I - O direito à liberdade é um direito fundamental dos cidadãos expresso no art. 27.º CRP que dispõe “1. Todos têm direito à liberdade e à segurança” mas que prevê também exceções, no seu nº3, fora das quais as restrições à liberdade, através da detenção ou prisão, são ilegais.
II - Na providência de habeas corpus, não há que proceder à audição do arguido, porquanto na providencia a prova é documental, não está legalmente prevista essa audição, nem ela não se mostra necessária, nem há que proceder a averiguações nos termos do art. 223.º, n.º 4, al. b) e 5, do CPP, nem sendo processo urgente e expedito se compadece com tal audição.
III - A petição de habeas corpus não serve “para impugnar a sua detenção em prisão preventiva” o que já fez perante o Tribunal da Relação, invocando a ausência de prova, e pretendendo questionar dessa forma perante este Supremo Tribunal a ausência de indícios dos crimes em apreciação/ investigação.
IV - Não compete ao Supremo Tribunal na providência de habeas corpus averiguar da existência de indícios do crime ou da sua qualificação jurídica em face daqueles indícios.
V - Nem imiscuir-se nos poderes da Relação que conhece dessas questões em recurso ordinário pendente, e sobre o qual, se fosse possível, haveria litispendência, que obstaria ao seu conhecimento.
V - Estando o arguido preso preventivamente desde o primeiro interrogatório judicial, por decisão de um juiz competente, e em face da qualificação dos crimes indiciados (criminalidade violenta), não decorreu o prazo de seis meses, e admitindo os crimes em apreço a medida de coação da prisão preventiva torna-se manifesto que o pedido de habeas corpus, para libertação do requerente não pode proceder, por falta de fundamento legal.
No processo nº 1139/24.2... do Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo de Instrução de ... - Juiz ..., em que é arguido AA, preso preventivamente, apresentou extensa petição de Habeas Corpus, de que se transcrevem apenas as conclusões:
“I - O testemunho de BB é claro ao afirmar que nunca foi alvo de agressões ou maus-tratos por parte do arguido AA.
II - Além disso, a própria alega que a sua permanência no local onde foi encontrada não resultou de qualquer imposição coerciva, mas sim de sua própria iniciativa. BB esclarece que pediu ao arguido para permanecer no referido espaço, de modo a poder descansar longe das suas filhas menores, e que este aceitou a sua solicitação.
III - Tal circunstância exclui o elemento essencial da privação involuntária da liberdade, o que compromete a caracterização do crime de sequestro.
IV - A análise dos depoimentos constantes nos autos, nomeadamente os de CC e da alegada vítima BB, demonstra a
ausência de indícios mínimos que permitam sustentar a prática dos crimes de 16 sequestro agravado e violência doméstica, pelos quais o arguido AA se encontra em prisão preventiva.
V - Não há, nos autos, qualquer elemento que revele a existência de conduta dolosa por parte do arguido que se enquadre nas previsões dos artigos 152.º (violência doméstica) e 158.º (sequestro) do Código Penal.
VI - Conforme defendido por Paulo Pinto de Albuquerque e Costa Andrade, o consentimento da vítima pode excluir a tipicidade do crime de sequestro, desde que a autodeterminação da vítima seja respeitada.
VII - No caso concreto, verifica-se que BB manifestou livremente a sua vontade de permanecer no local, não tendo o arguido atuado contra essa vontade.
VIII - Assim, a alegação de que houve sequestro carece de fundamento jurídico.
IX - O crime de violência doméstica exige aprática reiterada de maus-tratos físicos ou psicológicos que coloquem a vítima numa situação de vulnerabilidade e inferioridade perante o agressor.
X - No entanto, do depoimento de BB não resulta qualquer descrição de agressões, ameaças, intimidações ou qualquer outro comportamento que configure violência doméstica.
XI -Pelo contrário, a ofendida expressamente rejeita ter sido alvo de qualquer tipo de agressão, afastando assim a configuração do crime previsto no artigo 152.º do Código Penal.
XII - A privação de liberdade do arguido decorre de uma errônea interpretação dos fatos constantes nos autos.
XIII - A medida de coação aplicada baseia-se na suposição de que os crimes de violência doméstica e sequestro foram cometidos, quando, na realidade, a análise dos depoimentos não permite sustentar tal enquadramento jurídico.
XIV - Diante da manifesta ausência de indícios suficientes da prática dos crimes imputados ao arguido, a sua prisão preventiva configura uma ilegalidade, conforme previsto no artigo 222.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Penal, que estabelece que a detenção ou prisão só pode ser decretada por fato que a lei expressamente permita.
XV- Considerando que os elementos probatórios disponíveis não sustentam a existência dos crimes em questão, a manutenção da prisão preventiva do arguido configura uma violação da sua liberdade individual.
XVI - Como ensinam diversos doutrinadores, entre eles Cavaleiro de Ferreira e Cláudia Cruz Santos, a providência de habeas corpus destina-se a corrigir situações de ilegalidade grave e manifesta, onde há abuso de autoridade e violação de direitos fundamentais.
XVII -No presente caso, a prisão do arguido por um crime que, à luz dos depoimentos colhidos, não se verifica, justifica a concessão do habeas corpus, uma vez que se trata de uma detenção por fato que a lei não permite.
Deste modo, entende o requerente que "devera a presente P E T I Ç Ã O D E H A B E AS C O R P U S ser julgada procedente, por provada, e em consequência determinar-se a imediata restituição do requerente à liberdade", nos termo dos artigos 222.º 2 al. b) e 223.º do Código do Processo Penal, em estrito cumprimento dos artigos 32n°s 1,2,3, 5e6, 202° n° 2 e 204 da CRP.
Da informação enviada, nos termos do artº 223º1 CPP consta (transcrição):
“- foi aplicada ao arguido a medida de coação de prisão preventiva em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, no dia 21 de Outubro de 2024, encontrando-se indiciado, pela prática de:
a) um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º, nº 1, al. a) e nº 2 al. a) do C. Penal, com pena de prisão de 2 a 5 anos;
b) um crime de sequestro agravado, p e p pelo artº 158, nº 1 e 2, al. a) e b), do Código Penal,com pena de prisão de 2 a 10 anos.
esta decisão encontra-se a aguardar resultado do recurso interposto pelo arguido para o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães (recurso admitido por despacho de 27.11.2024 Ref.ª ...86);
- A revisão da medida de coação foi efectuada por despacho de 21.01.2025 (vide ref.ª ...39);
- o prazo máximo da prisão preventiva não se mostra decorrido, de acordo com o disposto no n.º 2 do art.º 215º do CPP e a al. j) do art.º 1º do mesmo Código por estar em causa criminalidade violenta.
Assim sendo, mantenho a medida de coação de prisão preventiva por não se ter ultrapassado qualquer prazo legal e por se manterem todos os pressupostos que a determinaram e posteriormente a mantiveram.” e com ela foi junta a pertinente certidão dos autos.
Convocada a Secção Criminal e notificados o Ministério Público e o mandatário/ defensor do arguido, procedeu-se à realização da audiência, com o formalismo legal e em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.
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Finda a audiência o coletivo reuniu para deliberar, o que fez, apreciando o pedido nos termos seguintes:
Os factos relevantes para a decisão mostram-se condensados na petição de Habeas Corpus e na informação do tribunal requerido e documentos com ela juntos que aqui se dão por transcritos e deles resultam que as questões a decidir se prendem com:
- a apreciação do requerimento apresentado (indícios dos crimes imputados) e se foi excedido o prazo de prisão preventiva.
Conhecendo e apreciando:
O pedido de habeas corpus é uma “providência [judicial] expedita e urgente de garantia do direito à liberdade consagrado nos artigos 27.º e 28.º da Constituição, em caso de detenção ou prisão «contrários aos princípios da constitucionalidade e da legalidade das medidas restritivas da liberdade», «em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ao direito à liberdade», sendo, por isso, uma garantia privilegiada deste direito, por motivos penais ou outros (assim, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2005, p. 303, 343-344)”1
O direito à liberdade é um direito fundamental dos cidadãos expresso no artº 27º 1 CRP que dispõe “1. Todos têm direito à liberdade e à segurança.”, esclarecendo no nº2 que “Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança”. Todavia há exceções também constitucionalmente consagradas, no mesmo normativo, no seu nº3, fora das quais as restrições à liberdade, através da detenção ou prisão, são ilegais, juízo que se tem afirmado em jurisprudência reiterada, quando ocorram fora dos casos previstos neste mesmo normativo (cf. por todos, o ac. de 2.2.2022, Proc. n.º 13/18.6S1LSB-G, em 2www.dgsi.pt)3.
Resulta da petição de habeas corpus e da certidão junta que:
- O arguido/ requerente encontra-se atualmente preso em prisão preventiva, que lhe foi aplicada em 1º interrogatório em 21/ 10/12/2024, cuja apreciação se encontra sob recurso na Relação de Guimarães, e tendo ocorrido a última revisão que a manteve em 21/1/2025, por indícios da pratica de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º, nº 1, al. a) e nº 2 al. a) do C. Penal, com pena de prisão de 2 a 5 anos e de um crime de sequestro agravado, p e p pelo artº 158, nº 1 e 2, al. a) e b), do Código Penal, com pena de prisão de 2 a 10 anos.
Estes os factos relevantes para apreciação da petição.
Não há que proceder à audição do arguido, tal como por ele requerido, porquanto na providencia a prova é documental, não está legalmente prevista essa audição, nem ela se mostra necessária, nem há que proceder a averiguações nos termos do artº 223º nº4 b) e 5 CPP, nem o processo, sendo urgente e expedito, se compadece com tal audição.
Por outro lado, a petição de habeas corpus não serve como alega o requerente “para impugnar a sua detenção em prisão preventiva” o que já fez perante o tribunal da Relação, invocando, como o faz ora expressamente, a ausência de prova, que transcreve, pretendendo questionar desta forma perante este Supremo Tribunal a ausência de indícios dos crimes em apreciação/ investigação.
A providencia de Habeas Corpus como dispõe o artº 223º 4 CPP, visa a libertação imediata do arguido / detido em virtude de uma prisão ilegal em conformidade com a imposição constitucional expressa no artº 31º 1 CRP “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal,”.
Nos termos do artº 222º2 CPP, a petição a apresentar no Supremo Tribunal de Justiça deve fundar-se em prisão ilegal, por ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente (al. a) ou ser motivada por facto que a lei não permite (al. b), ou manter-se para além dos prazos fixados na lei ou em decisão judicial (al. c).
Para fundamentar o seu pedido questiona, também, o arguido a qualificação jurídica dos factos indiciados, por em seu entender terem sido consentidos tais actos e por isso inexistem os crimes que permitam a prisão preventiva, sem nunca questionar o decurso do prazo de prisão preventiva.
Visto o alegado, em face dos fundamentos do habeas corpus de caracter taxativo (ac. STJ de 19/5/2010 CJ STJ, 2010, T2, pág. 196) e fixados nas alíneas do nº 2 do artº 222º CPP (numerus clausus) que podem ser invocados, estamos perante um pedido formulado por no entender do requerente não haver crime.
Ora é manifesta a sem razão do requerente.
Pois na verdade o Supremo Tribunal está limitado às questões supra enunciadas pelo artº 222º CPP e não lhe compete imiscuir-se nos poderes da Relação que conhece dessa questão (indícios do crime) e da prisão preventiva, em recurso ordinário pendente4, sobre o qual, se fosse possível, haveria litispendência, que obstaria ao seu conhecimento, pelo que não pode o Supremo Tribunal de Justiça conhecer da existência ou não de indícios dos crimes imputados e em investigação.5
No que a eles se refere não se verifica em face dos crimes indiciados o decurso do prazo de prisão preventiva, face ao disposto no artº 215º 2 CPP 2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos” e atentos os crimes porque foi indiciado6 e com base nos quais lhe foi aplicada essa medida.
Por outro lado a medida de coação em causa, foi aplicada pelo juiz de instrução, que é o competente para o efeito e por crimes que admitem a mesma, nos termos do artº 202º CP.
Assim estando o arguido preso preventivamente desde o primeiro interrogatório judicial, por decisão de um juiz competente, e em face da qualificação dos crimes indiciados ( criminalidade violenta) não decorreu o prazo de seis meses e admitindo os crimes em apreço a medida de coação da prisão preventiva torna-se manifesto que o pedido de habeas corpus, para libertação do requerente não pode ser emitido, pois a providencia não pode proceder, por falta de fundamento legal, sendo manifesta a sua improcedência e tem de ser indeferida (artº 223º 4 a) CPP) e o requerente sancionado.
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Pelo exposto o Supremo Tribunal de Justiça decide:
- Indeferir a providencia de habeas corpus formulada pelo requerente AA por manifesta falta de fundamento.
- Condenar o requerente na taxa de justiça de 4 UC e nas demais custas
Condenar o requerente, por manifesta improcedência no pagamento de 6 UC s (artº 223º, nº 6 CPP)
Notifique
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Lisboa e STJ 5/3/2025
José A. Vaz Carreto (Relator)
Maria Margarida Almeida (1.ª Adjunta)
António Augusto Manso (2.º Adjunto)
Nuno A. Gonçalves (Presidente)
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1. Cf. ac. STJ 4/6/2024, Proc. 1/22.8KRPRT-K.S1 Cons. Lopes da Mota www.dgsi.pt
4. Desde há muito que o STJ tem esse entendimento. Cfr ac STJ 16/3/2015 Santos Cabral www.dgsi.pt “II- A providência de habeas corpus não decide sobre a regularidade de actos do processo, não constitui um recurso das decisões em que foi determinada a prisão do requerente, nem é um sucedâneo dos recursos admissíveis.”
5. Cfr por todos ac. STJ 10/10/2007 proc. 07P3777 Cons. Maia Costa www.dgsi.pt “IX - Não cabe no âmbito desta providência a apreciação da suficiência dos indícios que motivaram a prisão preventiva. Ou seja, não compete ao STJ, em processo de habeas corpus, indagar se as provas reunidas são ou não suficientes para em concreto fundamentarem a decisão que decreta a prisão preventiva. De igual modo, também não compete a este Supremo Tribunal, no âmbito da mesma providência, avaliar da validade ou invalidade das provas constantes do processo.”
6. - a) um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º, nº 1, al. a) e nº 2 al. a) do C. Penal, com pena de prisão de 2 a 5 anos; b) um crime de sequestro agravado, p e p pelo artº 158, nº 1 e 2, al. a) e b), do Código Penal, com pena de prisão de 2 a 10 anos.
- Artº 1º al. j e l): “ j) 'Criminalidade violenta' as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos;
l) 'Criminalidade especialmente violenta' as condutas previstas na alínea anterior puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 8 anos;” e