HABEAS CORPUS
PRISÃO ILEGAL
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
MEDIDA DA PENA
PRISÃO PREVENTIVA
PRESSUPOSTOS
MEDIDAS DE COAÇÃO
ARGUIDO
INCONSTITUCIONALIDADE
INDEFERIMENTO
Sumário


I - Vem sendo jurisprudência constante e pacífica do STJ, que os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se à previsão das als. do n.º 2 do art. 222.º do CPP, de enumeração taxativa.
II - Não sendo inconstitucional, o art. 222º do CPP, por violação do art. 31.º da CRP, quando interpretado no sentido de que só podem ser invocadas como fundamento do pedido de habeas corpus as situações constantes das als. do n.º 2 do art. 222.º do CPP e não outras.
III - A excepcionalidade da providência de habeas corpus demanda ou aconselha que se elenquem ou especifiquem as situações de facto em que é admissível.
IV - E, simultaneamente, afastada a litispendência, mantêm-se as “portas abertas” da lei à via do recurso ordinário, que não deixa de poder ser utilizada.
V - Não constituem fundamento do pedido de habeas corpus, (i) a qualificação jurídica dos factos, (ii) a determinação da moldura penal abstrata do crime indiciado, (iii) a apreciação dos pressupostos e admissibilidade da prisão preventiva, (iv) a verificação dos perigos de fuga e de continuação da actividade criminosa, ou (v) o estado de saúde da recorrente.
VI - Trata-se de matérias para as quais se encontram legalmente previstos meios próprios de intervenção no processo, onde devem ser conhecidas, de acordo com o estabelecido nos arts. 118.º a 123.º do CPP (arguição de irregularidades e nulidades) e por via de recurso para os tribunais superiores (art. 399.º e segs., do CPP).

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

1. Relatório

1.1. AA, presa preventivamente no Estabelecimento Prisional ..., à ordem do processo de Inquérito n.º 671/23.0..., a correr termos no Departamento de Investigação e Acção Penal de ...-...ª secção, vem apresentar petição de habeas corpus, subscrita pelo seu mandatário, com fundamento em prisão ilegal, invocando o disposto no artigo 222º do Código do Processo Penal (doravante CPP), nos termos e com os fundamentos constantes da petição junta a 20.02.2025, que aqui se dá como reproduzida, terminando, a final, nos seguintes termos:

… … …

V. Do Direito

108º.

Nos termos do artigo 222.º CPP:

Habeas corpus em virtude de prisão ilegal

1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de: (…)

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; (…)».

109º.

Teve pois o legislador o cuidado de, naquela sobrecitada previsão legal, explicitar que a ilegalidade da prisão se reporta a “factos”,

110º.

E não, como é bem de ver, à qualificação jurídica que seja atribuída a tais factos.

111º.

Tal previsão, tem que ver claramente com a necessidade de assegurar em termos úteis ao arguido preso, ferramenta legal para pôr cobro a “desmandos” perpetrados através de uma qualificação jurídica “agravada” dos factos, usada, designadamente, para “fazer entrar pela janela o que não passa na porta”,

112º.

Ou dito de outra forma, para situações, como a dos autos, em que os factos imputados jamais permitem uma subsunção a um tipo, assim instrumentalizado, para justificar uma prisão preventiva ilegal.

113º.

É que, em causa, no habeas corpus, está o direito fundamental à liberdade,

114º.

O que valeria por dizer – de forma inaceitável e totalmente incompaginável com a letra da norma constitucional e com a própria origem do instituto – que nunca existiria abuso de poder quando a coberto de despacho judicial.

De facto:

115º.

Odireito àliberdadepessoal– liberdadeambulatória - éumdireito fundamentaldapessoa, proclamado em instrumentos legislativos internacionais e na generalidade dos regimes jurídicos dos países civilizados.

116º. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, “considerando que o reconhecimento da dignidade inerenteatodososmembrosdafamíliahumanaedeseusdireitosiguaiseinalienáveiséo fundamento da liberdade, da justiça …”, no artigo III (3º) proclama a validade universal do direito à liberdade individual.

117º.

Proclama no artigo IX (9º) que ninguém pode ser arbitrariamente detido ou preso.

118º.

No artigo XXIX (29º) admite que o direito à liberdade individual sofra as “limitações determinadas pela lei” visando assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da ordem pública.

119º.

O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, no artigo 9.º consagra; “todo o indivíduo tem direito à liberdade” pessoal. Proibindo a detenção ou prisão arbitrárias, estabelece que “ninguém poderá ser privado da sua liberdade, excepto pelos motivos fixados por lei e de acordo com os procedimentos nela estabelecidos”.

120º.

Estabelece também: “toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção ou prisão tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, com a brevidade possível, sobre a legalidade da sua prisão e ordene a sua liberdade, se a prisão for ilegal”.

121º.

A Convenção Europeia dos Direitos do Homem/CEDH (Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais), no art. 5º reconhece que “toda a pessoa tem direito à liberdade”. Ninguém podendo ser privado da liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal.

122º.

Reconhece que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal.

123º.

A tal propósito, assinala E. Maia Costa (in Habeas corpus: passado, presente, futuro, revista JULGAR - N.º 29 – 2016, pag. 223), os textos internacionais relativos aos direitos humanos preveem genericamente um recurso para os tribunais com carácter urgente contra a privação da liberdade ilegal.

124º.

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) “enfatiza desde logo que o artigo 5º consagra um direito humano fundamental, a saber, a proteção do indivíduo contra a interferência arbitrária do Estado no seu direito à liberdade. O texto do artigo 5º deixa claro que as garantias nele contidas se aplicam a “todos”. As alíneas (a) a (f) do Artigo 5º §1 contêm uma lista exaustiva de razões permissíveis sobre as quais as pessoas podem ser privadas de sua liberdade. Nenhuma privação de liberdade será compatível com o artigo 5.º, n.º 1, a menos que seja abrangida por um desses motivos ou que esteja prevista por uma derrogação legal nos termos do artigo 15.º da Convenção, (ver, inter alia, Irlanda v. Reino Unido, 18 de janeiro de 1978, § 194, série A n.º. 25, e A. e Others v. O Reino Unido, 7 de Julho de 2011).

125º.

Por sua vez a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia reconhece, no art.º 6º, o direito à liberdade pessoal, e embora não consagrando o habeas corpus, reconhece, no art.º 47º, o direito de ação judicial contra a violação de direitos ou liberdades garantidas pelo direito da União.

126º.

O habeas corpus é, ainda, previsto no âmbito internacional, no artigo 8º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e também aí, nenhuma restrição é aposta ao recurso à providência em causa, máxime, a prisão ou detenção estar a coberto de despacho judicial.

127º.

O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) “enfatiza desde logo que o artigo 5.º consagra um direito humano fundamental, a saber, a proteção do indivíduo contra a interferência arbitrária do Estado no seu direito à liberdade. O texto do artigo 5º deixa claro que as garantias nele contidas se aplicam a “todos”. As alíneas (a) a (f) do Artigo 5º §1 contêm uma lista exaustiva de razões permissíveis sobre as quais as pessoas podem ser privadas de sua liberdade. Nenhuma privação de liberdade será compatível com o artigo 5.º, n.º 1, a menos que seja abrangida por um desses motivos ou que esteja prevista por uma derrogação legal nos termos do artigo 15.º da Convenção, (ver, inter alia, Irlanda v. Reino Unido, 18 de janeiro de 1978, § 194, série A n.º. 25, e A. e Others v. o Reino Unido, citado acima, §§ 162 e 163)” (Grand Chamber, caso AL-JEDDA v. THE UNITED KINGDOM, (Queixa n.º 27021/08), julgamento em 7 Julho de 2011).

128º.

Interpreta: “no que diz respeito à «“legalidade” da detenção, a Convenção refere-se essencialmente à legislação nacional e estabelece a obrigação de observar as suas normas substantivas e processuais. Este termo exige, em primeiro lugar, que qualquer prisão ou detenção tenha uma base legal no direito interno”.

129º.

“NORMAS SUBSTANTIVAS”

130º.

O que vale por dizer que só existe habeas corpus quando o Tribunal competente para o decidir possa escrutinar as chicanas processuais a que outro Tribunal recorra para qualificar os factos de forma a dar-lhes a “forma” necessária ao (des)mando da Prisão preventiva,

131º.

Pois, se assim não fosse, a conclusão seria a de que este S.T.J. estaria impedido de decretar um habeas corpus determinado por um crime de roubo, quando os factos notoriamente apenas incidem sobre um simples furto!

132º.

Do que se conclui que, se considerasse que as circunstâncias dos autos extravasam os fundamentos elencados no art.º 222º do C.P.P., a verdade é que a restrição do habeas corpus a tais fundamentos, restringe, de forma inadmissível, o conteúdo do disposto no art.º 31º nº 1 da Constituição da República Portuguesa, sendo tal interpretação, pelo exposto, inconstitucional,

133º.

Violando, também, o disposto na Convenção Europeia dos Direitos Humanos/CEDH, art. 5º reconhece que “toda a pessoa tem direito à liberdade”, e o artigo 8º da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

Termos em que deve o presente pedido de habeas corpus ser recebido e declarado procedente e em consequência ser ordenado a imediata libertação da ora Requerente.”

1.2. A Senhora Juiz de Instrução Criminal do Tribunal de Instrução Criminal da ..., titular do processo prestou a informação a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por despacho exarado no mesmo, sobre as condições em que foi efetuada e se mantém a prisão da requerente, dele fazendo constar o seguinte:

… … …

1 - A arguida encontra-se na situação de prisão preventiva desde o dia 21 de Janeiro de 2025, medida de coacção que lhe foi aplicada por despacho judicial proferido na mesma data, constante a fls. 325-329, em primeiro interrogatório judicial de arguido detido cujo auto consta a fls. 315-329, sendo certo que foi detida no dia 20 de Janeiro de2025 (cfr. fls. 253-253 v.º), na sequência de mandado de detenção emitido por autoridade judiciária, nos termos do art.º 257.º, no 1 do C.P.P. (cfr. fls. 221, v.º - 226), então considerando-se indiciada a prática, em co-autoria, na forma continuada, de um crime de receptação, p.e p. pelos art.ºs 140.º, n.º 1, 30.º, n.º 2, 70.º, n.º 1 e 231.º, n.º 1 do C.P.

2 - Pelo M.P. foi proferido despacho de apresentação, constante a fls. 300-306, no qual se considerou os meios de prova e de obtenção de prova constantes dos autos ulteriormente à emissão dos mandados de detenção e condução, com particular destaque para os documentos e cartões apreendidos na sequência da realização da busca domiciliária e da pesquisa e apreensão de dados informáticos, destes resultando, além do mais, fruto das mensagens constantes a fls. 264-268 v.º, bem como, agora em sede de primeiro interrogatório judicial, do teor das próprias declarações da arguida, que a mesma havia já sido confrontada pelas autoridade portuguesas com os factos que vinha praticando, tendo continuado com a sua actividade, sendo referida a convicção de que "aqui" (Portugal) "essas coisas n dão muita coisa mesmo" (v. fls. 266 v.º - 267), imputando-se a prática em co-autoria, na forma continuada, de um crime de receptação, p.e p, pelos art.ºs 140.º, n.º 1, 30.º, n.º 2, 70.º, n.º 1 e 231.º, n.ºs 1 e 4 do C.P..

3 - Assim, está fortemente indiciada da prática, em co-autoria, na forma continuada, de um crime de receptação, p, e p. pelos art.ºs 14.º, n.º 1, 30.º, n.º 2, 70.º, n.º 1 e 231.º, n.ºs 1 e 4 do C.P..

Nos termos do art.º 222.º do Cód. Processo Penal, a petição de habeas corpus deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) manter-se além dos prazos fixados por lei ou por decisão judicial

Resulta dos autos que a prisão preventiva da arguida foi ordenada pelo Juiz de Instrução competente, pelos factos e incriminação supra referidos, remetendo-se para o despacho de aplicação, a fls. 325-329, proferido em 21-1-2025, relativamente aos quais dúvidas não restam que é admissível a medida de coacção de prisão preventiva (art.º 202.º, n.º 1, als. a) e d) do C.P.P.), não se mantendo a mesma para além dos prazos fixados na lei, mormente no art.º 215.º, nos 1, al. a) e 2 do C.P.P. por ter apenas decorrido cerca de 1 (um) mês da sua aplicação.

Como bem nota o M.P. no douto parecer que antecede, que subscrevemos e reiteramos, a única justifìcação para que a sua pretensão fosse atendida teria que se enquadrar na segunda das alíneas referidas no art.º 222.º, n.º 2 do C.P.P., ou seja, ter sido motivada por facto pelo qual a lei a não permite (al. b).

Todavia, no caso em apreço, o pressuposto de que parte a arguida para demonstrar a pretensa ilegalidade da sua prisão - e esse pressuposto é o de que os factos não indiciam a prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos, não sendo, como tal, admissível a prisão preventiva ao abrigo do disposto no artigo 202.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal - não se confirma.

Com efeito, a arguida, detida preventivamente desde 21.01.2025, vem indiciada pela prática de um crime de recetação, previsto e punido pelo artigo 231.º, n.ºs 1 e 4, do Código Penal, ao qual corresponde como limite máximo da moldura penal pena de prisão de 1 a I anos, na forma continuada, esta que não altera in casu, tal moldura penal, ficando abrangido pelo disposto no art.º 2020, n.º 1, al. a) do C.P.P..

Acresce que o crime de recetação (mesmo o previsto pelo no 1 do art.º 231.º do C.P., punível com pena de prisão até 5 anos) encontra-se ainda previsto no artigo 202.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, integrando, assim, o catálogo de crimes em que é admissível a medida de coação de prisão preventiva, desde que, punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos, sendo que, ficou ainda fortemente indiciada a conduta nos termos do número 1, para além do número 4, do artigo 231.º, do código Penal, pelo que, ainda que assim não se entendesse, sempre seria admissível a prisão preventiva.

Invoca ainda a arguida uma situação clínica particular, da qual foi já dado conhecimento ao respetivo estabelecimento prisional e que informou estar a prestar o acompanhamento médico adequado, o que se mostra possível em reclusão, não obstante a situação de privação da liberdade, conforme documentam os autos e se instruirá a presente petição (cfr. fls. 373-374).

De notar que, como se disse já no despacho que não concedeu à arguida a atenuação do seu estatuto processual, em sede de primeiro interrogatório judicial da arguida detida, tendo, aliás, sido expressamente inquirida pelo seu Distinto Defensor sobre a realização da aludida recente viagem à Turquia, sobre o que falou, nada veio a mesma declarar quanto ao ora alegado padecimento clínico, designadamente que havia sido sujeita a intervenção cirúrgica.

Ademais, também em sede de alegações, após a promoção do M.P. propugnando a prisão preventiva, nada veio o Distinto Defensor informar ou requerer neste sentido que depois veio impetrar.

O argumento referente ao alegado estado clínico da arguida/requerente é ulterior nos autos a realização do primeiro interrogatório judicial da arguida detida, tendo sido objecto de despacho autónomo de (não) atenuação do decidido (cfr. fls. 375).

Mais invoca a arguida a inexistência de fortes indícios da prática do crime, porquanto, desde logo, a mesma apresenta registo de remunerações junto do Instituto da Segurança Social, I.P. no ano de 2023, no montante de 5.655€ (cinco mil seiscentos e cinquenta e cinco euros), o que não se mostra consentâneo com a informação prestada pelo Instituto da Segurança Social, I.P. aos autos a fls. 142 e 143, da qual não consta qualquer remuneração no ano de 2023 e apenas uma no ano de 2024, mais concretamente, no mês de abril.

Alega ainda que os factos não se encontram devidamente circunstanciados no tempo, contudo, os mesmos foram descritos na promoção que apresentou a arguida a primeiro interrogatório judicial de arguida detida, com os quais a mesma foi confrontada e pretendeu prestar declarações, tendo sido considerados fortemente indiciados, não obstante o dito pela arguida, na ponderação e valoração de todos os meios de prova, não se acolhendo a sua alegada falta de noção da origem dos fundos que arrecadou nas contas bancárias por si abertas para os factos, bem como do valor global que arrecadou em prol de terceiros, quedando-se, segundo referiu com 10% para si.

Reitera-se a remissão para as mensagens de fls. 264-268 v.º.

Mais invoca a arguida não ser proporcional a medida a aplicar face à pena em que previsivelmente vier a ser condenada nos presentes autos, contudo, não se pode olvidar a gravidade dos factos, vertida no período temporal em que os mesmos perduraram, desde, pelo menos, junho de 2023, e aos montantes efetivamente por si recebidos, que ascenderam a, pelo menos, cerca de 87.310,08€ (oitenta e sete mil trezentos e dez euros e oito cêntimos) e que subsequentemente transferiu para terceiros, dos quais a arguida recebeu como contrapartida efetiva um montante equivalente a 107.º, como a mesma esclareceu em sede de interrogatório, sendo evidente, desde logo, o perigo de continuação da atividade criminosa, pelos fáceis proventos obtidos, e não parando a arguida não obstante anterior contacto com as autoridades cfr. fls. 264-268 v.º e por si admitido em declarações perante este JIC.

Acresce ainda o tipo de crime em investigação, o modo como o mesmo é praticado e a forma como a arguida prestou declarações, em que confirmou a sua intervenção nos recebimentos e transferências, conhecedora ainda da sua ilicitude, conforme resulta das cópias de conversações juntas aos autos e com as quais a mesma foi confrontada, o perigo de fuga resulta ainda sustentado nos elementos juntos aos autos, para além da nacionalidade da arguida, que necessariamente tem de ser considerada, mas que não foi o elemento único de ponderação verificando-se ainda os demais perigos elencados no despacho que aplicou a medida em apreço.

Se e logo que colocada em liberdade a arguida de imediato ausentar-se-á de Portugal, como sucedeu com todos os outros suspeitos (v. ainda fls. 266 v.º).

Ao contrário do que alega a arguida, não se pretende que a mesma venha prestar declarações quanto a outros suspeitos, tendo-se referido o seu silêncio quanto a BB, em sede de primeiro interrogatório judicial, no seu direito diga-se, mas sem que daí não deva o Tribunal retirar as conclusões que as regras da experiência comum impõem ao julgador, quando ao grau de participação nos factos por parte da arguida e, até, da sua convicção de impunidade em Portugal desta natureza de factos, cfr. reitera-Se, conteúdo de mensagens de fls. 266 v.º - 267.

Nos termos do art.º 212.º n.º 3 do C.P.P., quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação de uma medida de coacção, o juiz substitui-a por outra menos grave ou determina uma forma menos gravosa da sua execução, o que a arguida requereu, sendo indeferido, pois que nada nesse sentido (atenuação da exigências cautelares) demonstrou a arguida, como o encerramento das contas bancárias utilizadas para a prática dos factos em investigação (cfr. fls. 363), apenas aduzindo factos/doença que não se subsumem à cláusula rebus sic stanibus, tratando-se de alegado status prévio e ocultado pela mesma, apenas argumentado em prol de alteração da medida de coacção de prisão preventiva

Veja-se que, no último trecho da sua petição, a arguida não deixa de admitir (art.º 132.º f1s. 404) que a sua pretensão não tem fundamento legal, ainda que impetre diversa interpretação da abrangência do preceito (art.º 222.º, n.º 2 do C.P.P.), que contenha a sua visão/pretensão.

Através da presente providência pretende a arguida uma "outra via de recurso" do despacho de aplicação de medida de coacção, bem como do despacho que não atenuou a aplicada prisão preventiva, com argumentos então não trazidos a juízo em sede de primeiro interrogatório.

Termos em que a presente providência de habeas corpus não tem fundamento, devendo ser indeferida.

Pelo exposto, não se verifica, no caso dos autos, uma situação de prisão preventiva ilegal, pelo que deve a presente providência de habeas corpus ser indeferida, por carecer de fundamento legal, mantendo-se a arguida na situação de prisão preventiva e condenando-se a mesmo em quantia a flxar nos termos do art.º 223.º, n.º 6 do C.P.P.”

1.3. O processo encontra-se instruído com certidão da documentação processual tida por pertinente, junta com esta informação, a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do CPP, que inclui:

(i)-Autos de Denuncia datados de 16.02.2024, da PSP de ..., de 14.07.2023, da PSP de ..., de 30.07.2023, da PSP de ..., de 20.06.2023, da PSP de ..., de 13.06.2023, da PSP de ...;

(ii)-Auto de Interrogatório de arguida detida – art.º 141º do CPP – de 21.01.2025, onde se determinou, além do mais, que a arguida AA, na ponderação dos factos, crime, perigos indiciados e o papel que à arguida cabia nos factos narrados, já de mediana hierarquia na cadeia dos co-autores, com o estado actual da investigação consideramos necessário, adequado, proporcional e suficiente que a arguida aguarde os ulteriores termos processuais na situação seguinte:

- obrigações decorrentes do TIR prestado;

- prisão preventiva

Expressamente se afasta a aplicação de OPHVE porquanto, se evidencia, não satisfaria qualquer das finalidades cautelares, já que foram os factos também e sobretudo cometidos a partir da residência, com utilização dos meios digitais, aduzindo-se que apenas se sinalizaria eventualfuga, possivelmente sem possibílidade de a conter -art.ºs 193.º, n.º 3 e 2010 a contrario sensu do C.P.P..

Tudo nos termos dos artigos 191.º a 194.º,193.º, n.º 3 à contrario sensu,196.º,201.º à contrario sensu, 202.º, n.º 1, als. a) e d) e 204.º, n.º 1, als. a) a c) todos do C.P.P.

(iii)-Certificado de registo criminal;

(iv)-Auto de busca e apreensão;

(v)-Despacho judicial onde é prestada informação nos termos do art.º 223º, n.º 1 do CPP.

1.4. Podendo ser obtidos para a apreciação e decisão da providência do habeas corpus, todos os elementos informativos e documentais necessários, afiguram-se suficientes para a decisão, os elementos que estão disponíveis nos autos.

1.5. Convocada a secção criminal e notificados, o Ministério Público e o defensor, realizou-se a audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.

Após, reuniu o tribunal para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que seguem.

2. Fundamentação

As questões a decidir são as de saber se se verifica alguma das situações a que se refere o art.º 222º do CPP, nomeadamente a da al. b) do n.º 2, e se este preceito legal é inconstitucional por violação do artigo 31º da Constituição da República Portuguesa -CRP.

2.1. Dados de facto.

2.1.1. Da petição, da informação a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do CPP e dos elementos/documentos juntos, resulta esclarecido, em síntese e no mais relevante para a decisão, que:

(i). A requerente, AA, é arguida nos autos principais de inquérito n.º 671/23.0..., do Departamento de Investigação e Ação Penal da ...;

(ii). Foi detida a 21.01.2025 e ouvida em 1º interrogatório judicial nos termos do art.º 141º do Código de Processo Penal;

(iii). Realizado o primeiro interrogatório judicial da arguida detida, foi proferido o despacho judicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, que decidiu, além do mais, que a arguida aguardasse os ulteriores trâmites processuais sujeito à medida de coação de prisão preventiva para além do TIR já prestado, nos termos conjugados dos artigos 191.º a 194.º,193.º, n.º 3 à contrario sensu,196.º,201.º à contrario sensu, 202.º, n.º 1, als. a) e d) e 204.º, n.º 1, als. a) a c) todos do C.P.P.

(iv). Do mesmo Despacho consta ainda que: demonstram assim os autos fortemente indiciada a prática pela arguida, em co-autoria, na forma continuada, um crime de recetação, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, 30.º, n.º 2, 70.º, n.º 1 e 231.º, n.ºs 1 e 4, todos do Código Penal.

(v)- A 20.02.2025, deu entrada a petição de Habeas Corpus.

2.2. Direito

2.2.1. Prevê o art.º 27º da CRP, sob a epígrafe “direito à liberdade e à segurança”, integrado no capítulo dos Direitos Liberdades e Garantias pessoais, que todos têm direito à liberdade e à segurança, ninguém podendo ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de (i)sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de (ii)aplicação judicial de medida de segurança. Sendo o direito à liberdade é aqui entendido como o direito à liberdade de movimentos, à liberdade ambulatória, à liberdade física, à livre circulação nas circunstâncias de tempo, modo e lugar que a cada cidadão aprouverem.

Prevê-se, pois, um direito fundamental dos cidadãos constitucionalmente garantido, ou uma garantia constitucional do direito à liberdade individual, também tutelado por instrumentos jurídicos internacionais aos quais Portugal está vinculado, como a Convenção Europeia dos Direitos Humanos-CEDH e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos-PIDCP.

O art.º 5º da CEDH, reconhece que “toda a pessoa tem direito à liberdade”, ninguém podendo ser privado da liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal.

Reconhece que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal1.

E determina o art.º 9º do PIDCP que, “todo o indivíduo tem direito à liberdade” pessoal. Proibindo a detenção ou prisão arbitrárias, estabelece que “ninguém poderá ser privado da sua liberdade, excepto pelos motivos fixados por lei e de acordo com os procedimentos nela estabelecidos”. Mais determina, ainda, que, “toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção ou prisão tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, com a brevidade possível, sobre a legalidade da sua prisão e ordene a sua liberdade, se a prisão for ilegal.

Não sendo um direito absoluto, o direito a não ser detido, preso ou privado da liberdade, total ou parcialmente, o art.º 27º n.º 3 da CRP elenca os casos em que se pode ser privado da liberdade, o que consta, também, das alíneas a), b), c) d) e f) do n.º 1 do art.º 5º da CEDH, preceito, no qual se inspirou o art.º 27º da CRP2. As condições e o tempo de prisão, são disciplinadas por lei, como previsto, ainda, pelo citado art.º 27º, n.º 3, da CRP.

Não sendo respeitadas ou sendo violadas, prevê a CRP e o CPP meios processuais de reacção a eventual detenção ou prisão ilegal. Para além dos meios normais de reacção, (como a arguição de invalidade, reclamação ou recurso), preveem os artigos 31º da CRP e 222º do CPP, a providência de habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude por virtude de prisão ou detenção ilegais.

O artigo 31.º da Constituição da República Portuguesa-CRP, sob a epigrafe Habeas Corpus, dispõe que:

«1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.”

Consagra, pois, este preceito constitucional, o direito à providência de habeas corpus como direito fundamental contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegais.

Densificando o artigo 31.º n.º 1 da CRP, dispõe o artigo 222.º do CPP que:

“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou,

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”

O pedido de habeas corpus, no sentido da jurisprudência e doutrina, visa, assim, reagir contra o abuso de poder, por prisão ou detenção ilegal e constitui não um recurso, mas uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma e com fim cautelar, destinada a pôr termo no mais curto espaço de tempo a uma situação ilegal de privação de liberdade3, extraordinária e singular, com finalidade e processamento próprios4.

A concessão do habeas corpus pressupõe a atualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que a petição é apreciada5, ou seja, a prisão tem de ser ilegal, por abuso de poder, no momento em que é decidida a petição. Não se admitindo, no nosso regime constitucional e legal, habeas corpus preventivo.

No que aqui mais releva, a providência de Habeas Corpus não se destina a apreciar a validade e o mérito de decisões judiciais, a apurar se foram ou não observadas as disposições da lei do processo e se ocorreram ou não irregularidades ou nulidades resultantes da sua inobservância; trata-se de matérias para as quais se encontram legalmente previstos meios próprios de intervenção no processo, onde devem ser conhecidas, de acordo com o estabelecido nos arts. 118.º a 123.º, do CPP e por via de recurso para os tribunais superiores (art.º 399.º e ss., do CPP)6.

O habeas corpus, também, não exclui o direito ao recurso, nem é subsidiário do recurso, no sentido de apenas poder ser utilizado após se esgotarem outras formas de reação. Pode “coexistir”, com os demais meios judiciais comuns de reacção, como a arguição de invalidade, reclamação ou com o recurso7. Não existe relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso e a providência de habeas corpus, como expressamente dispõe o artigo 219.º, n.º 2, do CPP.

Além disso, os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se à previsão das alíneas do n.º 2 do art.º 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

Assim, o STJ apenas tem de verificar, (a)se a prisão resulta de uma decisão judicial exequível ordenada por entidade competente, (b)se a privação da liberdade se encontra motivada por facto pelo qual a lei a admite e (c)se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial8.

E o abuso de poder há de ser facilmente perceptível dos elementos constantes do processo, há de tratar-se de um “erro grosseiro, patente e grave, na aplicação do direito”, em todas situações elencadas nas três alíneas do n.º 2 do art.º 222.º do CPP, entendimento que tem sido reiterado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça9.

2.2.2. No presente caso, a recorrente não identifica, em concreto, nenhuma das situações a que se referem as alíneas do n.º 2 do art.º 222º do CPP na qual fundamente o pedido de Habeas Corpus.

Elenca várias questões como, “I-questão prévia – a moldura penal do crime indiciado” (artigos 1º a 37º), “II-do pressuposto geral de aplicação da prisão preventiva (artigos 38º a 45º), “III-dos “periculum libertatis”” (artigos 46º a 87º), “IV-do imperativo humano” (artigos 88º a 107º) e “V-do Direito” (artigos 108º a 133º).

Conclui, a final, (artigos 132º e 133º) que se “se considerasse que as circunstâncias dos autos extravasam os fundamentos elencados no artigo 222º do CPP, a verdade é que a restrição do Habeas Corpus a tais fundamentos, restringe de forma inadmissível, o conteúdo do disposto no art.º 31º Da CRP, sendo tal interpretação, pelo exposto, inconstitucional, violando, também, o disposto na Convenção Europeia dos Direitos Humanos/CEDH, art.º 5º que reconhece que “toda a pessoa tem direito à liberdade”, e o art.º8º da Declaração Universal dos Direitos do Humanos de 1948”.

Como supra se diz, os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se à previsão das alíneas do n.º 2 do art.º 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

Pelo que, o STJ apenas tem de verificar, se a prisão resulta de uma decisão judicial exequível, se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial8.

Também a requerente admite que não se verifica, concretamente, nenhuma daquelas situações. Levanta e trata várias questões que identifica e conclui pela inconstitucionalidade do art.º 222º do CPP.

Em relação a tais questões deverá, ou deveria ser interposto recurso ordinário, pois, não constituem fundamento para o recurso de Habeas Corpus, não podendo esta providência substituir-se aos recursos como já referido. Sendo certo, ainda, que aquele recurso ordinário é admissível nos termos do art.º 219º, n.º 1, do CPP, e, ainda, que “não existe relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso previsto no número anterior e a providência de Habeas Corpus, independentemente dos respectivos fundamentos”, como determina o n.º 2 do mesmo preceito legal.

Mesmo assim, como referem, a Sra. Procuradora da Republica e a Sra. Juiz de Instrução Criminal, não se verificando a hipótese da al. a), pois a prisão preventiva foi ordenada pelo Juiz de Instrução Criminal competente, nem da al. c), pois os prazos fixados pela lei estão longe de ser ultrapassados, pelo que a única hipótese que poderia verificar-se seria a hipótese da al. b) do citado art.º 222º do CPP.

Analisando as questões suscitadas, pode ver-se que se não verifica, também, esta concreta situação.

Assim,

Moldura penal do crime indiciado: concluiu-se no despacho judicial proferido no final do primeiro interrogatório judicial da recorrente que “demonstram assim os autos fortemente indiciada a prática pela arguida, em coautoria, na forma continuada, um crime de recetação, previsto e punido pelos artigos 14.º,

n.º 1, 30.º, n.º 2, 70.º, n.º 1 e 231.º, n.ºs 1 e 4, todos do Código Penal.”

Dispõe o n.º 4 do art.º 231º do CP, que se o agente fizer da receptação modo de vida, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

Determinando ainda o art.º 202º, n.º 1, al. a) do CPP que se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando: a) houver fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos.

Sendo o crime cometido pela recorrente punível com pena de prisão superior a 5 (1 a 8) anos, é, pois, admissível a medida de coação de prisão preventiva neste caso.

Para além de que, como se refere na informação prestada nos termos do art.º 223º, n.º 1, do CPP, “o crime de recetação (mesmo o previsto pelo no 1 do art.º 231.º do C.P., punível com pena de prisão até 5 anos) encontra-se ainda previsto no artigo 202.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Penal, integrando, assim, o catálogo de crimes em que é admissível a medida de coação de prisão preventiva, desde que, punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos, sendo que, ficou ainda fortemente indiciada a conduta nos termos do número 1, para além do número 4, do artigo 231.º, do código Penal, pelo que, ainda que assim não se entendesse, sempre seria admissível a prisão preventiva.”

Não cabendo no âmbito da providência de habeas corpus sindicar a decisão da qualificação jurídica dos factos ou a bondade da decisão da prisão preventiva, devendo, antes, ser objecto de recurso ordinário. Pois que, como decidido pelo STJ, discutir a qualificação jurídica, (pressupostos ou indispensabilidade), não cabe no âmbito da providência de habeas corpus10.

Do pressuposto geral de aplicação da prisão preventiva: são pressupostos de aplicação da medida de coação de prisão preventiva, a verificação de uma de três condições especiais, além das condições gerais dos artigos 192º e 204º do CPP11.

As condições especiais são: (i)a existência de fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos, (ii)a existência de fortes indícios de crime doloso de terrorismo, criminalidade vioenta ou altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a três anos, e, (iii)a penetração ou a presença irregular em território nacional ou a presença de pessoa contra a qual estiver em curso processo de extradição ou de expulsão.”

Como condições gerais de aplicação diz-se que “a aplicação de medida de coação e de garantia patrimonial depende da prévia constituição como arguido, nos termos do art.º 58º, da pessoa que delas for objecto, e nenhuma medida de coação á aplicada quando houver fundados motivos para crer na existência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal”- 192º CPP

E ainda, nenhuma medida de coação, à excepção da prevista no art.º 196º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida: a)fuga ou perigo de fuga, b)perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, ou, c)perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e tranquilidade publicas.” – art.º 204º do CPP.

Ora no caso presente, verifica-se a existência de fortes indícios da prática, pela arguida, de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a cinco anos – condição especial –, a recorrente foi constituída arguida, não foram invocados fundados motivos para crer na existência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal, e podem determinar a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, ainda, os perigos de fuga e continuação da actividade criminosa da arguida/recorrente.

Em termos gerais nenhum preceito legal se mostra violado, sendo possível, em concreto determinar-se aquela medida de coação.

E, no caso, o despacho judicial fundamenta por que razão aplica a medida de coação de prisão preventiva e porque exclui a de obrigação de permanência na habitação mediante vigilância electrónica – OPHVE.

Aí se diz que, “os fáceis proventos que esta actividade permite, documentadas nos autos e nos factos, mesmo admitidos pela arguida, conduz a que se possam seriamente esperar novos factos.

É de salvaguardar que as ulteriores diligências processuais ocorram com normalidade, sem interferências da arguida, destacando-se que esta procurou inclusivamente proteger BB, nada revelando quanto a esta, que apresentará elevadas competências e conhecimentos na área da informática e sendo sobretudo digital a prova ainda a compilar nos presentes autos, referindo a arguida ser publicitária/social media, que importa seja garantida, sem destruição por parte da arguida ou outros suspeitos/as.

A perturbação da ordem e da tranquilidade pública é inerente, olhando ao prejuízo causado aos lesados.

O perigo de fuga é, também, de salvaguardar.

Ainda que a arguida refira que não tornou ao Brasil desde que veio para Portugal, demonstra elevada mobilidade geográfìca, viajando amiúde, sendo pela segunda vez, segundo a própria admitiu, confrontada com as suas condutas, cogitará a fuga e a incapacidade das autoridades policiais e judiciárias em executar a sua função.

Na ponderação dos factos, crime, perigos indiciados e o papel que à arguida cabia nos factos narrados, já de mediana hierarquia na cadeia dos co-autores, com o estado actual da investigação consideramos necessário, adequado, proporcional e suficiente que a arguida aguarde os ulteriores termos processuais na situação seguinte:

- obrigações decorrentes do TIR prestado;

- prisão preventiva.

Expressamente se afasta a aplicação de OPHVE porquanto, se evidencia, não

satisfaria qualquer das finalidades cautelares, já que foram os factos também e sobretudo cometidos a partir da residência, com utilização dos meios digitais, aduzindo-se que apenas se sinalizaria eventual fuga, possivelmente sem possibilidade de a conter – art.ºs 193.º, n.º 3 e 201.º à contrario sensu do C.P.P..

Tudo nos termos dos artigos 191.º a 194.º,193.º, n.º 3, à contrario sensu,196.º, 201.º à contrario sensu, 202.º, n.º 1, als. a) e d) e204.º, n.º 1, als. a) a c) todos do C.P.P.”

Donde, de todo o exposto se conclui que se verificam no caso os pressupostos gerais e condições especiais de aplicação da medida de coação de prisão preventiva, não se mostrando violado qualquer preceito legal.

Não cabendo, também, quanto a este particular, no âmbito da providência de habeas corpus sindicar a decisão que determinou a aplicação da medida de coação da prisão preventiva, devendo, como se disse, ser, antes, objecto de recurso ordinário.

Como já decidido pelo STJ, não constitui fundamento do pedido de habeas corpus, discutir a qualificação jurídica, pressupostos ou indispensabilidade10, ou erro na valoração da prova indiciária12.

Dos periculum libertatis: quanto a esta questão repisa-se aqui que nenhuma medida de coação, à excepção da prevista no art.º 196º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida: a)fuga ou perigo de fuga, b)perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, ou, c)perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e tranquilidade publicas, – art.º 204º do CPP – sendo condição geral de aplicação desta medida de coação.

Pode e deve, assim, se tal se justificar, considerar-se, em termos gerais, na determinação da medida de coação de prisão preventiva, o perigo de fuga ou de continuação da actividade criminosa da arguida.

No caso, como já referido, pode ver-se do despacho que aplicou à recorrente a medida de prisão preventiva as razões da escolha desta medida e não outras, nomeadamente a OPHVE, bem como o perigo de fuga.

Aí se pode ler que “o perigo de fuga é, também, de salvaguardar. Ainda que a arguida refira que não tornou ao Brasil desde que veio para Portugal, demonstra elevada mobilidade geográfìca, viajando amiúde, sendo pela segunda vez, segundo a própria admitiu, confrontada com as suas condutas, cogitará a fuga e a incapacidade das autoridades policiais e judiciárias em executar a sua função.”

Saber se, em concreto, existem (ou não), estes perigos ou questionar a decisão que entendeu que se verificavam, não cabe, também, no âmbito desta providência de habeas corpus, sendo ou podendo ser, antes, objecto de recurso ordinário.

Com efeito, decidiu já o STJ que não é fundamento do habeas corpus aferir se do processo constam indícios suficientes para sujeitar o arguido à medida de coação de prisão preventiva, “se há ou não indícios de perigo de fuga ou de perigo de continuação da atividade criminosa”13.

“Do imperativo humano”: alega ainda a recorrente o seu estado de saúde precário para justificar o pedido de habeas corpus.

Naturalmente que o Estabelecimento Prisional não pode deixar de considerar o estado de saúde da recorrente e providenciar pela realização de todos os tratamentos médicos, cirúrgicos, medicamentosos de que a mesma necessite.

Será a este nível que a recorrente terá de invocar o seu direito à saúde que, não sendo invocadas razões em contrário, pode ser concretizado em reclusão.

Sendo certo que, mais uma vez, também esta questão, a ser suscitada, deverá sê-lo em recurso ordinário, não cabendo, tal como apresentada, no âmbito do recurso de habeas corpus.

Inconstitucionalidade: suscita, por fim, a recorrente a inconstitucionalidade do artigo 222º do CPP por violação do disposto no art.º 31º da CRP, quando interpretado no sentido de que apenas nas situações elencadas nas alíneas do n.º 2, é admitido o recurso de habeas corpus. Questiona, pois, a taxatividade deste elenco de situações que fundamentam o pedido desta providência.

É certo que o artigo 31º da CRP não estabelece limites ao pedido da providência de habeas corpus. Tal como não teve a preocupação em densificar qual o juiz14 ou tribunal competente, a legitimidade e formalidades processuais, não teve idêntica preocupação quanto aos motivos que poderão constituir fundamento do pedido desta providência, deixando tal concretização à lei ordinária, ao CPP.

Tem sido, porém, jurisprudência constante e pacífica do STJ que os motivos de “ilegalidade da prisão” como fundamento da providência de Habeas Corpus têm de reconduzir-se à previsão das alíneas do n.º 2 do art.º 222º do CPP, de enumeração taxativa.

Nesse sentido decidiram os Acs. do STJ de 22.03.2023, já citado8, em cujo sumário se lê que “os motivos de “ilegalidade da prisão” que constituem fundamento da providência de habeas corpus, de enumeração taxativa, têm de reconduzir-se à previsão das alíneas do n.º 2 do art.º 222º do CPP, pelo que o STJ apenas tem de verificar (i)se a prisão resulta de uma decisão judicial exequível ordenada por entidade competente, (ii)se a privação da liberdade se encontra motivada por facto pelo qual a lei a admite e (iii)se estão respeitados os respectivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial”, e de 15.04.202115, onde pode ler-se que “o art.º 31.º, n.º 1, da CRP, figura o direito à providência de habeas corpus como direito fundamental contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegais.

Concretizando-se o abuso de poder em prisão ilegal, há de a ilegalidade resultar – art.º 222.º, n.º 2, do CPP – ou de a prisão ter sido efectuada por entidade incompetente – al. a) –, ou de ser motivada por facto por que a lei a não permite – al. b) – ou de se manter para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial - al. c).

Podendo o fundamento da al. b) do n.º 2 do art.º 222.º do CPP abranger uma multiplicidade de situações (v. g., a não punibilidade dos factos imputados; a prescrição do procedimento ou da pena; a amnistiada infracção ou o perdão da pena; a inimputabilidade do agente; a falta de trânsito da decisão condenatória; a inadmissibilidade legal de prisão preventiva), estão, porém, excluídos da sua previsão (alegadas) nulidades ou irregularidades cometidas na condução do processo ou na prolação de decisões e (alegados) erros de indiciação ou de qualificação jurídica, apenas sindicáveis através de recursos, de requerimentos e em incidentes próprios, deduzidos no tempo e na sede apropriada.

Também a doutrina refere que os fundamentos estão elencados no n.º 2 e apenas

podem ser os descritos nas als. a) a c) do n.º 2 do art.º 222º do CPP, e que, só estes justificam o processo de habeas corpus.

Relativamente a outras vicissitudes terão de utilizar-se formas de reação distintas, de índole processual, como a arguição de invalidade, reclamação ou recurso16.

O que se compreende, pois estamos em presença de um recurso de natureza extraordinária, excepcional.

A excepcionalidade da providência de Habeas Corpus demanda ou aconselha que se elenquem ou especifiquem as situações de facto em que é admissível.

Só a enumeração taxativa ou a determinação especifica das situações de facto, que possam fundamentar a providência garantem a excepcionalidade, o carácter extraordinário do pedido de habeas corpus.

E, simultaneamente, afastada a litispendência, mantêm-se as “portas abertas” da lei à via do recurso ordinário que não deixa de poder ser utilizada, sendo esse o lugar próprio17.

Como se lê, também, no Ac. do TC n.º 64/2005, “não viola a garantia constitucional decorrente do artigo 31º, nº 1 da CRP (“Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão [...] ilegal [...]”) um entendimento que, baseando-se no carácter excepcional do habeas corpus, não inclui na respectiva tutela, quanto à prisão preventiva, toda e qualquer violação de normas atinentes ao seu regime legal, (…) restringindo-a a casos particularmente qualificados (como é seguramente o da ultrapassagem do prazo máximo da prisão preventiva) e não conferindo tal tutela a outro tipo de situações, relativamente às quais o interessado dispõe – e aqui dispôs – de outros meios processuais aptos a reagir ao desvalor decorrente da violação da norma.

Conclui-se pois, que, o art.º 222º do CPP não é inconstitucional, por violação do artigo 31º da CRP, quando interpretado no sentido de que só podem ser invocadas como fundamento do pedido de habeas corpus as situações constantes das alíneas do n.º 2 do art.º 222º do CPP, de enumeração taxativa, e não outras, como, a moldura penal do crime indiciado, a verificação dos pressupostos gerais e condições especiais da prisão preventiva, os perigos de fuga ou de continuação da actividade criminosa da recorrente, ou o seu estado de saúde, a necessitar de cuidados médicos e tratamentos.

Por todo o exposto, só pode, assim, concluir-se pelo indeferimento do pedido de habeas corpus apresentado por AA, por falta de fundamento bastante, atento o disposto no artigo 223.º, n.º 4, al. a), do CPP.

3. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça, 3ª secção, em:

(i)-indeferir o pedido de habeas corpus apresentado por AA, por falta de fundamento bastante - artigo 223.º, n.º 4, al. a), do CPP;

(ii)-condenar a peticionante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs, nos termos do artigo 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.

*

Supremo Tribunal de Justiça, 05.03.2025.

António Augusto Manso (relator)

Margarida Ramos Almeida (Adjunta)

José A. Vaz Carreto (Adjunto)

Nuno António Gonçalves (Presidente da secção)

*

(1)-v. ac. do STJ, de 14.07.2021, proc. 2885/10.3TXLSB-AA.S1, www.dgsi.pt.

(2)-v. ac. do STJ, de 24.04.2024, Proc. n.º 2592.08.7PAPTM-C.S1, www.dgsi.pt.

(3)-v. ac. do STJ de 02.06.2021, 156/19.9T9STR-A.S1, www.dgsi.pt.)

(4)-Eduardo Maia Costa, 2016, p. 48, citado por Tiago Caiado Milheiro in Comentário Judiciário ao CPP, AAVV, Coimbra, Almedina, tomo III, em anotação ao art.º 222º do CPP.

(5)–ac. do STJ de 22.03.2023, Proc. n.º 631/19.5PBVLG-MC.S1, in www.dgsi.pt.

(6)-ac. do STJ de 16.11.2022, proc. 4853/14.7TDPRT-A.S1, www.dgsi.pt.

(7)-ac. STJ de 19-11-2020 - A. Gama, citado por Tiago Caiado Milheiro, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, AA.VV., t. III, Coimbra, Almedina, 2022, p. 586)

(8)-ac. do STJ de 16.11.2022, proc. 4853/14.7TD PRT-A.S1, www.dgsi.pt

(9)–ac. do STJ de 20.11.2019, proc. n.º 185/19.2ZFLSB-A.S1,www.dgsi.pt.

10-ac. STJ, 14.11.2019 (em que é relator o Conselheiro Nuno A. Gonçalves), www.dgsi.pt.

11- PPA, Comentário do Código de Processo Penal, 2ª edição, UCE, p. 568.

12-ac. STJ, 03.01.2018 (em que é relator o Conselheiro Raúl Borges), www.dgsi.pt.

13-ac. STJ, 09.06.2020 (em que é relatora a Conselheira Helena Moniz), www.dgsi.pt

14-v. Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, vol. III, pág. 576.

15-proferido no processo n.º 204/19.2PAMDL-A.S1, in www.dgsi.pt.

16-v.Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, vol. III, pág. 577.

17-como pode ler-se no Ac. do TC n.º 423/2003, de 24.09.2003.