Para que a dupla conforme deixe de actuar como obstáculo à revista, torna-se necessário, uma vez verificada a decisão confirmatória da sentença apelada, a aquiescência, pela Relação, do enquadramento jurídico suportado numa solução jurídica inovatória, que aporte preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros enunciados na sentença proferida em 1ª Instância.
Recorrente/Autora/AA
Recorridos/Réus/BB e outros
Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO
1. AA e CC, instauraram a presente ação declarativa contra, DD, BB, EE e FF, alegando, com utilidade, que são donos da fração autónoma designada pela letra “C”, correspondente ao 2.º andar direito do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., em ..., composta por 4 divisões assoalhadas, uma cozinha, duas casas de banho, um corredor, uma despensa, uma arrecadação no sótão e um estacionamento do rés-do-chão .
Após a realização da respetiva escritura de compra e venda, os Autores constataram que o referido lugar de estacionamento correspondente à “fração C” encontrava-se indevidamente ocupado pelos Réus.
Instados a desocuparem o lugar de estacionamento, os Réus não o fizeram.
O espaço de estacionamento tem um valor de mercado nunca inferior a 40.000$00, montante que os Autores terão de despender por uma área igual para parquearem a sua viatura.
Concluem assim a petição inicial:
“Nestes termos e nos melhores de direito (...), deve a presente acção ser julgada procedente, porque provada e, consequentemente:
A) Condenados os réus a reconhecerem os autores como donos e legítimos proprietários do estacionamento acima identificado.
B) Condenados os réus a abster-se de fazer uso do mesmo.
C) Que a título de indemnização por prejuízos sofridos pelos autores, sejam os réus condenados ao pagamento da quantia de esc: 40.000$00 (...) por cada mês decorrido desde a data de 20 de janeiro de 2001 até à libertação e entrega efectiva do identificado lugar de estacionamento aos AA.”
2. Regularmente citados, contestaram os Réus, alegando, também em síntese, que são donos das frações “A” (correspondente ao 1.º andar direito) e “B” (correspondente ao 1.º andar esquerdo) do prédio acima identificado, sendo cada uma delas composta por 4 divisões assoalhadas, cozinha, duas casas de banho, corredor, despensa, terraço, uma arrecadação no sótão e um estacionamento do rés-do-chão.
Os Réus vêm ocupando esses dois lugares de estacionamento desde que, em 1993, adquiriram as identificadas frações, sendo, assim, falso que ocupem o lugar de estacionamento que os autores afirmam pertencer à “fração C”.
Concluem assim:
“Nestes termos, deve a presente ação ser julgada não provada e improcedente, com a consequente absolvição dos RR. e demais consequências legais”.
3. No dia 9 de dezembro de 2002 os Autores deduziram incidente de intervenção principal provocada, com vista a chamarem à ação:
GG;
HH e mulher, II;
JJ e mulher, KK; e,
LL.
4. Admitido o incidente, todos os chamados contestaram, pugnando pela improcedência da ação.
5. Por sentença proferida no dia 28 de janeiro de 2015, no apenso B), MM foi julgado habilitado a ocupar, nestes autos, a posição processual de HH e mulher II, JJ e GG, nos seguintes termos:
“(...) julgo MM habilitado a intervir na presente acção, no lugar dos requerentes, nos termos do artigo 356.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil. Tal substituição ocorrerá apenas no que respeita aos pedidos formulados sob as alíneas A) e B).
No que tange ao pedido deduzido em C) (indemnização pelos prejuízos sofridos com a ocupação do estacionamento), mantém-se a intervenção dos requerentes, juntamente com o ora habilitado, sendo a dos primeiros limitada ao período compreendido entre 20.01.2001 e a data de transmissão da dita fracção (03.07.2013) e a do segundo restrita ao período subsequente a essa transmissão.
6. Por sentença proferida no dia 14 de outubro de 2015, no apenso C), NN e OO foram julgadas habilitadas a ocupar, nestes autos, a posição processual de DD e mulher, BB e FF e mulher, EE, nos seguintes termos:
“(...) julgo NN, e OO habilitadas a intervir na presente acção, nos termos do artigo 356.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil.
Tal substituição ocorrerá apenas no que respeita aos pedidos formulados sob as alíneas A) e B).
No que tange ao pedido deduzido em C) (indemnização pelos prejuízos sofridos com a ocupação do estacionamento), mantém-se a intervenção dos requerentes, juntamente com as ora habilitadas, sendo a dos primeiros limitada ao período compreendido entre 20.01.2001 e a(s) respectiva(s) data(s) de transmissão da(s) dita(s) fracções e as das segundas restrita ao período subsequente (a tal transmissão)”.
7. A audiência de discussão e julgamento foi pela primeira vez agendada para o dia 29 de junho de 2005 (cfr. despacho de fls. 234, datado de 21 de setembro de 2004).
8. No dia 28 de janeiro de 2015 foi proferida a seguinte decisão:
“Julgo válida a desistência da instância apresentada por CC, ao abrigo do disposto no artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (os réus/intervenientes, notificados da desistência, nada disseram) e, em consequência, declaro extintos os presentes autos na parte a que a ele respeitam, nos termos dos artigos 285.º, n.º 2, e 277.º, alínea d), do mesmo diploma legal”.
9. Por sentença proferida no dia 14 de setembro de 2020, foram BB, PP, filha, e QQ, julgados habilitadas a ocupar, nestes autos, a posição processual do falecido réu DD.
10. Por sentença proferida no dia 15 de setembro de 2021, foram “os requerentes supra identificados”, ou seja, “HH e Outro”, que afinal são HH e JJ, julgados habilitadas a ocupar, nestes autos, a posição processual da falecida GG.
11. Foi proferida a sentença datada de 16 de outubro de 2023, de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
“Nestes termos e em face de todo o exposto, julgo a presente ação totalmente improcedente, por totalmente não provada e, em consequência, absolvo os Réus e habilitados de todo o peticionado”.
12. Inconformada, apelou a Autora, AA, tendo a Relação, conhendo do interposto recurso, proferido acórdão, em cujo dispositivo consignou: “Por todo o exposto, acordam os juízes na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente, mantendo, em consequência, a decisão proferida em primeira instância, de absolvição dos réus e habilitados, de todo o peticionado.
As custas do recurso, na vertente de custas de parte, são a cargo da apelante (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6, e 663.º, n.º 2).”
13. Novamente irresignada, a Autora, AA insurgiu-se contra a decisão proferida em 2.ª Instância, interpondo revista, aduzindo as respetivas conclusões.
14. Os Recorridos/Réus/ BB e outros apresentaram contra-alegações, pugnando, em síntese, pela inadmissibilidade da revista, outrossim, caso assim não se entenda, pela sua improcedência.
15. Notificada a Recorrente/Autora/AA (artºs. 654º n.º 2, 655º n.º 2 ex vi 679º, todos do Código de Processo Civil), apresentou requerimento adiante consignado: “AA, recorrente no processo à margem referenciado, notificada para se pronunciar nos termos do artigo 655º, nº 1, do CPC, vem dizer que não concorda que o recurso apresentado seja irrecorrível. Assim, em sede do recurso apresentado, a recorrente entende que o recurso de revista da decisão impugnada foi admitido em 19/11/202, uma vez que o Acórdão confirmou a sentença com fundamentação substancialmente diferente-artigo 671º, nº 3 do CPC- e além disso, foi invocado o disposto no artigo 672º, nº 1, alínea a) do CPC.”
16. Foi proferida decisão singular, em cujo dispositivo se determinou: “Pelo exposto, em razão dos fundamentos aduzidos, rejeita-se o presente recurso de revista.”
17. Notificados os litigantes da aludida decisão, a Recorrente/Autora/AA apresentou requerimento reclamando que sobre a matéria do despacho do relator recaia acórdão, que adiante se transcreve: “AA, recorrente no processo à margem referenciado, recorrente nos autos em tópico, notificada da decisão singular proferida, e sentindo-se prejudicada, vem requerer a V. Exas. se dignem ordenar a prolação de douto acórdão.
De facto, em sede do recurso apresentado, a recorrente entende que o recurso de revista da decisão impugnada foi admitido em 19/11/202, uma vez que o Acórdão confirmou a sentença com fundamentação substancialmente diferente-artigo 671º, nº 3 do CPC- e além disso, foi invocado o disposto no artigo 672º, nº 1, alínea a) do CPC.”
18. Foram cumpridos os vistos.
19. Cumpre decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
Cotejada a decisão singular proferida, este Tribunal ad quem não encontra quaisquer razões que infirme o respetivo dispositivo onde concluiu pela rejeição do recurso de revista interposta pela a Recorrente/Autora/AA, aliás tampouco alegadas.
Na verdade, sendo apodítico afirmar que o conhecimento das questões a resolver, recortadas das alegações apresentadas pela a Recorrente/Autora/AA tem, necessariamente, como pressuposto a admissibilidade do interposto recurso, importa o conhecimento da questão prévia, atinente à admissibilidade da revista, não se discutindo que o recurso deve cumprir os pressupostos da legitimidade, decorrentes do art.º 631º do Código de Processo Civil, a par da respetiva tempestividade, estabelecida no art.º 638° do Código de Processo Civil, bem como, a recorribilidade, tendo em atenção o estatuído no art.º 671º do Código de Processo Civil.
Cuidemos, pois, da admissibilidade do recurso de revista interposto pela a Recorrente/Autora/AA, respigando da decisão sumária proferida, sustentação bastante que justifica a rejeição do interposto recurso de revista.
Assim, para ancorar a predita decisão singular este Tribunal ad quem consignou a seguinte fundamentação:
“A previsão expressa dos tribunais de recurso na Lei Fundamental, leva-nos a reconhecer que o legislador está impedido de eliminar a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática, porém, já não está impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões.
A este propósito o Tribunal Constitucional sustenta que “Na verdade, este Tribunal tem entendido, e continua a entender, com A. Ribeiro Mendes (Direito Processual Civil, III - Recursos, AAFDL, Lisboa, 1982, p. 126), que, impondo a Constituição uma hierarquia dos tribunais judiciais (com o Supremo Tribunal de Justiça no topo, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional - artigo 210º), terá de admitir-se que “o legislador ordinário não poderá suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios recursos” (cfr., a este propósito, Acórdãos nº 31/87, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 9, pág. 463, e nº 340/90, id., vol. 17, pág. 349). Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso, pode concluir-se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática. Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões (…)”. (Acórdão n.º 159/2019 de 13 de março de 2019).
Assim, a lei processual civil estabelece regras quanto à admissibilidade e formalidades próprias de cada recurso, reconhecendo-se que a admissibilidade dum recurso depende do preenchimento cumulativo de três requisitos fundamentais, quais sejam, a legitimidade de quem recorre, ser a decisão proferida recorrível e ser o recurso interposto dentro do prazo legalmente estabelecido para o efeito.
Na verdade, não se discute que o recurso deve cumprir os pressupostos da legitimidade, decorrentes do art.º 631º do Código de Processo Civil, a par da respectiva tempestividade estabelecida no art.º 638° do Código de Processo Civil, bem como, a recorribilidade, tendo em atenção o estatuído no art.º 671º do Código de Processo Civil.
No caso que nos ocupa está reconhecida a tempestividade e legitimidade da Recorrente/Autora/AA, e, neste concreto pressuposto, uma vez que o requerimento de interposição de recurso obedeceu ao prazo legalmente estabelecido, sendo pacificamente aceite, outrossim, que a decisão de que recorre lhe foi desfavorável, questionando-se, porém, se a decisão proferida é recorrível.
Assim, impõe-se uma apreciação preliminar relativa à admissibilidade da revista interposta pela Autora/AA.
Importa, assim, convocar, a este propósito, as regras recursivas adjectivas civis, concretamente o art.º 671º n.º 3 do Código de Processo Civil, atinente à irrecorribilidade das decisões do Tribunal da Relação em consequência da dupla conforme, nos precisos termos aí concretizados (…não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância …).
Do art.º 671º n.º 3 do Código do Processo Civil condizente ao n.º 3 do art.º 721º do anterior Código do Processo Civil, com a redacção do Decreto-Lei n.º 303/2007 de 24 de Agosto, decorre que a decisão da segunda instância não tenha uma fundamentação essencialmente diferente da decisão de primeira instância para que produza a dupla conforme, ao contrário do que acontecia com a alteração adjectiva civil, imposta pelo DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto, em que se abstraía da fundamentação do acórdão da segunda instância para que se verificasse a dupla conforme.
Levado a cabo a exegese do consignado normativo adjectivo civil o Supremo Tribunal de Justiça tem perfilhado o entendimento de que somente deixa de actuar a dupla conforme a verificação de uma situação, conquanto o acórdão da Relação, conclua pela confirmação da decisão da 1ª Instância, sem voto de vencido, em que o âmago fundamental do respectivo enquadramento jurídico seja diverso daqueloutro assumido neste aresto, quando a solução jurídica prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a sentença apelada, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, seja o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada.
Torna-se necessário, pois, para que a dupla conforme deixe de actuar, a aquiescência, pela Relação do enquadramento jurídico sufragado em 1ª Instância, suportada numa solução jurídica inovatória, que aporte preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros enunciados no aresto apelado, neste sentido, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Fevereiro de 2014; de 18 de Setembro de 2014; de 8 de Janeiro de 2015; de 19 de Fevereiro de 2015, de 30 de Abril de 2015, de 28 de Maio de 2015, de 26 de Novembro de 2015, de 16 de Junho de 2016, e de 8 de Novembro de 2018, in, http://www.dgsi.pt/stj,
A este propósito, sustenta António Abrantes Geraldes, in, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, Almedina, página 349, “que com o CPC de 2013 foi introduzida uma nuance: deixa de existir dupla conforme, seguindo a revista as regras gerais, quando a Relação, para a confirmação da decisão da 1ª instância, empregue “fundamentação essencialmente diversa”.
A admissibilidade do recurso de revista, no caso do acórdão da Relação ter confirmado, por unanimidade, a decisão da 1ª instância, está, assim, dependente do facto de ser empregue “fundamentação substancialmente diferente”.
Aclarando o sentido e alcance da expressão “fundamentação essencialmente diferente”, elucida Abrantes Geraldes, in, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª edição, Almedina, página 352, que “a aferição de tal requisito delimitador da conformidade das decisões deve focar-se no eixo da fundamentação jurídica que, em concreto, se revelou crucial para sustentar o resultado declarado por cada uma das instâncias, verificando se existe ou não uma real diversidade nos aspectos essenciais”.
No caso sub iudice, confrontadas as decisões proferidas em 1ª e 2ª Instâncias, divisamos, com clareza, para além de o acórdão da Relação ter concluído, sem voto de vencido, pela confirmação da decisão da 1ª Instância, não ter sido empregue uma “fundamentação substancialmente diferente”.
Resulta consignado, com utilidade, na sentença proferida em 1ª Instância:
“2. Do Direito:
No caso em apreço, primeiro o casal, e depois de dissolvido, apenas a Autora mulher prosseguiu peticionando que (…) se reconheça a Autora mulher como dona e legítima possuidora de um desses 6 lugares de estacionamento (que não identifica, caracteriza ou localiza no rés-do-chão do referido prédio), cumulando com o pedido de, que se abstenham os Réus primitivos (e agora os réus habilitados), de fazer uso desse lugar de estacionamento, e ainda, o pedido cumulado de condenação dos Réus primitivos, no pagamento de uma quantia mensal à Autora (…) e até à entrega efectiva desse lugar de estacionamento à Autora, a título de indemnização pelos prejuízos sofridos, o mesmo é dizer, enquanto valor locatício desse espaço.
Claro é de antever que soçobra a pretensão da Autora.
Desde logo este último pedido estaria intimamente ligado com a privação de uso e fruição de espaço num imóvel, o que não resultou provado, sequer o valor utilizado para seu computo. (sublinhado nosso)
No mais, o registo predial não é constitutivo de direitos, é declarativo de direitos, pelo que em face da factualidade apurada, se constata que existe uma desconformidade entre o “que está” e aquilo que “se descreve no registo predial”.
(…) Aqui, discute-se uma compra e venda de fracção autónoma em 2001, e sua descrição, englobando além do mais, um lugar de estacionamento (sem mais concretização), um acordo de proprietários e condóminos no ano de 1993, sendo que, era já do conhecimento dos aqui Autores primitivos desse acordo, dessa desconformidade real e registral, sem que seja possível a sua correção, a mero intento dos Autores, pois que adquiriram a quem não tinha uma fracção com as características que dizem que tinha e sabiam-no (!), aliás o Tribunal ouviu os vendedores. (sublinhado nosso)
Ante o que dispõem os art.ºs 1420º, n.ºs 1 e 2, 1421º, n.ºs 1 e 2, al. d) a contrario, 1422º, n.º 1 e 1422º-A, n.ºs 1 e 2, todos do Código Civil, apesar de não ser possível subsumir à situação dos autos ao citado no art.º 1422º-A, n.ºs 1 e 2, porque é facto, a troca de lugares de estacionamento, por acordo dos envolvidos (prova do contrário, ie ausência de acordo de todos os envolvidos, não logrou a Autora fazer), temos uma “cedência” de parte de uma fracção autónoma, a adquirida pela Autora e marido em 2001, por acordo dos envolvidos, e documentada por escrito reconhecido notarialmente mas que não foi reconduzido à necessária alteração do título da propriedade horizontal com a intervenção de todos os condóminos.
Só podemos entender a questão cerne desta acção, como uma desconformidade ou erro, entre o que figura do licenciamento camarário e o que de facto “está”, “existe”, sem que à Autora assista o direito de ver reconhecida, sem mais, só com base no registo predial, que é declarativo de direitos, um direito que não logrou comprovar ter, e mais, exercer esse direito, sequer os seus antepossuidores o fizeram – pois alterar a propriedade horizontal carece de consentimento de todos os condóminos. (sublinhado nosso)
(…) Face aos factos dados como provados, o que releva é o conhecimento que à data da aquisição e indubitavelmente, à data da PI, a Autora detinha, de que adquirira uma fracção sem direito a um lugar de estacionamento (que não é o mesmo que uma garagem), do que foi alertada pelos vendedores, marido e mulher, ouvidos em sede de julgamento, tratando-se inclusive de uma venda a próprio, pois o marido outorgou enquanto representante do vendedor, e também enquanto comprador, ao lado da esposa. (sublinhado nosso)
(…) Parece-nos, tal é o suficiente para afirmar que, com os fundamentos que invocara na sua acção, soçobra a pretensão da Autora, conduzindo à total improcedência da acção. (sublinhado nosso)
Respigamos, outrossim, do acórdão recorrido:
“3.2.3 – Do enquadramento jurídico:
(…) Diga-se, aliás, em abono da verdade, que a fundamentação jurídica da sentença recorrida constitui um texto que não é de fácil leitura e apreensão; é, em vez disso, e salvo o devido respeito, um texto confuso.
Importa ainda referir que a construção fraseológica de uma sentença deve pautar-se pela correção sintática e propriedade terminológica e semântica, o que, salvo o devido respeito, não é o caso da sentença recorrida.
A presente é uma ação de reivindicação. (sublinhado nosso)
Nela se pede: - o reconhecimento do direito de propriedade dos primitivos autores (hoje, apenas da autora mulher), sobre um lugar de estacionamento que dizem fazer parte integrante da fração identificada em 1. dos factos provados, bem comum à data da instauração da ação, e atualmente pertença apenas da autora mulher; - a condenação dos primitivos a absterem-se de fazer uso do mesmo.
(…) constata-se que em momento algum é identificado o lugar de estacionamento que, segundo os autores, faz parte integrante da fração “C”.
(…) A alegação e prova do direito de propriedade do demandante e da detenção por parte do demandado, ou seja, da causa de pedir, cabem àquele, por via do disposto no artigo 342.º, n.º 1, do CC. Quer isto dizer que à luz das regras do direito probatório material, o ónus da prova do reivindicante limita-se à demonstração de que é proprietário de uma determinada coisa que se encontra sob o uso material do réu. (sublinhado nosso)
Uma vez provada a propriedade e a detenção pelo réu, caberá ao demandado provar que detém a coisa a título legítimo, se quiser eximir-se à condenação de restituição; ou seja, tem o utente da coisa o ónus de alegação e prova de factos legitimadores do uso da coisa, portanto, dos factos impeditivos do efeito essencial reivindicante (art. 342º, nº 2 do Cód. Civil). (sublinhado nosso)
Importa chamar a terreiro os seguintes artigos do Código Civil, todos referentes à propriedade horizontal:
Artigo 1418.º Conteúdo do título constitutivo
“1. No título constitutivo serão especificadas as partes do edifício correspondentes às várias frações, por forma que estas fiquem devidamente individualizadas, e será fixado o valor relativo de cada fração, expresso em percentagem ou permilagem, do valor total do prédio.
2. (...).
3. A falta da especificação exigida pelo n.º 1 e a não coincidência entre o fim referido na alínea a) do n.º 2 e o que foi fixado no projeto aprovado pela entidade pública competente determinam a nulidade do título constitutivo”.
Artigo 1419.º Modificação do título
“1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 1422.º-A e do disposto em lei especial, o título constitutivo da propriedade horizontal pode ser modificado por escritura pública ou por documento particular autenticado, havendo acordo de todos os condóminos.
2 - A falta de acordo para alteração do título constitutivo quanto a partes comuns pode ser suprida judicialmente, sempre que os votos representativos dos condóminos que nela não consintam sejam inferiores a 1/10 do capital investido e a alteração não modifique as condições de uso, o valor relativo ou o fim a que as suas frações se destinam.
(...)”.
Artigo 1420.º Direitos dos condóminos
“1. Cada condómino é proprietário exclusivo da fração que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício.
2. O conjunto dos dois direitos é incindível; nenhum deles pode ser alienado separadamente, nem é lícito renunciar à parte comum como meio de o condómino se desonerar das despesas necessárias à sua conservação ou fruição”.
Artigo 1421.º Partes comuns do prédio
1. São comuns as seguintes partes do edifício:
(...)
2. Presumem-se ainda comuns:
(...)
d) As garagens e outros lugares de estacionamento;
(...)
3. O título constitutivo pode afetar ao uso exclusivo de um dos condóminos certas zonas das partes comuns.
Conforme resulta da certidão junta a fls. 19-22:
1. Por escritura pública realizada no dia 16 de outubro de 1992, J..., Lda, representada pelo seu gerente RR, submeteu ao regime da propriedade horizontal, o prédio urbano de sua pertença, sito na Rua ... com gaveto para a rua ..., em ..., prédio descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ...02, inscrito na matriz sob o artigo ..45;
2. (...) com as seguintes frações autónomas:
A – Correspondente ao primeiro andar direito para habitação;
B – Correspondente ao primeiro andar esquerdo para habitação;
C – Correspondente ao segundo andar direito para habitação;
D – Correspondente ao segundo andar esquerdo para habitação;
E – Correspondente ao terceiro andar direito para habitação;
F – Correspondente ao terceiro andar esquerdo para habitação;
G – Correspondente ao quarto andar direito para habitação;
H – Correspondente ao quarto andar esquerdo para habitação – certidão da escritura de constituição da propriedade horizontal junta a fls. 19-22;
3. Consta ainda da escritura referida em 1., o seguinte:
“QUE, cada uma das fracções “A” e “B” são compostas por quatro divisões assoalhadas, uma cozinha, duas casas de banho, um corredor, uma despensa, um terraço, um estacionamento no rés do chão e uma arrecadação no sótão (...);
QUE, cada uma das fracções “C”, “D” e “H” são compostas por quatro divisões assoalhadas, uma cozinha, duas casas de banho, um corredor, uma despensa, um estacionamento no rés do chão e uma arrecadação no sótão (...);
QUE, cada uma das fracções “E” e “F” são compostas por quatro divisões assoalhadas, uma cozinha, duas casas de banho, um corredor, uma despensa e uma arrecadação no sótão (...);
QUE, a fracção “G” é composta por três divisões assoalhadas, uma cozinha, duas casas de banho, um corredor, uma despensa, um estacionamento no rés do chão e uma arrecadação no sótão (...)”.
Pela Ap. 10/....92, foi inscrita na 1.ª Conservatória do Registo Predial de ..., a constituição da propriedade horizontal sobre o supra identificado prédio urbano.
Cada uma das frações “A”, “B”, “C”, “D”, “G” e “H” está descrita, tanto no título constitutivo da propriedade horizontal, como no registo predial, como sendo composta, além do mais, por “um estacionamento no rés do chão”.
Estaria, assim, ilidida a presunção de que os lugares de estacionamento existentes no prédio constituem partes comuns.
Desconhece-se, no entanto, que concreto lugar de estacionamento corresponde a cada uma daquelas identificadas frações, incluindo, portanto, à fração “C”, aspeto relativamente ao qual nada é referido na escritura de constituição da propriedade horizontal, assim como, obviamente, na respetiva inscrição predial.
Nada se sabe, portanto, quanto aos lugares de estacionamento que fazem parte integrante de cada uma daquelas frações. (sublinhado nosso)
Não se mostrando explicado no título constitutivo da propriedade horizontal, ainda que por remissão para qualquer documento complementar, como estão identificados fisicamente os lugares de estacionamento, isto é, que lugar de estacionamento corresponde a cada uma das frações “A”, “B”, “C”, “D”, “G” e “H”, é notória a deficiência quanto à forma como as frações foram individualizadas.
Uma vez que o título constitutivo da propriedade horizontal não permite, de todo, saber qual o exato local do estacionamento que integra a fração “C”, inexiste qualquer probabilidade minimamente séria de:
- de se reconhecer o direito de propriedade da autora AA sobre um não identificado lugar de estacionamento no rés-do-chão; e, por conseguinte,
- de se condenar quem quer que seja a abster-se de fazer uso do mesmo.
Eis a razão pela qual, sem necessidade de mais considerandos, por absolutamente desnecessários, terá a apelação de ser julgada improcedente, não sem que fique por afirmar que face aos enunciados descritos em 17., 18., 19., 20. e 21. dos factos provados, a pretensão formulada na petição inicial não deixaria, por certo, de ser considerada uma flagrante manifestação de abuso de direito, nos termos do art. 334.º do CC.”
O acórdão recorrido não só conclui pela confirmação da decisão da 1ª Instância, mas também o cerne do respectivo enquadramento jurídico identifica-se com aqueloutro assumido e plasmado pela 1ª Instância, e, conquanto concordemos com o afirmado pelo Tribunal a quo de que a fundamentação jurídica da sentença recorrida constitui um texto que não é de fácil leitura e apreensão, revelando-se um texto confuso, temos de convir que o aresto em escrutínio não encerra, de todo, um qualquer enquadramento jurídico alternativo.
As Instâncias reconhecem estarmos perante uma ação de reivindicação, sustentando que a alegação e prova, que não foi feita nos autos, do direito de propriedade da demandante e da detenção por parte dos demandados, cabe àquela (art.º 342º n.º 1 do Código Civil), donde, à luz das regras do direito probatório material, o ónus da prova da reivindicante limitar-se-ia à demonstração de que é proprietária de uma determinada coisa que se encontra sob o uso material dos demandados.
Ambas as Instância acabam por encontrar a solução para o caso trazido a Juízo, e no essencial, pela ausência de demonstração, por parte da demandante, do arrogado direito de propriedade do alegado lugar de estacionamento, desconhecendo-se que concreto lugar de estacionamento corresponde a cada uma daquelas identificadas frações, incluindo, portanto, à fração “C”, aspeto relativamente ao qual nada é referido na escritura de constituição da propriedade horizontal, assim como, obviamente, na respetiva inscrição predial, nada se sabendo quanto aos lugares de estacionamento que fazem parte integrante de cada uma daquelas frações.
O enquadramento jurídico sufragado em 1ª Instância, pese embora, como já adiantamos, constitua um texto que não é de fácil leitura e apreensão, revelando-se um texto confuso, tem a aquiescência da Relação, não sendo despicienda a conclusão do Tribunal recorrido ao reconhecer: “mantendo, em consequência, a decisão proferida em primeira instância, de absolvição dos réus e habilitados, de todo o peticionado.”, o que é bem diverso de ter sustentado a solução encontrada para o litígio em fundamentação substancialmente diferente daqueloutra assumida em 1ª Instância.
Assumindo-se que a aferição do requisito delimitador da conformidade das decisões deve focar-se no eixo da fundamentação jurídica que, em concreto, se revela crucial para sustentar o resultado declarado por cada uma das Instâncias, afirmamos, sem reserva que, quer numa, quer noutra Instâncias, a pretensão jurídica arrogada pela Autora/AA não colheu “fundamentação substancialmente diferente”, ao invés a solução encontrada pelas Instâncias teve em devida atenção que a demandante não demonstrou, em seu benefício, a essencialidade dos factos constitutivos do direito arrogado.
Para efeitos de aferição da conformidade ou da desconformidade decisória, não pode ser atribuído significado a alterações sem reflexo na decisão final, sob pena de, no caso contrário, o disposto no artigo 671.º, n.º 3, do CPC ficar destituído da sua função substancial (que é a de efetuar a seleção dos casos em que é justificado o acesso ao terceiro grau de jurisdição).
Tudo visto, reconhecemos que do confronto dos enunciados arestos, importa concluir que o acórdão, objecto do recurso de revista, concluiu sem voto de vencido e aduzindo um enquadramento jurídico sem fundamentação essencialmente diferente, do aresto proferido em 1ª Instância, pelo que, temos de reconhecer a actuação da dupla conforme.
Verificada a dupla conforme, decorrente da aplicação do art.º 671º n.º 3 do Código de Processo Civil, impõe-se que este Tribunal ad quem não conheça do objeto da revista, por inadmissibilidade, nos termos discreteados.”
Reconhecendo inexistir razão que nos leve a divergir do consignado na decisão singular, restará concluir pela inadmissibilidade da interposta revista excecional, e não se diga, ademais, como faz a Recorrente/Autora/AA que o Tribunal da Relação de Lisboa, em 19 de novembro de 2024, concluiu pela admissibilidade do recurso de revista, uma vez que, como sabemos, o despacho que admite o recurso, que fixa a sua espécie e determina o efeito que lhe compete, não vincula o tribunal superior, conforme decorre da lei adjetiva - art.º 641º n.º 5 do Código de Processo Civil - .
III. DECISÃO
1. Pelo exposto e decidindo, os Juízes que constituem este Tribunal, julgam improcedente o pedido de revogação da proferida decisão singular que rejeitou o interposto recurso de revista, mantendo-a na íntegra.
2. Custas pela Recorrente/Autora/AA.
Notifique.
Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 13 de março de 2025
Oliveira Abreu (relator)
Fátima Gomes
Ferreira Lopes