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ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA
DECLARAÇÃO DE RECEBIMENTO DO PREÇO
VALOR PROBATÓRIO
Sumário
I - Havendo declaração confessória do recebimento do preço constante de escritura pública, o pagamento tem-se por provado. II - Alegando o autor ter mandatado o réu para este lhe continuasse a tratar das demais burocracias inerentes à venda, e que este se comprometeu a depositar o valor correspondente à venda na conta da entidade Bancária indicada, incumbe ao autor a prova desse acordo. III - A inexistência desse montante no extracto bancário do autor é manifestamente irrelevante em termos de prova, dado que, antes disso, cabia ao autor a prova referida em II que não logrou conseguir.
Texto Integral
Tribunal Judicial da Comarca de Porto
Juízo Central Cível do Porto - Juiz 3
Processo nº 14332/22.3T8PRT.P1
ACÓRDÃO
I. RELATÓRIO (transcrição do relatório da sentença)
AA veio interpor contra BB a presente acção declarativa de condenação na forma de processo comum.
Sustenta que mandatou o réu para depositar, em sua conta bancária, um cheque que recebeu como contrapartida da venda da nua propriedade de um prédio seu, mas que o réu, não obstante as interpelações que nesse sentido lhe dirigiu, nunca procedeu a tal depósito, privando-o de tal valor com o que lhe causou dificuldades e agruras. Pretende a condenação do réu na entrega dessa quantia, €48.500,00, acrescida de €2.500,00, para ressarcimento dos danos não patrimoniais que alega ter sofrido, e de juros.
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O réu contestou.
Sustenta ser parte ilegítima na presente acção porquanto, tendo sido declarado insolvente, seria na acção respectiva que contra ele teria que ser exercido o direito que o autor se arroga. Mais impugna a factualidade alegada pelo autor, sustentando que a ser procedente a acção quem enriqueceria sem causa seria este último. E que sempre actuaria o autor em abuso de direito, por olvidar empréstimo no valor de €33.500,00, que lhe fez e do qual nunca o reembolsou. Termina pedido a condenação do autor como litigante de má fé.
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O autor respondeu.
Procedeu-se ao saneamento dos autos, no âmbito do qual se julgou improcedente a invocada excepção de ilegitimidade.
Teve lugar o julgamento.
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A final foi proferida sentença que absolveu o Réu dos pedidos formulados.
RECURSO
Não se conformando com a decisão veio o Autor interpor recurso.
Após alegações, termina com as seguintes CONCLUSÕES:
1- O aqui Recorrente está em clara desvantagem probatória uma vez que a sentença recorrida desvaloriza os extratos bancários apresentados pelo mesmo, dando-os como não conclusivos. Quando, na verdade, os extratos bancários são uma clara prova de que o A. não recebeu o preço que lhe era devido por ter vendido imóvel sua propriedade.
2- Isto, pois “A dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.” (art.414º do CPC
3- O aqui Recorrente já cumpriu o ónus da prova inicial que sobre ele recai ao demonstrar que existiu a venda e que o dinheiro não foi recebido, comprovado pelos extratos bancários já juntos aos autos.
4- No caso concreto, os factos dados como não provados nºs 8 a 19 aproveitam apenas ao R., que em momento nenhum tentou sequer provar que não teria recebido o valor da venda do imóvel do A. e apenas se limitou a alegar que nada disso teria acontecido
5- Para além de que, estranhamente, vem depois alegar que mesmo que tivesse recebido o montante da venda não o iria transferir ao irmão por conta de um suposto empréstimo que lhe teria feito anteriormente.
6- Parece clara a violação do princípio da boa-fé e do princípio de colaboração das partes para a descoberta material no âmbito do processo (cfr. artº. 417º, nº. 2, C.P.C.) por parte do Réu, que nem sequer se prontou a exibir os seus extratos bancários relativos ao tempo da compra e venda.
7- Causando ao aqui Recorrente uma grave dificuldade em fazer prova da locuplação do valor de € 48.500,00.
8- Por uma questão de equidade, e porque não foram aplicadas as regras da inversão do ónus da prova, nos termos do art.344º/2 do Código Civil e art.414º do CPC, solicita-se que seja imposta ao Réu a prova de que não recebeu o montante de € 48.500,00.
9- Entende assim, também, a aqui Recorrente que a sentença recorrida violou o disposto no artº. 344º do Código Civil e art.º 414º do CPC.
TERMOS em que deve revogar-se a sentença recorrida por tal ser de JUSTIÇA.
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Não houve contra-alegações
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil
No caso vertente, em face das conclusões do recurso, as questões a decidir prendem-se com: ● a impugnação da matéria de facto ● as regras do ónus da prova
III. FUNDAMENTAÇÃO
A. OS FACTOS
Decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto controvertida.
FACTOS PROVADOS
1. Por escritura de compra e venda, datada de 26 de Julho de 2011, no Cartório Notarial do Protesto de Letras do Porto, o réu declarou comprar a CC e a DD, que o declararam vender, pelo preço de vinte e sete mil quatrocentos e dez euros, o direito de usufruto, sobre uma habitação tipo apartamento 3, com terraço contíguo e lugar de garagem “E1” e compartimento de arrumos “E2”, ambos na cave, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Avenida ..., ..., da freguesia ... no concelho de Valongo, inscrito na matriz sob o artigo ... e descrita na Conservatória de Registo Predial de Valongo sob o n.º ...-E”.
2. Pela mesma escritura o autor declarou adquirir a CC e a DD, que a declararam vender, pelo preço € 33.500,00, a propriedade da fracção autónoma em causa “cativa do ora constituído direito de usufruto”, conforme documento que sob o n.º 1 se mostra junto com a petição inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
3. Posteriormente, por escritura publica, datada de 18 de Julho de 2016, realizada no Cartório Notarial de EE, a massa insolvente do réu, representada pelo seu administrador judicial de insolvência, FF, declarou vender, pelo preço de €1.550,00, a GG e HH, que o declararam comprar, o direito de usufruto incidente sobre essa mesma fracção.
4. Nessa mesma escritura o autor tendo declarado vender, pelo preço de €48.500,00, a GG e HH, que declararam aceitar, a raiz da propriedade dessa mesma fracção, conforme documento que sob o n.º 2 se mostra junto com a petição inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
5. Consta do texto desta escritura que as partes vendedoras declaram ter recebido o preço.
6. O réu não enviou documentos alguns ao autor e não depositou qualquer montante na conta do autor.
7. Por sentença transitada em julgado em 07-01-2014, o réu foi declarado insolvente, tal processo foi declarado encerrado por despacho de 04-12-2017 e, por despacho de 07-10-2022, foi concedida ao réu a exoneração do passivo restante.
FACTOS NÃO PROVADOS
8. O autor que residia em Lisboa entregou ao irmão a logística da referida venda, encarregando-se e disponibilizando-se o réu para a execução de todos os tramites necessários para que a mesma se viesse a concretizar, como as comunicações com possíveis compradores, visitas ao imóvel e demais burocracias.
9. E assim sucedeu até ao acto da escritura de compra e venda do imóvel.
10. O autorcombinou com o réu que este lhe continuaria a tratar das demais burocracias inerentes à venda.
11. Tendo-se o réu comprometido a depositar o valor correspondente à venda no montante de cerca de €48.500.00 na conta do autor na entidade Bancária Banco 1... conta n.º ... com o IBAN nº ... e remetendo-lhe logo de seguida e por correio todos os documentos referentes á escritura, ao depósito e outros mais inerentes à venda.
12. O réu apropriou-se desse montante de €48.500.00 que fez seu. 13. Por diversas vezes o Autor entrou em contacto com o réu, no sentido de o relembrar de depositar a quantia resultante da venda na sua conta bancária assim como o envio de todos os documentos inerentes à mesma.
14. O réu, sempre lhe dizia que estava a tratar disso.
15. O autor, por motivos de trabalho, saiu do país apenas regressando a Portugal em 2019.
16. Regressando a Portugal o autor, e porque reclamava ainda o seu dinheiro produto da venda do seu imóvel junto do aqui réu, tentou retomar, por diversas vezes, o contacto e comunicação com o irmão de forma mais assídua e eficaz, contudo todas as tentativas saíram frustradas.
17. Assim como frustradas foram todas as vezes que tentou entrar em contacto com os seus sobrinhos, filhos do réu, na tentativa de esclarecer e resolver o assunto, visto que o seu irmão se recusava e recusa a com o autor falar.
18. Assim, durante todos estes anos viu-se o autor privado de poder usufruir do seu dinheiro, que tanta falta lhe fazia, vendo-se privado de alguns bens de primeira necessidade, recorrendo inclusivamente a trabalho fora do país por modo a poder fazer face a todas as suas despesas.
19. A actuação e comportamento do réu causou no autor um enorme desgaste psicológico, tendo ficado deprimido e desgastado com a atitude do réu, ao ponto de se tornar irascível, tendo tudo provocado uma enorme mágoa e angústia.
20. Não só o réu não assistiu nem interveio no acto de compra e venda de 18 de Julho de 2016, como nada combinou com o autor seu irmão relativamente à alegada venda.
21. Muito menos com ele combinou receber dos compradores o valor do preço para posteriormente lho entregar.
22. E nada recebeu dos compradores em representação do autor.
23. O réu emprestou ao autor o valor de 33.500,00€ para pagar o preço por ele devido no âmbito da compra e venda referida em 1 e 2.
24. Que este nunca restituiu
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DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO /AS REGRAS DO ÓNUS DA PROVA
Nos termos do artigo 640.º, n.º 1, do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, conforme preceitua a al. a), do n.º 2, do mesmo artigo.
Seguiremos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-04-2023, tirado no processo 13205/19.1T8PRT-A.P1.S1, in www.dgsi.pt, relatado pela Srª Conselheira Maria João Tomé. Pode ler-se: “Para efeitos do disposto nos arts. 640.º e 662.º, n.º 1, do CPC, de acordo com a abundante jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, importa distinguir, de um lado, entre as exigências da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a)), da especificação dos concretos meios probatórios convocados (art. 640.º, n.º 1, al. b)) e da indicação da decisão a proferir (art. 640.º, n.º 1, al. c)) - que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto – e, de outro lado, a exigência da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados (art. 640.º, n.º 2, al. a)) – que visa facilitar o acesso aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação. Enquanto a inobservância das primeiras (art. 640.º, n.º 1, als. a), b) e c)) implica a rejeição imediata do recurso na parte infirmada, o incumprimento ou o cumprimento deficiente da segunda (art. 640.º, n.º 2, al. a)) apenas acarreta a rejeição nos casos em que dificultem, gravemente, a análise pelo tribunal de recurso e/ou o exercício do contraditório pela outra parte1. (…) Recorde-se, nesta sede, que a impugnação da matéria de facto não se destina a reiterar um julgamento na sua totalidade, mas antes a corrigir determinados aspetos que o Recorrente entenda não terem merecido um tratamento adequado por parte do Tribunal a quo. Efetivamente, uma das funções mais relevantes do Tribunal da Relação consiste na reapreciação da decisão do Tribunal de 1.ª Instância sobre a matéria de facto, quando impugnada, em sede de recurso, porquanto é da fixação dessa matéria que depende a aplicação do direito determinante do mérito da causa e do resultado da ação. (…) 15. Importa, todavia, evitar que o referido grau de exigência possa prejudicar o objetivo almejado. 16. Efetivamente, “a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; (…) 17. No caso sub judice, o Recorrente não especificou corretamente os concretos pontos de facto, cuja alteração pretendia, mediante a referência explícita à designação que os mesmos mereceram na descrição da matéria de facto julgada como provada na sentença. Mas fê-lo de outro modo com clareza suficiente para a delimitação da quaestio decidendi e da respetiva solução. 18. A lei (art. 640.º, n.º 1, al. a), do CPC) não impõe, nem na letra e nem no espírito, que a identificação dos factos seja feita pela indicação do seu número ou do seu teor exato. Pode considerar-se suficiente qualquer outra referenciação cuja elaboração não deixe dúvidas sobre aquilo que o Recorrente pretende ver sindicado, definindo o objeto do recurso nessa parte mediante uma enunciação suficientemente clara das questões que submete à apreciação do Tribunal de recurso5. 19. É precisamente isto que se verifica no caso dos autos. 20. Teria sido fácil ao Recorrente cumprir o ónus da especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados de outro modo, mediante a indiciação do seu número ou do seu teor. Contudo, não deixou de indicar os factos concretamente elencados na materialidade dada como provada, constante da decisão recorrida.”
Entendemos que se consegue extrair das conclusões que o Recorrente pretende impugnar a matéria de facto no que toca aos factos não provados de 8 a 19, alegando que através dos extractos bancários está provado que o Autor não recebeu o dinheiro da venda do imóvel. Na óptica do recorrente, de acordo com a regras de repartição do ónus da prova, o Autor demonstrou que tinha havido a venda e que não tinha recebido o dinheiro. Assim, os factos dados como não provados sob os números 8 a 19 deviam ter sido dados como provados, uma vez que os mesmos aproveitam apenas ao Réu.
Na motivação à decisão de facto, a Sr. Juiz escreveu o seguinte “Os factos 1 a 5 decorrem das escrituras aí mencionadas, tal como se mostram juntas aos autos. O facto 6 não foi impugnado. O facto 7 está provado por certidão extraída de tais autos e junta ao presente processo em 13-04-2023. Não logrou o tribunal formar convicção suficiente quanto aos factos 8 a 24. Em sede de prova testemunhal apenas foi ouvida a testemunha FF, administrador de insolvência do réu, que em sua representação compareceu na escritura referida nos factos 3 e 4. No entanto, não conseguiu tal testemunha confirmar se o réu teria, ou não, estado presente em tal acto, nada sabendo de qualquer acordo entre autor e réu, relativo ao preço da venda que cabia ao autor. Nada mais também sabendo quanto à matéria em discussão nos autos. Foram ouvidos em declarações de parte autor e réu. Entende o tribunal que as declarações de parte, provindas de que tem tido o interesse no desenlace dos autos e já se comprometeu nos mesmos para com determinada versão dos factos, têm que se ponderadas com particular prudência. Assim, apenas se prestadas de forma particularmente coerente, isenta e objectiva e se comprovadas nos autos (ainda que apenas parcialmente) por outros meios de prova tidos como relevantes é que poderão servir para fundamentar a convicção do tribunal no sentido da veracidade da matéria que sustentem. No caso dos autos não se detectou esta particular coerência e objectividade nas declarações de parte do autor (não consegue o tribunal perceber a necessidade de deixar o cheque ao réu, mesmo que como alega se fosse deslocar para o estrageiro, já que o título poderia ter sido por si depositado em qualquer terminal Multibanco, não percebe como é que o réu iria descontar para si próprio um cheque que com certeza teria sido passado em nome do autor, não compreendendo que o autor, como referiu, nem sequer tenha lido o dito cheque). Nem são tais declarações corroboradas por qualquer outro meio de prova junto aos autos. Há, no que pode relevar para o não recebimento do preço, de facto nos autos, extractos bancários de conta do autor nos quais não consta que um tal valor tenha sido depositado. No entanto, o pagamento pode ter dado entrada noutra conta ou até ter sido recebido/levantado em numerário, ou depositado nessa mesma conta mas em período diferente dos que constam de tais extractos, pelo que tal documentação se revela inconcludente. Tudo isto se conjuga para que não tenha o tribunal ficado convencido dos factos 8 a 19 em moldes de os dar como provados. Quanto às declarações de parte do réu sofrem as mesmas de idêntica falta de objectividade e coerência. Não se percebendo como é que, nos termos que declarou, não se terá apercebido de que o seu direito de usufruto estava a ser vendido no processo de insolvência. As suas declarações não incidiram sobre o alegado facto de anteriormente ter emprestado dinheiro o autor. E nenhum documento junto aos autos (designadamente os extractos de conta do autor e duas declarações de rendimento) permitem por si só extrair esta conclusão. Não logrou, assim, também, o tribunal formar convicção sobre a veracidade da factualidade mencionada em 20 a 24.”
Note-se que o recorrente impugna a matéria de facto apenas com base na prova documental e na repartição do ónus da prova. Não se refere à prova testemunhal, nem às declarações de parte. Será com base neste espartilho imposto pelo recorrente que este tribunal de recurso apreciará a questão.
Assim:
Alegou o Autor, ora recorrente, na sua petição inicial, ter procedido à venda de um imóvel cuja raiz lhe pertencia e que mandatou o réu para que este lhe continuasse a tratar das demais burocracias inerentes à venda, tendo-se o Réu comprometido a depositar o valor correspondente à venda no montante de cerca de €48.500.00 na conta do autor na entidade Bancária Banco 1... conta n.º ...como IBAN nº ... e remetendo-lhe logo de seguida e por correio todos os documentos referentes à escritura, ao depósito e outros mais inerentes ao acto. O Recorrente entende que já cumpriu o ónus da prova inicial que sobre ele recaía ao demonstrar que existiu a venda e que o dinheiro não foi recebido.
O artigo 342º do Código Civil que estabelece que “1. Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado. 2. A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita. 3. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito”;
Da escritura de compra e venda de 18.07.2016 junta aos autos com a petição inicial resulta que o aqui Autor/recorrente procedeu à venda do prédio aí melhor identificado, tendo declarado já ter recebido o preço.
A escritura supra referida, nos termos do disposto nos artigos 363º/1, 369º e 371º/1, do Código Civil, constitui um documento autêntico e, como tal, faz prova plena dos factos que sejam atestados pela entidade documentadora.
É entendimento uniforme que a força probatória material dos documentos autênticos se restringe aos factos praticados ou percecionados pela autoridade que emana os mesmos e não abrange a veracidade nem a validade das declarações emitidas pelas partes perante essa mesma autoridade. (cf. neste sentido o acórdão da RC, de 09.01.2018, proc. 8470/15.6T8CBR.C1, in www.dgsi.pt e Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, 4ª Ed., pg. 326/327, “o valor probatório pleno do documento autêntico não respeita a tudo o que se diz ou contém no documento, mas somente aos factos que se referem como praticados pela autoridade (…) não fica provado que seja verdadeira a afirmação do outorgante, ou que esta não tenha sido viciada por erro, dolo ou coacção, ou que o acto não seja simulado”.
Como se refere no acórdão da RG, de 01.10.2013, proc. 894/11.4TBVCT.G1, in www.dgsi.pt, “A prova plena emergente das escrituras públicas resulta da fé pública que a lei atribui aos documentos autênticos, com base nas garantias de verdade emergentes da sua proveniência, o oficial público nomeado e fiscalizado no exercício das suas funções, também ele sujeito a requisitos e exigências fixados na lei. Mas a prova plena cinge-se aos factos praticados pelo documentador e os por ele atestados, dela estando arredada a veracidade desses factos, a sua validade e a sua eficácia jurídica, já que tais qualidades não estão ao alcance da perceção do notário ou oficial público. O documento prova, então, plenamente, que as partes fizeram ao documentador as declarações nele inscritas e que perante ele praticaram determinados atos de que ele se certificou ou podia certificar-se.”.
No mesmo sentido o acórdão da RP, de 22.10.2019, proc. 2619/18.4T8OAZ-A.P1, in www.dgsi.pt, que refere “No tocante à força probatória material do documento, ou seja, quanto às declarações ou narrações que contém, em primeiro lugar, o documento autêntico faz prova plena dos factos referidos como praticados pelo documentador: tudo o que o documento referir como tendo sido praticado pela entidade documentadora, tudo o que, segundo o documento, seja obra do seu autor, tem de ser aceite como exacto, cfr. art.º 371.º n.º1, 1.ª parte, do C.Civil. (…) Depois, o documento autêntico prova plenamente os factos que se passaram na presença do documentador, ou seja, os factos que nele são atestados com base nas suas próprias percepções, cfr. art.º 371.º n.º 1, 1.ª parte, do C.Civil. Este ponto carece, porém de algumas precisões: o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta, se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que tais factos correspondam ou reflictam a verdade. Ou seja, o documentador não dá fé da veracidade das declarações que os outorgantes lhe fizeram, limitando-se a garantir que eles as fizeram.”
No mesmo sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 12.10.2023, proc. 7227/18.7T8FNC.L1.S1 e de 10.11.2022, proc. 286/21.7T8LLE.E1.S1, também em in www.dgsi.pt. Do exposto resulta que, in casu, tal escritura faz prova plena de as partes terem comparecido no cartório e terem, perante notário, prestado as declarações que constam da escritura e, no que aqui releva, que a Autora declarou ceder ao Réu a quota pelo valor de € 43.630,00 e que declarou já ter recebido esse preço. No entanto, já não faz prova plena da veracidade do conteúdo das declarações prestadas, nomeadamente, do efetivo recebimento do preço pela Autora, sendo este, em princípio, passível de ser impugnado por qualquer meio de prova. Assim, a escritura pública celebrada entre as partes, só por si, não faz prova plena de que o preço foi recebido pelo Autor, mas faz prova plena de que o Autor declarou ter recebido esse preço. O exposto não determina, no entanto, que a declaração do Autor não tenha efeito vinculativo e probatório. Esta declaração tem de ser analisada face ao regime estabelecido para a confissão. Nos termos do disposto no artigo 352º do Código Civil a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária. A atribuição de força probatória plena à confissão judicial e a algumas confissões extrajudiciais fundamenta-se na regra de experiência de que quem conhece um facto a si desfavorável e favorável à parte contrária fá-lo porque sabe que é verdadeiro. Neste sentido, Lebre de Freitas, in “A Confissão no Direito Probatório”, pgs. 160 e 187. Como resulta do disposto nos artigos 355º/1 e 4 e 358º/1 e 2, do Código Civil, a confissão extrajudicial é admissível, tem de ser feita por modo diferente da confissão judicial e sendo feita em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena. Como resulta de forma clara da 2ª parte do artigo 358º/2, ao estabelecer que se a declaração confessória for feita à parte contrária ela tem força probatória plena relativamente aos factos admitidos. Neste caso, o valor probatório da confissão é pleno. Assim, atendendo a que no caso dos autos o Autor declarou, numa escritura pública em que foi interveniente o Réu, que recebeu o preço devido pela venda, esta declaração tem carácter de confissão extrajudicial e, em consequência, tem força probatória plena nos termos do disposto no artigo 358º/2, do Código Civil.
Assim, in casu, a escritura pública, não fazendo prova do efectivo pagamento do preço, faz prova plena da confissão desse recebimento pelo Autor, tendo de considerar-se confessado tal facto.
No caso em apreciação, por força da declaração confessória (do Autor) do recebimento do preço, existe uma presunção ilidível da veracidade dos factos desfavoráveis ao declarante, ou seja existe uma presunção de que houve pagamento.
Partindo desta premissa, incumbia ao autor fazer prova de que mandatou o Réu para fazer um depósito da quantia recebida.
Ora, não há nenhuma prova nesse sentido, sendo certo que os extractos bancários a que o Autor tanto relevo dá, nada acrescentam em termos probatórios se, a montante, não conseguiu demonstrar que o réu ficou incumbido de depositar o dinheiro recebido pelo Autor naquela conta específica. A acção é integralmente improcedente por ausência de prova cujo ónus era apenas do autor.
Obviamente que não era ao réu que cabia demonstrar, chamemos-lhe, “ a faceta negativa “dos factos constitutivos do direito do autor, ou seja, ao réu só cabe a prova dos factos extintivos do direito do autor.
Não tendo o autor feito qualquer prova dos factos constitutivos do direito que invocou e que o Réu se limitou a impugnar (não lhe cabendo a prova) não há forma de considerar procedente a acção.. O ónus da prova corresponde à situação jurídica passiva, no contexto processual, na qual alguém tem de demonstrar os factos que invoca.
No Direito português, os critérios gerais de distribuição subjectiva do ónus da prova são os seguintes: àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado; já a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita. Em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito.
Por exemplo, se A. intentar uma acção judicial contra B. a pedir a condenação deste no pagamento de uma indemnização, por este ter provocado um acidente de viação, A. terá o ónus de demonstrar que o autor do acidente foi B. Por sua vez, caberá a B. o ónus de demonstrar, por hipótese, que o acidente resultou de conduta de A. ou de terceiro.
No Direito português, podemos encontrar ainda regras especiais sobre o ónus da prova: nas acções de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga; nas acções que devam ser propostas dentro de certo prazo a contar da data em que o autor teve conhecimento de determinado facto, cabe ao réu a prova de o prazo ter já decorrido, salvo se outra for a solução especialmente consignada na lei; se o direito invocado pelo autor estiver sujeito a condição suspensiva ou a termo inicial, cabe-lhe a prova de que a condição se verificou ou o termo se venceu; se o direito estiver sujeito a condição resolutiva ou a termo final, cabe ao réu provar a verificação da condição ou o vencimento do prazo. Adúvida quanto à existência de um facto deve ser resolvida contra aquele a quem o facto aproveita. Significa, no exemplo acima apresentado, que se A. não conseguir demonstrar que o acidente foi provocado por B., facto que aproveitaria a A., não pode este ser dado como provado.
O autor tem razão quando diz que a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.” (art.414º do CPC). Os factos constitutivos do direito do autor só a este aproveitam e, havendo dúvida, a prova resolve-se contra o autor.
Invoca ainda, o recorrente o artigo 344º nº 2 do Código Civil. Porém, fá-lo de uma forma desgarrada da restante matéria do recurso, ficando este tribunal sem conseguir perceber se, e em que medida, a impossibilidade de prova, pelo autor, foi causada pelo réu, que não tem o respectivo ónus.
IV. DECISAO
Pelo exposto, acordam os juízes que compõem esta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar totalmente improcedenteo recurso interposto, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Registe e notifique.
DN
Porto, 11 de Março de 2025.
(Elaborado e revisto pela relatora, revisto pelos signatários e com assinatura digital de todos)
Por expressa opção da relatora, não se segue o Acordo Ortográfico de 1990.
Raquel Correia de Lima
João Diogo Rodrigues
Márcia Portela