COMPETÊNCIA MATERIAL
CONCESSÃO DE EXPLORAÇÃO E MANUTENÇÃO DE PARQUES DE ESTACIONAMENTO
Sumário

Os tribunais comuns são materialmente incompetentes para as acções propostas pelas concessionárias da exploração e manutenção de parques de estacionamento em espaços públicos, tendo em vista a condenação dos utentes desses parques no pagamento das quantias devidas pela sua utilização temporária, em conformidade com os regulamentos municipais aplicáveis, cabendo essa competência à jurisdição administrativa e fiscal.

Texto Integral

Processo: 69259/24.4YIPRT.P1





Acordam no Tribunal da Relação do Porto





I. Relatório


A..., SA, com sede na Estrada ..., ..., Ribeira ..., intentou contra AA, residente na Rua ..., ..., ..., procedimento de injunção para cobrança da quantia de 897,70 €, acrescida de juros de mora vencidos, no montante de 14,81 €.
Alegou, em síntese, o seguinte: no exercício da sua actividade de exploração e prestação de serviços na área do parqueamento automóvel, a requerente colocou em vários locais da cidade de Matosinhos máquinas para pagamento de estacionamento automóvel, com a indicação dos preços e condições de utilização dos mesmos; no período compreendido entre 30.08.2022 e 07.05.2024, a requerida estacionou o seu veículo automóvel com a matrícula ..-XG-.. em vários parques de estacionamento que a requerente explora, sem proceder ao pagamento do tempo de utilização.
A requerida deduziu oposição onde, para além de se defender por impugnação, arguiu a incompetência material dos tribunais judiciais para o conhecimento da presente acção, alegando que, «sendo a Requerente concessionária de um serviço Público, por via de contrato de concessão celebrado com o Município de Matosinhos e assistindo-lhe o direito de cobrar uma taxa pela utilização dos parques do estacionamento que explora, (…) está em causa uma questão de interesse Público subjacente a um contrato de natureza administrativa. (…) consequentemente, para conhecer do presente litígio é competente a jurisdição administrativa e fiscal».
Os autos foram remetidos à distribuição como processo comum.
Convidada a aperfeiçoar o requerimento inicial, a autora apresentou nova petição onde reitera a alegação anterior e acrescenta que celebrou com o Município de Matosinhos um «contrato de Concessão de Exploração, para o fornecimento, instalação e exploração de parquímetros coletivos, em zonas de estacionamento automóvel de duração limitada», que a ré foi notificada para proceder ao pagamento omitido, sendo-lhe cobrado o tempo máximo de utilização, por falta de referência concreta ao tempo de utilização, e que «[e]stes valores, ao contrário do pretendido pela Requerida, não revestem a natureza fiscal ou sancionatória, tratando-se de saldos correspondentes à contraprestação da utilização dos estacionamentos concessionados, no âmbito de uma relação contratual de facto», acrescentando que o «incumprimento pela Oponente da obrigação de pagamento, não gera procedimentos contraordenacionais, típicos da violação/incumprimento de obrigações do domínio do Direito Público, mas sim procedimentos de cobrança comercial, por incumprimento da obrigação de uma das partes contratantes» e que «a Câmara não delegou na Requerente, quaisquer poderes para cobrar taxas ou tributos». Nestes termos, conclui pela improcedência da excepção de incompetência em razão da matéria.
A ré exerceu o seu direito ao contraditório quanto à matéria do aditamento/aperfeiçoamento.
A convite do Tribunal, a autora veio ainda prestar novos esclarecimentos e juntar aos autos o contrato celebrado com o Município de Matosinhos e respectivo caderno de encargos, tendo sido assegurado à ré o exercício do contraditório.
Foi proferida decisão que julgou verificada a exceção de incompetência material do Tribunal e absolveu a ré da instância.

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Inconformada, a autora apelou desta decisão, concluindo assim a sua alegação:
«a) Vem o presente recurso apresentado contra o Douto Despacho A Quo, que decidiu julgar a incompetência material do Juízo de Competência Genérica de ..., para cobrança dos créditos da Autora.
b) No âmbito da sua atividade, a A. celebrou um contrato de concessão com a Câmara Municipal de Matosinhos, através do qual lhe foi cedida a exploração particular de zonas de estacionamento automóvel na cidade sem cedência de quaisquer poderes de autoridade, ou de disciplina.
c) No seguimento deste contrato de concessão, a A... adquiriu e instalou em vários locais da cidade de Matosinhos, onerosas máquinas para pagamento dos tempos de estacionamento automóvel, para as quais desenvolveu o necessário software informático.
d) Enquanto utilizadora do veículo automóvel ..-XG-.., a R, estacionou o mesmo em diversos Parques de Estacionamento que a A. explora comercialmente na cidade de Matosinhos, sem, contudo, proceder ao pagamento dos tempos de utilização, num total em dívida de € 897,70 que a R. recusa pagar.
e) Para cobrança deste valor, a A. viu-se obrigada a recorrer aos tribunais comuns, peticionando o seu pagamento, pois a sua nota de cobrança está desprovida de força executiva, não podendo, portanto, dar lugar a um imediato processo de execução, seja administrativo, seja fiscal.
f) A natureza jurídica da quantia paga pelos utentes em contrapartida da prestação do serviço de parqueamento é a de um preço e não de um encargo ou contrapartida com natureza fiscal ou tributária.
g) As ações intentadas pela A. contra os proprietários de veículos automóveis inadimplentes, que não tenham procedido ao pagamento dos montantes devidos, não se inserem em prorrogativas de autoridade pública munida de ius imperii, mas sim no âmbito da gestão enquanto entidade privada.
h) A Recorrente ao atuar perante terceiros, não se encontra munida de poderes de entidade pública, agindo como mera entidade privada, pelo que, contrariamente ao entendimento do Tribunal “a quo”, o contrato estabelecido entre si e os automobilistas, relativo à utilização dos parqueamentos explorados, é de natureza privada, cuja violação é suscetível de fazer o utilizador incorrer em responsabilidade por incumprimento do contrato.
i) A doutrina qualifica este tipo de contrato como uma relação contratual de facto - em virtude de não nascer de negócio jurídico - assente em puras atuações de facto, em que se verifica uma subordinação da situação criada pelo comportamento do utente ao regime jurídico das relações contratuais, com a eventual necessidade de algumas adaptações.
j) O estacionamento remunerado, apresenta-se como uma afloração clara da relevância das relações contratuais de facto e a relação entre o concessionário e o utente resulta de um comportamento típico de confiança.
k) Comportamento de confiança, que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, e sim uma proposta tácita temporária de um espaço de estacionamento, mediante retribuição.
l) Proposta tácita temporária da A., que se transforma num verdadeiro contrato obrigacional, mediante aceitação pura e simples do automobilista, o qual, ao estacionar o seu automóvel nos parques explorados pela A., concorda com os termos de utilização propostos pela A., amplamente publicitados no local.
m) O conceito de relação jurídica administrativa pode ser tomado em diversos sentidos, seja numa aceção subjetiva, objetiva, ou funcional, sendo certo que nenhuma das acessões permite englobar a presente situação.
n) Caso contrário, teríamos de entender como públicas quaisquer relações jurídicas, já que todo o interesse de regulação, é em si mesmo um interesse público e nessa medida, tudo seria público, até à mais ténue e simples regulamentação de relações entre particulares, desde que geradoras de direitos e obrigações suscetíveis de ser impostos coativamente.
o) A A... SA., não efetua atos de fiscalização, não tendo poderes para autuar coimas ou multas por incumprimento das regras estradais, tarefa que está exclusivamente atribuída às autoridades públicas de fiscalização do espaço rodoviário da cidade.
p) Nos termos do disposto no artigo 2º do DL 146/2014 de 09 de outubro, a atividade de fiscalização incide exclusivamente na aplicação das contraordenações previstas no artigo 71º do Código da Estrada, o qual estabelece as coimas aplicáveis às infrações rodoviárias ali identificadas.
q) Quaisquer infrações ou coimas que devam ser aplicadas aos automobilistas prevaricadores de regras estradais, ficam a cargo da Autarquia, sem qualquer intervenção ou conexão com a atividade da empresa concessionária.
r) Entender que os tribunais competentes são os administrativos e de entre estes os fiscais, corresponde a esvaziar de utilidade o Contrato de Concessão de Exploração dos Parqueamentos, por retirar à concessionária o poder de reclamar judicialmente os seus créditos.
s) Institucionalizar este entendimento, conduzirá inexoravelmente ao fomento do incumprimento das obrigações dos automobilistas, que cientes da impossibilidade de cobrança coerciva dos valores devidos pelo estacionamento dos seus veículos, cedo deixarão de cumprir semelhante obrigação.
t) Fundamental é que a Recorrente carece, em absoluto, de poderes de autoridade, fiscalização ou ordenação efetiva, apenas podendo registar os incumprimentos de pagamento e tentar recuperar judicialmente, sem acesso direto a um título executivo, os valores que tiverem sido sonegados, em violação da relação contratual de confiança, pelos utentes.
u) Não estando em causa a natureza pública do contrato celebrado entre a Câmara Municipal e a A... SA., não pode, contudo, este primeiro contrato, ser equiparado aos posteriores contratos tacitamente celebrados entre a A... e os utentes, pois tais contratos têm natureza privada, não só pela forma como os seus intervenientes atuam, como também pelas normas que regulam as relações jurídicas em causa.
v) Refira-se finalmente que, ainda que se entenda estarmos perante a prestação de serviços de natureza pública, o que apenas se concebe para mero efeito de raciocínio, as competências dos tribunais administrativos e fiscais estão definidas no artigo 4.º do ETAF (Lei 13/2002, de 19 de fevereiro, aplicável nestes autos na redação introduzida pela L 114/2019, de 12 de setembro, que introduziu a alínea e) ao nº 4 do Art.4º do E.T.A.F).
w) Nos termos dessa alínea, “estão… excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva”.
x) Da exposição de motivos da Proposta de Lei nº 167/XIII-4ª, que esteve na origem da L 114/2019, consta: “A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos aí elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.”
y) O serviço de estacionamento não é um dos serviços elencados no Art.1º nº 2 da L 23/96, mas, tal como ocorre nos serviços públicos essenciais, a relação entre o prestador do serviço e o utente é uma relação de direito privado. Veja-se por tudo, o Douto Acórdão da Veneranda Relação de Lisboa de 18.12.2024, proferido no âmbito do Processo 16685/24.0YIPRT da 8ª Secção.
Mal andou, assim, o Tribunal “a quo” ao declarar-se incompetente em razão da matéria, pois, o tribunal recorrido é o competente, motivo pelo qual foram violados, entre outros, os artigos 96º, al. a), 278º, nr.1 al. a), 577º al. a) e 578º do cpc, quer o artigo 4º nr.1, al. e) do ETAF, quer ainda o artigo 40º da lei 62/2013 de 26 de agosto».
Não foi apresentada resposta a esta alegação.

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II. Fundamentação
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
A única questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, consiste em saber se são os tribunais comuns ou os tribunais administrativos e fiscais os competentes em razão da matéria para a presente acção.
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A Constituição da República Portuguesa (CRP) preceitua que os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo (cfr. artigo 202.º, n.º 1), assim atribuindo a função jurisdicional ao conjunto dos tribunais nacionais, o que é reiterado e explicitado na lei ordinária, designadamente no artigo 2.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto – Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ).
A competência de cada tribunal resulta do modo como o poder jurisdicional é fraccionado e repartido entre os diversos tribunais, correspondendo à medida da jurisdição que lhe é atribuída.
Na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território, conforme previsto nos artigos 60.º do Código de Processo Civil (CPC) e 37.º, n.º 1, da LOSJ.
A competência em razão da matéria afere-se pela natureza da relação jurídica controvertida, tal como é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, tendo em conta o pedido concatenado com a causa de pedir, em termos semelhantes aos previstos no artigo 30.º, n.º 3, do CPC, para o pressuposto processual da legitimidade.
Tal competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei, o mesmo sucedendo com as modificações de direito, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa – cfr. artigo 38.º da LOSJ
De acordo com o disposto nos artigos 211.º, n.º 1, da CRP, 64.º do CPC e 40.º, n.º 1, da LOSJ, a competência material dos tribunais judiciais é residual, ou seja, são da sua competência todas as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, o que justifica a uso das expressões tribunais comuns e jurisdição comum para se aludir ao conjunto dos tribunais judiciais.
Nos termos do artigo 212.º, n.º 3, da CRP, compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.
No exercício dos seus poderes de conformação legal, o legislador ordinário veio explicitar esta regra de competência material nos artigos 1.º e 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro (alterado pelos seguintes diplomas: Lei n.º 4-A/2003; Lei n.º 107-D/2003; Lei n.º 1/2008; Lei n.º 2/2008; Lei n.º 26/2008; Lei n.º 52/2008; Lei n.º 59/2008; Decreto-Lei n.º 166/2009; Lei n.º 55-A/2010; Lei n.º 20/2012; Decreto-Lei n.º 214-G/2015; Lei n.º 114/2019; Decreto-Lei n.º 74-B/2023).
Nos termos do n.º 1, daquele artigo 1.º, os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto.
Este artigo 4.º exemplifica, pela positiva, os litígios incluídos na competência dos tribunais administrativos e fiscais (n.ºs 1 e 2) e, pela negativa, os litígios dela excluídos (n.ºs 3 e 4).
Na parte que releva para a apreciação deste recurso, este artigo 4.º preceitua que:
1 – Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:
(…)
e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
(…)
o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.
(…)
4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:
(…)
e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.
Dos preceitos constitucionais e infraconstitucionais acabados de citar decorre que o conceito de relação jurídica administrativa e fiscal foi erigido em critério chave de repartição da jurisdição entre os tribunais comuns e os tribunais administrativos e fiscais, substituindo o critério anterior, baseado na distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada das pessoas colectivas de direito público (cfr. ac. do TRL, de 06.05.2010, proc. n.º 1984/09.9TBPDL.L1-8).
Como vimos, aquele critério é expressamente assumido no artigo 212.º, n.º 3, da CRP, e no artigo 1.º do ETAF.
É certo que, ao exemplificar os litígios cujo conhecimento cabe à jurisdição administrativa, o artigo 4.º do ETAF renuncia, algumas vezes, à aplicação desse critério, atribuindo aos tribunais administrativos e fiscais competência sobre litígios não administrativos – cfr. Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, Código de Processo nos Tribunais Administrativos, Vol. I, Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, anotados, reimpressão da edição de Novembro/2004, pág. 21, citado no ac. do TRL, de 25.05.2010, proc. n.º 2011/09.1TBPDL.L1-1.
Mas este alargamento da competência dos tribunais administrativos e fiscais não afasta o princípio geral segundo o qual estes tribunais são competentes para o julgamento das acções que tenham por objecto dirimir litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, a não ser quando essa competência é excluída por força dos n.ºs 3 e 4, do mesmo artigo 4.º do ETAF.
De acordo com a jurisprudência do Tribunal de Conflitos (cfr. ac. de 25.11.2010, proc. n.º 021/10), «na falta de clarificação legislativa sobre o conceito de relação jurídica administrativa, deverá esta ser entendida no sentido tradicional de relação jurídica de direito administrativo, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração.
Assim, temos que os tribunais administrativos serão competentes para dirimir os litígios surgidos no âmbito das relações jurídicas públicas, devendo como tal considerar-se «aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido [J.C.Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 8ª ed., 57/58]».
Por sua vez, o TCA Sul (cfr. ac. de 09.10.2014, proc. n.º 11379/14), valendo-se da jurisprudência do Tribunal de Conflitos, afirma que «[u]m litígio emergente de relações jurídico-administrativas e fiscais será aquele que envolva uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal, assim como aquele que se inscreva em relações que conferem poderes de autoridade ou impõem restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribuem direitos ou impõem deveres públicos aos particulares perante a Administração».
Fica assim mais claro que, entre outras, a previsão da al. e), do n.º 1, do artigo 4.º, do ETAF encerra exemplos de litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais. Como se escreve no ac. do TRL, de 23.01.2025 (proc. n.º 118584/24.0YIPRT.L1-6), trata-se aí «da enunciação do critério do contrato submetido a regras de contratação pública», que Mário Aroso de Almeida, citado no mesmo aresto, explicita nos seguintes termos:
«Tal como antes, a alínea e) do art.º 4 º do ETAF atribui à jurisdição administrativa a competência para dirimir os litígios emergentes dos contratos que a lei submete a regras de contratação pública. A previsão do preceito compreende claramente litígios respeitantes a quaisquer contratos, que não apenas a contratos administrativos, e tanto contratos celebrados por pessoas colectivas de direito público, como contratos celebrados por entidades privadas quando sujeitas a regras de direito público em matéria de procedimentos pré-contratuais (ou seja, quando legalmente qualificadas como entidades adjudicantes, segundo a terminologia do CCP, como agora é explicitado no preceito. (…) A previsão da al. e) do nº 1 do artigo 4º do ETAF possui, contudo, um alcance mais amplo, pois, como foi dito, atribui à jurisdição administrativa a competências para dirimir conflitos emergentes de todos os contrato que a lei submeta a regras de contratação pública, independentemente da questão de saber se a prestação do co-contratante pode condicionar ou subsistir, de forma relevante, a realização das atribuições do contraente público. O critério não é, aqui, na verdade, o do contrato administrativo, mas o do contrato submetido a regras de contratação pública: desde que um contrato seja submetido a regras procedimentais de formação de Direito Administrativo, todas as questões que dele possam vir a emergir, devem ser objecto de uma acção a propor perante os tribunais administrativos, e não perante os tribunais judiciais – isto é, independentemente da sua qualificação ou não como contrato administrativo nos termos do CCP.” (Mário Aroso de Almeida, Manual do Processo Administrativo, 3ª edição, 2017, pág. 168 e seg.)».
Os Tribunais superiores, tanto da jurisdição comum como da jurisdição administrativa e fiscal, como o próprio Tribunal de Conflitos, já foram chamados por diversas vezes pronunciar-se sobre a competência material para apreciar e decidir os litígios emergentes da falta de pagamento de serviços de parqueamento automóvel temporário em parques de estacionamento concessionados por Municípios a pessoas ou entidades privadas.
Toda a jurisprudência conhecida, partindo das premissas antes enunciadas, conclui que os tribunais comuns são materialmente incompetentes para tais acções e que as mesmas se enquadram na competência material dos tribunais administrativos e fiscais.
Neste sentido se pronunciaram os seguintes arestos:
- ac. do TRP, de 28.01.2025, proc. n.º 69243/24.8YIPRT.P1;
- ac. do TRP, de 11.12.2024, proc. n.º 79534/24.2YIPRT.P1;
- ac. do TRL, de 23.01.2025, proc. n.º 118584/24.0YIPRT.L1-6;
- ac. do TRL, de 20.01.2011, proc. n.º 918/09.5TBPDL.L1-8;
- ac. do TRL, de 07.10.2010, proc. n.º 1763/09.3TBPDL.L1-8;
- ac. do TRL, de 13.07.2010, proc. n.º 825/09.1TBPDL.L1-8;
- ac. do TRL, de 06.05.2010, proc. n.º 1984/09.9TBPDL.L1-8;
- ac. do TRL, de 25.05.0210, proc. n.º 2011/09.1TBPDL.L1-1;
- ac. do TRL, de 20.10.2009, proc. n.º 6149/08.4YIPRT.L1-7;
- ac. do TRE, de 30.01.2025, proc. n.º 42537/24.5YIPRT.E1;
- ac. do TRE, de 16.12.2024, proc. n.º 42536/24.7YIPRT.E1;
- ac. do STJ, de 12.10.2010, proc. n.º 1984/09.9TBPDL.L1.S1;
- ac. do TCA Sul, de 09.10.2014 (proc. n.º 11379/2014;
- ac. do TCA Sul, de 09.05.2013 (proc. n.º 09701/13);
- ac. do STA, de 25.10.2017, proc. n.º 0300/17;
- ac. do Tribunal de Conflitos, de 02.03.2011, proc. n.º 24/2010;
- ac. do Tribunal de Conflitos, de 25.11.2010, proc. n.º 21/2010;
- ac. do Tribunal de Conflitos, de 09.06.2010, proc. n.º 5/2010.
É certo ter a recorrente citado um (único) acórdão para sustentar a tese contrária, mais concretamente o acórdão do TRL de «18.12.2024, proferido no âmbito do Processo 16685/24.0YIPRT da 8ª Secção», mas sem indicar a respectiva fonte, pelo que não nos foi possível aceder ao seu conteúdo. De resto, o já citado ac. do TRL de 23.01.2025 confirma a uniformidade do entendimento jurisprudencial que começámos por enunciar, fornecendo um extenso elenco de arestos nesse sentido.
Voltando ao caso concreto, afigura-se-nos inquestionável que o mesmo versa sobre uma relação jurídica administrativa e fiscal, nas duas vertentes antes enunciadas: por um lado, um dos sujeitos dessa relação é uma entidade particular no exercício de poder público que visa a realização de um interesse público legalmente definido; por outro lado, tal relação jurídica é disciplinada por normas de direito administrativo e fiscal que impõem deveres públicos aos particulares perante a Administração.
A respeito da primeira vertente, importa ter presente que compete às Câmaras Municipais deliberar sobre o estacionamento de veículos nas vias públicas e demais lugares públicos, nos termos previstos no artigo 33.º, n.º 1, al. rr), do Regime Jurídico das Autarquias Locais (RJAL), aprovado pela Lei n.º 75/2013, de 12 de Setembro (com as alterações introduzidas pelos seguintes diplomas: Declaração de Retificação n.º 46-C/2013; Declaração de Retificação n.º 50-A/2013; Lei n.º 25/2015; Lei n.º 69/2015; Lei n.º 7-A/2016; Lei n.º 42/2016; Lei n.º 50/2018; Lei n.º 66/2020; Lei n.º 24-A/2022; Lei n.º 82/2023; Decreto-Lei n.º 10/2024).
Por sua vez, o artigo 70.º do Código da Estrada permite que a utilização dos parques e zonas de estacionamento seja limitada no tempo ou sujeita ao pagamento de uma taxa, nos termos fixados em regulamento.
Compete igualmente às Câmaras Municipais elaborar e submeter à aprovação da assembleia municipal os projetos de regulamentos externos do município, nos termos previstos no artigo 33.º, n.º 1, al. k), do RJAL, competindo à assembleia municipal aprovar as taxas do município e fixar o respetivo valor, deliberar em matéria de exercício dos poderes tributários do município e aprovar as posturas e os regulamentos com eficácia externa do município, em conformidade com o disposto no artigo 25.º, n.º 1, alíneas, b), c) e g), do RJAL.
No caso em discussão, a Assembleia Municipal de Matosinhos, sob proposta da Câmara Municipal, aprovou o Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada no Concelho de Matosinhos, publicado no Diário da República, em 8 de Março de 2016, bem como as alterações a esse Regulamento publicadas no Diário da República de 18 de Abril de 2017 e no Diário da República de 1 de Agosto de 2018 (Regulamento n.º 494/2018).
Contudo, por via do contrato de concessão junto aos autos e respectivo caderno de encargos, o Município de Matosinhos, munido do seu ius imperii, concedeu à ora recorrente «a “gestão, exploração, manutenção e fiscalização dos lugares de estacionamento pago na via pública e de dois parques públicos de estacionamento para viaturas”, de acordo com a cláusula 11.ª e Anexo I do caderno de encargos» (cfr. clásula 1.ª do contrato de concessão).
Nos termos da referida cláusula 11.ª, o objeto do Contrato de Concessão «consiste na gestão, exploração, manutenção, em regime de concessão de serviço público, dos atuais e futuros lugares públicos de estacionamento pagos na via pública nas Cidades de Matosinhos e S. Mamede de Infesta, até ao limite de lugares concessionados, nos termos do presente Caderno de Encargos e dos dois parques de estacionamento objeto da Concessão, definidos no Anexo I» e compreende, entre outras tarefas da concessionária, «a recolha e cobrança, em nome do Concedente, de todos os valores respeitantes às taxas de estacionamento geradas pelo sistema a implementar no respeito pelos termos definidos no presente Caderno de Encargos, Programa de Concurso e demais legislação aplicável», bem como a «[m]onitorização do cumprimento das regras definidas no Regulamento do Município de Matosinhos referente às Zonas de Estacionamento de Duração Limitada, nomeadamente por aplicação do Plano de Monitorização e Fiscalização apresentado pela Concessionária e condições descritas no presente Caderno de Encargos».
Perante o exposto, em linha com a jurisprudência uniforme antes mencionada, concluímos que a recorrente concessionária age no uso de poderes de autoridade em que foi investida através do contrato de concessão, tendo em vista prosseguir, no lugar da autarquia, um fim de interesse público.
Ao cobrar as taxas pelo estacionamento dos veículos nos espaços públicos concessionados e ao proceder à fiscalização do cumprimento das regras de estacionamento fixadas no regulamento municipal, a recorrente age investida de prerrogativas próprias de um sujeito público, dotado de jus imperii. Os actos assim praticados pela recorrente não revestem a natureza de actos privados susceptíveis de serem desenvolvidos por um qualquer particular, mas antes natureza pública, na medida em que são praticados no exercício de um poder público, originariamente atribuído aos Municípios, tendo em vista regular um relevante interesse público, mais concretamente a disponibilidade de lugares de estacionamento para veículos nos espaços públicos. Como se escreve no ac. do STJ, de 12.10.2010 (proc. n.º 1984/09.9TBPDL.L1.S1), «a cobrança do crédito em causa nesta acção só é possível porque a recorrente está investida em poderes de autoridade, que se impõem aos particulares. De contrário, jamais a A. podia cobrar, de quem quer que fosse, uma taxa pela ocupação temporária de um espaço público».
Em suma, a recorrente foi investida de um poder público, para a realização de um interesse público, pelo que o conflito que a opõe à recorrida surgiu no âmbito de uma relação jurídica administrativa.
A respeito da segunda vertente, importa realçar que a exploração dos lugares e parques de estacionamento é feita pela recorrente com fundamento no contrato de concessão que celebrou com um Município, ou seja, mediante um contrato de direito público, nos termos do qual o Município de Matosinhos, munido de jus imperii, adjudicou àquele a concessão e exploração dos referidos lugares e parques de estacionamento, e obedece ao Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada no Concelho de Matosinhos aprovado por esta autarquia.
Nestes termos, toda a actividade desenvolvida pela recorrente ao abrigo do contrato de concessão, tanto no âmbito da relação estabelecida com a autarquia concedente, como no âmbito das relações estabelecidas com os particulares utentes dos lugares de estacionamento, é regulada por normas de direito público, que revelam a autoridade do Estado e a sua força reguladora e impositiva, que não obedecem a uma lógica privada de autonomia contratual e de prossecução do lucro, mas antes a uma lógica de regulação da utilização dos espaços públicos e das necessidades de aparcamento de veículos automóveis, tendo em conta os interesses comuns aos automobilistas em geral e os interesses especiais de alguns automobilistas em particular, como os que residem nas proximidades das zonas concessionadas.
Como se escreve no ac. do TRL, de 07.10.2010 (proc. n.º 1763/09.3TBPDL.L1-8), «[s]e o utente nem estabelece um contrato comum e apenas usa o espaço de estacionamento com determinados efeitos jurídicos inerentes pré-estabelecidos em Regulamento Municipal e se a entidade que cobra algo que é muito mais uma taxa que um preço tem por detrás de si um conjunto de mecanismos e regras impositivas emanadas de um órgão da administração local e não de um qualquer processo de formação da vontade negocial, não se vê como se possa falar em relação jurídica privadas». No mesmo sentido, afirma-se no sumário do já citado ac. do STJ, de 12.10.2010, que «[o]s contratos ou acordos tácitos que se concretizam sempre que os utentes utilizam para estacionamento os espaços públicos concessionados à autora, tanto esta como os referidos utentes estão submetidos às regras do Regulamento Municipal que disciplina aqueles estacionamentos, e só por isso tem a autora direito a cobrar as taxas de utilização fixadas no dito diploma. (…) Contendo tal Regulamento normas de direito público, que estabelecem o regime substantivo de tais contratos ou acordos tácitos, a execução de tais contratos cai no âmbito do disposto no art. 4.º, al. f), do ETAF», correspondente à actual al. e) do mesmo artigo.
O ac. do TCA Sul de 09.10.0214 vai mais longe, afirmando que «[o] contencioso entre concessionário e utente centrado na falta de pagamento do valor da taxa correspondente ao tempo de parqueamento nas zonas de estacionamento de duração limitada, compete aos Tribunais Tributários», esclarecendo que «na actividade concessionada, a ora Recorrente proporciona a terceiros – os utentes dos estacionamentos – uma utilidade contra o pagamento de uma taxa e não de um preço, o que significa que o presente litígio entre o concessionário e o terceiro, embora se reporte a um conflito relacionado sobre vicissitudes próprias da relação de prestação concessória, centra-se sobre um quid cuja natureza é claramente tributária, a taxa devida pelo estacionamento dos veículos».
Acrescenta o mesmo acórdão que «[t]ais montantes, fixados pelo Município no Regulamento de Estacionamento de Duração Limitada, revestem a natureza jurídica de taxas, já que são prestações pecuniárias coactivas, cuja exigibilidade decorre ope legis e não da vontade negocial das partes, exigidas por uma entidade que exerce funções públicas, como contrapartida da utilização concreta de um bem do domínio público, in casu, o estacionamento na via pública» e que «[a] atribuição de poderes tributários para liquidação e/ou cobrança de uma taxa por um Município a uma entidade privada, neste caso, decorrente da celebração de um contrato administrativo de concessão, não altera a natureza jurídica da relação jurídica estabelecida com o particular, simplesmente introduz uma intermediação entre o particular e o município no âmbito da liquidação e/ou cobrança da taxa, a qual é sempre fixada e liquidada nos termos definidos pela autarquia».
Esta jurisprudência é inteiramente aplicável ao caso destes autos.
De acordo com a cláusula 10.ª do contrato de concessão, «[a] concessionária fica obrigada a observar as regras constantes do Anexo II relativas à exploração da concessão, bem como os deveres acessórios previstos nos Anexos III, IV, V e VI, todos do caderno de encargos».
Por sua vez, o artigo 2.º daquele Anexo II dispõe o seguinte:
«1. A Concessionária fica obrigada a respeitar as taxas e horários de funcionamento constantes do Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada do Concelho de Matosinhos.
2. As taxas, horários e demais condições de funcionamento dos lugares concessionados apenas podem ser alteradas por acordo das partes, sem prejuízo da sua atualização nos termos previstos no Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada do Concelho de Matosinhos.
3. Os preços a praticar no Parque 1, em Matosinhos, não poderão exceder o valor de 2€ por dia, no período de 1 de junho a 30 de setembro e de 1€ por dia no restante período do ano.
4. Os preços a praticar no Parque 2, em S. Mamede de Infesta, não poderão exceder o valor de 1€ por dia.
5. Os montantes estabelecidos nos números anteriores, correspondem, para efeitos de aplicação do n.º 1 do artigo 12.º do Decreto Lei n.º 81/2006 de 20 de Abril, ao valor devido pela primeira fração de tempo utilizada, tendo as restantes frações um valor nulo.
6. Os dois Parques de Estacionamento deverão ter um horário de funcionamento mínimo das 8.00h às 20.00h».
Por fim, o Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada do Concelho de Matosinhos disciplina a obrigação de pagamento de taxas pela ocupação de lugares de estacionamento, inclusivamente as situações de isenção desse pagamento e as “taxas de incumprimento”, entre outros nos artigos 4.º, 6.º e 19.º.
Não restam, assim, quaisquer dúvidas de que os valores cobrados pela utilização das zonas de estacionamento de que a recorrente é concessionária configuram verdadeiras taxas, cuja fixação não depende da vontade negocial da concessionária e dos utilizadores do estacionamento, mas antes da lei e do poder que esta atribuiu aos Municípios, ainda que sejam cobradas por uma entidade privada.
Atentas as razões expostas, não vemos qualquer razão para nos afastarmos do entendimento que vem sendo defendido de modo uniforme pelos tribunais superiores, inclusivamente em diversos processos em que foi autora e recorrente a sociedade A..., S.A., sendo certo que esta não apresentou argumentos passíveis de afastar tal entendimento.
O que ficou exposto supra demonstra à saciedade não assistir razão à recorrente quando alega que o contrato de concessão que celebrou com a Câmara Municipal de Matosinhos não contempla a cedência de quaisquer poderes de autoridade, que a natureza jurídica da quantia paga pelos utentes em contrapartida da prestação do serviço de parqueamento é a de um preço, e não de um encargo ou contrapartida com natureza fiscal ou tributária, e que os contratos que celebra com os utentes dos parques de estacionamento que lhe foram concessionados têm natureza privada (cfr. conclusões b), f) e h)), sendo certo que a qualificação destes contratos como “relações contatuais de facto” (cfr. conclusão i)) nada revela sobre a sua natureza pública ou privada (cfr. ac. do STJ, de 12.10.2010).
Alega também a recorrente que se viu obrigada a recorrer aos tribunais comuns para cobrança do valor devido pela ré, porque não dispões de título executivo para intentar de imediato um processo de execução (cfr. concussão e)). Compreende-se mal esta argumentação, que parece ter subjacente a ideia de que só as sentenças condenatórias proferidas pelos tribunais comuns constituem títulos executivos, quando é consabido e indiscutível que também as sentenças condenatórias proferidas pelos tribunais administrativos e fiscais comungam da mesma força executiva.
Também não se compreende a afirmação de que o reconhecimento da competência material dos tribunais administrativos e fiscais esvazia de utilidade o contrato de concessão de exploração dos parqueamentos, por retirar à concessionária o poder de reclamar judicialmente os seus créditos (cfr. conclusão r)), assim fomentando o incumprimento das obrigações dos automobilistas (cfr. conclusão s)). A recorrente pode reclamar judicialmente os valores em dívida nos tribunais administrativos e fiscais, estando assim assegurada o acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva.
A recorrente invocou ainda o disposto no artigo 4.º, n.º 4, al. e), do ETAF – que exclui do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva – reconhecendo que o serviço de estacionamento não é um dos serviços públicos essenciais elencados no artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, mas argumentando que, tal como ocorre nestes casos, a relação entre o prestador do serviço e o utente é uma relação de direito privado (cfr. conclusões v) a y)), parecendo assim pugnar pela aplicação analógica daquela norma de exclusão da competência da jurisdição administrativa às acções emergentes da utilização de parques de estacionamento em espaços públicos concessionados a entidades particulares.
Sucede que a referida norma de exclusão configura uma norma excepcional, que Baptista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1989, pp. 94 e 95) define por oposição às normas gerais, nos seguintes termos: «As normas gerais constituem o direito-regra, ou seja, estabelecem o regime-regra para o sector de relações que regulam; ao passo que as normas excepcionais, representando um ius singulare, limitam-se a uma parte restrita daquele sector de relações ou factos, consagrando neste sector restrito, por razões privativas dele, um regime oposto àquele regime-regra. (…) Para se ter uma norma por excepcional (…) será necessário verificar se se está ou não perante um verdadeiro ius singulare, isto é, perante um regime oposto ao regime-regra e directamente determinado por razões indissoluvelmente ligadas ao tipo de casos que a norma excepcional contempla».
Ora, nos termos do disposto no artigo 11.º do Código Civil, as normas excepcionais não comportam aplicação analógica, embora admitam interpretação extensiva.
Seja como for, a aludida analogia nem sequer existe, sendo certo que absolutamente nada na lei nos permite estender o âmbito da exclusão prevista no referido artigo 4.º, n.º 4, al. e), do ETAF, para além dos litígios emergentes da prestação dos serviços públicos essenciais taxativamente previstos no artigo 1.º, n.º 2, da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho, e assim considerar abrangidos por aquela exclusão os litígios emergentes da exploração e manutenção de parques de estacionamento em espaços públicos.
Os serviços públicos essenciais legalmente elencados na norma deste artigo 1.º, n.º 2, para onde remete aquele artigo 4.º, n.º 4, al. e), «são apenas relevantes na medida em que originem contratos duradouros, cuja existência e cumprimento se prolonga no tempo mediante prestações contínuas realizadas aos utentes», ou seja, «contratos duradouros essenciais à existência da pessoa» (cfr. ac. do TRL, de 23.01.2025, que cita Engrácia Antunes, Direito do Consumo, 2021, p. 203, e Jorge Morais de Carvalho, Manual de Direito do Consumo, 7.ª ed., 2021, p. 386), o que claramente não sucede com os contratos alegados na presente acção.
A norma do artigo 4.º, n.º 4, al. e), do ETAF limita-se a excluir do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, deixando claro que estes litígios não se cingem às acções declarativas, incluindo a própria cobrança coerciva dos valores devidos pela prestação dos referidos serviços, ou seja, as acções executivas. Mas não exclui do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios, sejam eles declarativos ou executivos, que não emirjam de relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais.
Pelas razões expostas, em consonância com a jurisprudência que vem sendo preconizada de modo uniforme pelos tribunais nacionais superiores, concluímos que os tribunais comuns são materialmente incompetentes para conhecer as acções propostas pelas concessionárias da exploração e manutenção de parques de estacionamento em espaços públicos, tendo em vista a condenação dos utentes desses parques no pagamento das quantias devidas pela sua utilização, em conformidade com os regulamentos municipais aplicáveis, cabendo essa competência à jurisdição administrativa e fiscal.
Improcede, assim, a apelação, ficando as respectivas custas a cargo da recorrente, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.

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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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III. Decisão

Pelo exposto, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam totalmente improcedente a apelação e confirmam a decisão recorrida.

Custas pela recorrente.

Registe e notifique.



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Porto, 11 de Março de 2025

Relator: Artur Dionísio Oliveira
Adjuntos: Maria da Luz Seabra
Maria Eiró