RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
DECISÃO
FUNDAMENTAÇÃO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
IDENTIDADE DE FACTOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


I - O requisito material de oposição de julgados, no Recurso de Fixação de Jurisprudência, deverá verificar-se em relação a decisões colectivas (acórdãos) expressamente proferidas, e não, entre decisão e fundamentação.
II - Do confronto dos acórdãos, recorrido e fundamento, verifica-se que, se no acórdão recorrido a questão é a de saber se deverá constar da narração da acusação e requerimento de abertura de instrução, a indicação dos elementos integrantes da consciência da ilicitude, já no acórdão fundamento a questão é a de saber se, faltando, o tribunal recorrido poderia ter procedido, como procedeu, à alteração não substancial dos factos, nos termos previstos no art. 358.º do CPP, e, subsequentemente, ter valorado tal facto na sentença recorrida.
III - Constituindo base necessária para ser formulada decisão de fixação de jurisprudência, diferente interpretação e aplicação de uma mesma norma jurídica ou bloco normativo a situações de facto iguais ou similares, o que não se verifica no caso, deverá o recurso ser rejeitado, atento o disposto no art. 441.º, n.º 1, do CPP.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 3ª secção do Supremo Tribunal de Justiça:

1 - RELATÓRIO:

1.1. Recurso.

1.1.1. AA, assistente no processo n.º 67/22.0T9STR.E1-A.S1, interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos dos artigos 437.º, n.º 1 e seguintes do Código de Processo Penal – CPP -, por haver oposição de julgados entre o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09.04.2024, proferido nestes autos n.º 67/22.0T9STR.E1-A.S1 e o acórdão do mesmo Tribunal da Relação de évora de 28-02-2023, proferido no processo n.º 630/18.4GFSTB.E1, publicado em www.dgsi.pt e em www.dre.pt1, nos termos e com os fundamentos das alegações que junta.

1.1.2. É do seguinte teor o requerimento do recorrente (transcrição):

“AA, recorrente nos autos de processo supra” (processo n.º 67/22.0T9STR.E1), “notificado do douto acórdão de fls. por não se conformar com o seu teor e este se encontrar em oposição com o douto acórdão (processo 630/18.4GFSTB.E1) proferido pela mesma Relação de Évora, em 28.02.2023, transitado em julgado anteriormente ao ora impugnado, publicado em www.dgsi.pt, dela interpõe recurso para o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do art.º 437º, n.ºs 2 e 5 do CPP.

Existe conflito de jurisprudência entre os referidos arestos, em virtude de no acórdão recorrido se entender que numa situação reportada ao direito penal clássico ser exigível no requerimento de abertura de instrução do assistente (cuja peça funciona como uma autentica acusação) a narração de factos integrantes da consciência da ilicitude por respeito ao artigo 283º n.º 3 do CPP (por lapso o acórdão recorrido indica o disposto no n.º 1), mas, em oposição, no acórdão fundamento, no que respeita à necessidade de a referência à consciência da ilicitude constar da acusação nas situações reportadas ao direito penal clássico, entender-se não se revelar imprescindível a sua consignação expressa na referida peça processual ao abrigo do art.º 283º, n.º 3, do CPP.

Acompanha o ora recorrente a posição perfilhada pelo acórdão fundamento, aliás, como doutamente refere a decisão “(…) defendida pela maior parte da jurisprudência (…)”, mas não fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Durante o intervalo da prolação dos referidos acórdãos não ocorreu modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na questão de direito controvertida.

Em conclusão,

Existe, assim, oposição de julgados, sobre se a narração de factos integrantes da consciência da ilicitude reportada a situações de direito penal clássico é exigível, ou não, num libelo acusatório, ao abrigo do artigo 283º, n.º 3, do CPP, seja uma acusação ou um requerimento de abertura de instrução de assistente, justificando-se a fixação de jurisprudência para resolução desta questão de direito.”(fim de transcrição).

1.1.4. Foi junta certidão do requerimento de interposição de recurso, do despacho que o admitiu e resposta do Ministério Público.

1.1.5. Pelo Juiz Conselheiro relator foi ordenada a junção de certidão do acórdão fundamento, acórdão da Relação de Évora de 28.02.2023, com nota de trânsito em julgado. A 16.10.2024 foi junta certidão donde consta o trânsito do acórdão ocorrido a 14.04.2023.

1.2. Resposta do Ministério Publico.

O Digno Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal, apresentou resposta ao recurso, dizendo, (resposta que se transcreve):

“Em resposta ao recurso para fixação de jurisprudência apresentado por AA, vem dizer que concorda com o teor do mesmo, pelo que entende que deve ser proferido Acórdão para fixação de jurisprudência nos referidos termos.”

1.3. Parecer do Ministério Publico.

1.3.1. Neste Supremo Tribunal, o Digno Procurador-Geral Adjunto, emitiu parecer onde, a final, conclui do seguinte modo:

“3. Conclusão.

Face a todo o exposto, pronunciamo-nos no sentido da não verificação dos requisitos previstos no artigo 437.º do CPP, motivo pelo qual o recurso extraordinário interposto deve, em conferência, ser rejeitado - artigos 440.º, n.ºs 3 e 4 e 441º, n.° 1, do C.P.P.”

1.3.2. Ao parecer respondeu o recorrente concluindo que …, estão preenchidos in totum os pressupostos formais e substanciais para a admissibilidade e apreciação do recurso de fixação de jurisprudência de fls., devendo improceder o parecer do Ministério Público, com as demais consequências legais.

1.3.3. Colhidos os vistos legais, e realizada a conferência, decidiu-se nos termos que seguem (art.º 441º do CPP).

2 - FUNDAMENTAÇÃO:

2.1. O recurso para a fixação de jurisprudência é um recurso extraordinário cujo regime processual está fixado nos artigos 437º a 448º do CPP.

Integra-se nas competências do Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista que cuida pela correta aplicação da lei por todos os tribunais judiciais, a par do recurso de decisões proferidas contra jurisprudência fixada (art.446.º); e do recurso interposto no interesse da unidade do direito (art.447.º).

A finalidade do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência é a interpretação uniforme da lei, evitando contradições entre acórdãos dos tribunais superiores.

Como referido no Ac. do STJ de 07.06.20231 “o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência tem por finalidade a obtenção de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça que fixe jurisprudência, “no interesse da unidade do direito”, resolvendo o conflito suscitado (art.º 445.º, n.º 3, do CPP), relativamente à mesma questão de direito, quando existem dois acórdãos com soluções opostas, no domínio da mesma legislação, assim favorecendo os princípios da segurança e previsibilidade das decisões judiciais e, ao mesmo tempo, promovendo a igualdade dos cidadãos.

O que se compreende, até tendo em atenção, como se diz no ac. do STJ n.º 5/2006, publicado no DR I-A Série de 06.06.2006, que «A uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito.»

A previsibilidade das decisões judiciais e a confiança no sistema judiciário são também finalidades a alcançar com este recurso. “Trata-se de um recurso de carácter normativo destinado unicamente a fixar critérios interpretativos uniformes com a finalidade de garantir a unidade do ordenamento penal e, com isso, os princípios de segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e a igualdade dos cidadãos perante a lei”, como se lê no Ac. do STJ de 13.01.20212.

O que está em causa não é, pois, a reapreciação da decisão de aplicação do direito ao caso no acórdão recorrido, transitado em julgado, mas verificar, partindo de uma factualidade equivalente, se a posição tomada no acórdão recorrido, quanto a certa questão de direito, seria a que o mesmo julgador tomaria, se tivesse que decidir no mesmo momento essa questão, no acórdão fundamento, e vice-versa3.

A admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende da verificação de pressupostos formais e de requisitos materiais/substanciais, a que se referem os artigos 437.º e 438.º do CPP citados.

Sob a epígrafe “Fundamento do recurso”, dispõe o artigo 437.º do C.P.P:

1 - Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

2 - É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3 – Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4 - Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5 - O recurso previsto nos n.ºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público.

E dispõe, sob a epígrafe “Interposição e efeito”, o artigo 438.º, do mesmo diploma legal, que:

1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

2 - No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.

3- O recurso para fixação de jurisprudência não tem efeito suspensivo.

Assim, entende-se que são requisitos formais, (i)a legitimidade do recorrente, (ii)o trânsito em julgado dos acórdãos conflituantes, (iii)interposição no prazo de 30 dias após o trânsito em julgado do acórdão recorrido, (iv)a invocação e junção de cópia do acórdão fundamento ou pelo menos identificação de publicação oficial onde tenha sido publicado, (v)justificação, de facto e de direito, do conflito de jurisprudência, e, por sua vez, são requisitos substantivos, a existência de (i)dois acórdãos do STJ tirados em processos diferentes, ou, (ii)um acórdão da Relação que, não admitindo recurso ordinário, não tenha decidido contra jurisprudência fixada e outro anterior de tribunal da mesma hierarquia ou do STJ, (iii)proferidos no domínio da mesma legislação, (iv)assentes em soluções opostas relativamente à mesma questão de direito4-5.

Sendo certo que todos os pressupostos, formais e substanciais exigidos para a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência têm de se mostrar verificados à data da sua interposição, sob pena de rejeição, nos termos do art.º 441º, n.º 1, 1ª parte, do CPP.

Para o não especialmente regulado aplicam-se, subsidiariamente, as disposições que regulam os recursos ordinários (art.º 448º).

2.2. Requisitos formais

Volvendo ao caso concreto, no que respeita aos requisitos formais de admissibilidade do recurso de fixação da jurisprudência, entende-se que se mostram verificados.

Na verdade:

(i)O recorrente, na qualidade de assistente, têm legitimidade para interpor o recurso (artigos 437.º, n.º 5 do C.P.P.);
(ii) O recurso é tempestivo, uma vez que foi interposto no prazo de 30 dias, a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.
(iii) O recorrente invocou no recurso o acórdão fundamento e indicou o local onde se encontra publicado.
(iv) O acórdão fundamento publicado na página da DGSI transitou em julgado, pelo que transitaram em julgado os dois acórdãos.
(v) Justificou, ainda, o recorrente a oposição de julgados que, no seu entender, origina o conflito de jurisprudência.

2.3. Requisitos substanciais

Quanto aos requisitos substanciais de admissibilidade, deste recurso extraordinário, verifica-se a existência de dois acórdãos, ambos, do Tribunal da Relação de Évora que os recorrentes entendem ter julgado a mesma questão de direito, com decisões opostas, proferidos no domínio da mesma legislação.

Questão fundamental a decidir é a existência de oposição de julgados, no sentido de que os acórdãos assentam em soluções opostas, de modo expresso e a partir de situações de facto idênticas.

A verificação deste requisito substancial demanda que se analise e se compare, em primeiro lugar, o essencial das decisões proferidas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento sobre a questão objeto de recurso. E depois, se decida pela existência, ou não, de oposição de julgados e consequente prosseguimento ou rejeição do recurso.

Acórdão recorrido

No acórdão recorrido, proferido no processo n.º 67/22.0T9STR.E1-A.S1, o assistente AA, interpôs recurso do despacho que rejeitou o requerimento de abertura de instrução formulado pelo mesmo assistente, nos termos do disposto no artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal, por inadmissibilidade legal, face à falta da indicação dos elementos integrantes da consciência da ilicitude.

Concluindo que,

“In casu estamos perante a eventual prática de crime de ofensas à integridade física (grave) por negligência, art.º 148º, nºs 1 e 3 do CP, cometido por médica no exercício das suas funções profissionais.

Apreciada a integralidade do AUJ nº 1/2015 citado, verifica-se que o acórdão (no seu ponto 10.2.3.1) sustenta que a alegação do conhecimento da proibição jurídica é dispensável no libelo acusatório na generalidade dos casos, mormente ofensas corporais.

Exigir a alegação de uma evidência (conhecimento da proibição e punição crime pelo agente), tal como a decisão revidenda impõe seria o mesmo que questionar se ele efectivamente vivia neste mundo ou se não seria um extraterrestre acabado de aterrar neste planeta, como no filme de Steven Spielberg – excerto AUJ citado supra.

Cometeu a decisão recorrida nulidade insanável por falta de instrução, quando a lei determinava a sua obrigatoriedade, vício que se argui expressamente, art.º 119º, al. f) do CPP.”

Considerou o acórdão que, assim, vistas as conclusões do recurso interposto, verificamos que a questão suscitada é a seguinte: incorrecta interpretação e aplicação no despacho recorrido, do disposto no artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal, relativamente à rejeição do requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente.

A final, a 09.04.2024, julgou totalmente improcedente o recurso interposto pelo assistente AA, e, em consequência, confirmou na íntegra o despacho recorrido.

Na fundamentação, pode ler-se no acórdão “assim, não contendo o requerimento de abertura de instrução os factos que integram, de forma cabal, os elementos subjectivos do tipo de crime imputado, sem os quais, como se disse, os mesmos não chegam a integrar a prática do crime, o seu eventual adicionamento pelo juiz uma hipotética decisão instrutória de pronúncia, sempre consubstanciaria numa alteração substancial de factos, vedada pelo mencionado artigo 309º, nº 1, do Código de Processo Penal.

Não se tendo conformado com o despacho de arquivamento do Ministério Público, o assistente ocupa um largo espaço do seu requerimento de abertura de instrução a discorrer sobre os factos instrumentais, vide o número de artigos integrantes do mesmo requerimento de abertura da instrução, não se preocupando, contudo, de se certificar se o requerimento apresentado cumpria integralmente as exigências legais para que pudesse ter virtualidade instrutória.

Ora, a omissão de tais exigências deve conduzir à rejeição de tal requerimento, actuando-se similarmente com uma acusação deficiente, nos termos do artigo 311º, nº 2, alínea a) e, nº 3, alínea b), do Código de Processo Penal.

Bem andou então a instância recorrida, ao rejeitar o requerimento para abertura de instrução do assistente, até porquanto, de acordo com a jurisprudência fixada pelo STJ, em 12-05-05, no Proc. 7/05, “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura da instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, nº 2, do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido””.

“Por tudo se conclui que o requerimento do assistente de abertura de instrução, não cumpre cabalmente as exigências legais dos artigos 283º, nº 3, alínea b) e, 287º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal, não permitindo a definição do objecto da instrução, o que consubstancia a inadmissibilidade legal desta fase processual e fundamenta a sua rejeição, nos termos do artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal, não merecendo por isso censura a decisão sob recurso. Tal não ofende, qualquer dos princípios essenciais de acesso à Justiça e da tutela jurisdicional efectiva, consagrado no artigo 20º, da Constituição da República Portuguesa, nem constitui qualquer nulidade nos termos do disposto no artigo 119º, alínea f), do Código de Processo Penal.”

Acórdão fundamento

No acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 28.02.2023, o arguido BB, interpôs recurso da sentença que o condenou pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292º do CP numa pena de 75 dias de multa à taxa diária de 7,00 euros perfazendo o montante global de 525,00 euros e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por um período de 5 meses e 15 dias, nos termos do art.º 69º, 1, a) do CP.

Considerou o acórdão que a única questão a apreciar e decidir era a de determinar se, não constando da acusação a locução “o arguido agiu com consciência da ilicitude” ou semelhante, o tribunal recorrido poderia ter procedido, como procedeu, à alteração não substancial dos factos, nos termos previstos no artigo 358º do CPP, e, subsequentemente, ter valorado tal facto na sentença recorrida.

A final, por acórdão de 28.02.2023, foi negado provimento ao recurso e, consequentemente, confirmada a sentença recorrida.

Do acórdão pode ver-se que se considerou que “nas situações reportadas ao direito penal clássico, resultando tal consciência implicitamente dos elementos subjectivos do tipo, não se revela imprescindível a sua consignação expressa na referida peça processual.”

E, faltando, que o recurso “à utilização do aludido mecanismo para valoração do facto relativo à consciência da ilicitude não incluído autonomamente na acusação, em nada contraria a referida jurisprudência obrigatória.”6.

O objecto da uniformização de jurisprudência fixada em tal aresto – 1/2015 -, reporta-se tão somente à inaplicabilidade do mecanismo processual da alteração não substancial de factos, prevista no art.º 358º do CPP, aos casos de falta de descrição, na acusação, dos factos integradores dos elementos subjectivos do tipo, em especial o dolo, nos quais, se não inclui o facto atinente à consciência da ilicitude nos crimes em que o relevo axiológico em causa for inquestionável, como é manifestamente o caso do crime de condução de veiculo em estado de embriaguez pelo qual o arguido recorrente foi acusado e condenado nos presentes autos.”

Como se vê do cotejo dos acórdão, recorrido e fundamento, as situações de facto são diferentes, os crimes são diferentes, as normas jurídicas aplicadas são diferentes e, consequentemente, as decisões são diferentes.

Na verdade, neste caso, no acórdão recorrido decidiu-se confirmar o Despacho que rejeitou o requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, nos termos do disposto no artigo 287º, nº 3, do Código de Processo Penal, por inadmissibilidade legal, face à falta da indicação dos elementos integrantes da consciência da ilicitude.

Isto no âmbito de um processo de inquérito onde se imputava ao arguido a prática de um “crime de ofensas à integridade física (grave) por negligência, art.º 148º, nºs 1 e 3 do CP, cometido por médica no exercício das suas funções profissionais.”

No acórdão fundamento foi confirmada a sentença em que o arguido foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292º do CP numa pena de 75 dias de multa à taxa diária de 7,00 euros perfazendo o montante global de 525,00 euros e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor por um período de 5 meses e 15 dias, nos termos do art.º 69º, 1, a) do CP.

Em suma, se o acórdão recorrido se refere à questão de saber se deverá constar da narração da acusação e requerimento de abertura de instrução a indicação dos elementos integrantes da consciência da ilicitude, já no acórdão fundamento a questão é a de saber se, faltando, o tribunal recorrido poderia ter procedido, como procedeu, à alteração não substancial dos factos, nos termos previstos no artigo 358º do CPP, e, subsequentemente, ter valorado tal facto na sentença recorrida.

Decidindo-se, no acórdão recorrido que deveria constar da narração da acusação e requerimento de abertura de instrução a indicação dos elementos integrantes da consciência da ilicitude, e neste que, faltando é possível o recurso ao mecanismo previsto no art.º 358º do CPP para colmatar essa falha, e que tal decisão não vai contra a jurisprudência fixada no AUJ n.º 1/ 2015.

Sendo necessário que as situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam idênticos em ambas as decisões7, não se verifica neste caso tal pressuposto. Os crimes são diferentes, os momentos processuais são diferentes e as questões a decidir são diferentes.

É certo que, na fundamentação, o acórdão fundamento aborda, também, a questão da falta da indicação na acusação da “consciência da ilicitude” pelo recurso a formulas como “o arguido agiu com consciência da ilicitude” ou “bem sabendo que a sua conduta era proibida”, mas não era essa a questão a decidir, no acórdão, como se disse.

Sendo jurisprudência pacífica do STJ que a oposição deverá verificar-se em relação a decisões colectivas (acórdãos) e não entre decisão e fundamentação8. Além de que, ainda, as decisões em oposição têm de ser expressamente proferidas9, o que tudo se não verifica neste caso.

É, pois, evidente que, no presente caso, se não verifica uma situação de oposição de julgados, por falta dos pressupostos ou requisitos necessários a que se referem os artigos 437º e 438º do CPP.

O que importa a rejeição do recurso, atento o disposto no art.º 441º, n.º 1 do CPP.

III. Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes desta Secção do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) rejeitar o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pelo assistente AA, nos termos do disposto no art.441.º, n.º 1 do Código de Processo Penal; e

b) condenar o mesmo recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs (artigos 513.º, n.ºs 1 e 3 do C.P.P. e 8.º, n.º 9 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais).
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Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 05 de Março de 2025

António Augusto Manso (Relator)

Antero Luis (Adjunto)

Horácio Correia Pinto (Adjunto)

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1-Ac. do STJ de 07.06.2023, proferido no proc. n.º 3847/20.8T9FAR-A.E1-A.S1.www.dgsi.pt.

2- proferido no proc. n.º 39/08.8PBBRG-K-A-A.S1, www.dgsi.pt.,

3-v. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de janeiro de 2021, proc. n.º 454/17.6T9LMG-E.C1-A.S1- 3.ª Secção., in www.gdsi.pt.

4- Entre outros, Ac. do STJ de 13.01.2021, proferido no proc. n.º 39/08.8PBBRG-K-A-A.S1, www.dgsi.pt.

5- Exigia-se, ainda, antes, que o recorrente propusesse o sentido da jurisprudência a fixar – cfr. Assento n.º 9/2000, de 30 de Março de 2000, publicado no Diário da República, I Série - A, de 27.05.2000.

Exigência que foi eliminada pela jurisprudência fixada no Acórdão (AUJ) n.º 5/2006, de20 de Abril de 2006, publicado no Diário da República, I Série-A, de6.06.2006, no qual, reexaminando e reputando ultrapassada a jurisprudência daquele Assento, se estabeleceu que, “No requerimento de interposição do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência (artigo 437.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), o recorrente, ao pedir a resolução do conflito (artigo 445.º, n.º 1), não tem de indicar «o sentido em que deve fixar-se jurisprudência» (artigo442.º, n.º 2).

6-o AUJ n.º AUJ 1/ 2015 publicado no DR a 27.01.2015, dispõe que: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal.»

7- v. Ac. do STJ de 23/11/2022, proc. n.º 1066/17.0T9LLE-B.E1-A.S1.

8-v. ac. do STJ de 09/10/2003, 03P2711.

9-v. Ac.de 07.06.2023, proferido no proc. n.º 3847/20.8T9FAR-A.E1-A.S1, www.gdsi.pt.