I - No âmbito do inventário notarial, o papel do juiz na prolação da decisão homologatória da partilha reconduz-se a um controlo meramente formal da legalidade dos actos praticados; não a um controlo real e efectivo da actividade do notário, estando-lhe vedado sindicar as decisões de incidentes ocorridos no processo ou revogar as decisões interlocutórias proferidas.
II - A pretensão de alteração de um valor atribuído a um bem adjudicado à cabeça-de-casal, com a consequente reformulação da partilha, com fundamento em erro acerca do valor de mercado do mesmo, deduzida após a realização da conferência de interessados, mas antes de elaboração do mapa de partilha e do proferimento da sentença homologatória da partilha, deve ser qualificada como incidente de emenda antecipada da partilha.
III - A qualificação operada não fere o princípio do dispositivo e, ao atender ao efeito prático-jurídico pretendido pela parte, confere pleno cumprimento ao direito constitucional desta à tutela jurisdicional efectiva.
I – relatório
1. Nos autos de inventário para partilha dos bens deixados por AA e BB, que correu termos no Cartório Notarial de CC, sendo cabeça-de-casal DD, a interessada EE veio interpor revista do acórdão da Relação que julgou improcedentes os recursos de apelação (interpostos pela mesma em 18-01-2023 e 23-05-2023), confirmando as respectivas decisões recorridas.
Concluiu nas suas alegações (transcrição):
“a) Entendeu o Tribunal da Relação de Lisboa “III – A sentença homologatória da partilha, sendo embora uma sentença de mérito, limita-se a absorver o conteúdo do acordo de partilha decorrente do encontro de vontades dos interessados, sendo a intervenção do juiz meramente fiscalizadora da legalidade do objecto desse acordo e da qualidade das pessoas que o celebraram, sem interferir no seu conteúdo material; a decisão intercalar transitou em julgado pois o recurso interposto pela ora Recorrente não foi apresentado conjuntamente com o recurso da sentença homologatória da partilha.”
b) Não concorda a Recorrente com a posição assumida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, pois a Recorrente por requerimento a Fls..., requereu à Sr.ª Notária, depois de indicar que tinha apresentado a sua declaração negocial em erro, a realização de uma avaliação do imóvel,
c) A Sr.ª Notária desatendeu a pretensão da Recorrente, indicando que as partes tinham colocado fim ao processo por acordo.
d) O referido despacho não aprecia a questão essencial no presente caso, ou seja, o erro negocial, com efeito o referido despacho limita-se a indicar que foi celebrado um acordo e as respetivas mandatárias devidamente notificadas, sem analisar se a declaração da interessada, ora Recorrente, foi proferida em erro.
e) A sentença proferida indica “A remessa dos autos foi feita por decisão do Cartório Notarial. Inexistem quaisquer outras excepções ou questões prévias de que cumpra neste momento conhecer.”
f) Assim, a sentença nada vem referir quanto ao erro indicado pela Recorrente.
g) Vem agora o Tribunal da Relação, indicar que não existe omissão de pronúncia, no entanto estabelece o artigo 615.º do C.P.C. que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que deva apreciar.
h) Refere o Artigo 1122.º do CPC que “Depois de decididas todas as questões, o juiz profere sentença homologatória da partilha constante do mapa.” Estabelecendo ainda o artigo 2.º n.º 4 do Regime do inventário notarial, que “Compete ao tribunal de comarca da circunscrição judicial da área do cartório notarial praticar os atos que caibam ao juiz, bem como apreciar os recursos interpostos de decisões do notário.”
i) Sendo que, relativamente à legislação anterior, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, relativamente ao Processo: 1781/19.3T8PBL.C1, datado de 05-05-2020, que pode ser consultado em www.dgsi.pt no seu sumário salienta que “I - No processo de inventário tramitado ainda ao abrigo da Lei nº 23/2013 de 05.03, o notário não pode decidir as impugnações contra as suas decisões que possam influir na divisão, antes, e não sendo caso de recurso com subida imediata, elas devendo ser apreciadas pelo Juiz, em sede de decisão sobre a homologação da partilha, sob pena de nulidade desta decisão.”
j) Ora a situação alegada pela Recorrente, designadamente a alegação da apresentação da sua declaração negocial em erro, deveria ter sido decidida em sede de processo judicial, e só após essa decisão, ser proferida sentença de homologação da partilha.
k) Entendeu ainda o Tribunal da Relação de Lisboa que “I – É de 10 dias, na falta de disposição especial, o prazo para as partes requererem qualquer acto ou diligência, arguirem nulidades, deduzirem incidentes ou exercerem qualquer outro poder processual (cfr. art. 149.º, n.º 1 do CPC), sob pena de se extinguir o direito de praticar o acto (art. 139.º, n.º 3 do CPC);
l) Sucede que a Recorrente só teve a consciência do erro em meados de dezembro de 2022, ou seja, depois de se terem ultrapassado os 10 dias da conferência de interessados.
m) No entanto, aquele prazo deverá contar-se apenas a partir do momento em que a Recorrente teve conhecimento do erro.
n) Efetivamente a Recorrente emitiu uma declaração negocial em erro, quando atribuiu a um imóvel localizado em ..., o valor de cerca de € 30.000,00, pois tem como habilitações literárias o 9º ano de escolaridade, e não tem nem nunca teve qualquer função
na área imobiliária, ficando convencida com aquele valor, pois aquele era o valor patrimonial.
o) A declaração negocial apresentada pela Recorrente, foi efetuada, no entanto, em erro, pois desconhecia qual o valor dos imóveis naquela zona, que é de cerca de 6 vezes aquele valor.
p) Uma pessoa média nunca aceitaria que fosse fixado o valor de cerca de € 30.000,00 a um imóvel, localizado numa área nobre da cidade, junto ao metropolitano, com duas divisões, e ainda tivesse de deixar o mesmo e procurar outro imóvel para arrendar.
q) Existiu claramente uma discrepância entre a vontade real e a declaração, porquanto a vontade real era a de permanecer a habitar a fração autónoma e a de lhe ser fixado um valor justo.
r) Pelo exposto, a declaração negocial apresentada ocorreu em erro, devendo ser ordenada a anulação da ata de conferência de interessados, pois se tivesse consciência do valor atual do imóvel, e que teria que deixar o mesmo, a Recorrente nunca tinha aceite o acordo.”.
2. Não foram apresentadas contra-alegações.
3. Colhidos os vistos, tendo sido entendido que na apreciação do objecto do recurso era passível de se poder perspectivar o requerimento datado de 18-12-2022 enquanto pedido antecipado de emenda da partilha (cfr. artigo 1126.º, do Código de Processo Civil - CPC), ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º3, do CPC, foram as partes notificadas para se pronunciarem, tendo ambas manifestado o respectivo posicionamento, conforme requerimentos que antecedem.
4. Cumprido o disposto no artigo 657.º, n.º2, in fine, do CPC, cumpre apreciar e decidir.
II - APRECIAÇÃO DO RECURSO
De acordo com o teor das conclusões das alegações, mostram-se submetidas à apreciação deste tribunal as seguintes questões:
• Do dever de pronúncia por parte do tribunal de 1.ª instância quanto ao alegado erro de declaração negocial
• Do direito da recorrente de invocar erro na formação da sua vontade (subjacente à declaração de acordo de composição dos quinhões em sede de conferência de interessados)
1. Os factos
O tribunal a quo considerou provado o seguinte circunstancialismo fáctico:
1. Em 09.04.2021, DD requereu junto do Cartório Notarial de CC, que se procedesse a inventário para partilha dos bens das heranças de AA e BB, que foram casados entre si, indicando como interessada EE, tendo o processo sido aí registado com o n.º 130/21;
2. Por despacho da senhora notária de 19.04.2021, foi nomeada cabeça-de-casal a interessada EE, que foi citada na sua própria pessoa e constituiu mandatário nos autos;
3. Por despacho da senhora notária de 20.01.2022, foi a referida EE removida do cargo de cabeça-de-casal e nomeada, em sua substituição, a interessada e requerente do inventário DD;
4. Em 25.01.2022, a cabeça-de-casal juntou a relação de bens, que não foi objecto de qualquer reclamação;
5. Por despacho da senhora notária de 22.09.2022, notificado às partes, foi designada data para a realização da conferência de interessados, nos seguintes termos:
«(…) designa-se o dia 03 de novembro de 2022 pelas 14:30 horas para a realização da conferência de interessados Notifiquem-se os interessados para comparência pessoal no dia referido, podendo fazer-se representar por mandatário com poderes especiais ou confiar o mandato a qualquer outro interessado, sob pena de lhes ser aplicável a multa prevista no artigo 28º da Portaria 278/2013 na redação dada pela Portaria 46/2015 de 23 de fevereiro. Notifiquem-se igualmente para comparência pessoal, e com a mesma cominação, os respetivos cônjuges dos interessados, salvo se o regime de casamento que entre eles vigore for o da separação de bens, caso em que apenas será necessária a presença se, de entre os bens a partilhar, constar a casa de morada de família respetiva. A conferência destina-se a deliberar sobre: a) A composição total ou parcial dos quinhões dos interessados e o valor porque devem ser adjudicados os bens que os integram; a indicação dos bens que devem ser objeto de sorteio; e o eventual acordo na venda de bens da herança e na distribuição do produto da alienação pelos interessados ou, não havendo deliberação sobre estas matérias, deliberar sobre quaisquer questões cuja resolução possa influir na partilha. b) A aprovação do passivo da herança e forma de cumprimento dos legados. c) Os pedidos de adjudicação de bens indivisíveis; e, eventualmente d) Quaisquer questões cuja resolução possa influir na partilha. Notifiquem-se os interessados com a advertência de que: a) A conferência pode ser adiada, por determinação do notário ou a pedido de qualquer interessado, por uma só vez, se faltar algum dos convocados e houver razões para considerar viável o acordo sobre a composição dos quinhões. b) A deliberação dos interessados presentes, relativa a questões cuja resolução possa influir na partilha, vincula os demais que, devidamente notificados, não tenham comparecido na conferência.
Atualize-se o valor do processo de inventário de acordo com o valor resultante da relação de bens apresentada € 32.332,40»;
6. No dia 03.11.2022 realizou a conferência de interessados, com a presença das interessadas DD e EE o marido desta última e as mandatárias das interessadas (sendo a mandatária da interessada Guilhermina, por teleconferência), constando da respectiva acta o seguinte:
«(…) Explicados os motivos da presente diligência teve a mesma início com o seguinte resultado:
Não houve oposição, reclamação ou impugnação quanto ao inventário, relação de bens ou valores porque as mesmas foram relacionadas.
As interessadas, por acordo, compuseram o quinhão respetivo da seguinte forma:
Acordaram em adjudicar à interessada EE o sofá em tecido, com três lugares, com marcas de uso no valor de € 40,00 e a televisão LCD no valor de € 120,00 vendo o restante do seu quinhão hereditário preenchido com o dinheiro das tomas.
Acordaram em adjudicar à interessada DD os restantes bens móveis e ainda o imóvel relacionado como verba 6, tudo no valor global de € 32.172,40, devendo a mesma prestar de tornas o que levar a mais do que competir.
Ficando, assim, adjudicados todos os bens, foram as presentes pessoalmente notificadas para, em vinte dias, proporem o mapa da partilha nos termos do artigo 1120º do CPC aditado pela Lei 117/2019 de 13 de setembro, fiando ainda a requerente pessoalmente notificada para juntar aos autos o DUC e respetivo comprovativo de pagamento devido pela remessa dos autos ao Tribunal para que seja proferida sentença homologatória da partilha. Não havendo outro assunto a tratar foi encerrada a diligência e lavrada a presente ata»;
7. Apenas a interessada DD apresentou proposta de mapa da partilha;
8. No dia 18.12.2022, a interessa EE apresentou requerimento, dirigido à senhora notária, com o seguinte teor:
«…tendo tomado conhecimento do teor da Ata da Conferência de Interessados, vem expor e Requer conforme se segue:
I-Valor do Imóvel e Tornas a fixar
1. A Requerente aquando da Conferência de Interessados, ocorrida em 03 de novembro de 2022, foi surpreendida pela proposta apresentada pelo Cabeça de casal.
2. Colocada perante a questão do valor a atribuir ao imóvel, a Requerente aceitou fixar o valor do imóvel em €32.172,40.
3. Em face do valor fixado ao imóvel, aceitou que lhe fossem prestadas tornas.
4. A declaração negocial apresentada pela Requerente, foi efetuada, no entanto, em erro.
5. Com efeito a Requerente desconhecia o valor dos imóveis naquela zona.
6. Sendo que para imóvel daquela tipologia, os valores variam entre € 159.000,00 € e € 172.000,00, conforme documentos n.ºs 1, 2, 3 e 4, que se juntam.
7. O valor indicado do imóvel foi referido em erro e encontra-se claramente desajustado, pois trata-se de um imóvel com área privativa de 50,65 m2, com 2 divisões, localizado em ..., a escassos minutos a pé de uma estação do metropolitano, e junto a Expo.
8. A valor atribuído ao imóvel, pela Requerente, ocorreu em profundo erro, cuja consciência só ocorreu quando verificou o valor dos imóveis à venda em ....
9. Para esse erro previsivelmente contribuiu a ausência presencial da sua mandatária, o que dificultou o contacto com a mesma.
10. Ora a Requerente, realizou uma errada representação da realidade, o que leva a que a declaração que emitiu não esteja de acordo com a sua vontade, o que configura a existência de um "erro obstáculo", conforme bem descreve o Dr. Pedro Nunes de Carvalho em "Considerações acerca do erra em sede de patologia da Declaração Negociar”.
11. No mesmo sentido se pronuncia o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo n.º 67/14.4T8OHP-A.C1, que salienta que "I – O erro na declaração, ou erro obstáculo, existe quando, não intencionalmente v.g., por inadvertência, engano ou equívoco, a vontade declarada não corresponde a uma vontade real do autor, existente, mas de sentido diverso.
II- Existe erro obstáculo sobre a identidade da coisa que constitui objeto da declaração - error in corpore, quando a indicação ou a descrição que dela se faz, leve a identificar uma coisa diferente da que o declarante pretende".
III- Contudo, a relevância do erro obstáculo, para que o negócio seja anulável, carece:
-Que para o declarante seja essencial o elemento sobre o qual incidiu o erro, de tal forma que, se deste se tivesse apercebido, não teria celebrado o negócio;
- Que o declaratário conheça ou não deva ignorar a essencialidade do elemento sobre o qual incidiu o erro para o declarante."
12. Ora, no caso concreto se a Requerente tivesse consciência do valor atual do imóvel nunca tinha aceite o acordo, e desconhecia que naquela audiência iria ser discutido aquele facto.
13. Por outro lado, a Requerente não trabalha, nem nunca trabalhou na área imobiliária, pelo que desconhecia o valor do mesmo, e não lhe pode ser imputado qualquer obrigação de o saber.
14. Como refere Pedro Pais de Vasconcelos (Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 2010, 6 edição, págs. 658/659) "a vontade negocial pode estar viciada na sua formação, no processo de volição e de decisão, por deficiência de esclarecimento......e a parte cuja vontade tenha sido perturbada pode, se assim o desejar, libertar-se do negócio viciado, procedendo à sua anulação".
15. Também Manuel A. Domingues de Andrade, in (Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, 9ª reimpressão, Coimbra, 2003, pág. 233), caracteriza o erro nos moldes seguintes: "[o] erro-vício consiste na ignorância (falta de representação exacta) ou numa falsa ideia (representação inexacta), por parte do declarante, acerca de qualquer circunstância de facto ou de direito que foi decisiva na formação da sua vontade, por tal maneira que se ele conhecesse o verdadeiro estado das coisas não teria querido o negócio, ou pelo menos não o teria querido nos precisos termos em que o concluiu".
16. Pelo que se compreende que a Requerente se encontre em erro.
17. Sucede que o imóvel não foi adquirido pela Requerente mas sim pelos seus pais 18. A Requerente por outro lado vive no imóvel, que integra a herança, sendo aquele a sua casa de família, pelo que terá direito de preferência na adjudicação do mesmo, direito esse que pretende exercer.
19. Assim, e tendo em consideração que a aceitação da proposta ocorreu em erro, deve ser ordenada o cancelamento da adjudicação, e em consequência:
a) Ser ordenada a realização de uma avaliação do imóvel, e após esse facto, serem determinadas as tornas caso exista efetivamente obrigação das mesmas serem prestadas;
b) Caso o pedido de avaliação seja indeferido, desde já a Requerente indica que o imóvel tem o valor de pelo menos € 70.000,00, disponibilizando-se para efetuar o pagamento de metade a título de tornas»;
9. Por requerimento de 19.12.2022, a interessada DD requereu o desentranhamento do referido requerimento, por ser intempestivo e carecer de fundamento legal;
10. Por despacho da senhora notária de 22.12.2022, foi organizado o mapa da partilha, de acordo com as adjudicações feitas na conferência de interessados;
11. Ainda por despacho da senhora notária de 22.12.2022, foi decidido que:
«Por requerimento registado em www... com o número ...69 de documento veio a interessada EE alegar, em suma, erro na sua declaração negocial de aceitação do valor atribuído por acordo ao imóvel; desconhecimento de que na audiência iria ser discutido aquele facto; pretensão de exercer o direito de preferência na adjudicação do imóvel por nele residir vindo, ainda, requerer seja ordenada avaliação do imóvel e, em caso de indeferimento desta ultima pretensão seja fixado ao imóvel o valor de € 70.000,00 disponibilizando-se para efetuar o pagamento de metade a titulo de tornas.
Por requerimento registado na referida plataforma com o número ...82 de documento veio a cabeça de casal, DD requerer o desentranhamento do requerimento suprarreferido por ser intempestivo e carecer de fundamento legal.
Cumpre tomar posição;
Em 03 de novembro de 2022 pelas 14:30 minutos realizou-se neste Cartório Notarial a Conferência de Interessados previstas no artigo 1111º do CPC aditado pela lei 117/2019 de 13 de setembro.
Nessa conferência, para a qual foram expedidas às interessadas as notas postais que se encontram registadas nos autos, encontravam-se presentes não só as interessadas como ainda o cônjuge da requerente FF e as ilustres mandatárias das mesmas.
Do despacho de agendamento da conferência de interessados que acompanhava a notificação para comparência pessoal constava:
(…) Na conferência as interessadas chegaram a acordo nos termos que constam da Ata da Conferência e que se transcrevem:
(…) Assim,
As interessadas, acompanhadas das suas ilustres mandatárias, puseram fim ao processo, por acordo, na referida conferência de interessados.
A fracção em apreço tem um VPT de € 30.612,40.
Notificada a interessada EE da relação de bens para, em trinta dias, querendo, reclamar da relação de bens ou impugnar o valor dado aos mesmos, nada velo dizer ou peticionar.
Em sede de conferência de interessados, e na impossibilidade de obter acordo, a Lei ainda permite que os interessados requeiram a avaliação dos bens e/ou, nos casos em que a mesma é admissível, o pedido de adjudicação de bens nos termos dos artigos 1114° e 1115° do CPC.
Não foi o caso dos presentes autos, uma vez que as interessadas coadjuvadas pelas respetivas mandatárias, alcançaram o acordo que consta do Ata pelo que, tendo precludido o seu direito não pode agora a interessada vir aos autos, sob o manto do erro da declaração negocial, requerer a avaliação do imóvel e a sua adjudicação.
Como se retira da Ata da diligência, no final da mesma foram as ilustres mandatárias notificadas:
“….. Ficando, assim, adjudicados todos os bens, foram as presentes pessoalmente notificadas para, em vinte dias, proporem o mapa da partilha nos termos do artigo 1120º do CPC aditado pela Lei 117/2019 de 13 de setembro, fiando ainda a requerente pessoalmente notificada para juntar aos autos o DUC e respetivo comprovativo de pagamento devido pela remessa dos autos ao Tribunal para que seja proferida sentença homologatória da partilha……”
Termos em que se nega provimento à pretensão da requerente e se determina o prosseguimento dos autos»;
12. Em 18.01.2022, a interessada EE apresentou requerimento pelo qual interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa do despacho referido no n.º 11;
13. Por despacho da senhora notária de 23.02.2023, foi decidido:
«Por requerimento registado em www... com o número ...74 de documento veio a Interessada EE interpor recurso da decisão proferida por este Cartório Notarial em despacho datado de 22 de dezembro de 2022 registado na referida plataforma com o número ...50 de documento.
Notificada, velo a interessada DD apresentar as suas contra-alegações com os fundamentos que constam do seu requerimento registado com o número ...11 de documento.
Cumpre tomar posição;
O regime dos recursos em processos de inventário que tenham sido instaurados após 01 de janeiro de 2020 e estejam a correr em Cartórios Notariais encontra-se previsto no artigo 4º do Regime de Inventário Notarial, Regime este aprovado em anexo à Lei 117/2019 de 13 de setembro, nos termos do seu artigo 2°.
De acordo com o artigo 4º do RIN é igualmente aplicável o regime previsto no artigo 1123° do CPC, aditado pela já referida Lei.
Ora, por força da aplicação deste regime, e conforme o disposto no artigo 1123° n° 2 al. c) e n° 5 as decisões proferidas pelo notário na fase da partilha apenas sobem a final com o que vier a ser interposto da sentença homologatória da partilha.
No caso dos autos a interessada EE não deduziu impugnação ou reclamação, nem do despacho determinativo da partilha, nem do mapa da partilha.
Assim, o recurso interposto fica a aguardar o que vier a ser interposto da sentença homologatória da partilha».
14. Por despacho da senhora notária de 30.03.2022, foi decidido:
«Nos presentes autos de inventário abertos para partilha dos bens deixados por óbito de AA e BB, tendo as interessadas chegado a acordo nos termos enunciados na Ata da Conferência de Interessados e tendo sido proferido despacho que retém o recurso entreposto até àquele que vier a subir com a sentença homologatória da partilha;
Remete-se, nos termos do artigo 5º do Regime do Inventário Notarial aprovado em anexo à Lei 117/2019 de 13 de setembro, e cumprido o disposto no artigo 7º o presente processo ao tribunal para que seja proferida sentença homologatória da partilha».
15. Remetidos os autos ao Juízo Local Cível de ..., foi, em 25.04.2023, proferida a sentença recorrida, com o seguinte teor:
«Nos presentes autos de inventário para partilha de bens a que se procede por óbito de AA e BB, homologo por sentença a partilha constante do acordo exarado na conferência de interessados, ocorrida em 03/11/2022 (acta com a referência ...17) – artigo 5.º do regime anexo à Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro.
Custas em conformidade com o disposto no artigo 1130.º do Cód. Processo Civil (artigo 2.º, n.º1, do regime anexo à Lei n.º 117/2019, de 13 de Setembro).
Registe e notifique».
2. O direito
No âmbito do inventário para partilha dos bens deixados por óbito de AA e BB, que correu termos no Cartório Notarial de CC, após a realização da conferência de interessados1, a aqui Recorrente apresentou, em 18-12-2022, requerimento dirigido à senhora notária, no qual, invocando erro na sua declaração negocial de aceitação do valor atribuído por acordo ao imóvel, manifestou a pretensão de exercer o direito de preferência na adjudicação do imóvel, por nele ter residido, requerendo, ainda, que fosse ordenada a avaliação de tal bem2.
A senhora notária proferiu (em 22-12-2022) despacho a indeferir tal pretensão, tendo a Requerente interposto recurso (em 18-01-2023) para o Tribunal da Relação de Lisboa.
Proferida sentença homologatória da partilha e interposto recurso de apelação, o tribunal da Relação confirmou a sentença e rejeitou, com fundamento em inadmissibilidade legal, o recurso (autónomo) interposto (em 18-01-2023) da referida decisão notarial (de 22-12-2022).
Em 25-06-2024 foi proferido acórdão pelo STJ, que revogou o acórdão recorrido e determinou a baixa dos autos ao tribunal a quo para tomar conhecimento do recurso da decisão notarial de 22-12-2022.
Na sequência do determinado, o tribunal da Relação, conhecendo do recurso, considerou não ocorrer qualquer omissão de pronúncia e julgou a apelação improcedente, sustentando, fundamentalmente:
- a Recorrente perdeu o direito de arguir a nulidade da conferência de interessados por não o ter feito nos dez dias após 03-11-2022, data da realização da mesma onde esteve presente e representada por mandatária e no âmbito da qual foi celebrado acordo de partilha;
- a Recorrente não reclamou ou requereu a realização de qualquer acto no prazo de 20 dias fixado para as partes proporem mapa da partilha;
- no âmbito de um processo de inventário notarial competia à senhora notária a apreciação e decisão suscitadas pela interessada EE relativas aos vícios da vontade que manifestou no âmbito da Conferência de Interessados realizada;
- as questões relativas ao conteúdo e validade material das declarações negociais que consubstanciam o acordo de partilha exarado na acta de conferência de interessados apenas poderão ser apreciadas e conhecidas em sede de acção própria (ou, quanto muito, em recurso de revisão reunidos os respectivos pressupostos);
- não competia ao tribunal de 1.ª instância a apreciação da questão suscitada pela interessada EE relativa aos vícios da sua declaração;
- a sentença homologatória da partilha, não obstante sentença de mérito, limita-se a absorver o conteúdo do negócio jurídico firmado entre as partes, condenando e absolvendo nos exactos termos estabelecidos.
Insurge-se a Recorrente defendendo que, no caso, o tribunal de 1.ª instância não podia ter deixado de apreciar a questão do erro de declaração.
Invocando que apenas teve consciência do erro em meados de Dezembro de 2022, considera não ter ultrapassado o prazo de dez dias para arguição da nulidade da Conferência de Interessados. Nessa conformidade, pretende a descida do processo à 1.ª instância para apreciação do requerimento de indicação de erro da declaração negocial.
2.1 Do dever de pronúncia por parte do tribunal de 1.ª instância quanto ao alegado erro de declaração negocial
A Recorrente rebela-se relativamente ao acórdão recorrido por ter considerado que a sentença homologatória da partilha não padecia de nulidade, por omissão de pronúncia (por não ter apreciado o mérito do despacho notarial, datado de 22-12-2022, que indeferiu a pretensão da interessada no sentido de ser “cancelada” a adjudicação do imóvel descrito no ponto 6 da relação de bens e de ser ordenada a realização de uma avaliação ao mesmo, por ter existido da sua parte erro da declaração).
Considerou o acórdão recorrido que o tribunal de 1.ª instância tinha emitido pronuncia sobre as questões que se lhe impunha apreciar na sentença homologatória da partilha a qual, refere, “o próprio nome indica, de uma sentença homologatória, que serve para autenticar as partilhas e condenar os interessados no pagamento das custas e, eventualmente, do passivo aprovado ou reconhecido.”
Entendeu o tribunal a quo que o acordo das partes relativo à partilha configura uma verdadeira transacção, limitando-se a sentença homologatória, ainda que assumindo a categoria de sentença de mérito, a “absorver o conteúdo do negócio jurídico das partes, condenando e absolvendo nos termos exactamente pretendidos e resultantes das concessões recíprocas das partes”, nada tendo a ver com o conteúdo material do acordo sobre a partilha. Nesse sentido, salientou o tribunal recorrido, que, nos termos do artigo 3.º, n.º 2.º, a contrario, do Regime do Inventário Notarial (doravante RIN), competia à senhora notária a apreciação e decisão do requerimento da interessada EE de 18-12-2022 e, nomeadamente, das questões que a mesma suscitou relativas aos vícios da sua vontade.
Há que secundar este entendimento.
De acordo com o que prescrevem as alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, é nula a sentença que não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, assim como aquela em que o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
A nulidade por omissão de pronúncia reconduz-se a um vício formal, em sentido lato, da decisão, traduzido em error in procedendo ou erro de actividade, que afecta a validade da decisão e decorre da imposição ínsita no artigo 608.º, n.º2, do CPC, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”
Estatui o n.º 4 do artigo 2.º do RIN, que compete ao tribunal de comarca praticar os actos que caibam ao juiz, assim como apreciar os recursos interpostos de decisões do notário, sendo a partilha constante do mapa e das operações de sorteio submetida ao juiz para efeitos de homologação (artigo 5.º, do RIN).
A sentença homologatória da partilha constitui, sem dúvida, uma decisão à qual inere um verdadeiro julgamento, não obstante o juiz se limitar “a fazer um controlo de legalidade, a verificar se o mapa da partilha aparenta conformidade com a lei (capacidade e legitimidade das partes, respeito pela forma à partilha e operações subsequentes e respeito pelas normas legais imperativas), de uma forma perfunctória e sem necessidade de uma exaustiva indagação” (acórdão do STJ de 11-11-2021, cuja fundamentação, ainda que por referência ao Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 5 de Março, poderá ser transposta para o regime do inventário notarial actualmente em vigor).
Com efeito, o papel do juiz na prolação da decisão homologatória da partilha reconduz-se a um controlo meramente formal da legalidade dos actos praticados no processo; não a um controlo real e efectivo da actividade do notário ao longo do processo (nesta linha se pronunciou o acórdão do STJ de 16-11-20233).
Como observa Filipe César Marques (a respeito da natureza da decisão homologatória no Regime Jurídico do Processo de Inventário, aprovado pela Lei n.º 23/2013, de 05 de Março, mas com recurso a argumentos que se mantêm válidos em face do regime vigente), a sentença homologatória apresenta uma natureza “meramente certificativa”, absorve o conteúdo do mapa da partilha que, por sua vez, deverá ser organizado de acordo com o despacho do notário determinativo do modo como deve ser organizada a partilha4.
O juiz dispõe, neste campo, de uma latitude de actuação muito reduzida, não podendo “sindicar as decisões de incidentes ocorridos ao longo do processo e não pode revogar as decisões interlocutórias. Essencialmente, a atividade do juiz nesta fase processual resumir-se-á a suscitar e decidir nulidades que sejam de conhecimento oficioso.” 5
Na sequência deste entendimento, que acolhemos, evidencia-se que não competia ao tribunal, em sede de sentença de homologação da partilha, emitir qualquer pronúncia acerca do mérito do despacho notarial que indeferiu a pretensão da reclamante de “cancelamento” da adjudicação, estando-lhe até vedada tal sindicância, reservada, para o Tribunal da Relação em sede de recurso.
Consideramos, pois, que o tribunal a quo interpretou correctamente a amplitude dos poderes cognitivos do tribunal de 1.ª instância quando da prolação de sentença homologatória da partilha efectuada em processo de inventário que correu termos perante o cartório notarial, carecendo, por isso, de fundamento a pretensão da Recorrente.
2.2 Do direito da recorrente de invocar erro na formação da sua vontade subjacente à declaração de acordo de composição dos quinhões em sede de conferência de interessados
Conforme realçado, na sequência da realização da conferência de interessados - em que as interessadas DD e EE, por acordo, compuseram os quinhões respectivos, adjudicando à Recorrente bens móveis e à interessada DD bens móveis e um bem imóvel relacionado como verba 6 -, a ora Recorrente apresentou, a 18-12-2022, um requerimento dirigido à senhora notária, no qual, em síntese, alegou erro na sua declaração negocial de aceitação do valor atribuído por acordo ao imóvel, manifestando a sua pretensão de exercer o direito de preferência na sua adjudicação, por nele ter residido, e requerendo que fosse ordenada avaliação de tal bem.
A decisão notarial indeferiu a pretensão da interessada por ter considerado que se encontrava precludido o direito de requerer a avaliação e a adjudicação de bens, num contexto em que a mesma não reclamou da relação de bens, não impugnou os valores atribuídos aos bens relacionados e, na conferência de interessados, não requereu a avaliação dos bens, nem formulou pedido de adjudicação de bens, tal como admitido pelos artigos 1114.º e 1115.º do CPC, tendo, ao invés, chegado a acordo com a cabeça-de-casal quanto à composição dos respectivos quinhões.
Também o tribunal a quo afastou a pretensão da recorrente de “cancelamento da adjudicação” dos bens, com fundamento na sua intempestividade, sustentando que a interessada, não obstante ter comparecido na conferência de interessados acompanhada da sua mandatária, apenas suscitou, em 18-12-2022, a questão relativa ao erro quanto ao valor atribuído ao bem imóvel após o decurso do prazo peremptório de 10 dias previsto no n.º 1 do artigo 149.º do CPC, conduzindo, nessa medida, à extinção do direito de praticar o acto.
Acrescentou o tribunal recorrido que a interessada não impugnou o valor atribuído ao bem relacionado, como lhe permitia o artigo 1104.º, do CPC, nem requereu a avaliação do mesmo, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 1114.º do mesmo CPC.
Na revista, a Recorrente reitera que, em sede de conferência de interessados, emitiu uma declaração negocial em erro quando atribuiu a uma fracção autónoma, localizada em ..., o valor de cerca de €30.000,00, equivalente ao seu valor patrimonial tributário, tendo-se apercebido, posteriormente, que o valor de mercado do imóvel excede, em seis vezes, tal montante. Reafirma que “existiu claramente uma discrepância entre a vontade real e a declaração, porquanto a vontade real era a de permanecer a habitar a fração autónoma e a de lhe ser fixado um valor justo” e concluiu que “se tivesse consciência do valor atual do imóvel, e que teria que deixar o mesmo, a Recorrente nunca tinha aceite o acordo.”
Vejamos.
2.2.1 É incontroverso que a interessada, até ao requerimento datado de 18-12-2022, não lançou mãos dos meios que legalmente se encontravam ao seu alcance para contestar o valor atribuído na relação de bens ao bem imóvel descrito na verba 6, tendo-se abstido, de igual modo, de requerer a avaliação do imóvel. Todavia, precisou em tal requerimento que apenas em data posterior, ainda que não especificada, mas que reporta a meados de Dezembro de 2022, verificou que o valor de mercado dos imóveis à venda em ... era substancialmente superior ao montante de €30.612,40 atribuído à fracção, alegando que, ao assentir na adjudicação dos quinhões tendo por referência a atribuição ao imóvel do valor correspondente ao seu valor patrimonial tributário, havia laborado em erro.
Retira-se, pois, do posicionamento defendido pela Recorrente que o comportamento processual que assumiu no processo de inventário até à apresentação do requerimento de 18-12-2022, designadamente no âmbito da conferência de interessados realizada, mostrou-se condicionado pelo erro em que se encontrava quanto ao valor de mercado do imóvel.
Não obstante a Recorrente qualificar o descrito erro como “erro-obstáculo”, o mesmo deverá ser reconduzido à figura do erro-vício, na modalidade de erro sobre o objecto (quanto ao seu valor de mercado), a que se reporta o artigo 251.º, do Código Civil.
Na verdade, encontra-se invocado um erro de facto, que incide sobre o valor do bem inventariado e que contende com a errónea percepção que a interessada afirma que tinha sobre o valor de mercado dos imóveis similares ao adjudicado, sendo que, como sublinham Mota Pinto e Anselmo de Castro, “num negócio como a partilha, o valor é, pois, qualidade decisiva, verdadeiramente fulcral do auto regulamento de interesses. É uma qualidade e uma qualidade substancial do objeto. O erro sobre ele é um erro «in substantia» ou, pelo menos, para os efeitos do art. 251.º do CC (…) um erro que atinge os motivos determinantes da vontade, referido ao objeto do negócio.”6
A questão que se coloca é a de saber se a pretensão da Recorrente - que afirma ter actuado no âmbito do processo na errada convicção acerca do valor de mercado atribuído ao bem mais valioso das heranças cuja partilha se pretende obter através do inventário vertente - deve ser liminarmente afastada com fundamento em que o seu direito de contestar o valor atribuído ao bem se encontra precludido.
Há que considerar que quanto a esta questão, à luz de uma leitura substancialista e integrada das regras legais vigentes, se impõe concluir inversamente do decidido pelo tribunal a quo.
Conforme já salientado, o tribunal recorrido cingiu o enquadramento da situação ao direito de reclamação da Interessada (arguição de nulidade da conferência de interessados, nos 10 dias após a sua realização, que o considerou precludido) e ao dever da mesma em intervir/reagir (requerendo ou propondo mapa da partilha no prazo de 20 dias fixado para as partes, que também considerou precludido).
Cremos, porém, que as particularidades do caso induzem a que se viabilize outro enquadramento.
Com efeito, a lei prevê, por força do disposto no artigo 1126.º, n.ºs 1 e 2, do CPC7, a possibilidade de os interessados requererem, mesmo após o trânsito em julgado da sentença homologatória da partilha, a sua emenda, uma solução que apresenta “natureza eminentemente pragmática e baseada em regras de experiência”8 e que permite refazer a partilha realizada no processo de inventário, por forma a salvaguardar o princípio da verdade material (cfr. neste sentido, o acórdão do STJ de 24-09-2020, a que se pode aceder através das Bases Documentais do ITIJ).
Na situação dos autos, o momento processual em que a Interessada apresentou o seu requerimento de 18-12-2022 (antes de elaboração do mapa de partilha e do proferimento da sentença homologatória da partilha) e a justificação apresentada pela mesma para tal intervenção, permitem reconduzir a sua pretensão - de alteração de um valor atribuído a um bem que foi adjudicado à cabeça-de-casal, com a consequente reformulação da partilha, com fundamento em erro acerca do valor de mercado do mesmo – a um pedido de emenda antecipada da partilha, qualificando-se nessa medida o requerimento da Interessada na formulação jurídica do solicitado.
Tal qualificação, que não fere o princípio do dispositivo porque se atém ao efeito prático-jurídico pretendido pela Recorrente e, igualmente, não esbarra com o obstáculo intransponível de já ter decorrido o prazo previsto para o acto convolado (que se reconduz à emenda da partilha), tem a virtualidade de permitir, no caso, conferir pleno cumprimento ao seu direito constitucional à tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição da República Portuguesa), por forma a evitar que, por meras razões de índole formal, deixe de ser apreciada uma pretensão deduzida de particular acuidade, em prejuízo da justa composição dos litígios.
Alinhado com a possibilidade de o tribunal efectuar uma correção a este nível, o acórdão do STJ de 25-02-2010 refere que “a qualificação jurídica que a parte realiza quanto à pretensão de tutela processual que deduz não impede que o tribunal possa reconfigurar adequadamente tal pretensão, dando-lhe a adequada configuração jurídico-normativa, suprindo ou corrigindo o erro de direito da parte na formulação jurídica do pedido que deduz: como temos sustentado ( veja-se o Ac. do STJ de 5/11/09, proferido no p. 308/ 1999.C1.S1): o que identifica a pretensão material do autor, o efeito jurídico que ele visa alcançar, enquanto elemento individualizador da acção, é o efeito prático-jurídico por ele pretendido e não a exacta caracterização jurídico-normativa da pretensão material, a sua qualificação ou subsunção no âmbito de certa figura ou instituto jurídico, sendo este fenómeno que permite compreender, por exemplo, que seja lícito ao tribunal convolar de um pedido de anulação do negócio jurídico para a declaração de ineficácia, sem que tal permita afirmar que, ao fazê-lo, o tribunal julgou objecto diverso do que havia sido peticionado ( cfr, por exemplo, o acórdão uniformizador 3/2001, de 23/1/01).”9
Por outro lado, cabe realçar que “a partilha é um negócio processual que é regulado simultaneamente pelo direito substantivo e pelo direito processual, pelo que, enquanto pertencente à categoria dos chamos actos duplos, pode ser afectada tanto por vícios de caráter substantivo, como por vícios de natureza processual” 10, sendo que “a característica da partilha como acto duplo mantém-se tanto quando esta é realizada por acordo dos interessados, ou seja, através de um contrato processual (arts. 1111.º, n.ºs 1 e 2, e 1112.º, n.º 1 do CPC).”11
No caso, verifica-se que pedido formulado pela Recorrente foi deduzido num momento em que não só a decisão homologatória da partilha ainda não havia sido proferida, como não havia sido elaborado o mapa de partilha.
Sendo pois incontroverso que o conhecimento do erro foi anterior à decisão do homologatória, num momento inclusivamente anterior à apresentação do mapa de partilha (artigo 1120.º, n.º 1, do CPC), embora se pudesse objectar que não se encontrava verificado o pressuposto para obter a emenda da partilha, ao abrigo do n.º 2 do artigo 1126.º do CPC (aplicável, à semelhança das restantes disposições, por via da remissão operada pelo n.º 1 do artigo 2.º do RIN), não pode deixar de se considerar que a avaliação da adequação do meio processual para exercitar uma pretensão não pode ser indiferente às idiossincrasias do caso concreto. Nessa medida, na sequência das vicissitudes processuais evidenciadas nos autos há que ter em linha de conta que a alegação do vício foi reiterada pela Recorrente, ainda que de modo processualmente anómalo, em momento posterior à prolação da sentença homologatória da partilha, no recurso de apelação interposto desta decisão, a 23-05-2023.
Na verdade, segundo o que é alegado pela Recorrente, o conhecimento do erro foi posterior ao acordo obtido em sede de conferência de interessados quanto à composição dos quinhões pelos valores atribuídos na relação de bens.
Note-se que esta possibilidade de suscitar incidente de emenda antecipada à partilha num momento anterior à elaboração do mapa de partilha e, necessariamente, ao proferimento da sentença homologatória da mesma parece ser expressamente admitida por Miguel Teixeira de Sousa/Lopes do Rego/Abrantes Geraldes/Pedro Pinheiro Torres, ao afirmarem que, se na pendência do processo, se verificar alguma das situações que justificam a emenda da partilha, “há o ónus de a alegar no processo pendente, sem que se possa alegar que é necessário aguardar pelo proferimento da sentença homologatória da partilha para deduzir o incidente”, precisando estes autores que este incidente de emenda à partilha “quando preenchida a respetiva previsão, pode ser antecipado para um momento em que o processo de inventário ainda se encontre pendente.”
Aliás, o acórdão do STJ de 07-02-2019 (proferido no âmbito do Processo n.º 2200/08.6TBFAF-A.G1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ), muito embora analisando o artigo 1387.º, do CPC de 1961 - que se reportava à emenda da partilha na falta de acordo, através de acção própria, a ser “proposta dentro de um ano, a contar do conhecimento do erro, contanto que este conhecimento [fosse] posterior à sentença” -, não obstante salientar incumbir “ao autor, por ser facto constitutivo do seu direito, a prova de que o conhecimento do erro é posterior à sentença homologatória da partilha”, não deixou de admitir a possibilidade de a emenda ser requerida com base num erro anterior à própria sentença homologatória, caso em que a mesma deveria ser pedida “dentro do processo de inventário”.
E embora no acórdão do STJ de 18-10-201212, tenha sido defendido que “se o erro for anterior à sentença de partilha, o interessado não pode pedir a emenda desta (pois neste caso teve possibilidade de invocar esse erro em conferência de interessados, em reclamação contra o valor atribuído aos bens e em reclamação contra o mapa da partilha - cfr. respectivamente, al. b) do n.º 4 do art. 1353.°, art. 1362.° e art. 1379.°, todos do CPC).”, cremos que, na situação sob apreciação, o direito de requerer a emenda antecipada à partilha se fundou num facto (cognoscibilidade do erro) superveniente relativamente aos momentos em que a interessada se podia ter insurgido contra o valor atribuído ao bem imóvel, em sede de reclamação à relação de bens ou de decurso de conferência de interessados (em que, de resto, a sua mandatária interveio, não presencialmente, mas por videoconferência).
Acresce que a circunstância de ter sido suscitada a questão do erro em momento anterior à organização do mapa de partilha de acordo com as adjudicações feitas na conferência de interessados, torna compreensível que não tenha sido deduzida pela Recorrente reclamação ao mapa da partilha, nos termos do n.º 5 do artigo 1120.º do CPC, com o mesmo fundamento.
Assim sendo, à luz de uma leitura integrada do regime legal que disciplina o processo de inventário, há que entender que o direito da interessada invocar a existência de erro na formação da sua declaração emitida em conferência de interessados (quanto ao valor do bem imóvel adjudicado à cabeça-de-casal) não se encontra precludido, uma vez que é a própria lei que, numa visão eminentemente pragmática - e perante a constatação empírica da ocorrência frequente de erros na descrição e na qualificação dos bens relacionados, assim como de erros que viciam a vontade dos declarantes -, prevê um mecanismo para a sua resolução, que poderá ser efectivado, no âmbito do próprio processo de inventário, ainda que a decisão homologatória tenha transitado em julgado.
Em face do exposto, cabendo apreciar o requerimento apresentado pela Interessada enquanto incidente de emenda antecipada à partilha nos termos acima explanados, impõe-se que o tribunal a quo tome conhecimento em conformidade; se necessário, no sentido de ampliação da matéria de facto que se revele pertinente relativamente à verificação dos requisitos do erro alegado pela Interessada (cfr. artigo 682.º, n.º3, do CPC)
III - DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a revista procedente, pelo que se revoga em conformidade o acórdão recorrido, determinado a baixa dos autos ao tribunal a quo para proceder ao conhecimento do requerimento da Interessada EE, apresentado em 18-12-2022, enquanto incidente de emenda antecipada à partilha com fundamento em erro sobre o objecto; se necessário, com ampliação da matéria de facto que se revele pertinente relativamente à verificação dos requisitos do erro invocado.
Custas pela Recorrida.
Lisboa 11 de Março de 2025
Graça Amaral (Relatora)
Ricardo Costa
Luís Espírito Santo
_____________________________________________
1. Na conferência, as interessadas DD, cabeça-de-casal, e EE, por acordo, compuseram os quinhões respectivos, adjudicando a esta bens móveis e à interessada DD bens móveis e um imóvel relacionado como verba 6.
2. tendo em consideração que a aceitação da proposta ocorreu em erro, deve ser ordenada o cancelamento da adjudicação, e em consequência:
a) Ser ordenada a realização de uma avaliação do imóvel, e após esse facto, serem determinadas as tornas caso exista efetivamente obrigação das mesmas serem prestadas;
b) Caso o pedido de avaliação seja indeferido, desde já a Requerente indica que o imóvel tem o valor de pelo menos € 70.000,00, disponibilizando-se para efetuar o pagamento de metade a título de tornas.
3. Processo n.º 268/19.9T8CTB-A.C1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.
4. Filipe César Marques, “A homologação da partilha”, Julgar, n.º 24, 2014, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 157-158.
5. Filipe César Marques, obra citada, p.157.
6. Parecer citado no acórdão do STJ de 12-01-1973, Processo 64288, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 223, Fevereiro, 1973, pp. 181-184. Neste sentido, cfr. também, João António Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, volume II, Coimbra, Almedina, 1990, p. 549.
7. Dispõe o n.º1 que Ainda que a decisão homologatória tenha transitado em julgado, a partilha pode ser emendada no próprio inventário por acordo de todos os interessados, se tiver havido erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro suscetível de viciar a vontade das partes. O n.º2, prevendo a situação de falta de acordo dos interessados, preceitua que Na falta de acordo quanto à emenda, o interessado requer fundamentadamente, no próprio processo, que a ela se proceda, no prazo máximo de um ano a contar da cognoscibilidade do erro, desde que esta seja posterior à decisão, aplicando-se à tramitação o disposto quanto aos incidentes da instância.”
8. Miguel Teixeira de Sousa/Carlos Lopes do Rego/Abrantes Geraldes/Pedro Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, Coimbra, Almedina, 2020, p. 146.
9. Proferido no âmbito do Processo n.º 399/1999.C1.S1, a que se pode aceder através das Bases Documentais do ITIJ.
10. Miguel Teixeira de Sousa/Carlos Lopes do Rego/Abrantes Geraldes/Pedro Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, obra citada, p. 144.
11. Miguel Teixeira de Sousa/Carlos Lopes do Rego/Abrantes Geraldes/Pedro Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, obra citada, p. 144.