I - É admissível recurso para o STJ do acórdão da Relação que condena o arguido por crime de que fora absolvido pela 1.ª instância e o condena em pena de prisão não superior a 5 anos de prisão, ao abrigo dos arts. 432.º, n.º 1. al. b) e 400.º, n.º 1, al. e), do CPP.
II - Tal recurso para o STJ é restrito à matéria de direito, não sendo admissível a convocação pelo recorrente dos vícios do art. 410.º, n.os 2 e 3, do CPP.
III - O STJ pode verificar oficiosamente desses vícios se necessário para uma correcta aplicação do direito.
IV - O princípio in dubio pro reo, como corolário do princípio da livre apreciação da prova, ínsito no princípio da inocência do arguido, verifica-se quando o tribunal opta por decidir, na dúvida, contra o arguido.
V - A violação de tal princípio deve ser tratada como vício da decisão, e diz respeito à matéria de facto só cognoscível se resultar do texto da decisão recorrida um estado de dúvida por parte do tribunal e mesmo assim decidiu contra o arguido.
VI - Saber se o tribunal recorrido devia em face das provas ter ficado na dúvida e aplicado o princípio in dubio pro reo constitui matéria de facto, sendo vedado ao STJ o seu conhecimento.
No Proc. C.S nº 5615/18.8... do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Local Criminal de ... – Juiz ... em que com outro é arguido AA,
É assistente e demandante a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa.
Foi por sentença de 31/5/2022, proferida a seguinte decisão:
“Nos termos e pelos fundamentos expostos, decido:
A – Absolver o arguido AA da prática de um crime de burla qualificada, p. e p. nos artigos 217.º n.º 1 e 218.º n.º 2 alínea a), com referência ao 202.º alínea b) do Código Penal, e de um crime de falsificação de documento, p. e p. no artigo 256.º n.º 1 alíneas b) e c) do Código Penal.
B – Absolver o arguido BB da prática de um crime de burla qualificada, p. e p. nos artigos 217.º n.º 1 e 218.º n.º 2 alínea a), com referência ao 202.º alínea b) do Código Penal, e de um crime de falsificação de documento, p. e p. no artigo 256.º n.º 1 alíneas b) e c) do Código Penal.
Sem custas.
C – Absolver os demandados AA e BB do pedido de indemnização cível deduzido pela demandante “Comunidade dos Países de Língua Portuguesa”.
Custas a cargo da demandante.”
O Mº Pº e a assistente recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual por acórdão de 26/9/2024 decidiu:
“Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da 9ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa, na apreciação dos recursos interpostos pelo Ministério Público e pela assistente / demandante Comunidade dos Países de Língua Portuguesa em:
1. Julgar parcialmente procedente o recurso do Ministério Público e totalmente procedente o recurso da assistente / demandante Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, quanto à impugnação da matéria de facto, nos termos decididos no ponto 3.2.2. do presente acórdão (com modificação da decisão do tribunal recorrido sobre matéria de facto, i.e., alteração / eliminação / fixação dos factos provados e dos factos não provados aí mencionados);
2. Julgar procedente o recurso da assistente / demandante Comunidade dos Países de Língua Portuguesa quanto à qualificação jurídica dos factos e, em consequência:
2.1) Revogam a sentença recorrida no que respeita à absolvição dos arguidos / recorridos AA e BB da prática de um crime de burla qualificada (p. e p. nos artigos 217.º n.º 1 e 218.º n.º 2 alínea a), com referência ao 202.º alínea b) do Código Penal) e de um crime de falsificação de documento (p. e p. no artigo 256.º n.º 1 alíneas b) e c) do Código Penal).
2.2) Em substituição do tribunal recorrido:
Parte Criminal:
a) Condenam o arguido / recorrido AA, pela prática, em co-autoria, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de burla qualificada (p. e p. pelos arts. 217º e 218º, nº 2, al. a), do Código Penal), na pena de 3 anos de prisão;
b) Condenam o arguido / recorrido AA, pela prática, em co-autoria, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de falsificação de documento (p. e p. pelo art. 256º, n.º 1, als. b) e d), do Código Penal), na pena de 7 meses de prisão;
c) Operado o cúmulo jurídico das penas referidas em a) e b), condenam o arguido / recorrido AA na pena única de 3 anos e 2 meses de prisão;
d) Suspendem a pena única de prisão aplicada ao arguido / recorrido AA pelo período de 3 anos e 2 meses, com regime de prova e mediante um plano individual de readaptação social (arts. 50º, nº 2, 53º e 54º, do Código Penal).
e) Condenam o arguido / recorrido BB, pela prática, em co-autoria, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de burla qualificada (p. e p. pelos arts. 217º e 218º, nº 2, al. a), do Código Penal), na pena de 3 anos de prisão;
f) Condenam o arguido / recorrido BB, pela prática, em co-autoria, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de falsificação de documento (p. e p. pelo art. 256º, n.º 1, als. b) e d), do Código Penal), na pena de 7 meses de prisão;
g) Operado o cúmulo jurídico das penas referidas em e) e f), condenam o arguido / recorrido BB na pena única de 3 anos e 2 meses de prisão;
h) Suspendem a pena única de prisão aplicada ao arguido / recorrido BB pelo período de 3 anos e 2 meses, com regime de prova e mediante um plano individual de readaptação social (arts. 50º, nº 2, 53º e 54º, do Código Penal).
Custas pelos arguidos / recorridos, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça de cada um deles (art. 513º, nºs 1 e 3, do CPP e art. 8º, nº 9, do RCP, por referência à Tabela III anexa).
*
Parte Cível:
Julgam parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente / demandante Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e, em consequência, condenam os arguidos / recorridos / demandados AA e BB no pagamento à Demandante, a título de danos patrimoniais, das seguintes quantias:
a) A quantia de € 34.133,66, acrescida de juros de mora vincendos, calculados à taxa legal anual dos juros civis, sobre o valor de € 25.990,00, contados a partir de 20/11/2020 até efectivo e integral pagamento;
b) A quantia de € 48.952,02, acrescida de juros de mora vincendos, calculados à taxa legal anual dos juros civis, contados a partir da data da notificação dos arguidos / recorridos / demandados para contestarem o pedido de indemnização civil até efectivo e integral pagamento.
No mais, julgam o pedido de indemnização civil improcedente.
Custas a cargo da assistente / demandante e dos arguidos / recorridos / demandados, na proporção do respectivo decaimento / vencimento.”
Recorre o arguido AA para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual no final da sua motivação apresenta as seguintes conclusões:
“1. O Meritíssimo Juiz «a quo», na douta sentença proferida (e agora alterada pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa), considerou que a prova produzida em julgamento, para além de contraditória, não conseguiu esclarecer de forma cabaz e segura, que foram os AA., em especial o Arguido AA, que se apropriou de qualquer verba;
2. Porém, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, em reexame da matéria de facto, decidiu atender a TODAS as questões levantadas pela Assistente CPLP (e não já as do
MP), considerando aqui demonstrados “erros de julgamento”;
3. Se é certo que o recorrente tem o dever de indicar os pontos concretos que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa, observando
tal ónus para cada um dos factos impugnados, é pacificamente aceite na doutrina que o legislador não quis dotar o Tribunal da Relação, da possibilidade de efectuar uma reapreciação total dos acervos de prova da 1ª instância, mas tão somente, a possibilidade de efectuar uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão proferida pelo Tribunal « a quo».
4. O verdadeiro julgamento, deve ser - sempre - o realizado perante o Tribunal de Primeira Instância, mantendo-se limitada a certas condicionantes, a apreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação.
5. Na apreciação dos alegados “erros de julgamento”, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa extravasou a mera reapreciação da prova, alterando substancialmente, já para não dizer totalmente a matéria de facto provada e não prova, considerando estar perante um conjunto de circunstâncias que, no seu entender, são “indícios” (de culpabilidade) com relevância probatória, para a condenação dos AA. pela prática dos crimes pelos quais vinham acusados e foram absolvidos em 1ª Instância, sendo eles:
a) Indicio n. 1: O papel fundamental dos AA. no projecto desenvolvido pela CPLP, nomeadamente no que concerne à entrega de dinheiro pela CPLP a determinadas pessoas, no âmbito de tal projecto;
b) Indício n. 2: A incongruência nas explicações dadas pelos AA. para a saída dos 25.990,00 €;
c) Indício n.º 3: diferente observância de procedimentos nas situações em causa;
d) Indício n.º 4: facilidade da duplicação das despesas a que se referem os recibos #2 a #6;
6. Estes indícios mais não são que uma verdadeira inversão do ónus da prova, contra o Arguido, consubstanciando uma pronúncia antecipada de culpabilidade, ditando que o A. É sempre culpado, se estes estiverem reunidos;
7. O A: AA explicou de forma clara, transparente e sem quaisquer respostas dúbias ou com o objectivo de ocultar a sua participação em todo o processo;
8. O indício 1, mais não é que o papel de cada um dos AA. no desenrolar de toda a situação, não devendo o facto de serem o técnico e o tesoureiro, fazer deles autores
materiais do crime, per si, sem qualquer outra valoração de culpa, sob pena de, com este tipo de argumentação, todo e qualquer Arguido ser sempre o autor do crime;
9. O Indício n.º 2 (a incongruência nas explicações dadas pelos AA. para a saída dos 25.990,00 €), não pode colher argumentos, como indício de culpabilidade, sob pena de
estarmos perante um verdadeiro ónus da prova, sendo o A. obrigado a provar que não praticou os crimes, ao invés de ser o Ministério Público, a sustentar a acusação.
10. Já o indício n.º 3 (diferente observância de procedimentos nas situações em causa) não justifica a culpabilidade do A. AA, já que o procedimento era sempre um, o do # recibo 1, que não foi seguido pelo A: BB, passando a ser adoptado o procedimento que este aplicou.
11. Por fim, o Indício n.º 4 (facilidade da duplicação das despesas a que se referem os recibos #2 a #6), não pode fundamentar a alteração da matéria de facto dada como provada e não provada, pelo Tribunal da Relação já que, muito pelo contrário, esbarra claramente com a prática real dos projectos de cooperação, ou seja, o facto de existir uma facilidade de duplicação de despesas, serve de argumento contrário à condenação dos AA., já que estes, se se apropriassem dos valores destinados às técnicas, em proveito próprio, teriam uma constante reclamação destas, pedindo a entrega dos valores, para cobrir as despesas;
12. Ora, sendo as planilhas de despesas destinadas a cobrir uma determinada aquisição, impressão ou mesmo fornecimento de matéria prima, a falta da verba para o seu custo, implicaria a constante reclamação sobre estes valores, o que nunca aconteceu.
13. Por outro lado, existem indícios contrários, que, só por si, são reveladores das dúvidas quanto à culpabilidade do A. AA, que fundamentaram a sua absolvição pelo Tribunal «a quo», nomeadamente o resultado dos exames periciais feitos à sua letra e assinatura, que não revelaram qualquer suporte probatório para que pudesse ter sido este a falsificar os recibos, nele apondo a assinatura das destinatárias, ou neles fazendo constar uma assinatura similar à delas;
14. Nenhum destes exames, quer os feitos no relatório da PWC ou os feitos, já em sede judicial, revelaram qualquer indício de que qualquer uma das assinaturas tivesse sito feita pelo A. AA;
15. Da prova recolhida (análise da vida financeira do A. AA, através dos extensos extractos bancários das suas contas pessoais, não foi feita qualquer prova (ou sequer o MP acusou ou utilizou esse argumento), de que o A, se tivesse apropriado de quaisquer valores, em proveito próprio;
16. Sobre os alegados erros de julgamento, indicados pela Assistente e acolhidos pelo Venerando Tribunal da Relação, é de realçar que não existe qualquer contradição entre o facto de o Tribunal «a quo» ter dado como provado que a representante do "Instituto...", CC não reconhece como sua a assinatura constante do recibo #2. , com o facto de a assinatura que consta do recibo #3 ser parecida com a de DD (já que, inclusive, lhe falta uma parte” e que a assinatura do recibo #4 é parecida com a de DD , com o facto dado como não provado pelo Tribunal «a quo», agora alterado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, ao considerar que as representantes do "Instituto...", bem como a representante da «Agência...», não receberam a totalidade dos valores em causa, nem assinaram os cinco recibos correspondentes;
17. O Tribunal « a quo», da (livre) apreciação que fez da prova, considerou não existirem provas, tendo sérias dúvidas para concluir que os AA. tivessem aposto qualquer assinatura, fazendo-se passar pelas destinatárias dos recibos #2, #3 e #4 (pontos 3, 4 e 5 dos FNP pelo Tribunal « a quo»);
18. Em momento algum, o relatório pericial junto com a acusação conclui expressamente que coube aos AA. adulterar as planilhas, limitando-se a explicar como as planilhas eram elaboradas (cfr. FP 6, 7 e 8 pelo Tribunal «a quo»);
19. Não se verificou qualquer erro de julgamento (ao contrário do invocado pela Assistente e aceite pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa) entre as assinaturas dos recibos 2 a 6 (pontos 10, 11, 12 e 13 dos factos não provados pela sentença no Tribunal «a quo») e a prova pericial, que conclui como “muito provável” que as assinaturas apostas naqueles recibos não pertençam a DD, CC e EE;
20. A prova pericial dá como “muito provável” que as assinaturas apostas nos recibos #2 a #6 não sejam de DD, CC e EE;
21. Porém, a letra e assinaturas do A. AA foram sujeitas a análise pelo laboratório de polícia criminal da Policia judiciária, que não conseguiu confirmar, ser o A. AA o autor das alegadas falsificações - cfr. relatório pericial do exame pericial, cujo resultado foi “inconclusivo”. – fls. 995 a 1000 dos autos, tendo o Tribunal « a quo» feito o correto exame crítico das provas em presença nos autos, referindo que “a qualidade e quantidade das semelhanças e diferenças registadas no confronto das escritas suspeitas das assinaturas (…) não permitem obter resultados conclusivos”;
22. Bem decidiu o Tribunal «a quo», ao considerar que “(…) é insuficiente para permitir resultados conclusivos no exame à letra e assinatura quer comparada com a letra e assinatura dos arguidos, quer com a letra e assinatura de EE (…)”, colocando em causa as próprias conclusões do relatório elaborado pela PWC, concluindo que “(…) não se pode afirmar nem negar que as assinaturas foram efectuadas por DD, CC e EE (…) não se podendo, também, afirmar ou negar que as assinaturas tenham sido efectuadas pelos arguidos”, apenas se pode concluir que não se apurou quem foi o autor ou autores dessas assinaturas (…)”, facto este essencial a uma eventual condenação.
23. O Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, ao alterar a matéria dada por provada e não provada do Tribunal «a quo», não só não consegue indicar onde se fundamenta para a condenação, como se socorre de matéria indiciária, sem qualquer suporte nos factos dos autos, utilizando raciocínios de experiência comum e de razoabilidade, totalmente descontextualizados da situação;
24. As declarações dos arguidos não foram consonantes quanto à responsabilidade das entregas, (sendo apenas consonantes no que diz respeito ao facto de as quantias em causa terem sido entregues aos destinatários – DD, CC e EE);
25. As técnicas, quando inquiridas, afirmaram não ter recebido as quantias em causa nem assinado os recibos.
26. As discrepâncias entre as declarações dos arguidos e os depoimentos das testemunhas DD e EE, justificam a existência de uma “(…) forte dúvida sobre o destino das quantias em causa (…) ”, considerando existir “(…) duas soluções possíveis: uma: os arguidos apropriaram-se das quantias em causa. Outra: as quantias foram entregues às destinatárias (…)” que a prova recolhida não consegue, com a certeza jurídica necessária, confirmar;
27. A prova produzida é manifestamente insuficiente para afirmar que os arguidos se apropriaram das quantias em causa e que, em homenagem ao princípio in dúbio pro reo não é possível formar a convicção segura sobre as questões fulcrais da entrega das quantias em causa e sobre o autor das assinaturas constantes dos recibos denominados #2 a #6, devendo a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa ser alterada, por outra, que à luz do princípio acima indicado, considere não existir prova suficiente, bastante e segura que firme a culpabilidade do A. AA, pela prática dos dois crimes pelos quais foi (agora) condenado,
28. Devendo revogar-se a decisão recorrida, sendo o A. absolvido da prática dos crime e, bem assim do pedido cível formulado e agora, igualmente condenado.
29. Cremos, Egrégios Conselheiros, que os verdadeiros culpados da prática destes crimes, nunca serão localizados. Contudo, não podem os AA., em especial o A. AA, ser condenado pela prática de dois crimes, que não cometeu e sobre os quais existe contradição insanável de provas sobre a prática do factos, o recebimento / apropriação dos valores e a assinatura dos recibos, devendo o A. ser absolvido, à luz do princípio in dubio pro reo, sob pena de, a manter-se o decidido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, se não fazer Justiça”
O Mº Pº respondeu ao recurso, defendendo a sua improcedência
A assistente / demandada respondeu ao recurso, defendendo a sua rejeição e subsidiariamente a sua improcedência
Neste Supremo Tribunal o ilustre PGA é de parecer que o recurso deve improceder;
Foi cumprido o artº 417º2 CPP
Apenas a assistente se pronunciou concordando com o parecer.
Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se à conferencia
Cumpre apreciar
Consta de acórdão recorrido do Tribunal da Relação, na sequência da alteração da matéria de facto (transcrição):
“3.2.1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Da acusação.
1. A "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa" com sede no Palácio Conde de Penafiel, Rua de São Mamede ao Caldas, n.º 21, em Lisboa, desenvolve projectos junto dos seus Estados-Membros, sendo que entre os anos de 2011 e 2013 desenvolveu um projecto financiado pelo fundo especial de "Apoio ao Desenvolvimento da Produção de Artesanato em São Tomé e Príncipe".
2. A "Agência..." com sede em ..., financiou o Projecto, dotando previamente a "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa" dos meios financeiros para o efeito, no valor de € 692.481,15 (seiscentos e noventa e dois mil quatrocentos e oitenta e um euros e quinze cêntimos).
3. O "Instituto...", Instituto de Direito Brasileiro, com sede em ..., foi o responsável pela execução do Projecto.
4. No âmbito do referido Projecto, o Secretariado Executivo da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa" destinou, entre outros, um conjunto de seis entregas de dinheiro, num total de € 31.990,00 (trinta e um mil novecentos e noventa euros), que se destinariam a suportar despesas do "Instituto...", no âmbito do Projecto.
DOS PROCEDIMENTOS EM VIGOR
5. As entregas de dinheiro eram desencadeadas através de pedido, fundamentado, quanto à sua necessidade e finalidade, apresentado pelo "Instituto...".
6. Este pedido era dirigido ao arguido AA, técnico da Direcção de Cooperação do Secretariado Executivo da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa", que geria o Projecto.
7. O arguido AA elaborava, então, a Informação Proposta, que era dirigida ao Director de Cooperação da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa", FF, o qual a encaminhava à Direcção do Secretariado Executivo da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa", com base em "planilhas" enviadas à "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa" pelo "Instituto...", onde constavam as despesas necessárias para o desenvolvimento do projecto identificado.
8. Depois, caso a Direcção concordasse, após conhecimento dessa concordância, o então tesoureiro do Secretariado Executivo da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa", o arguido BB, emitia um cheque cruzado, geralmente à sua própria ordem (ou, em casos excepcionais, de outro trabalhador do Secretariado Executivo da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa"), cheque esse que era assinado por duas pessoas autorizadas a fazê-lo (de entre um universo circunscrito que incluía o Secretário Executivo da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa", Directores e alguns pouco trabalhadores).
9. Seguidamente, o arguido BB apresentava o cheque no balcão, em ..., da "Caixa Geral de Depósitos", onde o funcionário, que o conhecia, por saber que ele trabalhava para o Secretariado Executivo da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa", lhe permitia levantar imediatamente o valor que estivesse em causa, em dinheiro vivo.
9A. A seguir, o arguido BB deveria entregar esse dinheiro a AA, que, por sua vez, entregaria o dinheiro ao seu legítimo destinatário, contra a assinatura do respectivo recibo.
DOS FACTOS
10. Os valores em questão, a que se referem as seis entregas supra-referidas, foram levantados pelo arguido BB, com fundamento em pedidos (Informação Proposta) autorizados pelo Secretariado Executivo da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa", a fim de serem entregues, em mão, a uma de duas representantes do "Instituto..." e a uma representante da "Agência...", a saber: - DD – representante do "Instituto..." e presidente do mesmo;
- CC – representante do "Instituto..." e consultora do mesmo;
- EE – representante da "Agência..." e coordenadora-geral de cooperação desta instituição.
10A. No entanto, as representantes do Instituto..., bem como a representante da Agência..., não receberam a totalidade dos valores em causa, nem assinaram os cinco recibos correspondentes. Assim:
11. Com data de 29 de Julho de 2011, o arguido AA emitiu um recibo (#1), no valor de € 6.000,00 (seis mil euros), referente a equipamentos e utensílios, no âmbito do Projecto, e com expressa menção à "Informação Proposta" (doravante designada abreviadamente por “IP”) n.º ....
12. Este recibo foi assinado por CC e o dinheiro por ela recebido.
13. Com data de 10 de Maio de 2012, o arguido AA emitiu um recibo (#2), no valor de € 6.900,00 (seis mil e novecentos euros), referente à aquisição de tecidos, linhas de bordar e insumos para a manutenção das máquinas de costura, no âmbito do Projecto, e com expressa menção à "Informação Proposta" n.º ....
14. Com data de 16 de Agosto de 2012, o arguido AA emitiu um recibo (#3), no valor de € 4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros), referente a despesas diversas e com a gráfica, no âmbito do Projecto, e com expressa menção à "Informação Proposta" n.º ....
15. Com data de 13 de Dezembro de 2012, o arguido AA emitiu um recibo (#4), no valor de € 5.800,00 (cinco mil e oitocentos euros), referente à impressão de brochuras e de catálogos, no âmbito do Projecto, e com expressa menção à "Informação Proposta" n.º ....
16. Com data de 14 de Fevereiro de 2013, o arguido AA emitiu um recibo (#5), no valor de € 6.100,00 (seis mil e cem euros), referente à aquisição de tecidos para bordados e insumos para máquinas de costura, no âmbito do Projecto, e com expressa menção à "Informação Proposta" n.º ....
17. Com data de 5 de Dezembro de 2013, o arguido AA emitiu um recibo (#6), no valor de € 2.690,00 (dois mil seiscentos e noventa euros), referente ao apetrechamento da Cooperativa/Loja U... em São Tomé e Príncipe, no âmbito do Projecto, e com expressa menção à "Informação Proposta" n.º ....
18. Nestas IP, com excepção da primeira, constavam valores que não se encontravam refletidos nas planilhas (folhas de cálculo ou tabelas) enviadas pelo Instituto..., mas que foram forjados pelo arguido AA, como suporte da emissão de cinco cheques, à ordem do arguido BB, relativos aos valores a que se reportam os recibos #1 a #5 (Docs. n.ºs 7 a 11), sacados sobre a conta da CPLP da CGD n.º ...31:
- Cheque n.º ...42, datado de 28-07-2011, no valor de 6.000,00€, emitido à ordem de GG, por ela levantado;
- Cheque n.º ...21, datado de 09-05-2012, no valor de 6.900,00€, apresentado no balcão da Praça da ... e pago à boca de caixa ao arguido BB;
- Cheque n.º ...97, datado de 16-08-2012, no valor de 4.500,00€, apresentado no balcão da Praça da ... e pago à boca de caixa ao arguido BB;
- Cheque n.º ...62, datado de 28-11-2012, no valor de 5.800,00€, apresentado no balcão da Praça da ... e pago à boca de caixa ao arguido BB;
- Cheque n.º ...50, datado de 13-02-2013, no valor de 6.100,00€, apresentado no balcão da Rua ... e pago ao arguido BB.
19. --------------
20. Sendo que, no caso do valor a que se reporta o recibo #6, não foi emitido cheque, tendo antes sido excepcionalmente ordenada uma transferência bancária, da conta da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa", para a conta de que o arguido AA é titular na "Caixa Geral de Depósitos", com o n.º ...00, com a transferência de € 2.690,00 (dois mil seiscentos e noventa euros) concretizada a 06/12/2013.
21. Relativamente às várias entregas de dinheiro, a representante do "Instituto...", CC assinou o recibo #1 e recebeu o dinheiro em causa.
22. Já relativamente ao recibo #2 (com a pretensa assinatura de CC), a representante do Instituto..., CC, não recebeu o dinheiro em causa, €6.900,00 (seis mil e novecentos euros) e não reconhece como sua a assinatura constante do recibo em análise.
23. Relativamente ao recibo #3, de € 4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros), DD não recebeu o dinheiro e, pese embora a assinatura que consta do recibo seja parecida com a sua, não foi por si realizada, tanto mais que lhe falta uma parte.
24. Relativamente ao recibo #4, de € 5.800,00 (cinco mil e oitocentos euros), DD não recebeu o dinheiro em causa nem apôs qualquer assinatura no recibo correspondente, pois tal assinatura é parecida com a sua, mas não foi por si aposta.
24A. Relativamente ao recibo #5, no valor de € 6.100,00 (seis mil e cem euros), a representante do Instituto..., DD, não recebeu o dinheiro, nem assinou o recibo correspondente.
24B. Relativamente ao recibo #6, no valor de € 2.690,00 (dois mil seiscentos e noventa euros), a representante da Agência..., EE, não recebeu o dinheiro nem assinou o recibo correspondente.”.
25. Porquanto, o arguido AA que, no âmbito deste Projecto, fazia efectivamente as entregas em numerário às representantes do Instituto..., não lhes entregou as cinco parcelas supra referidas.
25A. Efectivamente, em conluio com o arguido BB, ambos os Arguidos levantaram, entre Maio de 2012 e Dezembro de 2013, um total de € 25.990,00 (vinte e cinco mil novecentos e noventa euros) da conta da CPLP, que simularam ser destinado ao Projecto.
25B. E para justificar esses levantamentos, os arguidos alteraram as planilhas e elaboraram IP, para assim simular as entregas de dinheiro às representantes do Instituto... e Agência..., que se destinaria ao Projecto, pelo que emitiram cinco recibos correspondentes, #2 a #6.
25C. Nesses recibos os Arguidos fizeram por fazer constar uma assinatura, como se da assinatura das destinatárias da quantia se tratasse, a qual não foi por estas aposta, já que a correspondente quantia também não lhes foi entregue pelos arguidos.
25.D. Assim:
- No recibo #2 fizeram por apor uma assinatura como se da assinatura de CC se tratasse;
- No recibo #3 fizeram por apor uma assinatura como se da assinatura de DD se tratasse;
- No recibo #4 fizeram por apor uma assinatura como se da assinatura de DD se tratasse;
- No recibo #5 fizeram por apor uma assinatura como se da assinatura de DD se tratasse;
- No recibo #6 fizeram por apor uma assinatura como se da assinatura de EE se tratasse.
25E. Assim, simulando que tais levantamentos se destinavam ao Projecto apoiado pela CPLP, os arguidos lograram levantar da conta bancária desta, um total de € 25.990,00 (vinte e cinco mil novecentos e noventa euros), do qual se apropriam para proveito próprio, através dos quatro cheques levantados à boca de caixa pelo arguido BB e da transferência bancária para a conta do arguido AA.
25F. Agiram os arguidos AA e BB, de forma livre, deliberada e consciente, por acordo e em conjugação de esforços, pois pensaram e quiseram montar, como efetivamente montaram, um esquema fraudulento que consistiu em alterar planilhas e elaborar IP’s, de forma a que pudessem fazer seu dinheiro da CPLP, fazendo crer que tal dinheiro seria destinado ao Projeto por aquela desenvolvido, e como se esse dinheiro tivesse sido entregue a pessoas envolvidas no referido Projeto, quando, na verdade, tal dinheiro não foi destinado ao Projeto nem foi entregue às referidas pessoas, antes tendo os arguidos AA e BB feito suas as quantias em causa, com as quais se enriqueceram, como era sua vontade.
25G. Para tal os arguidos AA e BB decidiram, por um lado, alterar documentos previamente existentes, introduzindo nas planilhas os montantes a que se referem os recibos #2 a #6, usando-os seguidamente para tentar justificar (no que toca pelo menos à alteração da planilha) a diminuição patrimonial na CPLP, de, no total, € 25.990,00 (vinte e cinco mil novecentos e noventa euros).
25H. Destarte, alteraram os dados constantes das planilhas enviadas a FF e depois fizeram por fazer constar dos recibos as assinaturas de CC, DD e EE, para justificar o suposto recebimento das quantias em causa, bem sabendo que os recibos que emitiram não correspondiam a verdadeira disposição patrimonial a favor daquelas, servindo para encobrir a apropriação ilegítima do dinheiro que fizeram seu.
25I. Com a sua conduta os arguidos causaram um prejuízo patrimonial à CPLP de € 25.990,00 (vinte e cinco mil novecentos e noventa euros), montante com o qual se locupletaram.
25J. Bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Contestação do arguido AA.
A – Dos procedimentos gerais.
26. A "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa" desenvolve projectos de apoio junto dos Estados-membros da comunidade dos países de língua portuguesa.
27. No âmbito deste projecto, a "Agência..." financiou o "Projecto de apoio ao desenvolvimento da produção de artesanato em São Tomé e Príncipe", tendo encarregue o "Instituto...", com sede em ..., da execução deste projecto.
28. A "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa" recebeu cerca de € 692.481,15 para a execução do projecto, tendo o Secretariado Executivo da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa" destinado um conjunto de diversas entregas em dinheiro, com o objectivo de suportar as despesas das técnicas/consultoras do "Instituto..." e da Agência... em São Tomé e Príncipe, das quais se destacam seis entregas em dinheiro (#1, #2, #3, #4, #5 e #6), as quais totalizam o valor de € 31.990,00.
29. O procedimento oficial iniciava-se sempre com o pedido fundamentado e justificado, pelo "Instituto...", à "Agência...", que posteriormente o remetia para a Missão... junto da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa", em ..., que por sua vez dava entrada do pedido no gabinete do Secretário Executivo da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa", sendo assim recebido na "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa" e encaminhado para as respectivas áreas, nomeadamente, para os directores, que seguidamente os encaminham para o técnico que acompanhava o projecto dentro de cada uma das direcções.
30. Os pedidos do "Instituto..." foram recebidos pela Missão..., junto da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa", que os faziam chegar por nota verbal ao Secretariado Executivo (na prática, muitos deles viriam a ser encaminhados por mensagem de correio electrónico).
31. Aqui, eram reencaminhados para o director de cooperação, FF, que o reencaminhava para o arguido AA, técnico do projecto de artesanato.
32. Perante este pedido, devidamente justificado pelo "Instituto...", o director de cooperação ordenava ao técnico (ao arguido AA), que elaborasse uma Informação Proposta, a qual era redigida com base em planilhas enviadas à "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa" pelo próprio "Instituto...".
33. Destas planilhas constavam as verbas com as despesas, os valores a afectar a cada rubrica e a respectiva justificação.
34. Elaborada a "Informação Proposta" pelo arguido AA, este submetiaa ao director de cooperação, FF, que validava os dados da "Informação Proposta" e, em caso de concordância, a submetia ao director da área financeira, para cabimento orçamental.
35. Havendo cabimentação orçamental, a tesouraria, através do tesoureiro da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa" (o arguido BB), emitia um cheque cruzado, no valor indicado na "Informação Proposta" (previamente aprovada pelo director de cooperação), assinado por duas pessoas da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa", devidamente autorizadas, que posteriormente viria a ser levantado pelo próprio arguido BB, junto da "Caixa Geral de Depósitos".
36. A prática corrente dentro da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa" veio a revelar que sempre que as técnicas visitavam a "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa", eram recebidas pelo técnico que acompanhava o projecto (o arguido AA),
B – Dos valores:
#1 – recibo de € 6.000,00
37. Em 28/07/2011, foi emitido um cheque pela então tesoureira da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa" GG, que o descontou junto da "Caixa Geral de Depósitos", entregando a quantia de € 6.000,00 ao técnico do projecto (o arguido AA).
38. O arguido AA assinou um recibo comprovativo do recebimento da entrega desse valor, previamente elaborado pela tesoureira GG.
39. Este valor teve por base a "Informação Proposta" n.º ..., elaborada pelo arguido AA, com a planilha recebida na Missão... junto da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa" e oriunda do "Instituto...", devidamente aprovada pelo respectivo director de cooperação, FF.
40. [Eliminado]
41. Uma vez que o arguido AA, no âmbito da sua função de técnico do projecto, ia deslocar-se a São Tomé e Príncipe e a técnica já se encontrava no local (em São Tomé), o arguido AA levou consigo o dinheiro para a técnica (assim como o recibo previamente emitido por GG), entregando-os à técnica, solicitando a assinatura do recibo respeitante ao valor recebido e entregue.
42. Que esta assinou na sua presença.
#2 – recibo de € 6.900,00
43. Em 09/05/2012, o arguido BB emitiu um cheque no valor de € 6.900,003, que descontou na "Caixa Geral de Depósitos", o qual teve por base a "Informação Proposta" n.º ... de 4 de Maio de 2012.
44. [Eliminado]
45. [Eliminado]
46. A técnica CC adoeceu gravemente no Brasil e não chegou a embarcar para ..., sendo submetida a intervenção cirúrgica ainda no Brasil.
47. Em consequência, o arguido AA diligenciou junto da agência de viagens para a alteração do bilhete da viagem.
48. O arguido AA esteve de baixa médica no período compreendido entre 03/04/2012 e 14/04/2012.
49. A qual foi prorrogada, no período de 15 de Abril a 15 de Maio de 2012, sendo que o arguido AA apenas se manteve de baixa até ao início de Maio, tendo, em 11 de Maio de 2012 e por se encontrar já recuperado, iniciado o gozo de férias previamente agendadas com a família nos ..., no período de 11 a 20 de Maio de 2012.
# 3 - Recibo de € 4.500,00
50. Em 16/08/2012, o arguido BB emitiu um cheque no valor de € 4.500,00, que descontou na "Caixa Geral de Depósitos", o qual teve por base a "Informação Proposta" n.º ... de 6 de Agosto de 2012.
51. Esta "Informação Proposta" n.º ..., de 04/05/2012, da autoria do arguido AA, especificava a natureza das despesas a adquirir pela técnica DD, nomeadamente as despesas com miscelâneas, insumos, matérias primas e materiais permanentes (equipamento informático), assim como as despesas com a gráfica.
52. [Eliminado]
53. O levantamento do valor no banco pelo arguido BB ocorreu no período da manhã do dia 16 de Agosto.
# 4 – Recibo de € 5.800,00
54. Em 28/11/2012, o arguido BB emitiu um cheque no valor de € 5.800,00, que descontou na "Caixa Geral de Depósitos", o qual teve por base a "Informação Proposta" n.º ... de 22 de Novembro de 2012.
55. Este cheque foi descontado pelo arguido BB em 29/11/2012.
56. O arguido AA encontrava-se de férias nos Estados Unidos da América, no período compreendido entre 27 de Novembro e 8 de Dezembro de 2012.
57. Por mensagem de correio electrónico datado de 27 de Novembro de 2012, o arguido BB contactou a técnica DD, no sentido de combinar com esta a entrega do valor destinado às despesas do projecto
# 5 – recibo de € 6.100,00
58. Em 13/02/2013, o arguido BB emitiu um cheque no valor de € 6.100,0011, que descontou na "Caixa Geral de Depósitos", o qual teve por base a "Informação Proposta" n.º ... de 27 de Fevereiro de 2012.
59. [Eliminado]
60. Este cheque foi descontado pelo arguido BB em 14/02/2013.
61. O arguido AA não esteve com a técnica DD, aquando da passagem desta por ..., a caminho de São Tomé e Príncipe.
# 6 – recibo de € 2.690,00
62. O arguido BB não levantou o cheque a tempo de o entregar à técnica EE, a "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa" não dispunha de valores monetários para entregar à técnica.
63. O arguido AA disponibilizou-se em adiantar o valor a entregar à técnica, do seu próprio bolso, para desbloquear a situação.
64. Mais tarde, o valor viria a ser transferido pela "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa" para a conta pessoal do arguido AA.
65. Nesse mesmo dia 5 de Dezembro de 2013, após um almoço no qual estiveram o arguido AA, EE, HH (da "Agência..."), II, JJ e KK, do secretariado da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa", o arguido AA, juntamente com EE, HH e a colega KK regressaram à "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa".
C – Da alegada falsificação de planilhas e recibos.
66. Ao elaborar a "Informação Proposta" n.º ... em 22/11/2012, o arguido AA utilizou a planilha recebida conjuntamente com o Oficio ... da Missão... em ... junto à "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa", de 8 de Novembro.
67. Este oficio foi deixado por FF na mesa do arguido AA, durante o período em que esteve ausente da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa" (missão em Cabo Verde, de 2 a 11 de Novembro, internado com gastroenterite aguda na "CUF ...", de 11 a 16 Novembro, e em casa, de baixa, a recuperar, no período de 17 a 19 Novembro), para que este elaborasse, com a indicação de que deveria "dar seguimento conforme combinado e acordado no email do dia 14/11/2012 para a Agência...".
68. O arguido, juntamente com a colega KK, solicitaram ao arquivo histórico da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa", a cópia do original do Ofício ..., com a planilha em anexo, do qual não consta a verba dos € 5.800,00.
69. Foi localizada no seu computador do arguido AA uma versão da planilha com os € 5.800,00, com data posterior à da emissão do recibo.
70. A "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa" com uma periodicidade semestral, comunicava à "Agência...", com conhecimento "cc" de todos os intervenientes no processo, uma informação detalhada do andamento do projecto, remetendo-lhes um relatório com as despesas e as receitas do projecto.
**
3.2.2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
Da acusação.
DOS PROCEDIMENTOS EM VIGOR
1. [Eliminado]
2. DOS FACTOS
2. [Eliminado]
3. [Eliminado]
4. [Eliminado]
5. [Eliminado]
6. [Eliminado]
7. [Eliminado]
8. [Eliminado]
9. [Eliminado]
10. [Eliminado]
11. [Eliminado]
12. [Eliminado]
13. [Eliminado]
14. [Eliminado]
15. [Eliminado]
16. [Eliminado]
17. [Eliminado]
18. [Eliminado]
19. [Eliminado]
20. [Eliminado]
21. [Eliminado]
22. [Eliminado]
23. [Eliminado]
Contestação do arguido AA.
A – Dos procedimentos gerais.
24. O procedimento normal passava por ser o arguido BB a entregar os valores directamente às técnicas, contra a entrega de um recibo comprovativo do recebimento.
25. Sendo que tais entregas de valores ocorreriam na presença, pelo menos, dos três, ou seja, do técnico do projecto, o técnico do "Instituto..." ou da "Agência..." que fazia escala em ..., vindo do Brasil, para levar os valores destinados a suportar as actividades previstas para o projecto, e o tesoureiro, que no acto entregava o valor, em dinheiro.
26. Sempre que, por qualquer outra ocorrência, tal não acontecia, o tesoureiro entregava o dinheiro ao técnico do projecto (o arguido AA) e este assinava um recibo respeitante ao recebimento desse valor.
27. Quando a técnica do "Instituto..." ou da "Agência..." chegava a Portugal, deslocava-se à "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa" e era-lhe entregue o dinheiro, contra a assinatura do recibo, já previamente elaborado pelo tesoureiro.
28. Caso o gestor do projecto não estivesse na altura na "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa", cabia ao tesoureiro receber os técnicos e entregar o dinheiro, contra a elaboração do recibo do recebimento, que deveria recolher destes, deviamente assinado.
B – Dos valores:
#2 – recibo de € 6.900,00
29. O recibo assinado pela técnica e comprovativo do recebimento deste valor está datado de 10 de Maio de 2012.
# 3 - Recibo de € 4.500,00
30. Antes de saírem para o almoço, o arguido AA chamou o arguido BB, que lhe entregou o dinheiro, que este entregou de imediato à técnica, que se encontrava em sala, juntamente com a chefe de gabinete LL, contra a assinatura do recibo respectivo.
# 4 – Recibo de € 5.800,00
31. DD respondeu ao arguido BB que chegaria a ..., a 29/11/2012, pelo que passaria pelas instalações da "Comunidade dos Países de Língua Portuguesa" para receber o dinheiro.
32. O arguido AA não foi interveniente na elaboração do recibo assinado por DD.
# 6 – recibo de € 2.690,00
33. No dia 5 de Dezembro de 2013, o arguido AA chamou o arguido BB, que desceu à sala das visitas, trazendo em numerário € 2.690,00, bem como € 1.095,43, outro valor referente a ajudas de custo destinadas a EE.
34. Foi o arguido BB que trouxe ambos os valores, assim como os recibos respectivos, por si elaborados, que foram entregues e assinados por EE,
C – Da alegada falsificação de planilhas e recibos.
35. O arguido AA não alterou a planilha original.”.
+
É unanime o entendimento que o recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação que constituem as questões suscitadas pelo recorrente e que o tribunal de recurso tem de apreciar (artºs 412º, nº1, e 424º, nº2 CPP Ac. do STJ de 19/6/1996, in BMJ n.º 458, pág. 98 e Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal” III, 2.ª Ed., pág. 335), sem prejuízo de ponderar os vícios da decisão e nulidades de conhecimento oficioso ainda que não invocados pelos sujeitos processuais – artºs, 410º, 412º1 e 403º1 CPP e Jurisprudência dos Acs STJ 1/94 de 2/121 e 7/95 de 19/10/ 952 e do conhecimento dos mesmos vícios em face do artº 432º1 a) e c) CPP (redação da Lei 94/2021 de 21/12) mas que, terão de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” – artº 410º2 CPP, “não podendo o tribunal socorrer-se de quaisquer outros elementos constantes do processo”, sendo tais vícios apenas os intrínsecos da própria decisão, como peça autónoma, não sendo de considerar e ter em conta o que do processo conste em outros locais - cfr. Ac. STJ 29/01/92 CJ XVII, I, 20, Ac. TC 5/5/93 BMJ 427, 100, constituindo a “revista alargada”
São as seguintes as questões a apreciar:
Rejeição do recurso por inadmissibilidade legal
Violação do principio in dubio pro reo
A primeira questão – rejeição do recurso resulta desde logo do facto de a admissão do mesmo pelo tribunal recorrido - a Relação de Lisboa – não vincular o Tribunal Superior a quem é dirigido o recurso, nos termos do artº 414º3 CPP do seguinte teor: “3 - A decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior.” e a questão foi suscitada pela assistente / demandante.
No caso presente o tribunal Judicial da comarca de Lisboa procedeu ao julgamento e absolveu os arguidos e o Tribunal da Relação em recurso condenou os mesmos arguidos e é deste acórdão da Relação que o recurso é interposto.
A Admissibilidade dos recursos para o STJ, resulta do artº 432º CPP que dispõe:
“1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
a) De decisões das relações proferidas em 1.ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;
b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;
c) De acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º;
d) De decisões interlocutórias que devam subir com os recursos referidos nas alíneas anteriores.
2 - Nos casos da alínea c) do número anterior não é admissível recurso prévio para a relação, sem prejuízo do disposto no n.º 8 do artigo 414.º”
Dado que a situação não se enquadra na al. a), c) e d) supra, importa ponderar o disposto no artº 400º CPP que dispõe:
“1 - Não é admissível recurso:
a) De despachos de mero expediente;
b) De decisões que ordenam actos dependentes da livre resolução do tribunal;
c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não conheçam, a final, do objeto do processo, exceto nos casos em que, inovadoramente, apliquem medidas de coação ou de garantia patrimonial, quando em 1.ª instância tenha sido decidido não aplicar qualquer medida para além da prevista no artigo 196.º;
d) De acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, exceto no caso de decisão condenatória em 1.ª instância em pena de prisão superior a 5 anos;
e) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos, exceto no caso de decisão absolutória em 1.ª instância;
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
g) Nos demais casos previstos na lei.
2 - Sem prejuízo do disposto nos artigos 427.º e 432.º, o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
3 - Mesmo que não seja admissível recurso quanto à matéria penal, pode ser interposto recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil.”
A situação não se enquadra nas alíneas a) a d) e na al. f), mas enquadra-se na al. e), pois que não é admissível recurso se a Relação em recurso aplicar pena não superior a 5 anos, mas “a contrario” sê-lo-á se tiver ocorrido absolvição na 1ª instancia.
Assim por esta via é admissível recurso para o STJ do acórdão da Relação que condenou os arguidos em pena inferior a 5 anos porque revogou a decisão da 1ª instância que os absolvera.
Vejamos se ocorre outra situação capaz de rejeitar o recurso também levantada pela assistente.
Dispõe o artº 434º CPP que “O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º”, donde em face desta norma o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, pelo que o conhecimento das questões em matéria de facto esgota-se nos tribunais da Relação, que conhecem de facto e de direito (artº 428.º do CPP). Todavia ressalva os casos do artº 432º a) e c) CPP de acordo com os quais o recurso para o Supremo Tribunal pode também ter como fundamento os vícios da decisão, previstos no artº 410º 2 e 3 CPPO ou seja, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova, e ainda nulidade não sanada.
Dado que a situação dos autos não se enquadra nas alíneas a) e c) mencionadas, pois tratando-se de um recurso de acórdão da Relação proferido em recurso (artº 432.º, n.º 1, al. b), do CPP), não é admissível recurso para o STJ “com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º” isto é, com fundamento nos vícios da decisão recorrida e em nulidades não sanadas (aditamento do artigo 11.º da Lei n.º 94/2021, de 21/12) e não podem ser invocados pelo recorrente tais vícios da decisão.
Embora esse facto não prejudique os poderes de conhecimento dos vícios da decisão de facto por parte do STJ quando constatada a sua presença e a mesma seja impeditiva de prolação da correta decisão de direito, significa apenas que o tribunal pode conhecer de tais vícios oficiosamente mas não a solicitação do recorrente ou como fundamento do recurso, que não seria admissível.
O recorrente o que faz no seu recurso é questionar a matéria de facto apurada pela Relação em contraposição da assente pelo tribunal da 1ª instância, de modo a pretender alterar de novo a matéria de facto, pretendendo rebater a apreciação da prova impugnada em recurso para a Relação com a prova apreciada pela 1ª instância.
Ora tal não é possível, pois que num recurso interposto para o STJ de um acórdão da Relação e julgado por este (de facto e de direito) o recurso interposto da decisão proferida em 1.ª instância já não pode reintroduzir no recurso para o STJ a impugnação da decisão sobre matéria de facto quer por via dos vícios da decisão (nos termos apontados) quer por via da impugnação ampla da matéria de facto.
No caso presente o arguido pretende substituir a apreciação que a Relação fez da matéria de facto (alterando-a) pela apreciação que o tribunal da 1ª instancia havia feito, com recurso à análise da prova produzida em audiência de julgamento, para concluir que o existe contradição insanável de provas sobre a prática do factos, e devendo ser absolvido à luz do princípio in dubio pro reo, dúvida que a 1ª instância assumira.
Pelos próprios termos do recurso (contradição insanável de provas) se vê que o recorrente não invoca sequer os vícios do artº 410º 2 e 3 CPP e que o arguido pretende é uma análise comparativa da provas que foram produzidas e apreciadas pelas instâncias, o que respeita à impugnação da matéria de facto que não cabe nos poderes deste Supremo Tribunal.
Por outro lado, ao invocar, em face da diversa apreciação das provas pelas instâncias, o principio in dubio pro reo, igualmente entra no âmbito da matéria de facto, pois a violação de tal princípio deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova3 como modo para a alteração da matéria de facto.
Tal princípio in dubio pro reo, como corolário do principio da livre apreciação da prova, ínsito no princípio da inocência do arguido, verifica-se quando o tribunal opta por decidir, na dúvida, contra o arguido 4, pois o in dubio pro reo, com efeito, “parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador” – Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997. Até porque “a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade” (idem, pág. 17): “O juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» (idem, pág. 13)». E, por isso, é que, «nos casos […] em que as regras da experiência, a razoabilidade e a liberdade de apreciação da prova convencerem da verdade da acusação, não há lugar à intervenção da «contraface (de que a «face» é a «livre convicção») da intenção de imprimir à prova a marca da razoabilidade ou da racionalidade objectiva» que é o in dubio pro reo...”.
No âmbito da fase recursiva diz-.nos o Ac. STJ 17/4/2008, proc 08P823 cons. Pires da Graça, www.dgsi.pt/jstj que “I- A violação do princípio in dubio pro reo, dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicada pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, ou seja, quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente – de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido – pela prova em que assenta a convicção. II - Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à condenação do arguido – juízo factual que, no caso dos autos, não teve por fundamento uma imposição de inversão da prova, ou ónus da prova a cargo do arguido, mas resultou do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o art. 355.º, n.º 1, do CPP, subordinadas ao princípio do contraditório (art. 32.º, n.º 1, da CRP) –, fica afastado o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência, dando-se por definitivamente assente a matéria de facto apurada.”
E assim só haverá violação do principio in dubio pro reo se for manifesto que o julgador, perante uma dúvida relevante, decidiu contra o arguido, acolhendo a versão que o desfavorece ou quando, embora se não vislumbre que o tribunal tenha manifestado ou sentido dúvidas, da analise e apreciação objectiva da prova produzida, à luz das regras da experiencia e das regras e princípios em matéria de direito probatório, resulta que as deveria ter (Acs. S TJ 27/5/2010, 15/7/2008, www.dgsi.pt).
Para averiguar da existência de tal violação, terá a mesma de resultar do texto da decisão em análise por si só ou conjugado com as regras da experiencia, sem recurso a quaisquer elementos exteriores a ele, e não resultando da decisão que o julgador ficou num estado de dúvida sobre os factos, e bem assim que «ultrapassou» essa dúvida dando-os por provados contra o arguido, ao STJ fica vedada a possibilidade de decidir sobre a violação do princípio «in dubio pro reo», dado o quadro dos respetivos poderes de cognição, restritos a matéria de direito. Como se expressa o STJ no ac. 5/6/20145 “III- A violação do princípio in dubio por reo exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que deve dar por provados ou não provados. Se for esse o caso, o STJ pode sindicar a aplicação do princípio, no âmbito da sua competência de tribunal de revista, no domínio da apreciação de direito. Mas, transitamos para o âmbito da apreciação de facto se o recorrente invocar a violação do princípio, tendo em conta que, apesar de o tribunal a quo não ter tido dúvidas sobre o que considerou provado, deveria tê-los tido. …”6
Ora vista a decisão recorrida do tribunal da Relação, em lado algum se demonstra que tenha ocorrido uma dúvida, após a análise de toda a prova em face da matéria de facto impugnada, ou o mesmo tribunal na dúvida, tenha optado por decidir contra o arguido ou que o tribunal chegou a um estado de dúvida insanável e, apesar disso, escolheu a tese desfavorável ao arguido (ac. do STJ de 27/5/1998, BMJ nº 477, 303), pelo que não se vislumbra a ocorrência de tal vício ou erro sendo certo que a dúvida que possibilita a aplicação do princípio in dubio pro reo, é uma dúvida insanável: por não ter sido possível ultrapassar o estado de incerteza após aplicação de todo o empenho e diligência no esclarecimento dos factos; dúvida razoável: sendo uma dúvida séria, racional e argumentada; e dúvida objectivável: porque justificável perante terceiros excluindo as dúvidas arbitrárias ou as meras conjecturas ou suposições).
Ora respeitando a invocada violação do principio in dubio pro reo à matéria de facto, e a sua apreciação dependente da análise da prova, está excluída a sua apreciação dos poderes de cognição do STJ quanto ao recurso em apreço, restrito à matéria de direito.7
Assim sendo, e porque a questão é relativa aos poderes do STJ no conhecimento do recurso interposto, e não de admissibilidade do mesmo, é de julgar o mesmo improcedente.
Não existem outras questões que cumpra apreciar
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Pelo exposto o Supremo Tribunal de Justiça, decide:
Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido e em consequência mantém a decisão recorrida.
Condena o recorrente no pagamento da taxa de justiça de 7 Ucs e nas demais custas
Registe e notifique
Dn
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Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça 5/3/2025
José A. Vaz Carreto (Relator)
Horácio Correia Pinto
António Augusto Manso
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1. Do seguinte teor: “As nulidades de sentença enumeradas de forma taxativa nas alíneas a) e b) do artigo 379.º do Código de Processo Penal não têm de ser arguidas, necessariamente, nos termos estabelecidos na alínea a) do n.º 3 do artigo 120.º do mesmo diploma processual, podendo sê-lo, ainda, em motivação de recurso para o tribunal superior.”
2. Do seguinte teor “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”
3. Cf. Paulo Albuquerque, Comentário do Cód. Proc. Penal, Ucp, 2009, 3ªed. pág. 1094 “ violação do principio in dubio pro reo é uma das formas que pode revestir o erro notório na apreciação da prova.”
Ac. STJ 24/4/2024, proc. 1819/18.1T9VNG.P.S1 Cons. Jorge Gonçalves, www.dgsi.pt no texto “apreciação pelo STJ da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há-de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, ou seja, quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou então quando, não tendo o tribunal reconhecido expressamente esse estado de dúvida, ele resultar evidente do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum. Já a questão de saber se, perante a prova produzida, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto que não cabe num recurso restrito à matéria de direito (cf. acórdãos de 12.03.2009, Proc. 07P1769, e de 14.10.2009, Proc. 101/08.7PAABT.E1.S1).”
4. cf. Ac STJ 19/11/97, BMJ, 471.º-115, e STJ 10/1/08 in www.dgsi.pt/jstj Proc. nº 07P4198 no qual se expressa que: “IV- Não haverá, na aplicação da regra processual da «livre apreciação da prova» (art. 127.º do CPP), que lançar mão, limitando-a, do princípio in dubio pro reo exigido pela constitucional presunção de inocência do acusado, se a prova produzida, depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir – como aqui não conduziu – «à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto».
5. Proc 853/98.0JAPRT.P1.S1 Cons. Souto de Moura in www.dgsi.pt
6. Cfr. também ac. STJ de 16-05-2007, CJ (STJ), T2, pág.182 “ IV. … saber se o Tribunal recorrido deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto, a mesma exorbita os poderes de cognição do STJ enquanto Tribunal de revista e, do exame dos acórdãos impugnados decorre que as instâncias não ficaram na dúvida em relação a qualquer facto.”
7. Ac. STJ 5/6/2014 citado “Se o STJ enveredasse por considerar que o tribunal recorrido ponderou mal os factos, indicando o que é que seria ponderá-los bem, sempre estaria a conhecer de facto, exorbitando flagrantemente das suas competências.”