OBRIGAÇÃO CAMBIÁRIA
DIREITO DE REGRESSO
LIVRANÇA EM BRANCO
AVAL
OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA
DEVEDOR
INCUMPRIMENTO
INTERPELAÇÃO
PAGAMENTO
Sumário


I - O direito de regresso é um direito de crédito de que passa a ser titular o devedor que no cumprimento de uma obrigação solidária satisfez, total ou parcialmente, o direito do credor para além da parte que lhe competia.
II - A declaração de aval aposta num documento de livrança emitida em branco constitui um pré-aval e dela não resulta qualquer obrigação cambiária.
III - Por isso, nas situações em que o credor, perante o vencimento e incumprimento da dívida subjacente a uma livrança assinada nessas condições, interpela os pré-avalistas para o pagamento e o obtém apenas de um deles, ocorrendo esse pagamento quando ainda não se mostrava preenchida a livrança em branco, não tem o pré-avalista que pagou direito de regresso sobre o(s) demais.
IV - Nestas circunstâncias, não sendo sido invocada na pretendida acção de regresso fonte negocial ou legal passível de sustentar o exercício do direito de regresso para lá da cambiária, a acção tem de improceder.

Texto Integral


RELATÓRIO

1.AA, intentou contra BB, acção declarativa com processo comum, pedindo a condenação do mesmo a pagar-lhe a quantia de € 74.738,70, acrescida de juros vencidos, à taxa legal, no montante de € 2.409,27 e dos juros vincendos, à taxa legal, até efectivo pagamento.

Alegou, em síntese, que na qualidade de avalista da sociedade Z..., Lda. e da qual é sócio juntamente com o R., procedeu ao pagamento de duas dívidas que a sociedade tinha para com a Caixa Geral de Depósitos, tendo desta forma evitado que esta instaurasse processo para a sua cobrança judicial. Apesar do R. também ser avalista das mesmas dívidas, sendo, por isso, solidariamente responsável, e respondendo segundo a sua quota na sociedade no valor peticionado, não obstante ter sido interpelado pelo A. para pagar, não efetuou o pagamento.

2. O Réu contestou, fazendo-o por exceção, invocando não ter sido constituída qualquer relação cartular, ter o A. agido com abuso de direito e com violação do princípio da boa fé, impugnando, no mais, os factos em que o A. se baseou para sustentar o pedido de condenação.

3. Na audiência prévia foi fixado em € 77.147,97 o valor da acção.

4. Realizado julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação procedente, condenando o R. a pagar ao A. a quantia de € 74.738,70, acrescida de juros moratórios vencidos desde o dia 04/12/2021 e vincendos até integral pagamento, calculados à taxa legal aplicável às obrigações civis.

5. Inconformado, o A. apelou, vindo o tribunal da Relação a julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida e, absolvendo o R. do pedido.

6- Inconformado o A. interpôs a presente revista, tendo concluído as respectivas alegações, nos seguintes termos:

1 - Pela aposição do aval nas livranças, o Recorrente e o Recorrido, na qualidade de coavalistas, assumiram a obrigação de pagar as quantias nelas tituladas, sendo responsáveis por tais pagamentos nos mesmos termos que a pessoa por eles afiançada;

2 – Como tal, ao subscreverem livranças em branco estamos perante tal título de crédito quando exista uma livrança na qual falte um ou até todos os requisitos do artigo 75º da LULL, mas onde existe a assinatura de uma pessoa que exprime a intenção de se obrigar cambiariamente ao subscrever um título com a designação explícita ou implícita de livrança;

3 - Perante a notória incapacidade para pagamento pela devedora originária, um dos co-avalistas procede ao pagamento, tal apenas ocorre por força da obrigação que surge da assinatura daquele título de crédito, sendo a partir desse momento que nasce o direito de regresso e não a partir do momento em que o credor preenche a livrança e acciona, sob pena de se deixar o cidadão diligente e zeloso do seu bom nome e património prejudicado de forma desproporcionada;

4 - A relação jurídica de garantia criada pelo aval (a relação, portanto, entre o avalista e o avalizado) extinguiu-se para todos os efeitos, pelo que exigir que o título cambiário deva ter sido preenchido para que o coavalista possa exercer o direito de regresso é suspender ou protelar no tempo os efeitos daquela extinção, é exigir algo que não faz sentido existir em face da extinção da relação jurídica fundamental.

5 – A obrigação de regresso do co-avalista não é uma obrigação cambiária, e a LULL limita-se a regular a responsabilidade do avalista perante os credores cambiários e o exercício do seu direito de reembolso contra o respetivo avalizado ou contra os demais obrigados na cadeia de responsáveis cambiários (cfr. art. 32º, último parágrafo e art. 47º aplicáveis à livrança, por força do disposto no art. 77º), mas não regula as relações internas entre os diversos avalistas do mesmo avalizado, nada prevendo, designadamente, quanto ao eventual exercício do direito de regresso entre eles.

6 - Na disciplina de tal matéria remetida para o direito comum no que concerne às relações internas entre os avalistas, inexistem motivos que afastem a aplicabilidade do regime previsto para as obrigações solidárias, isso traduzindo-se na admissibilidade do direito de regresso e na distribuição da responsabilidade segundo a presunção de que os diversos obrigados respondem em partes iguais na dívida;

7 - Tal concepção radica em princípios de justiça material e numa correcta repartição das responsabilidades, e considerar o contrário é aceitar o desequilíbrio patrimonial entre sujeitos que se colocaram, inicialmente, e, repete-se, não havendo nada entre si estabelecido em sentido contrário, perante os seus credores (cambiários) no mesmo plano de responsabilidade;

8 - Ao avalista que suportou o pagamento da quantia avalizada (ou em medida acima do que devia ter suportado) assiste o direito de regresso relativamente aos demais avalistas, vendo ser-lhe aplicada a solução prevista para as obrigações solidárias à semelhança do que se prevê para a pluralidade de fiadores, ainda que o credor não tenha preenchido a mesma.

9 - Os documentos de livrança em branco com apostas assinaturas de aval dos sócios são, acima de tudo, instrumentos de pressão, de índole compulsória, incidindo a mesma, em especial, sobre os sócios gerentes ou administradores.

10 - Sendo admissível, nos termos do art. 10º da LULL, a subscrição ou o aval numa livrança em branco com o pacto de preenchimento e tendo o avalista solvens, de harmonia com o disposto nos arts. 32º III e 49º, da LULL, um direito cambiário de regresso contra o avalizado, inexiste razão para negar prima facie um direito de regresso extra cambiário nos termos gerais em que é admitido (arts. 524º e 516º do Código Civil) contra os restantes avalistas, pois é isso que resulta do AUJ nº 7/2012, de 05.06.2012, publicado no Diário da República, 1ª Série, de 17.07.2012.

11 - O simples facto do Recorrente não ter procedido à junção da livrança preenchida, não constitui razão válida para se negar o direito de regresso ao avalista solvens que, tendo sido interpelado, nessa qualidade, pelo credor, em face da verificação do risco garantido (incumprimento do devedor principal), pagou voluntariamente, sem forçar o credor a recorrer à via judicial.

12 – Pelo que, a concepção seguida pelo Tribunal a quo desvirtua a lógica dos títulos cambiários em causa, levando na prática a dar-se primazia ao incumprimento, com manifesto prejuízo monetário para os avalistas, que além da obrigação que já sabiam estar vencida e que o devedor originário não tinha condições para pagar, ainda terão de suportar os juros e as despesas daí decorrentes, o que podiam evitar se pagassem a quantia em causa, o que viola o princípio da proporcionalidade tal como anteriormente descrito.

13 - Além de que se cria um formalismo (preenchimento do título), sem que tal decorra da lei aplicável, que apenas poderia ser cumprido pelo portador da livrança (in casu, pela CGD), que nenhum interesse tinha nisso por já ter recebido o seu crédito.

14 - A LULL não regula as relações entre os co-avalistas, remetendo a aplicação do direito comum, e o artigo 524º do Código Civil estabelece que “O devedor que satisfizer o direito do credor além da parte que lhe competir tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete.”

15 - Ao limitar o recurso a tal direito apenas após o preenchimento da livrança pelo credor, ainda que as partes saibam que tal circunstância é inevitável, a não ser que alguém proceda ao pagamento, é restringir o campo de aplicação de tal normativo sem justificação razoável e de forma desproporcional, com graves prejuízo para o bom e regular cumprimento das obrigações.

16 - O Recorrente de boa fé pagou, e agora vê-se dificultado de ser ressarcido na quota parte que excedeu a sua responsabilidade.

17 -Pelo que, a solução que melhor harmoniza os interesses em jogo e confere utilidade à livrança, de forma a evitar acções executivas e o rápido ressarcimento das obrigações cambiárias é precisamente a oposta à que foi aplicada pelo Tribunal a quo.

18 – Entendendo ser violadora do principio da igualdade e da proporcionalidade a interpretação segundo a qual “A livrança em branco, isto é, sem que tenha sido totalmente preenchida aquando da sua subscrição e prestação do aval, será válida enquanto tal, não é eficaz para efeitos de direito de regresso entre os avalistas, por se aplicar a estes a lógica de que a livrança não pode produzir efeitos enquanto título de natureza cambiária sem que nela constem os elementos essenciais previstos no artigo 75.º , n.ºs 1 a 7, da LULL (sem prejuízo do disposto no artigo 76.º da LULL). Apesar do pagamento pelo Co-avalista, e ainda que o tenha feito na qualidade de avalista, não tendo as livranças sido preenchidas com os elementos essenciais previstos na lei, o Autor não tem direito de regresso contra o coavalista”.

19 – Considerando-se a mesma inconstitucional por violar os princípios da igualdade e da proporcionalidade, dado que apenas o avalista que fique à espera do preenchimento e execução dos referidos títulos de crédito é que poderá exercer tal direito contra os demais co-avalistas, levando a lei a dar primazia ao incumprimento e a condutas não eivadas de boa fé.

20 - O cidadão, co-avalista, diligente e que queira agir de boa fé, sabendo que o devedor originário não tem bens penhoráveis nem capacidade para liquidar a obrigação, se não “esperar para ver” o seu património coercivamente afetado, com o preenchimento da livrança e subsequente execução, perde o direito de regresso, interpretação essa que coloca em crise o princípio da igualdade e da proporcionalidade.

21 – O Co-avalista diligente e que pretende salvaguardar o seu nome e património, que não fica a aguardar o preenchimento da livrança e as consequências nefastas de tal preenchimento, vê ser arredado a aplicação do disposto no artigo 524º do Código Civil, e o co-avalista que protele o incumprimento, vê esse direito garantido.

22 – Tal lógica é totalmente oposta ao ideal de justiça material.

23 - Ou seja, de acordo com tal entendimento, é preferível não cumprir as obrigações que decorrem de tais títulos de crédito, colocar-se numa situação ainda mais desfavorável e sem possibilidade de negociação, para não perder o direito de regresso contra os demais co-avalistas, que têm pleno conhecimento da existência da dívida e da incapacidade do devedor principal para a liquidação, tal como sucede no caso concreto.

24 – Mostrando-se tal interpretação violadora do princípio da igualdade, na medida em que cria uma desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável, e violadora do principio da proporcionalidade porquanto a solução adoptada não se mostra apropriadas e proporcional ao fim que se pretende alcançar, pelo contrário, se com os títulos de crédito se pretende dar segurança nas transacções comerciais, com esta interpretação privilegia-se o incumprimento das obrigações assumidas.

25 - Há ainda que ter em conta que no caso de uma livrança em branco garantida por um avalista, quando se comprova que o mesmo subscreveu a livrança ciente dos riscos e obrigações, ele pode ser responsabilizado pelo pagamento do crédito, mesmo que o banco não tenha preenchido a livrança, dado que a assinatura do avalista é interpretada como uma aceitação dos riscos assumidos, e encontra sustentação na teoria da autonomia do aval, na qual a obrigação do avalista é independente das condições da livrança principal.

26 - Devendo o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora ser revogado e substituído por outro que mantenha a sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância, mostrando-se violado o disposto nos artigos 13º CRP, 18º, nº 2 e 20º da CRP; 524º e 762º do Código Civil e artigos 32º, 47º e 75º da LULL.

7-O Recorrido ofereceu contra-alegações em que pugnou pela manutenção do decidido.

II - Recorribilidade da decisão recorrida

Presentes que estão os requisitos gerais de recorribilidade, entre eles, o do valor da acção e o da sucumbência, e não se verificando conformidade decisória relativamente ao decidido nas instâncias, a decisão recorrida mostra-se recorrível.

III - Objecto do Recurso

Constituem questões a decidir, saber se o exercício do direito de regresso pelo coavalista de uma livrança em branco está ou não condicionado ao preenchimento desse título de crédito, e se o entendimento de que o está, viola os princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade.

IV - Fundamentação de facto

1. O autor e o réu são sócios da sociedade por quotas Z..., Lda., com sede na Avenida ..., ..., com o NIPC ...65.

2. A sociedade tem o capital social de € 100.000,00 e tem como objecto o comércio a retalho de veículos automóveis, peças e acessórios e oficina de reparação de veículos e desenvolvimento de actividade de intermediação de crédito.

3. O autor detém três quotas, nos valores de € 50.000,00, € 8.313,71 e € 8.313,71, num total de capital social de € 66.666,67.

4. O réu detém uma quota no valor de € 33.333,33.

5. São, actualmente, gerentes dessa sociedade o autor e CC, este último desde 30 de Março de 2021.

6. Antes dessa data, eram sócios e gerentes o autor e o réu.

7. A sociedade Z..., Lda. obriga-se com a assinatura de dois gerentes.

8. Para o exercício das actividades societárias foi outorgado, em 2 de Junho de 2015, com a Caixa Geral de Depósitos um contrato de abertura de crédito em conta corrente (de utilização simples) até ao máximo de € 150.000,00.

9. Em 12 de Março de 2018, a sociedade Z..., Lda. celebrou com a Caixa Geral de Depósitos outro de contrato de abertura de crédito em conta corrente (de utilização simples) até ao máximo de € 75.000,00.

10. O prazo do primeiro contrato foi, inicialmente, de seis meses, tendo sido prorrogado por iguais e sucessivos períodos.

11. O segundo contrato foi celebrado pelo prazo de três anos.

12. Os créditos em causa destinavam-se exclusivamente ao financiamento da tesouraria da firma Z..., Lda..

13. O autor e o réu subscreveram os mencionados contratos na qualidade de sócios e legais representantes da mesma sociedade

14. Para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades perante a Caixa Geral de Depósitos, a sociedade Z..., Lda. subscreveu uma livrança com montante e vencimento em branco, que entregou àquela.

15. No verso da livrança o autor e o réu apuseram as respectivas assinaturas após os dizeres “Dou o meu aval à firma subscritora”.

16. A sociedade Z..., Lda., na qualidade de subscritora, e o autor e o réu, na qualidade de avalistas, autorizaram a Caixa Geral de Depósitos a preencher a livrança nos termos da cláusula 23.ª dos contratos.

17. Em 18 de Março de 2021, o autor transferiu a quantia de € 75.000,00 da conta bancária aberta na CGD com o n.º ...30 para a conta bancária com o IBAN ...38.

18. Em relação ao que o réu foi previamente informado, não tendo manifestado disponibilidade para pagar qualquer quantia a esse respeito.

19. O primeiro contrato foi denunciado pela Caixa Geral de Depósitos, por carta remetida à Z..., Lda., datada de 10 de Maio de 2021 e com o seguinte teor:

“Assunto: Contrato de Abertura de Crédito em conta-corrente ...97 celebrado em 02/06/2015.

Exmos. Senhores

Ao abrigo no disposto na cláusula 6.2, vimos por este meio denunciar o contrato identificado em epígrafe, produzindo-se os efeitos desta denúncia a partir 18/06/2021, data em que cessará definitivamente o direito de utilização do crédito concedido, devendo V. Exas., até essa data, liquidar a dívida da V/responsabilidade - relativo a capital, juros remuneratórios (e moratórios), comissões e, ainda, despesas e encargos, incluindo fiscais -, que venha a ser apurada e comunicada pela Caixa Geral de Depósitos, S.A.

Mais informamos que nesta data demos conhecimento da presente carta aos garantes pessoais da operação.”

20. Na mesma data a Caixa Geral de Depósitos remeteu uma carta ao autor com o seguinte teor: “Assunto: Contrato de Abertura de Crédito em conta-corrente n° ...92 até ao valor de € 50.000,00 celebrado em 02/06/2015.

Exmo. Senhor

Vimos pela presente dar conhecimento a V. Exa., enquanto garante pessoal da operação acima identificada, de que procedemos à denúncia do respetivo contrato, nos termos da carta que aqui anexamos.

Assim, e como da mesma resulta, tal denúncia produzirá efeitos a partir do dia 18/06/2021, devendo até lá ser liquidadas todas as responsabilidades decorrentes de tal financiamento, que, para o efeito, venham a ser apuradas e comunicadas por esta instituição.”

21. O réu foi notificado, nos mesmos termos, pela Caixa Geral de Depósitos.

22. A denúncia produziu os seus efeitos após 18 de Junho de 2021.

23. No dia 18 de Junho de 2021, o autor entregou, em mão, uma carta junto da Caixa Geral de Depósitos com o seguinte teor:

“Na sequência do pedido de pagamento do contrato de abertura de crédito em conta corrente n° ...97, em nome da Z..., Lda., e com o aval pessoal dos sócios AA e BB, venho informar V. Exas, que a minha cota pessoal perfaz o total de 66,666% do capital social, sendo os restantes 33.333% pertencentes ao outro sócio.

A responsabilidade da Z..., Lda., junto da Caixa a 18 de Março de 2021 era de 75.000€ + 150.000€, no total de 225.000€. O empréstimo de 75.000€, foi liquidado no dia do vencimento com transferência da minha conta pessoal para a conta da Z..., Lda.. Os restantes 150.000€ com vencimento em 18/06/2021deverão ser pagos por ambos os sócios em partes iguais, já que a empresa Z..., Lda. não se encontra com fundos monetários para o fazer, venho por este meio informar V. Exas. que me responsabilizo pelo pagamento de 75.000€, mediante condições a combinar.

Com este pagamento de 75.000€ e o efectuado em 18/03 do mesmo montante, perfaz pela minha parte o montante de 150.000€ ou seja 2/3 do total de 225.000€.

Esse valor por mim pago corresponde à responsabilidade da minha cota na empresa Z..., Lda. e portanto da minha responsabilidade na mesma.”

24. A Caixa Geral de Depósitos não aceitou a proposta apresentada pelo autor, exigindo o pagamento da dívida pela totalidade.

25. Por carta de 15 de Julho de 2021, a sociedade Z..., Lda. foi informada da situação de incumprimento e da remessa do processo para o Pólo Negocial de Empresas de ....

26. Com a data de 20 de Julho de 2021, a sociedade Z..., Lda. recebeu um segundo aviso de incumprimento, no qual se dava nota de que o capital vencido e comissões ascendia a € 149.554,85 e que já se encontrava com 32 dias de incumprimento.

27. Com data de 15 de Julho de 2021, e sujeito ao assunto “Situação de Incumprimento”, a Caixa Geral de Depósitos enviou ao autor uma carta com a referência DAP UAP – PNE ... ...4/21 e com o seguinte teor:

“Exmo. Senhor

Informamos que os processos relativos a responsabilidades de crédito da empresa Z..., Lda., junto da Caixa Geral de Depósitos, face aos atrasos verificados, com valor global em dívida nesta data de 149.939,06 €, foram afetos à DAP Polo Negocial de Empresas de ....

Por este facto e na qualidade de fiador/avalista nas referidas operações, informamos que a partir de agora deverão tratar todos os assuntos com DD, colocado nesta Direção, através do tel. ...96; ...

Caso não se mostre liquidada a situação de atraso nos próximos 8 dias, e até não se perspetive uma solução com vista à sua total regularização, ver-nos-emos forçados ao envio dos processos para cobrança coerciva.

Ficamos, contudo, a aguardar a posição de V. Exa. de modo a evitar a solução descrita.”

28. Igual carta foi remetida ao réu.

29. Com a data de 24 de Agosto de 2021, a Caixa Geral de Depósitos remeteu à sociedade Z..., Lda. uma carta com o seguinte teor:

“Assunto: cobrança de crédito por via judicial

Conta Corrente PT ...92— Incumprimento: 150.773,07€ D. O. PT ...30— Incumprimento: 14,63 Montante Total em incumprimento: 150.787,63 Total responsabilidades: 150.787,63€

Ex. mos. Senhores

Atendendo a todas as ações anteriormente desenvolvidas, no sentido de se recuperar a dívida extra judicialmente, se mostraram infrutíferas, informamos V. Exas. que a Caixa Geral de Depósitos irá proceder à cobrança, através de ação judicial das importâncias que lhe são devidas por essa empresa, que se encontram vencidas por incumprimento de cláusulas contratuais, correspondente a capital, juros remuneratórios, juros compensatórios, impostos e outros encargos vencidos, a que acresce a respetiva mora diária. Neste sentido, e de forma a podermos evitar a situação descrita, poderão V. Exas., num prazo máximo de 08 (oito) dias, pagar a dívida em qualquer Agência da CGD, depositando o montante acima indicado na conta de depósito à ordem ...30, associada às operações em assunto.

Terminado o prazo referido, o crédito transitará para cobrança coerciva.”

30. Com a data de 14 de Setembro de 2021, foi recebida pela Z..., Lda. uma carta da Mandatária da CGD concedendo um prazo de quinze dias para saldar a dívida, sob pena de recurso à via judicial.

31. Em 30 de Agosto de 2021, já com o incumprimento declarado por parte da Caixa Geral de Depósitos, o autor remeteu ao réu um e-mail, em resposta a um outro enviado por este, tendo o réu respondido por e-mail de 1 de Setembro de 2021, que constam dos documentos n.ºs 28 e 29 juntos com a petição inicial e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

32. O autor realizou três transferências bancárias da sua conta pessoal no Banco Santander Totta com o IBAN ...79 para a conta da Caixa Geral de Depósitos com o IBAN ...65, nas seguintes datas e valores:

- Em 4 de Novembro de 2021, € 100.000,00;

- Em 15 de Novembro de 2021, € 25.000,00;

- Em 17 de Novembro de 2021, € 24.216,10.

33. A Caixa Geral de Depósitos emitiu a declaração constante do documento n.º 27 junto com a petição inicial, datada de 22 de Novembro 2021, na qual se pode ler, além do mais, o seguinte:

“A Caixa Geral de Depósitos (…) declara, para os devidos e legais efeitos, que recebeu do Sr. AA (…) a importância global de 149.216,10€ (...). Mais declara que o correspondente pagamento foi efetuado na qualidade de avalista e principal pagador do Emp°. n° PT ...92, mutuado por Z..., Lda. (…) e em resultado de tal pagamento a operação resultou liquidada.”

34. A Caixa Geral de Depósitos não preencheu as livranças assinadas em branco pelo autor e pelo réu.

35. O autor realizou as transferências referidas nos n.ºs 17 e 32 na qualidade de avalista da sociedade Z..., Lda. e com a intenção de evitar a instauração contra si, por parte da Caixa Geral de Depósitos, de processos de cobrança dos créditos.

36. O autor procurou obter do réu a parte que cabia a este na qualidade de avalista, tendo-o abordado por diversas vezes, pessoal e telefonicamente, sobre esta questão.

37. O réu recusou suportar a sua parte invocando não ter condições económicas para o fazer.

38. Por email de 26 de Novembro de 2021, o autor, aí representado pelo seu Advogado, interpelou o réu para proceder ao pagamento da quantia de € 74.738,703 até ao dia 3 de Dezembro de 2021.

39. A sociedade Z..., Lda. encontrava-se sem oficinas a funcionar desde 31 de Dezembro de 2020.

40. Em dia não concretamente apurado do mês de Outubro de 2020, no âmbito de um processo de despedimento colectivo, foram entregues aos trabalhadores da sociedade Z..., Lda. comunicações com a intenção da sociedade em proceder à resolução e cessação dos contratos de trabalho.

41. Tais cartas foram subscritas pelos então gerentes da sociedade, o autor e o réu, acabando a oficina por ser encerrada no final do ano de 2020.

Não se verificou a existência de factos não provados.

V -Fundamentação de direito

Evidenciou-se como núcleo do objecto do recurso, saber se o exercício do direito de regresso pelo coavalista de uma livrança em branco está ou não dependente do preenchimento desse título de crédito.

Numa formulação mais particularizada da mesma questão, há que saber se nas situações em que o credor, perante o vencimento e incumprimento da dívida subjacente, interpela ambos os avalistas para o pagamento e o obtém apenas de um deles, mas, em momento em que ainda não se mostra preenchida a livrança em branco, existe direito de regresso desse avalista em relação ao seu coavalista.

O Recorrente, respondendo afirmativamente a esta questão – por isso, interpôs a presente acção – fê-lo, no essencial, no pressuposto da irrelevância para a existência do pretendido direito de regresso de se estar ou não na presença de co-avales em livrança em branco, entendendo que essa situação se equivale à presente no AUJ 7/2012 de 5/6/2012 (publicado no DR I Serie, de 17/7/2012) - no qual se uniformizou jurisprudência no sentido de, Sem embargo de convenção em contrário, há direito de regresso entre os avalistas do mesmo avalizado numa livrança, o qual segue o regime previsto para as obrigações solidárias – em que estava pressuposta uma livrança completamente preenchida aquando da prestação dos avales.

Foi também em função deste pressuposto - da irrelevância do preenchimento total da livrança dada em garantia - de que igualmente partiu a decisão da 1ª instância, cuja argumentação, aliás, e no seu essencial, o aqui Recorrente replica.

Assim, dizendo-se na sentença, que a qualidade de avalista é logo adquirida mesmo em caso de aval prestado em titulo cambiário em branco, o Recorrente refere, na conclusão 1ª e 2ª, que, «Pela aposição do aval numa livrança em branco - livrança na qual falte um ou até todos os requisitos do artigo 75º da LULL, mas onde existe a assinatura de uma pessoa que exprime a intenção de se obrigar cambiariamente ao subscrever um título com a designação explícita ou implícita de livrança - o Recorrente e o Recorrido, na qualidade de coavalistas, assumiram a obrigação de pagar as quantias nelas tituladas.

Dizendo-se na sentença que o exercício do direito de regresso pelo coavalista não está condicionado ao preenchimento do titulo de crédito, que seria um requisito “impossível” nos casos de extinção, pelo cumprimento, da relação jurídica subjacente e que oneraria de forma injusta o avalista que cumpriu o seu dever, diz o aqui Recorrente nas conclusões 3ª e 4ª, que é a partir do momento em que um dos co-avalistas procede ao pagamento, que nasce o direito de regresso e não a partir do momento em que o credor preenche a livrança e a acciona», mais referindo que a relação jurídica de garantia criada pelo aval (a relação, portanto, entre o avalista e o avalizado) extinguiu-se para todos os efeitos, em face da extinção da relação jurídica fundamental e o que subsiste (conclusão 10ª) é um direito de regresso extra cambiário nos termos gerais em que é admitido (arts. 524º e 516º do Código Civil) contra os restantes avalistas, pois é isso que resulta do AUJ nº 7/2012, de 05.06.2012, publicado no Diário da República, 1ª Série, de 17.07.2012.

Afirmações estas não correctas, como se passará a explicitar.

Importa, obviamente, tornar claro que livrança completa avalizada e livrança avalizada em branco constituem realidades jurídicas diversas, não apenas no que directamente respeita à vinculação imediata ou não do(s) (co)avalista(s), mas, natural e antecedentemente, no que respeita à vinculação do respectivo subscritor, como recentemente foi proficuamente evidenciado no AUJ de 20/11/2024 (em que se uniformizou jurisprudência no sentido de A vinculação para aval prestado em livrança em branco e, desde que assumida sem prazo ou por prazo renovável, decorrido o prazo inicial, é susceptível de denúncia, pelo vinculado para aval que tenha deixado de ser sócio ou sócio gerente da avalizada, até ao preenchimento do titulo), e a cujo texto aqui se recorrerá para evidenciar essa diferença.

Assim, no sentido de que a livrança em branco não vale como livrança, sujeita ao regime da LU, antes do preenchimento regular do título, cita-se, nesse aresto, a seguinte doutrina (alguma referente directamente à letra em branco, mas aplicável à livrança em branco, por via do disposto no art 77º/II da LU e do seu art 10º, onde implicitamente se admite a letra em branco):

Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, III, p. 134

“[...] não há qualquer contradição entre os preceitos dos artigos 1.º e 2.º e o do art. 10.º De acordo com os artigos 1.º e 2.º, não pode produzir efeitos como letra o escrito a que falte qualquer dos requisitos apontados na lei como essenciais. Simplesmente, nenhum destes textos determina o momento em que a letra deve apresentar-se integrada por todos os seus elementos essenciais. Esta questão é resolvida pelo art. 10.º, por ele ficamos a saber que, para tal efeito, o momento decisivo não é o da emissão da letra, mas sim o do vencimento”. E ainda: “[...] pode, deste modo, uma letra ser emitida em branco; é óbvio, porém, que a obrigação que incorpora só poderá efetivar-se desde que no momento do vencimento o título se encontre preenchido. Se o preenchimento se não fizer antes do vencimento, então o escrito não produzirá efeito como letra, de harmonia com os arts. 1.º e 2.º”.

Oliveira Ascensão, Direito Comercial, III, Títulos de Crédito, pág. 115/7:

“A letra em branco continua a não produzir efeitos como letra”: a letra “só surge como título cambiário com o preenchimento”.

Evaristo Mendes, Aval prestado por sócios de sociedades por quotas e anónimas e perda da qualidade de sócio, pág. 2/3:

A declaração de aval aposta por um sócio num documento de livrança emitido em branco pela sociedade a que pertence não é juridicamente um aval, mas um pré-aval, donde decorre uma vinculação jurídica preliminar, pré-cambiária, cartularmente incompleta, estando naturalmente sujeita a regras diferentes das que regem o aval cambiário.”

Esclarece-se, no entanto, no dito AUJ, que se está a acompanhar, que, como é evidente, subscrever uma letra ou livrança em branco e entregá-la assim subscrita a alguém, não constituirá um ato desprovido de efeitos e vínculos jurídicos: o subscritor em branco fica sujeito/exposto à produção de uma consequência - a constituição da obrigação cambiária - na sua esfera jurídica por mero efeito do preenchimento do título assinado em branco, ou seja, com a entrega duma livrança em branco ao credor, os que a subscreveram ficam sujeitos a que o credor preencha o documento, passando a produzir efeitos como título de crédito, ganhando, então, as vinculações - do emitente e do avalista - a natureza de vinculações cambiárias, mas, é o que importa acentuar, antes de tal preenchimento, as situações jurídicas decorrentes da subscrição em branco não são ainda cambiárias (e pode mesmo acontecer que nunca o venham a ser, como sucede no caso do título vir a ser devolvido em razão do cumprimento do contrato subjacente à obrigação do emitente).

Prosseguindo o acórdão em causa, do seguinte modo:

Daí que seja referido por J. G. Pinto Coelho (das Letras I, pág. 121) que “a emissão ou a assinatura dum título em branco determinam, pois, para o signatário um vínculo jurídico, mas não propriamente a constituição desde logo da obrigação cambiária”; referindo, em idêntico sentido, Paulo Sendim (Letra de Câmbio, I, pág. 234) que “a letra em branco, porque é incompleta, está em formação para vir, sendo preenchida, a tornar-se letra”; e, ainda no mesmo sentido, refere Carolina Cunha (Letras e Livranças, Paradigmas atuais e recompreensão de um regime, pág. 637; e Aval e Insolvência, pág. 21) que a subscrição e entrega do título em branco “representam, metaforicamente, o embrião da vinculação cambiária, isto é, constituem a primeira etapa de uma fattispecie completa que, uma vez reunidos todos os elementos, desembocará na constituição da obrigação cambiária.”

Aí se concluindo, que o “aval” prestado numa livrança em branco - mais exatamente, não é demais repeti-lo, a “vinculação para aval”, a assinatura aposta em título em branco e que se destina a valer como aval cambiário uma vez preenchido o título - não é ainda um verdadeiro aval (e uma obrigação cambiária) e por isso não pode estar sujeito à mesma disciplina dum aval aposto num título completo, pelo que, como mais adiante se salienta, antes de preenchida a letra/livrança, o “aval” (o “saque”, o “aceite”, o “endosso”, a “emissão da livrança”) não existe enquanto negócio jurídico cambiário, existindo “apenas” a vinculação cambiária em estado embrionário (através da assinatura aposta na letra/livrança) e a vinculação jurídica constante do essencial acordo/pacto de preenchimento a que alude o art. 10.º da LU e o inerente poder fáctico de o portador da letra/livrança a poder vir a preencher», tornando-se evidente «que, sendo a vinculação do avalista em branco pré-cambiária - o título só se forma com o preenchimento do documento com os seus elementos essenciais, só aí surgindo as obrigações cambiárias.

Sendo sintomáticas as muitas designações utilizadas nesse acórdão para exprimir a realidade da declaração de aval aposta num titulo cambiário em branco - além de aval em branco, subscrição para aval, vinculação para aval, pré-aval, subscrição com vista a aval … - tudo expressões bem claras no sentido de que a vinculação do avalista em branco é pré-cambiária.

Ora, é no âmbito da subscrição como co-avalista em livrança em branco e que não chegou a ser preenchida relativamente ao montante e ao vencimento, porque, antes disso, pagou a totalidade da divida ao banco - divida esta, resultante da relação jurídica subjacente ao titulo pré cambiário em causa e para cuja garantia a mesma foi entregue - que o A./Recorrente coloca a existência de direito de regresso, ainda que extra cambiário, como refere, relativamente ao R.

Como é sabido, a subscrição e entrega de livrança em branco está generalizada para exercer funções de garantia pressupondo-se, para esse efeito, que o credor e portador originário deve manter nas suas mãos o titulo nessas condições, que apenas preencherá, de acordo com o pacto de preenchimento firmado com o devedor, no caso de incumprimento da obrigação que lhe subjaz. As livranças em branco estão tipicamente associadas a contratos de concessão de crédito ou de risco e cumprem em geral uma função de garantia e melhoria da posição processual do financiador destinatário, não se destinando a circular, como o evidencia Evaristo Mendes, Letra de Câmbio e Direito Comercial centrado na Empresa. O Legado de Paulo Sendin», in Estudos em Memória do Prof. Doutor Paulo M. Sendin, Lisboa (UCE) 2012.

Ao contrário do que o pretende o Recorrente, não se mostra configurável, nas relações entre ele e o R. enquanto meros pré-avalistas, qualquer direito de regresso, ainda que ele, unilateralmente, e sem que a livrança se mostrasse preenchida, tenha efectivamente extinto a relação jurídica creditícia que motivou a constituição desses pré-avales.

O direito de regresso é um direito de crédito (direito de exigir de outrem a realização de uma prestação), de que passa a ser titular o devedor que no cumprimento de uma obrigação solidária satisfez, total ou parcialmente, o direito do credor para além da parte que lhe competia. Pressupõe, pois, a acção de regresso, o direito de haver de outrem importância despendida ou paga no cumprimento de obrigação cuja responsabilidade directa e principal pertencia também a esse outrem.

È o que resulta do art 524º CC, integrado na matéria referente à solidariedade entre devedores, onde se estatui, sob a epigrafe “Direito de regresso”, que o devedor que satisfizer o direito do credor além da parte que lhe competir tem direito de regresso contra cada um dos condevedores, na parte que a estes compete.

E, sem dúvida que o aqui A. teria direito de regresso sobre o R. se a livrança que avalizaram em branco tivesse chegado a ser totalmente preenchida, realidade essa a que se ateve o atrás mencionado AUJ 7/2012 de 5/6/2012.

Não o tendo sido, não chegou a existir um titulo de crédito a sustentar a relação de co-aval, como se refere no Ac STJ de 30 /4/2015, Proc 2430/11.3.TVLSB.L1.S1. É que, pressuposto necessário do exercício do direito de regresso entre co-avalistas é a existência e a eficácia do título de crédito que sustenta a relação de aval ou de co-aval. Mais, aí, se referindo, perante realidade fáctica semelhante à dos presentes autos, que a ineficácia da livrança em branco enquanto titulo de crédito, repercute-se em todas as relações cambiárias que em abstracto da mesma podem emergir, com inclusão da relação de aval ou de co-aval - no mesmo sentido, Ac. do STJ 01/07/2003, Proc 03A1943 que aí se cita, Ac STJ 24/5/2018, Proc 4175/16.9T8PRT.P1.S1; Ac STJ 31/3/2022 Proc 1345/19.1T8ALM.L1.S1, Ac 25/05/2017 Proc 3958/07.5VLSB.L2.S1, Ac R P 7/6/2021 Proc 541/16.8T8PVZ.P1, Ac R G 10/10/2019, Proc 934/18.6T8UCT.G1 – mais se salientando que a verificação desses requisitos formais revela-se tanto mais necessária quanto é certo que qualquer uma dessas relações cambiárias (com destaque para o aval) é pautada pela autonomia, abstracção e literalidade.

Por outro lado, nem por isso, como o parece pretender o aqui Recorrente, para fugir à realidade cambiária, se poderia entender que tendo ele pago ao banco a totalidade da divida da Z..., Lda. e, por assim ser, tendo extinto a relação jurídica creditícia que dera origem à livrança em branco, passou a ter direito de regresso (extra-cambiário, como refere) sobre o R., pois que, este direito, pressuporia que ambos os RR. estivessem obrigados, por outro título, a pagar essa divida, o que não resulta da factualidade de que dispomos, pois nem sequer nenhum deles era devedor ao banco, mas apenas a sociedade Z..., Lda..

Como se refere no acima citado Ac STJ de 30 /4/2015 (de que foi relator o mesmo Juiz que o foi no AUJ 7/2012), a única causa de pedir da presente acção é sustentada na alegação e reconhecimento do direito de regresso entre co-avalistas. Para sustentar o direito de regresso seria imprescindível a existência ou ao menos a eficácia de uma tal vinculação de génese cambiária, não sendo legítimo sequer apelar a qualquer relação substancial, tanto mais que nem sequer foi invocada qualquer outra fonte negocial ou legal com relevo para sustentar o exercício do direito de regresso.

Impondo-se, assim, concluir, como se concluiu sesse acórdão: O facto de o A. ter efectuado o pagamento da quantia contra-garantida pela referida livrança logo que foi confrontado com a solicitação do Banco não supera a necessidade do seu preenchimento para efeitos de ser exercido o direito de regresso relativamente ao R. coavalista.

Nem diga o A., aqui Recorrente, que este entendimento viola o princípio da igualdade, na medida em que sem qualquer fundamento razoável cria desigualdades de tratamento, e viola o principio da proporcionalidade por a solução adoptada não se mostrar apropriada e proporcional ao fim que se pretende alcançar ao privilegiar o incumprimento das obrigações, ao invés de, como é suposto que suceda com os títulos de crédito, fomentar a segurança nas transacções comerciais.

È que, na verdade, como se pensa ter evidenciado, é materialmente fundada a diferença de tratamento entre co-avalistas de livrança totalmente preenchida e “co-avalistas” de livrança incompleta no que respeita ao direito de regresso do avalista que pagou relativamente ao que o não fez, não se podendo por isso falar de violação do principio da igualdade.

Como, sob pena de petição de princípio, não se pode pretender que a negação de direito de regresso entre “co-avalistas” de titulo incompleto em situações como a dos autos, possa ser desproporcional relativamente ao objectivo genericamente pretendido do cumprimento das obrigações assumidas, quando, afinal, o pagamento que poderia dar origem ao direito de regresso se verificou em momento em que nenhuma obrigação se mostrava assumida. Acresce que, entre o preenchimento total de uma livrança e a propositura de execução em que a mesma seja dada como título executivo, intercede ou pode interceder, tempo suficiente, para, acauteladamente relativamente ao pretendido direito de regresso, se proceder ao pagamento. O que o A. não fez, tendo-se precipitado no pagamento, colocando-se na situação desfavorável em que se encontra.

Entende-se, pois, que a revista improcede, devendo manter-se a decisão recorrida.

VI - Pelo exposto, acorda esta Tribunal em julgar improcedente a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 11 de Março de 2025

Maria Teresa Albuquerque (Relatora)

Cristina Coelho

Luís Correia de Mendonça Voto vencido porque não posso concordar que o direito de regresso entre co-avalistas esteja dependente do preenchimento do título por banda do credor.

Ao contrário do que se afirma no acórdão recorrido não há nenhuma «jurisprudência largamente consensualizada» sobre esta matéria.

Pelo contrário, da jurisprudência uniformizada retiram-se consequências que, a meu ver, só podem conduzir à repristinação da decisão do primeiro grau.

O AUJ n.º 7/2012 não se debruça sobre os pressupostos do exercício do direito de regresso entre co-avalistas (como o pagamento da quantia em dívida foi realizado em execução, a livrança oferecida estava já completa e preenchida). O Supremo fixou nesse acórdão doutrina no sentido da existência do direito de regresso entre co-avalistas, afastando a tese da aplicação do regime da pluralidade de fiadores e da que impunha a existência de uma convenção que o contemple: o direito de regresso entre os diversos avalistas do mesmo avalizado existe porque tem fonte legal, o que resulta dos artigos 47.º LULL, 524.º CC e 100.º CCom.

Deste AUJ e com relevância para o caso sujeito, destaco os seguintes parágrafos: «não nos parece aceitável que, na ausência de uma clara vontade do legislador nesse sentido, por via meramente interpretativa (jurisprudencial ou doutrinal), mediante a mera formulação de juízos de natureza formal, se criem condições para que se concretize um desequilíbrio patrimonial entre sujeitos que ab initio se colocaram no mesmo plano de responsabilidade perante os credores cambiários»; «a não ser que os interessados tenham prevenido um tal resultado, não deve ser negada ao avalista que tenha suportado o pagamento da quantia avalizada (ou que tenha suportado uma parte mais elevada do que aquela que lhe competia) o direito de regresso relativamente aos demais avalistas, considerando mais ajustada uma solução em que se assuma, como regra, a distribuição interna da responsabilidade patrimonial nos termos que vigoram para as obrigações solidárias (artigos 524.º e 516.º do Código Civil), à semelhança do que especificamente está previsto no artigo 650.º do Código Civil para a pluralidade de fiadores»

O recente AUJ n.º 1/2025 versa, este sim, sobre um caso de aval em branco e de livrança não preenchida, mas debruça-se sobre aspectos da relação entre o avalista e o credor, e não sobre as relações entre avalistas, equacionando a viabilidade da desvinculação do primeiro.

Nada podemos retirar deste acórdão uniformizador que dê cobertura à tese que faz vencimento no nosso acórdão.

Aí se reitera que a livrança em branco não produz efeitos como livrança, só surge como título cambiário com o preenchimento.

Mas também se diz e repete que subscrever uma letra ou livrança em branco e entregá-la assim subscrita a alguém, não constitui um ato inócuo, desprovido de efeitos e vínculos jurídicos imediatos, já que, nas palavras de Carolina Cunha a subscrição e entrega do título em branco «representam, metaforicamente, o embrião da vinculação cambiária, isto é, constituem a primeira etapa de uma fattispecie completa que, uma vez reunidos todos os elementos, desembocará na constituição da obrigação cambiária».

Diz-se mais: diz-se que, por isso, «a questão da desvinculação unilateral dum “aval” prestado numa livrança em branco não pode ser resolvida a partir e com base nas específicas características das obrigações cambiárias», mas antes «coloca-se e verifica-se em relação ao acordo/pacto de preenchimento respeitante ao título emitido em branco e produz efeitos no vínculo (extra-cartular) emergente de tal acordo/pacto de preenchimento e não na livrança».

Penso que é neste plano pré-cambiário e na base dos acordos subjacentes à aposição do aval que o caso sujeito deve ser resolvido.

Ora prova-se que o autor e o réu são sócios da sociedade Z..., Lda.; a sociedade tem o capital social de € 100.000,00; o autor detém três quotas, nos valores de € 50.000,00, € 8.313,71 e € 8.313,71, num total de capital social de € 66.666,67 e o réu detém uma quota no valor de € 33.333,33; eram sócios gerentes da sociedade, que se obrigava com a assinatura de dois gerentes; a sociedade celebrou dois contratos de abertura de crédito em conta corrente com a CGD; os créditos em causa destinavam-se exclusivamente ao financiamento da tesouraria da firma Z..., Lda.; o autor e o réu subscreveram os mencionados contratos na qualidade de sócios e legais representantes da mesma sociedade; para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades perante a Caixa Geral de Depósitos, a sociedade Z..., Lda. subscreveu uma livrança com montante e vencimento em branco, que entregou àquela; no verso da livrança o autor e o réu apuseram as respectivas assinaturas após os dizeres “Dou o meu aval à firma subscritora”; a sociedade Z..., Lda., na qualidade de subscritora, e o autor e o réu, na qualidade de avalistas, autorizaram a Caixa Geral de Depósitos a preencher a livrança nos termos da cláusula 23.ª dos contratos; o autor liquidou a importância global de €149.216,10 na qualidade de avalista e principal pagador do Emp°. n° PT ...92, mutuado por Z..., Lda. (…) e em resultado de tal pagamento a operação resultou liquidada; o autor procurou obter do réu a parte que cabia a este na qualidade de avalista, tendo-o abordado por diversas vezes, pessoal e telefonicamente, sobre esta questão; O réu recusou suportar a sua parte invocando não ter condições económicas para o fazer.

Diante desta realidade parece-me inarredável a conclusão que negar o direito de regresso ao autor não tem o suficiente suporte na relação comercial, pré-cambiária, vinculativa de ambos os sócios-gerentes/avalistas, penaliza o devedor solidário que decidiu cumprir as suas obrigações, compensa manobras dilatórias dos avalistas não cumpridores e coloca nas mãos do credor o poder (porventura arbitrário) de escolher, de entre os co-avalistas, a quem cobrar a dívida, nem sempre por boas razões.