptibilidade de aplicação analógica de acordo com o art. 11.º do CC, não procede porquanto “se é um dado inconcusso que a norma do art. 738.º, n.º 1, do CPC se apresenta numa relação de excepcionalidade em relação à norma do art. 601.º do CC, a verdade é que a norma do art. 738.º, n.º 1, do CPC, se desenha como uma «cláusula aberta» e as indemnizações por despedimento, além de se integrarem directamente na parte final do preceito («prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado»), partilham do mesmo espírito que perpassa as demais hipóteses de impenhorabilidade consignadas na lei”. O argumento da proibição da analogia “apenas se revelaria inultrapassável no caso de o legislador ter recortado hipóteses excepcionais específicas ou fechadas, cuja aplicação analógica vulneraria a segurança jurídica, o que não ocorre no caso da norma em análise”.

Em todo o caso, não se mostra necessário o recurso à analogia ou à interpretação extensiva, pois, como, desde já, se antecipa (e se concluirá adiante), a indemnização em causa insere-se directamente, por força da aplicação das regras de interpretação, na previsão do n.º 1 do art. 738.º do CPC, no segmento em que se refere às “prestações de qualquer natureza destinadas a assegurar a subsistência do executado”.

Sendo que para a apreciação do objecto do recurso se revela decisivo, desde logo, o elemento histórico da interpretação.

Com efeito, a questão da (im)penhorabilidade parcial estava equacionada de forma diferente antes do CPC de 2013.

Na verdade, o preceito equivalente, na redacção anterior do CPC de 1961, com as sucessivas alterações a partir da revisão de 1967 (D.L. n.º 47690, de 11.05.67) - artigo 824.º (“Bens parcialmente penhoráveis”) – prescrevia no n.º 1, alíneas a) e b):

“São impenhoráveis:

a) Dois terços dos vencimentos, salários ou prestações de natureza semelhante, auferidos pelo executado;

b) Dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante”.

Como assinalam Lebre de Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, no seu Código de Processo Civil Anotado, volume 3.º, 3.ª edição, a pág. 514, “o nº 1 [do art. 824.º] salvaguarda [va] da penhora dois terços de qualquer espécie de remuneração do trabalho dependente (Alberto dos Reis, Processo de Execução, cit., I, p. 383…) e das prestações pagas a título de pensão, indemnização, seguro ou renda vitalícia, todas estas prestações sendo periódicas e em princípio destinadas a proporcionar a satisfação das necessidades do executado. Ao equiparar-lhe as prestações de natureza semelhante, o CPC de 1961 excluía designamente, desde a revisão 1967(…), as indemnizações pagas por uma só vez ou fracionadas só abrangendo as que dessem lugar, como é regra nos acidentes de trabalho, a prestações periódicas ou de trato sucessivo (ver sobre o conceito de prestações periódicas, não confundido com o de prestação dividida ou fracionada, Almeida Costa, Direito das obrigações, Coimbra, Almedina, 1994, ps. 593-594) e as regalias sociais, subsídios, prestações de indemnização por acidente de trabalho e produto da sua aplicação, cuja concessão fosse independente de qualquer periodicidade. (…)”.

Sucede, porém, que, com a entrada em vigor do CPC de 2013, a norma do n.º 1 do art. 738.º, subordinada à mesma epígrafe “Bens parcialmente penhoráveis”, passou a dispor:

“ 1. São impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”.

Assim, como se verifica, no preceito do n.º 1 do art. 738.º, em que se fundiu as duas alíneas anteriores, eliminou-se a referência às “prestações de natureza semelhante” (aos vencimentos e salários), isto é, a prestações que “sustentassem de modo estável“ (e regular) uma pessoa (Rui Pinto, Manual da Execução e Despejo, 1ª edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 507) e, em lugar de pensões “ de natureza semelhante” (semelhante às prestações periódicas que eram e continuam a ser elencadas, tais como as pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia), o n.º 1 art. 738.º passou a referir-se a “prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”.

Por isso, deve entender-se que “ao falar agora de prestações de qualquer natureza, o CPC de 2013 põe a tónica já não na periodiciade mas apenas na finalidade da subsistência do executado. (…) “

Na verdade, como sublinha Gil Valente Maia, no artigo supra citado, a págs. 868 a 870, “a exigência acerca da natureza periódica do rendimento não se compagina com a actual redacção da norma do artigo 738.º, número 1 do C.P.C. e com a evolução daquele preceito. Com efeito, se a redacção anterior contemplava expressamente aqueloutra exigência parece ter sido intenção clara do legislador acentuar, com a nova redacção, manifestamente mais aberta ou elástica, o fundamento material da norma, deslocando a tónica da periodicidade do rendimento para o fim que aquele visa. (…) A relevância deixa de estar, pois, na natureza da prestação qua tale, exigindo-se agora que se atenda sobretudo à função desempenhada por aquele rendimento, designadamente à sua função alimentícia ou de sustento, abarcando aquela um conjunto de prestações, periódicas e não periódicas, contanto aquelas assumam a referida função previdencial”.

E, por isso, se crê, tal como se afirma no referido artigo, que “foi deliberada intenção do legislador alargar as hipóteses de rendimentos abrangidos pela norma possibilitando a inclusão de todo um conjunto de rendimentos que visassem a mesma função matricial: assegurar um quantum mínimo de condições materiais de existência ao executado e que a redacção atual da norma veio explicitamente consentir” (pág. 871) independentemente de esse mínimo constituir uma prestação periódica ou única.

Para esta ideia de que a prestação que assegura a subsistência do trabalhador/executado não carece de ser periódica, para beneficiar da protecção da impenhorabilidade parcial, concorre, também, a Exposição de Motivos do CPC de 2013 (Proposta de Lei nº 113/XII) que, a propósito da parte líquida que é abrangida pela impenhorabilidade, separa e distingue as “prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado” dos “vencimentos e salários” e das “prestações periódicas”.

Assim, não obstante a referência do n.º 3 do art. 738.º ao limite da impenhorabilidade (calculado) “à data de cada apreensão” e a referência do n.º 6 à possibilidade da redução da parte penhorável “por período que [o juiz] considere razoável“ parecerem sugerir ou induzir a ideia de que a prestação parcialmente penhorável não é única, cremos que a alteração empreendida ao nº 1 do art. 738.º impõe a interpretação (que os outros números não afastam de forma decisiva) de que agora os créditos irregulares ou únicos também estão protegidos pela impenhorabilidade parcial, desde que se destinem a assegurar a subsistência do executado (cfr. Rui Pinto, Manual da Execução e Despejo, págs. 507-508). O critério que releva actualmente é, pois, não o facto de as prestações serem disponibilizadas ao trabalhador de “forma integral ou faseada“ mas o da natureza das prestações (v. Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Executivo, 4ª edição, Coimbra, 2020, pág. 330).

Como assim, deve excluir-se a exigência da periodicidade dos rendimentos para poderem serem abrangidos pela regra da impenhorabilidade parcial. A alteração legislativa introduzida pelo actual artigo 738.º, n.º 1 faz cair, pois, por terra o principal argumento da tese da penhorabilidade total, sustentada pelo acórdão fundamento.

Importa, agora, verificar se a indemnização por despedimento em substituição da reintegração, prevista no art. 439.º do Código do Trabalho de 2003 que consiste numa prestação única e não periódica (montante entre 15 e 45 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade) pode ser qualificada como prestação que assegura a subsistência do executado, condição essencial para que possa ser abrangida pela impenhorabilidade parcial.

É pacífico o entendimento jurisprudencial de que a indemnização assume uma função compensadora ou ressarcitória, a par de uma função sancionatória ou penalizadora da actuação ilícita do empregador (v., v.g., Ac. STJ de 26.3.2008, proc. 07S050 e Ac. STJ de 6.2.2018. proc. 06S291, ambos em www.dgsi.pt).

A função sancionatória (penalizadora ou punitiva) releva do facto de o legislador ter feito intervir na medida da indemnização o grau de ilicitude decorrente do disposto no art. 429.º do CT de 2003; e, também, da circunstância de a indemnização ser sempre devida “mesmo que o trabalhador tenha no dia seguinte conseguido um emprego melhor” (Júlio Gomes, Direito do Trabalho, vol. I, Coimbra 2007, págs. 1033-1035).

A função compensadora ou ressarcitória emerge, por sua vez, do facto de com a indemnização se propiciar ao trabalhador “uma compensação pela perda do emprego que o acautele e prepare para o relançamento futuro da sua actividade profissional” (cfr. o citado Ac. STJ de 26.3.2008). Aliás, a indemnização não poderá deixar de ter em conta, por regra, a situação económica do lesado, nos termos do art. 494º do Código Civil (Ac. STJ de 18.5.2006, proc. 06S29, em www.dgsi.pt). E, por isso, se admite “que a lei pretenda sugerir tanto maior aproximação ao limite superior quanto mais baixo for o salário visando garantir um valor absoluto compensador” (Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 13ª edição, 2007, Almedina págs. 570-571; e que “para um trabalhador que aufira um salário modesto” o tribunal tenda a “modular” a indemnização “em alta” e para outro que aufira um salário elevado a gradue em baixa (João Leal Amado, Os efeitos do despedimento ilícito, em Revista do Ministério Público, número 105, pág. 38; do mesmo autor, Contrato de Trabalho, 4ª edição, 2014, Coimbra Editora, pág.429). De todo o modo, parece evidente que o legislador terá pretendido garantir ao trabalhador, independentemente da sua condição económica, um mínimo de recursos materiais que lhe permita subsistir enquanto não adquire novo emprego.

Esta função ressarcitória da indemnização de antiguidade não concita, todavia, o apoio de toda a doutrina.

Assim, segundo Marco Carvalho Gonçalves, em ob. cit., a pág. 330, “se a compensação ou a indemnização se reportam a créditos salariais ou remuneratórios - tal como sucede, nomeadamente, com a compensação pecuniária global em caso de cessação de contrato de trabalho por acordo (artigo 349º, nº 5 do CT) bem como com os ”salários intercalares”, isto é, com as retribuições que o trabalhador tenha deixado de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal que tenha declarado a ilicitude do despedimento, sem prejuízo das deduções, legalmente previstas, que devam ser feitas a essas retribuições ( art. 390º do CT) - essas remunerações, por se destinarem, presumivelmente a assegurar a subsistência do executado estarão, naturalmente, sujeitas ao regime previsto no artigo 738º, nº 1, razão pela qual será impenhorável o montante correspondente a 2/3 da compensação ou da indemnização. Diferentemente, se a compensação ou a indemnização não revestirem a natureza de créditos salariais ou remuneratórios – e, consequentemente, não se destinarem a garantir a subsistência do executado - as mesmas serão penhoráveis na sua totalidade, por aplicação do regime da penhora de créditos previsto no artigo 773º, não estando, consequentemente , sujeitas ao regime da impenhorabilidade constante do artigo 738º, nº 1. Enquadram-se neste âmbito nomeadamente (… ) a indemnização em substituição da reintegração (art. 391 e 392 do CT)”.

Porém, uma coisa não impede a outra: o facto de os salários terem uma natureza directamente “alimentar” ou “alimentícia” não obsta a que a indemnização, que não os inclua (os respectivos créditos), cumpra, também, a função de assegurar a subsistência do trabalhador/executado.

Por outro lado, os chamados “salários intercalares” que o trabalhador despedido deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal (art. 437.º, n.º 1, in fine, do CT de 2003) não excluem, também, a finalidade ressarcitória da indemnização prevista no art. 439.º do CT de 2003, ou seja, não impedem que esta se destine, também, a assegurar a subsistência do executado.

Aliás, não se deve olvidar que os salários “intercalares” subsistem apenas até ao trânsito em julgado da decisão que declarou ilícito o despedimento.

Transitada que for a decisão, cessam, o que significa que se o executado não arranjar, acto contínuo, novo emprego, a sua subsistência pode ficar em causa.

Também, por isso, se reitera o entendimento de que a indemnização em causa assume uma função compensatória ou ressarcitória, procurando não apenas “minorar o prejuízo que sempre sobreleva da extinção da relação laboral” mas atribuir, também, ao trabalhador um quantum- determinado de acordo com a respectiva antiguidade e salário – que visa acorrer às respectivas necessidades do trabalhador “durante um período de tempo que se estima mais ou menos longo até à obtenção de novo emprego” e “ que se antevê, em maior ou menor medida, de privação ou carência económica” (Gil Valente Maia, artigo citado, págs. 866 e 871).

Gil Valente Maia, no artigo citado, refere, ainda, mais três argumentos, a favor da tese da impenhorabilidade, que se nos afiguram pertinentes:

-um teleológico no sentido de que “a função desempenhada pela indemnização de despedimento enquanto mecanismo de protecção e garantia de subsistência do executado, (…) motivaria (motiva) um argumento de identidade de razão (a pari) com as demais hipóteses de impenhorabilidade, inexistindo, por conseguinte, qualquer fundamento susceptível de excluir a indemnização por despedimento da previsão do art. 738.º, n.º 1, do CPC” (cfr. pág. 876; v. Ac. R.P. de 20.02.2017, proc. 1034/10.2TBLSD-E.P1, em www.dgsi.pt);

-outro sistemático, aduzido por alguma jurisprudência com “apelo à norma do art. 2.º, n.º 4, do CIRS, a qual isenta de IRS a compensação paga a um trabalhador em resultado da cessação do contrato de trabalho até um determinado valor, só sendo aquele tributado «na parte que exceda o valor correspondente ao valor médio das remunerações regulares com carácter de retribuição sujeitas a imposto, auferidas nos últimos 12 meses, multiplicado pelo número de anos ou fracção de antiguidade ou de exercício de funções na entidade devedora»; neste congraçamento, e à luz da harmonia interna do ordenamento jurídico, não seria sustentável a existência de duas soluções díspares para um problema idêntico: se para o ordenamento fiscal existiria uma preocupação de salvaguarda de um mínimo existencial do trabalhador, o ordenamento jusprocessual pareceria arredar essa consideração, conduzindo a uma verdadeira desarmonia ou dissintonia entre os ramos do ordenamento jurídico” (cfr. pág. 876; v. o supra citado Ac. R.P. de 20.02.2017);

- e, ainda, um argumento sistemático adicional, retirado do voto de vencido formulado no Ac. R.C. de 11.12.2018, proferido no proc. 500/09.7TBSRT-B.C1, realçando que seria criticável a solução que levasse à recusa da impenhorabilidade parcial da indemnização porquanto, gozando “o crédito do trabalhador pela cessação do contrato de trabalho – no âmbito da insolvência da entidade patronal – do privilégio legal consignado no art. 333.º, n.º 2, do CT [que equivale ao anterior art. 377.º do CT, que é o aqui aplicável], preferindo sobre a hipoteca e o direito de retenção, seria inusitada ou exótica a solução de considerar que aqueles créditos – os quais gozam de preferência no âmbito insolvencial e são, ademais passíveis de adiantamento por parte do Fundo de Garantia Salarial”- viessem a ser, malgrado a preferência insolvencial, penhorados por parte de credores comuns no âmbito de um eventual processo executivo” (cfr. pág. 877).

Em razão dos argumentos vindos de expor, cremos que o conflito jurisprudencial, em análise, deve ser resolvido no sentido de que a indemnização paga ao trabalhador em substituição da sua reintegração, em caso de despedimento ilícito (art. 439.º do Código do Trabalho de 2003, aqui aplicável, correspondente ao actual art. 391.º do Código de Trabalho de 2009), está abrangida pela impenhorabilidade parcial prevista no n.º 1 do art. 738.º do CPC.

Por último, sempre se dirá que uma tal solução, que é também aplicável ao despedimento ilícito previsto no art. 391.º do CT de 2009 (atenta a similitude das situações), tenderá a assegurar -assim se nos afigura- um livre e neutro exercício por parte do trabalhador do seu direito de opção pela reintegração ou pelo recebimento da indemnização substitutiva desta. Com efeito, um tratamento diferenciado ou desigual entre a indemnização em substituição da reintegração, com a possibilidade de penhorabilidade integral do montante dessa indemnização, e os vencimentos a auferir no caso de o trabalhador optar pela reintegração, protegidos pela impenhorabilidade parcial, poderia condicionar a decisão do trabalhador, forçando-o a privilegiar a opção pela reintegração.

DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


*


Fixa-se a seguinte Uniformização de Jurisprudência:

A indemnização atribuída ao trabalhador ilicitamente despedido, em substituição da reintegração, é parcialmente impenhorável, nos termos do n.º 1 do artigo 738.º do Código de Processo Civil.”

Após trânsito em julgado, remeta certidão do acórdão para publicação na 1.ª série do Diário da República, conforme o disposto no art. 687.º, n.º 5, do CPC.


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Lisboa, 20 de Fevereiro de 2025

António Magalhães (Relator)

Ricardo Alberto Santos Costa

José Maria Ferreira Lopes

António Barateiro Martins

Fernando Baptista de Oliveira

Luis Espírito Santo

Ana Paula Lobo

Isabel Manso Salgado

Jorge Leal

Emídio Francisco Santos

Maria do Rosário Gonçalves

Henrique Antunes

Maria de Deus Simão da Cruz Silva Damasceno Correia

Anabela Luna de Carvalho

Orlando dos Santos Nascimento

Cristina Tavares Coelho

Rui Machado e Moura

Carlos Portela

Arlindo de Oliveira

António Pires Robalo

Maria dos Prazeres Couceiro Pizarro Beleza

Maria Clara Sottomayor

Maria da Graça Trigo

Pedro de Lima Gonçalves

Fátima Gomes

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia

Catarina Serra

António Oliveira Abreu

Maria João Vaz Tomé

Nelson Borges Carneiro


_*_

Voto de vencido

    

O montante impenhorável previsto no art. 738º, nº 1, encontra duas limitações, destinando-se a primeira  proteger os interesses do exequente e, a segunda, a salvaguardar a situação económica e social do executado, à luz da exigência constitucional da proteção da dignidade da pessoa humana (Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 4ª ed., pp. 331/32).

Assim, saber se a indemnização em substituição da reintegração é impenhorável, depende da qualificação da sua natureza, ou seja, se tem a natureza de salário, vencimento ou de prestação periódica paga a título de aposentação, isto é, se se destina a garantir a subsistência do executado  (O critério que releva atualmente é, não o facto de as prestações serem disponibilizadas ao trabalhador de “forma integral ou faseada“, mas o da natureza das prestações  - Marco Carvalho Gonçalves, ob. cit., p. 330).

A relevância deixa de estar, pois, na natureza da prestação qua tale, exigindo-se agora que se atenda sobretudo à função desempenhada por aquele rendimento, designadamente à sua função alimentícia ou de sustento, abarcando aquela um conjunto de prestações, periódicas e não periódicas, contanto aquelas assumam a referida função previdencial (Gil Valente Maia, Considerações Acerca da (Im)Penhorabilidade das Indemnizações por Despedimento, pp. 868/870 apud acórdão).

Por um lado, a indemnização em substituição da reintegração resulta do regime geral da obrigação de indemnizar, constante dos arts. 562º e seguintes do código civil, não se destinando, consequentemente, a garantir a subsistência do executado.

Por outro, além de não corresponder a uma qualquer prestação periódica ou equiparável, também não pode ser subsumível àquela parcela de rendimentos considerada necessária para assegurar a dignidade da pessoa humana.

Pode-se entender que com a indemnização se propicie ao trabalhador uma compensação pela perda do emprego que o acautele e prepare para o relançamento futuro da sua atividade profissional, mas não que se destina diretamente a garantir a sua subsistência, não tendo, assim, a natureza de crédito salarial ou remuneratório.

São os rendimentos provenientes do trabalho que constituem, normalmente, a base de subsistência da pessoa, sendo com os mesmos que cada um suporta as suas despesas.

Optando pela indemnização em vez da reintegração, o trabalhador está a prescindir do seu meio de subsistência regular, isto é, dos rendimentos que constituem a sua base de subsistência, pois se a quisesse continuar a assegurar, optaria pela reintegração.

Concluindo, não revestindo a indemnização em substituição da reintegração uma prestação paga a prazo e que vise assegurar a subsistência do executado, não está sujeita ao regime da impenhorabilidade constante do art. 738º/1, do CPCivil.



Nelson Borges Carneiro