INSOLVÊNCIA
EMBARGOS DE EXECUTADO
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
IDENTIDADE DE FACTOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
ACÓRDÃO RECORRIDO
ACORDÃO FUNDAMENTO
LEI ESPECIAL
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


I - O art. 14.º do CIRE, estabelece um regime específico de admissibilidade do recurso de revista, baseado na oposição de acórdãos, que afasta o regime geral da revista excecional, previsto no art. 672.º do CPC.
II - A oposição relevante em termos de admissibilidade de recurso pressupõe que as situações versadas no acórdão fundamento e no acórdão recorrido, analisadas e confrontadas no plano factual ou material, sejam rigorosamente equiparáveis quanto ao seu núcleo essencial, que determine a aplicação em cada um do mesmo regime legal, de modo direto conflituantes, com soluções de direito opostas e como tal inconciliáveis e contraditórias.
III - No acórdão fundamento não se discutiu qualquer vício de ineptidão, dizendo-se que “o resultado de um processo executivo não é imutável, que o desfecho da execução não surte eficácia fora do processo executivo, obstando a uma nova ação executiva, mas não impedindo a propositura, pelo executado, duma ação de restituição do indevido com um fundamento não discutido ou apreciado nos embargos opostos à ação executiva”.
IV - Na situação vertente, apreciou-se a factualidade dada como assente, culminando-se com a conclusão do preenchimento do facto-índice de insolvência.
V - Da análise em confronto, do acórdão fundamento e do acórdão recorrido, não se evidência a existência de decisões divergentes, subsumíveis a um mesmo quadro normativo, nem assentes em idêntica situação factual.

Texto Integral


Acordam em Conferência na 6ª. Secção do STJ.

1-Relatório:

AA, intentou ação declarativa com processo especial, requerendo a declaração de insolvência de Colégio Infanta D. Maria de Portugal, Lda.

A requerida deduziu oposição.

Foi julgada improcedente a exceção de ineptidão da petição inicial e foi proferida sentença que declarou a insolvência da requerida.

Inconformada esta apresentou recurso de apelação.

No Tribunal da Relação de Lisboa foi proferido acórdão com o seguinte teor na sua parte decisória:

«Por todo o exposto, acordam os Juízes deste coletivo em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, mantém-se a sentença recorrida».

Inconformada veio a insolvente interpor recurso de revista excecional para este STJ., concluindo as suas alegações:

I. O objecto do presente recurso é o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido nos autos em 1/10/2024, que confirmou a sentença de 1.ª instância de 23/5/2024 que, por seu turno, declarou a insolvência da ora recorrente.

II. O Acórdão recorrido faz uma apreciação manifestamente desajustada e ilegal da questão de fundo – a suposta situação de insolvência da Recorrente – porque alicerçada em erros de apreciação da matéria de facto, como da matéria de Direito.

III. Não obstante, atendendo aos requisitos de recorribilidade previstos no artigo 14.º n.º 1 do CIRE, o presente recurso fundar-se-á somente na oposição entre a decisão do Tribunal a quo a respeito da questão da ineptidão do requerimento inicial e a decisão proferida sobre essa mesma questão pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3/5/2023, proferido no processo n.º 1704/21.0T8GRD.C1.S1 (documento n.º 1).

IV. Mais concretamente, a oposição de julgados sub judice centra-se na questão de saber se a decisão que julgou o incidente de embargos de executado movido pela ora Recorrente no âmbito do processo n.º 3524/12.3... (Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Execução de ..., Juiz ...) terá surtido um efeito preclusivo da faculdade da Recorrente de invocar, num ulterior processo autónomo, meios de defesa atinentes à pretensão dos Recorridos que não tenham sido apreciados e decididos naquele incidente de embargos, à luz do disposto nos artigos 728.º n.º 1 e n.º 2 e 732.º n.º 6 do CPC. 15

V. A questão da ineptidão do requerimento inicial foi invocada no recurso de apelação em termos que importa reproduzir, para que sejam submetidos à apreciação deste douto Tribunal, nos termos do artigo 682.º n.º 1 do CPC.

VI. Assim, tendo a Recorrente invocado a ineptidão do requerimento inicial, em sede de oposição (entre outros meios de defesa), o Tribunal de 1.º instância julgou essa questão improcedente, por entender que a mesma já havia sido anteriormente apreciada e indeferida no âmbito do incidente de embargos de executado deduzido no processo de execução nº 3524/12.3... (cfr. factos provados nº 11 e nº 12).

VII. Essa asserção do Tribunal de 1.ª instância é demonstradamente errada: a questão invocada traduz uma excepção dilatória que encontra os seus fundamentos, unicamente, no requerimento inicial que deu origem aos presentes autos, pelo que não foi, nem poderia ter sido, apreciada num outro processo judicial, fosse ele qual fosse.

VIII. A mera leitura do "acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça que confirmou o prosseguimento da execução e a improcedência da oposição" (cfr. facto provado nº 12 e documento nº 5 junto ao requerimento inicial) demonstra que esta questão não foi aí apreciada (e, repita-se, não poderia tê-lo sido).

IX. Pelo que o Tribunal de 1.ª instância não poderia, licitamente, dispensar-se de apreciar esta questão, como fez.

X. Assim, o documento nº 2 do requerimento inicial – uma escritura pública intitulada “confissão de dívida e hipoteca”, outorgada em 01/02/2008 – no qual a Recorrida procura alicerçar o seu alegado crédito sobre a Recorrente, configura uma declaração de reconhecimento de dívida, nos termos do artigo 458º do Código Civil.

XI. Esse documento não poderia traduzir uma declaração confessória extrajudicial nos termos do artigo 358º do Código Civil, uma vez que não faz uma alusão concreta aos factos constitutivos do alegado direito da Recorrida, mas apenas uma referência vaga, genérica, imprecisa, a uma “transmissão de direitos e valores” e a “cessões de participações sociais e empréstimos”.

XII. Para usufruir da presunção estabelecida no artigo 458º do Código Civil, impunha-se à Recorrida o ónus de alegar, de modo individualizado, os factos concretos que consubstanciam a causa do seu invocado crédito – entendimento que é sufragado, pacificamente, pela jurisprudência.

XIII. Contudo, a Recorrida, ao alegar a causa do seu invocado crédito, referiu-se singelamente à “transmissão de quotas da sociedade Requerida”.

XIV. A Recorrida incumpriu, desse modo, o ónus de alegação e especificação da causa do seu alegado crédito, nos termos do artigo 458º do Código Civil, o que, além de impedir liminarmente que opere a presunção aí estabelecida, é processualmente cominado com a ineptidão da petição inicial, nos termos do artigo 186º nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil (ex vi artigo 17º do CIRE).

XV. Pronunciando-se sobre essa questão, o Tribunal a quo entendeu que se encontrava precludido o direito da Recorrente a invocar tal meio de defesa, em virtude de a mesma, no âmbito de execução anteriormente movida pela Recorrida (e outros), ter deduzido oposição à execução sem aí invocar a falta de alegação da causa subjacente ao reconhecimento de dívida em que se alicerça a pretensão da Recorrida, tanto neste processo como na anterior execução.

XVI. O Tribunal a quo mostrou, deste modo, interpretar os artigos 728.º n.º 1 e n.º 2 e 732.º n.º 6 do CPC como se aí estivesse previsto um “ónus de embargos”, cuja inobservância teria efeito preclusivo da faculdade do devedor de invocar meios de defesa contra o crédito exequendo num processo judicial autónomo e posterior –interpretação que, como veremos, é errada, por desconforme às coordenadas legais atendíveis, bem como aos valores constitucionais em jogo.

XVII. Já a decisão do Acórdão-fundamento está em directa oposição com o Acórdão recorrido, nos termos e para os efeitos do artigo 14.º n.º 1 do CIRE.

XVIII. A oposição entre julgados revela-se, em concreto, em que ambos os Acórdãos apelam às mesmas normas legais, mormente o artigo 728.º n.º 1 e n.º 2 do CPC – e, bem assim, o artigo 732.º n.º 6 do CPC, que tem sido convocado pela jurisprudência para solucionar o problema sub judice, embora o Acórdão recorrido não faça referência expressa a essa disposição.

XIX. Essa oposição decorre ainda de ambos os Acórdãos incidirem sobre a mesma questão essencial de Direito, à qual o Acórdão recorrido se refere como a “questão de saber se, julgada improcedente oposição oposta a uma execução, o ali executado pode, em processo posterior vir invocar meios de 17 defesa que podia ter invocado (e não invocou) na oposição que opôs à anterior execução”,

XX. E à qual Acórdão-fundamento, num claro paralelismo, se refere como a “questão de saber se, julgados improcedentes embargos opostos a uma execução, o ali executado pode, em processo posterior (como é o caso da presente ação), vir invocar meios de defesa que podia ter invocado (e não invocou) nos embargos que opôs à anterior execução”.

XXI. A oposição de julgados evidencia-se, por fim, na plena equiparação dos pressupostos de facto e de Direito relevantes, num e noutro Acórdão, quais sejam a preexistência de um processo de execução, no qual foi deduzida oposição (julgada improcedente) sem que aí fosse invocado um determinado meio de defesa abstractamente válido, e a posterior invocação desse meio de defesa numa acção judicial autónoma.

XXII. Tanto a natureza do meio de defesa como da acção judicial posterior / autónoma – que são distintas no Acórdão recorrido e no Acórdão-fundamento – são, em concreto, redundantes para os termos da oposição de julgados à luz do artigo 14.º n.º 1 do CIRE, porquanto não são premissas relevantes e eficientes da decisão tomada num e noutro caso.

XXIII. Conclui-se que o Acórdão recorrido e o Acórdão-fundamento estão em efectiva oposição quanto a uma questão essencial, devendo, consequentemente, ser o presente recurso admitido à luz do disposto no artigo 14.º n.º 1 do CIRE – o que desde já se requer.

XXIV. O juízo expendido no Acórdão recorrido desconsidera, indevidamente, que o regime legal da acção executiva não prevê, sequer implicitamente, um qualquer “ónus de embargos”, cuja inobservância importe a preclusão do direito do putativo devedor a invocar, numa acção autónoma, meios de defesa contra a pretensão do credor que não hajam sido suscitados e apreciados em sede de embargos de executado.

XXV. A ausência de previsão legal do referido ónus traduz uma vontade legislativa de o mesmo não vigorasse no âmbito dos processos de execução.

XXVI. Deve supor-se que, se fosse intenção do legislador estatuir um suposto “ónus de embargos” com a configuração que lhe dá o Acórdão recorrido, tê-lo-ia dito expressamente, em paralelismo com o que fez para a acção declarativa, em que o artigo 573.º do CPC prevê inequivocamente um ónus de 18 contestar e as respectivas consequências.

XXVII. Esta matéria impõe ao legislador um ónus de se exprimir com especial clareza, tendo em conta que esse putativo ónus de embargos surtiria efeitos no plano do Direito substantivo, alterando a relação material controvertidas das partes em litígio e, desse modo, extravasando a função meramente adjectiva que é típica das regras processuais.

XXVIII. O Tribunal Constitucional tem-se oposto, justificadamente, à modelação, por via interpretativa, de “efeitos preclusivos intensos sobre direitos essenciais das partes (…) com base em regras pouco claras” por afrontar a proibição da indefesa (cfr. Acórdão do TC n.º 766/2022, entre outros) – entendimento que tem plena aplicação ao caso sub judice, demonstrando que a interpretação propugnada pelo Acórdão recorrido é manifestamente inconstitucional.

XXIX. Assim, a tese do Acórdão recorrido, que constrói, por via puramente interpretativa e descurando o silêncio da Lei, um suposto “ónus de embargar” a partir do artigo 728.º n.º 1 e n.º 2 (e 732.º n.º 6) do CPC, traduz-se numa restrição desnecessária, desadequada e desproporcional às garantias fundamentais do acesso ao Direito e ao contraditório, bem como ao processo equitativo, previstas, respectivamente, no artigo 20.º n.º 1 e n.º 4 da CRP.

XXX. Neste contexto, ainda que se entendesse haver uma incerteza em torno da suposta existência de um “ónus de embargos”, a única solução legalmente admissível e constitucionalmente integrada passaria por negar esse pretenso ónus, por só assim se evitar uma restrição injustificada à garantia fundamental de defesa e de um processo equitativo que, in casu, assistem à Recorrente (cfr. artigo 20.º n.º 1 e n.º 4 da CRP).

XXXI. Na ausência de um “ónus de embargos” em sede de processo de execução, não será lícito extrair do disposto no artigo 732.º n.º 6 do CPC que a decisão de mérito proferida sobre os embargos de executado tem por efeito a preclusão da invocação, no âmbito de acção posterior e autónoma, de meios de defesa, que, apesar de assistirem ao putativo devedor, não tenham sido arguidos na oposição à execução.

XXXII. As razões que antecedem são lapidarmente articuladas pelo Acórdão-fundamento, e igualmente sufragadas pela jurisprudência – que se tem por maioritária – deste douto Tribunal, bem como das Relações.

XXXIII. O que tudo sustenta a conclusão de o Acórdão recorrido padece de um manifesto erro de interpretação do artigo 728.º n.º 1 e n.º 2 (e 732. n.º 6) do CPC, quanto indefere a arguição de ineptidão do requerimento inicial por julgar precludido o direito da Recorrente a invocar meios de defesa contra a pretensão da Recorrida, em virtude da pretérita dedução de incidente de embargos de executado sem que essa questão tivesse sido aí suscitada.

XXXIV. Com esse fundamento, deverá o Acórdão recorrido ser revogado e proferida decisão, ao abrigo do artigo 682.º n.º 1 do CPC, seguindo o entendimento do Acórdão-fundamento, aprecie e julgue procedente a questão da ineptidão do requerimento inicial, o que se requer deste já.

XXXV. Assim não se entendendo, o que se admite por hipótese, deverá ser proferida decisão que devolva os autos ao Tribunal a quo, com indicação para que este proceda à apreciação da questão da ineptidão do requerimento inicial, o que se requer subsidiariamente.

Foram apresentadas contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.

Foi apreciada a questão sobre a admissibilidade do recurso, dando-se cumprimento ao disposto no nº. 1 do art. 655º do CPC.

A recorrente apresentou requerimento.

A recorrida também apresentou requerimento.

Foi proferida decisão sumária a julgar findo o recurso por não haver que conhecer do seu objeto.

Desta decisão sumária veio a recorrente reclamar para a conferência.

A recorrida pugnou pela manutenção do decidido.

Foram colhidos os vistos.

2- Cumpre apreciar e decidir:

Veio a recorrente na sua reclamação invocar uma questão prévia, bem como, reafirmar que está em causa o segmento do acórdão recorrido respeitante a ii), ou seja, a ineptidão da petição inicial, dizendo que a questão de direito é a de saber se um putativo devedor que viu ser indeferido o incidente de embargos de executado, pode invocar meios de defesa contra o crédito, no âmbito de um processo posterior, aqui residindo a contradição.

Relativamente à questão prévia, vem a mesma arguir a nulidade resultante do circunstancialismo, de a competência para a apreciação liminar do recurso incumbir à Formação do nº. 3 do art. 672º do CPC. e não à ora relatora.

Ora, a recorrente interpôs como apelidou, recurso de revista excecional, ao abrigo do disposto no art. 14º, nº. 1 e nº. 5 do CIRE e art. 672, nº. 1, al. c) do CPC.

Com efeito, estamos perante um processo de insolvência, onde o nº. 1 do art. 14º do CIRE, consagra um regime especial, sendo a sua admissibilidade resultante de oposição entre acórdãos proferidos por alguma das Relações ou pelo STJ.

A regra prevista no art. 14.º, n.º 1, do CIRE, restringe o acesso geral de recurso ao STJ às decisões proferidas no processo principal de insolvência, nos incidentes nele processado e aos embargos à sentença de declaração de insolvência.

Na situação vertente, a recorrente veio requerer a admissão de uma revista excecional.

Porém, o art. l4.º do CIRE, como já aludido, estabelece um regime específico de admissibilidade do recurso de revista, baseado na oposição de acórdãos, que afasta o regime geral da revista excecional, previsto no art. 672.º do CPC.

Não sendo a questão subsumível a uma revista excecional, a apreciação sobre a admissibilidade do presente recurso, não incumbiria à Formação, razão pela qual, inexiste qualquer nulidade.

Entende também a recorrente que a contradição que apontou entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, não foi minimamente valorado ou criticamente apreciado.

Alega para tanto que, estava em causa saber se um putativo devedor que viu ser indeferido, em seu desfavor, o incidente de embargos de executado previamente instaurado, pode ou não, invocar meios de defesa contra o crédito em questão, no âmbito de um processo posterior.

Porém, diremos desde já, que não assiste razão à recorrente.

Aquando da decisão singular proferida foi dito o seguinte:

«Da admissibilidade do recurso

No acórdão recorrido foram elencadas as seguintes questões para analisar:

i)da nulidade da sentença por falta de fundamentação de facto;

ii) da ineptidão da petição inicial;

iii) da falta de interesse em agir;

iv) da modificabilidade da decisão de facto e se

v) se verificam, ou não, os pressupostos para a declaração de insolvência da apelante/requerida.

A insolvente ora recorrente veio interpor recurso de revista excecional, invocando para tanto, que o acórdão recorrido se encontra em contradição com o acórdão fundamento do STJ., com o nº. 1704/21.OT8GRD.C1.S1, quanto à questão de ineptidão do requerimento inicial.

Ora, tratando-se de uma decisão proferida nos próprios autos de insolvência, o regime dos recursos será regido pelo previsto no art. 14º, nº. 1 do CIRE.

Nos termos plasmados neste preceito legal, no processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo jurisprudência com ele conforme.

Como se escreveu no Ac. do STJ, de 19-12-2023, in http://www.dgsi.pt.«A oposição relevante em termos de admissibilidade de recurso pressupõe que as situações versadas no acórdão fundamento e no acórdão recorrido, analisadas e confrontadas no plano factual ou material, sejam rigorosamente equiparáveis quanto ao seu núcleo essencial, que determine a aplicação em cada um do mesmo regime legal, de modo direto conflituantes, com soluções de direito opostas e como tal inconciliáveis, e em conformidade contraditórias».

A contradição de julgados exige, assim, a identidade substancial do núcleo essencial das situações de facto que suportam a aplicação, necessariamente diversa, dos mesmos normativos legais, sendo as soluções em confronto, divergentes e no domínio da mesma legislação.

A exigência de identidade do núcleo essencial das situações de facto é fundamental, pois, inexiste conflito jurisprudencial quando a diversidade de soluções jurídicas alcançadas para a composição dos interesses em litígio, num e no outro caso, assentam em diferenciações relevantes da matéria litigiosa, decorrendo a diversa solução adotada nos dois acórdãos de particularidades da matéria de facto subjacente aos litígios ( cf. neste sentido acórdão do STJ de 02.10.2014, Processo n.º 68/03.0TBVPA.P2.S1-A).

Como referem Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, 3º Vol. (3ª edição) pág. 282, “a integração da previsão da norma que é objeto de interpretações ou aplicações divergentes faz-se com factos de certo tipo e não de qualquer tipo (…) não basta uma oposição sobre a interpretação abstrata de normas jurídicas, pois está em causa a solução de casos jurídicos, por definição concretos.”

Com efeito, para se verificar uma relação de identidade entre a questão de direito apreciada no acórdão recorrido e no acórdão-fundamento, é necessário que os elementos de facto relevantes para a ratio da regra jurídica sejam coincidentes ou equivalentes, isto é, que a subsunção jurídica feita em qualquer das decisões tenha operado sobre o núcleo factual essencialmente idêntico ou equivalente, sem se atribuir relevo a elementos de natureza acessória.

Só há uma verdadeira contradição entre os acórdãos, quando a questão essencial, que constituiu a razão de ser e objeto da decisão, foi resolvida de forma frontalmente oposta na decisão em confronto.

Assim, para haver oposição de julgados, para efeitos do recurso de revista, no âmbito do art. 14º do CIRE, exige-se a verificação dos seguintes pressupostos:

- Verificação de uma relação de identidade entre a questão de direito apreciada no acórdão da Relação que é objeto de recurso e a questão de direito apreciada por alguma das relações ou pelo STJ, que serve de contraponto e de fundamento à admissibilidade da revista;

- A existência da efetiva contradição de acórdãos, ou seja, deve estar-se perante uma oposição frontal e tal oposição frontal deve apresentar-se com natureza essencial para o resultado (oposto) que foi alcançado em ambos os acórdãos (sendo irrelevante a divergência que respeitar apenas a alguns argumentos sem valor decisivo);

- Dever a contradição dos acórdãos verificar-se num quadro normativo substancialmente idêntico.

- Não haver acórdão de uniformização de jurisprudência (AUJ).

Aditar-se-á, ainda, a título exemplificativo, a seguinte jurisprudência do STJ, in www.dgsi.pt:

Ac. do STJ, de 09.03.2021:

«Duas decisões só são divergentes quanto à mesma questão fundamental de direito se têm na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em consideração a natureza e teleologia dos específicos interesses das partes em conflito – são análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, e que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso (isto é, que integre a ratio decidendi dos acórdãos em confronto».

Acórdão do STJ de 26.05.2021:

«A oposição jurisprudencial que releva para efeitos da aplicação do regime de recursos especial do art. 14º, nº 1, do CIRE é a que se manifesta em decisões divergentes que tenham por base situações de facto análogas ou equiparáveis, subsumíveis a um mesmo quadro normativo, e em que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso.

Ac. do STJ de 08.02.2022:

«A admissibilidade do recurso de revista, restrita e atípica, previsto no art. 14º, nº 1, do CIRE implica que o recorrente tem o ónus de demonstrar que a diversidade de julgados a que respeitam os acórdãos em confronto é consequência de uma interpretação divergente da mesma questão fundamental de direito na vigência da mesma legislação, conduzindo a que uma mesma incidência fáctico-jurídica tenha sido decidida em termos contrários.

As decisões dos acórdãos em confronto entendem-se como divergentes se se baseiam em situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo - tendo em vista os específicos interesses das partes em conflito - são análogas ou equiparáveis, pressupondo a oposição jurisprudencial (frontal e expressa, por regra) uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, sendo que, nesse contexto, a questão fundamental de direito (ou questões fundamentais) em que assenta(m) a alegada divergência sobre a aplicação de determinada solução legal assume(m) um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso».

Ac. do STJ. de 5-7-2022:

«As decisões dos acórdãos em confronto entendem-se como divergentes se se baseiam em situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em vista os específicos interesses das partes em conflito – são análogas ou equiparáveis, pressupondo a oposição jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, sendo que, a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência sobre a aplicação de determinada solução legal assume um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso».

Ac. do STJ. de 31.1.2023:

«Não se verifica a oposição de acórdãos exigida pelo art. 14.º, n.º 1, do CIRE, quando a concreta diferença de sentido decisório entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento assenta na existência de bases factuais tipologicamente distintas, e não na existência de alguma diversidade interpretativa de qualquer norma do CIRE».

Ora, colocados entre parâmetros, analisemos a situação concreta.

No acórdão recorrido quanto à problemática da ineptidão da petição inicial foi aludido o seguinte, no acórdão recorrido:

«Sustentou a apelante que o documento - escritura pública intitulada “confissão de dívida e hipoteca”, outorgada em 01/02/2008 - com base no qual a requerente, ora apelada, alicerça o seu alegado crédito sobre a mesma configura uma declaração de reconhecimento de dívida. Diz que tal documento não poderá traduzir uma declaração confessória extrajudicial nos termos do artigo 358º do Código Civil, uma vez que não faz uma alusão concreta aos factos constitutivos do alegado direito da requerente/recorrida, mas apenas uma referência vaga, genérica, imprecisa a uma “transmissão de direitos e valores” e a “cessões de participações sociais e empréstimos”. Concluiu que a recorrida incumpre o ónus de alegação e especificação da causa do seu alegado crédito, nos termos do artigo 458º do Código Civil, o que, além de impedir liminarmente que opere a presunção aí estabelecida, é processualmente cominado com a ineptidão da petição inicial, nos termos do artigo 186º nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil (ex vi artigo 17º do CIRE) – a qual deverá ser reconhecida por este Tribunal, com a consequente revogação da sentença recorrida.

A recorrida, na resposta ao recurso, invocou que a petição inicial não é inepta, como decidiu o tribunal a quo.

Compulsada a petição inicial, verifica-se que a requerente alegou ali que a mesma “(e os seus co-Exequentes) e a Requerida celebraram, a 1 de Fevereiro de 2008, uma escritura de confissão de dívida e hipoteca, mediante a qual esta e os seus sócios, BB e CC, se confessaram solidariamente devedores àqueles de um valor de € 1.800.000,00 (um milhão e oitocentos mil), decorrente da transmissão de quotas da sociedade Requerida – conforme Documento n.º 2, que anexa, e cujo teor se dá por reproduzido para os devidos efeitos legais”.

Invocou que o crédito se encontra garantido por hipoteca registada pela Ap. 31 de 20-02-2008 sob o prédio urbano descrito na ....ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ...59 da freguesia de ..., e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...47.º da união das freguesias de ... (...) e que nos termos da referida escritura, os valores em dívida seriam liquidados até 31 de Março de 2011.

Diz que a requerida e o demais co-devedores apenas liquidaram os valores que indica, encontrando-se, assim, em dívida a título de capital € 1.494.563,10 e que a mesma e os restantes credores instauraram uma execução contra a requerida, BB e CC, a qual corre termos junto do Juiz ... do Juízo de Execução de ... – Comarca de Lisboa Oeste, sob o número de processo 3524/12.3... e onde peticionaram o pagamento da quantia total de € 1.576.375,07, incluindo juros vencidos.

Foi ali deduzida oposição à execução pela requerida, a qual foi julgada improcedente.

A requerente não logrou obter qualquer ressarcimento do seu crédito e a Requerida não regista fluxo de caixa, nem compras ou vendas, não tem empregados, nem apresenta indícios suficientes de actividade comercial nas suas demonstrações financeiras.

O imóvel penhorado é o único bem da requerida e a sociedade comercial “I..., Lda.”, Credora Habilitada, requereu que o mesmo lhe fosse adjudicado pelo preço de € 1.300.000,00, o que foi deferido.

Invocou ainda que o crédito da Requerente e dos demais Exequentes perfaz, à data da instauração da acção, a quantia de € 2.570.894,21 e que é manifesta a impossibilidade de a requerida ressarcir os seus credores dos montantes em dívida.

A requerida contestou, invocando, desde logo, a ineptidão da petição inicial, excepção que, após resposta por parte da requerente, foi julgada improcedente pelo tribunal a quo.

Um credor, relativamente a devedor que considere em situação de insolvência, pode requerer em tribunal que o mesmo seja declarado insolvente desde que se verifique algum dos factos indícios de insolvência previstos pelo art. 20º, nº 1, do CIRE.

Mais prevê o art. 25º, nº 1, do CIRE que: “Quando o pedido não provenha do próprio devedor, o requerente da declaração de insolvência deve justificar na petição a origem, natureza e montante do seu crédito, ou a sua responsabilidade pelos créditos sobre a insolvência, consoante o caso, e oferecer com ela os elementos que possua relativamente ao activo e passivo do devedor”.

Conforme se refere no Ac. desta Relação de 06/09/2022, Acórdão esse proferido no Proc. nº 7673-21-9T8SNT-L1, relatora: Amélia Sofia Rebelo e subscrito pela ora relatora enquanto 1ª adjunta e ao que sabemos não publicado:

«Da conjugação dos arts. 20º, nº 1 e 25º, nº 1 resulta que, sendo a qualidade de credor um dos requisitos da legitimidade para o pedido de declaração de insolvência, a lei exige que na petição o requerente a justifique com a alegação da causa constitutiva, natureza e montante do seu crédito (legitimação ad causam); sendo o objeto imediato do processo especial de insolvência a obtenção de uma sentença judicial que declare a situação de insolvência - no que se consubstancia o pedido que por ela é deduzido, que ao tribunal cumpre apreciar e decidir e que, cfr. arts. 64º e 65º do CPC e art. 128º, nº 1, al. a) da LOSJ, determina a competência do juízo de comércio em razão da matéria -, a qualidade de credor do requerente constitui tão só pressuposto do prosseguimento da ação e, a final, condição da procedência do pedido de insolvência, atinente, respetivamente, com a legitimidade processual e com a legitimidade material do requerente para o pedido que, de acordo com o princípio da auto suficiência do processo de insolvência, cumpre apreciar e verificar, mas já não decidir. Com efeito, apurando-se no julgamento da causa que os pressupostos dos créditos do requerente não se verificam ou não comprovam, falece também o requisito primeiro para a decretação da insolvência, com a consequente absolvição do devedor do pedido (e já não da instância). Mas, na situação inversa, concluindo-se pela existência de parte ou da totalidade do crédito invocado, nesta fase do processo não cumpre declarar judicialmente a sua existência , mas apenas prosseguir com a apreciação dos pressupostos da situação de insolvência, posto que é esse o único objeto do processo de insolvência na sua fase declarativa inicial e que, conforme já referido, determina a competência material do juízo de comércio para a sua tramitação, que não é afetada ou prejudicada pela natureza, origem ou causa constitutiva do crédito, nem pela juízo que se faça quanto à viabilidade do mesmo.

(…)

Conforme resulta do proémio do art. 20º nº 1 do CIRE, a legitimidade ativa (ad substantium) do credor é condicionada pela verificação de certas situações - o credor tem legitimidade para requerer em juízo que o devedor seja declarado insolvente desde que, para além da justificação da qualidade de credor, invoque como fundamento da situação de insolvência algum dos factos previstos pelo art. 20º, nº 1 do CIRE que, conforme se referiu, para além da natureza de factos-índice e condição suficiente da declaração de insolvência (pelo valor de presunção de situação de insolvência que a lei lhes reconhece) , surgem como factos legitimadores do pedido de declaração de insolvência apresentado por credor . Conforme refere Soveral Martins, O art. 20.º, 1, do CIRE enumera um conjunto de factos cuja verificação deve ter lugar para que os sujeitos ali referidos possam requerer a declaração de insolvência do devedor. Não se trata, na verdade, de outras tantas situações de insolvência que devam ser somadas às previstas no art. 3.º, mas sim de meros requisitos de legitimidade e de «factos-índices» ou presuntivos da insolvência (…). O que bem se compreende pois, conforme refere Catarina Serra, “existem casos de incumprimento sem impossibilidade de cumprimento (o devedor não cumpre porque não quer ou porque discorda da exigibilidade da dívida). O que equivale a dizer que o (facto) incumprimento não se confunde com a (situação de) insolvência, e que nem sequer é indício da sua verificação.”

(…)

Com efeito, na discussão jurisprudencial sobre a questão ganhou terreno e consenso a posição que reconhece legitimidade ao credor titular de crédito que, no processo, se revele controvertido/litigioso. Nesse sentido, acórdão do STJ de 29.03.2012 que, conforme resumido por Soveral Martins , assentou essencialmente nos seguintes fundamentos: “o art. 20º, 1, não faz qualquer distinção; a legitimidade em causa é de natureza processual e o CPC, aplicável subsidiariamente, não exige, para se ter [essa] legitimidade, que se seja titular do direito; não há motivo para discriminar o titular de crédito litigioso em relação ao titular de crédito condicional; o juiz do processo não é passivo; pode afirmar-se um princípio da autossuficiência do processo de insolvência; o reconhecimento de legitimidade nos casos referidos evitará o benefício para o devedor que apresenta a sua contestação no processo declarativo só para ganhar tempo ; a legitimidade é processual e por isso não haverá necessariamente julgados contraditórios ; o requerente pode ser responsabilizado pela dedução de pedido infundado.

(…)”

Baseia-se o crédito invocado pela requerente numa confissão de dívida da requerida para com aquela (e outros), o que nos remete para a temática dos negócios unilaterais – que é o que uma confissão/reconhecimento de dívida é.

A confissão de dívida não apaga a regra segundo a qual quem se dirige a um tribunal, invocando um direito de crédito e exigindo a correspondente obrigação tem que alegar a fonte que dá origem a tal crédito/obrigação; não pode limitar-se a dizer, em termos abstractos, genéricos e indefinidos, que é credor do R./requerido num concreto montante e pedir que este seja condenado a pagar-lhe tal concreto montante ou, como é o caso, que seja declarado insolvente.

De acordo com o disposto no artigo 458º, nº1, do Código Civil, se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.

Mas não constando a causa de pedir (relação jurídica subjacente à declaração de dívida) da declaração/confissão de dívida, esta – a causa de pedir – tem que ser alegada na petição inicial.

In casu, alegou a requerente na petição inicial que o crédito que invoca decorre “da transmissão de quotas da sociedade Requerida” e da escritura consta que decorre “de transmissão de direitos e valores relacionadas com as cessões de participações sociais e empréstimos relativos à identificada sociedade”.

Não se pode, todavia, deixar de atender ao facto de o crédito ora invocado já o ter sido anteriormente na execução instaurada contra a requerida.

No requerimento executivo ali apresentado, os exequentes limitaram-se a alegar “são donos e legítimos portadores de uma Escritura de Confissão de Dívida e Hipoteca, celebrada em 1 de Fevereiro de 2008, que se junta e dá por integralmente reproduzida. (Doc. 1)

2. Nos termos da referida Escritura de Confissão de Dívida e Hipoteca, os executados confessaram-se solidariamente devedores dos exequentes das quantias abaixo discriminadas, que totalizam o valor global de € 1.800.000,00 (um milhão e oitocentos mil euros), decorrente de transmissão de direitos e valores relacionados com as cessões de participações sociais e empréstimos relativos à sociedade “Colégio Infanta D. Maria de Portugal, Lda”.

A ali executada, ora apelante, deduziu esta oposição na qual invocou que a dívida constante da escritura ali apresentada como título executivo e ora junta com a petição inicial não é sua, mas “tem origem na aquisição das quotas por parte dos outorgantes (CC e BB), agora igualmente executados, pelo valor de preço global de € 1.526.641,37 (um milhão quinhentos e vinte e seis mil seiscentos e quarenta e um Euros e trinta e sete cêntimos) … A executada sociedade Colégio Infanta D. Maria de Portugal, Lda., não comprou qualquer quota.

10º. Os executados BB e CC, subscreveram ainda no mesmo dia um outro contrato denominado “CONTRATO DE COMPRA E VENDA” (sic), pelo qual os agora exequentes venderam, pelo valor nominal contabilístico, as prestações suplementares de capital, efectuados à sociedade de que eram sócios à época (agora executada), no montante global de € 50.000,00 (cinquenta mil Euros) (cfr doc. 2).

11º. A executada sociedade Colégio Infanta D. Maria de Portugal, Lda., subscreveu também ela no mesmo dia, já representada pela nova sócia a executada CC, um documento denominado “Acordo de pagamento”, para o pagamento dos suprimentos efectuados a esta sociedade pelos então sócios agora exequentes (cfr doc. 3).

12º. Esta é pois a única dívida que a sociedade executada tem perante os então sócios da própria, agora também ela executada. Porém os credores desta obrigação, também exequentes na presente acção, não deram à execução este título executivo, consubstanciado no acordo subscrito.

13º.O documento, título que agora pretendem os exequentes executar, mormente o denominado “CONFISSÃO DE DÍVIDA E HIPOTECA” (sic), não corresponde à verdade dos factos. É uma simulação.”

Sustentaram que “15. Os vendedores das quotas (exequentes) e os compradores das mesmas (executados BB e CC), simularam que a sociedade cujas quotas foram transaccionadas, era devedora solidária destes, para poderem constituir uma garantia real sobre um bem imóvel de propriedade da sociedade. a nulidade do negócio jurídico por si” e que “esta simulação gera a nulidade do negócio jurídico «confissão de dívida e hipoteca», no que tange à pessoa jurídica ora executada denominado Colégio Infanta D. Maria de Portugal, Lda., quem deve são os sócios, ora executados BB e CC” e que 17. Nula a confissão da dívida, …, é nulo o negócio acessório de constituição de hipoteca sobre o imóvel de pertença da sociedade.”

Subsidiariamente invocaram que “jamais a constituição de uma hipoteca de uma sociedade a favor dos seus antigos sócios, para garantia do pagamento do valor das quotas adquiridas pelos novos sócios, pode ser entendido como efectuado no interesse da sociedade. Como é inegável, (cfr art. 6º nº 3 do Código das Sociedades Comerciais, conjugado com o art. 294.º do Código Civil …), concluindo que “assim com base no título agora dado à execução, não pode proceder penhora sobre o imóvel dado de garantia nos termos da lei.”.

A oposição à execução foi julgada improcedente, decisão esta que foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa e pelo Supremo Tribunal de Justiça, conforma certidão extraída dos autos e junta com a petição inicial da insolvência.

A decisão que julgue a oposição à execução improcedente não faz caso julgado da existência da obrigação ou das suas condições, ou seja e nas palavras de Rui Pinto, in A Ação Executiva, AAFDL, 2018, pág. 435: “i. e., não é prolatada uma simples apreciação positiva da obrigação, pela simples razão de que numa ação declarativa o julgamento de improcedência do pedido do autor, não equivale a um inverso julgamento com valor de caso julgado da situação material oposta”.

Ainda assim, não se pode deixar de colocar a questão de saber se, julgada improcedente oposição oposta a uma execução, o ali executado pode, em processo posterior vir invocar meios de defesa que podia ter invocado (e não invocou) na oposição que opôs à anterior execução.

E nesta questão concreta, não obstante não se desconheça a posição segundo a qual “Julgados improcedentes embargos opostos a uma execução, o ali executado pode, em processo posterior, vir invocar meios de defesa que podia ter invocado (e não invocou) nos embargos que opôs à anterior execução e, a partir daqui, obter a restituição do pagamento que, no âmbito da anterior execução, haja efetuado ao ali exequente” - cfr., entre outros, Ac. do STJ de 03/05/2023, Cons. Barateiro Martins, Proc. nº 1704/21.0T8GRD.C1.S1, o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt -, é nosso entendimento que in casu, seria muito estranho admitir que na oposição que deduziu na referida execução, na qual o invocado no requerimento executivo relativamente ao crédito era em tudo idêntico ao alegado nestes autos, a ali executada, ora requerida, nada tivesse alegado quanto à ineptidão daquele requerimento por falta de identificação da concreta relação jurídica subjacente à declaração de dívida e ora pudesse vir a alegar a ineptidão da petição inicial da acção de insolvência com fundamento na impossibilidade de, face à mesma, identificar os factos constitutivos do alegado direito da requerente/recorrida.

Como refere o Cons. Abrantes Geraldes in CPC Anotado, vol. II, Almedina, 2020 – Reimpressão, pág. 81 e 82: “Na verdade, embora a falta de dedução dos embargos não tenha qualquer efeito cominatório, determinando simplesmente que o processo de execução siga os seus termos normais para satisfação do direito emergente do título executivo, é legítimo afirmar que existe um ónus de embargos, o que, aliás, se compagina com a previsão de um prazo peremptório de 20 dias para o efeito, nos termos do artº 728º, nº1 e com o facto de apenas se admitirem posteriormente fundamentos que sejam objetiva e subjetivamente supervenientes, nos termos do nº 2.

(…) é de assinalar que as normas da ação executiva e especificadamente as que regulam os embargos de executado conferem ao executado a possibilidade de se defender amplamente, o que torna difícil sustentar que, depois de percorrida toda a tramitação empreendida pelo exequente para obter a satisfação do seu crédito configurado no título executivo, sob auspícios da autoridade judiciária e com todo o rol de garantias que as leis de processo conferem (defesa, contraditório, solenidade processual, legalidade e objetividade), ainda se admita a reabertura da discussão noutro plano diferenciado, conferindo ao executado a possibilidade de invocar fundamentos que não integrou nos embargos de executado que constituem o instrumento adequado e único para veicular qualquer dos meios de defesa contra a pretensão executiva e contra o cumprimento coercivo da obrigação exequenda”.

Neste mesmo sentido Rui Pinto, ob. cit, pág. 410: “(…) os dados legais que decorrem implicitamente do nº 2 do artigo 718º são de que, esgotada a oportunidade processual dada pelo nº 1, apenas se admite matéria superveniente, conquanto seja matéria dos artigos 729º a 731º e não outra: a contrario, não pode o opoente trazer factos, impugnações e exeções, perentórias e dilatórias, cuja alegação omitira”.

Atento tudo o que fica referido, não pode merecer acolhimento a excepção de ineptidão da petição inicial invocada pela requerida, ora embargante, com fundamento no facto na falta de identificação da concreta relação jurídica subjacente à declaração de dívida».

Compulsado o acórdão fundamento, constatamos que estamos perante questões jurídicas e factualidade completamente diversas.

Com efeito, naquele acórdão, como ali expressamente se refere, colocava-se a questão de caso julgado, mais exatamente, perante a questão de saber se, julgados improcedentes embargos opostos a uma execução, o ali executado pode, em processo posterior vir invocar meios de defesa que podia ter invocado e não invocou nos embargos que opôs à anterior execução e, a partir daqui obter a restituição do pagamento que, no âmbito da anterior execução, haja efetuado ao ali exequente.

Estava-se perante uma ação declarativa de condenação em que era peticionada a condenação da ré a reconhecer que prescreveram as prestações unitárias e globais periodicamente renováveis relativas ao pagamento da totalidade do capital associado ao contrato de abertura de crédito.

No caso vertente, estamos perante uma ação em que é peticionada a insolvência, com base na impossibilidade de cumprimento das obrigações.

A invocada ineptidão da petição, na situação dos autos, teve a ver com a posição deduzida na oposição, onde se sustentou que, o documento – escritura pública intitulada confissão de dívida e hipoteca, com base no qual se alicerça o crédito, não pode traduzir uma declaração confessória, nos termos do art. 358º do Código Civil.

Uma coisa são meios de defesa e outra a ineptidão.

Nos termos do disposto no nº. 2 do art. 186º do CPC., diz-se inepta a petição, quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir; quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir e quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis.

Ora, no acórdão fundamento não se discutiu qualquer vício de ineptidão, dizendo-se que «o resultado de um processo executivo não é imutável, que o desfecho da execução não surte eficácia fora do processo executivo, obstando a uma nova ação executiva, mas não impedindo a propositura, pelo executado, duma ação de restituição do indevido com um fundamento não discutido ou apreciado nos embargos opostos à ação executiva.

Na situação vertente, apreciou-se a factualidade dada como assente, culminando-se com a conclusão do preenchimento do facto-índice.

Da análise em confronto, do acórdão fundamento e do acórdão recorrido, não se evidência a existência de decisões divergentes, subsumíveis a um mesmo quadro normativo, nem assentes em idêntica situação factual».

O que se explanou supra, colmata qualquer dúvida, pois, a contradição de acórdãos foi apreciada criticamente, realçando-se que as questões são diferentes.

Nos presentes autos estamos perante um processo especial para declaração de insolvência, enquanto no acórdão fundamento estava em causa a verificação ou não de uma exceção de caso julgado, ou seja, saber se julgados improcedentes embargos opostos a uma execução, se poderia vir em processo posterior invocar meios de defesa que ali podia ter invocado e não invocou.

Com efeito, não estamos aqui perante qualquer processo executivo ou de embargos, mas perante a avaliação do objeto da ação, tal como foi configurado pela requerente.

Destarte, não se verificam os requisitos de admissibilidade do recurso à luz do art. 14º, nº. 1 do CIRE, não assistindo razão à recorrente.

Sumário:

- O art. l4.º do CIRE estabelece um regime específico de admissibilidade do recurso de revista, baseado na oposição de acórdãos, que afasta o regime geral da revista excecional, previsto no art. 672.º do CPC.

- A oposição relevante em termos de admissibilidade de recurso pressupõe que as situações versadas no acórdão fundamento e no acórdão recorrido, analisadas e confrontadas no plano factual ou material, sejam rigorosamente equiparáveis quanto ao seu núcleo essencial, que determine a aplicação em cada um do mesmo regime legal, de modo direto conflituantes, com soluções de direito opostas e como tal inconciliáveis e contraditórias.

- No acórdão fundamento não se discutiu qualquer vício de ineptidão, dizendo-se que «o resultado de um processo executivo não é imutável, que o desfecho da execução não surte eficácia fora do processo executivo, obstando a uma nova ação executiva, mas não impedindo a propositura, pelo executado, duma ação de restituição do indevido com um fundamento não discutido ou apreciado nos embargos opostos à ação executiva.

- Na situação vertente, apreciou-se a factualidade dada como assente, culminando-se com a conclusão do preenchimento do facto-índice de insolvência.

- Da análise em confronto, do acórdão fundamento e do acórdão recorrido, não se evidência a existência de decisões divergentes, subsumíveis a um mesmo quadro normativo, nem assentes em idêntica situação factual.

Decisão:

Pelo exposto, acorda-se em Conferência, indeferir a reclamação apresentada, mantendo-se a decisão singular.

Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em duas Ucs.

Notifique.

Lisboa, 11 de março de 2025

Maria do Rosário Gonçalves (Relatora)

Teresa Albuquerque

Cristina Coelho