INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO COMO CULPOSA
CONDUTA DO DEVEDOR
PRESUNÇÃO DE CULPA GRAVE
Sumário

I – Para os efeitos da presunção prevista no artigo 186.º, n.º 2, al. h), do CIRE, o incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada será substancial quando comprometer ou afectar de modo relevante as finalidades dessa obrigação: dar a conhecer, de forma completa, rigorosa e fiável, a situação patrimonial e financeira da entidade a que respeita.
II – A verificação objectiva desta situação é suficiente para se considerar preenchida a base da presunção de insolvência culposa, sem necessidade de demonstração das intenções subjacentes ao comportamento em causa.
III – As finalidades da obrigação de manter contabilidade organizada ficam comprometidas quando a contabilidade nem sequer exista, caso em que que ocorre um incumprimento absoluto e, necessariamente, substancial daquele dever.
IV – A referência a “administradores, de direito ou de facto” constante do artigo 186.º do CIRE não visou isentar os administradores de direito, que não exerçam essas funções de facto, da qualificação da insolvência como culposa, mas apenas consagrar a possibilidade de afectar por essa qualificação os administradores de facto, que não o sejam de direito.

Texto Integral

Processo: 1724/23.0T8AMT-B.P1






Acordam no Tribunal da Relação do Porto





I. Relatório


Por apenso ao processo especial de insolvência que A..., Lda. intentou contra B..., Lda., no qual foi declarara a insolvência da requerida por sentença datada de 29.01.2024, o Administrador da Insolvência (AI) veio, ao abrigo do disposto no artigo 188.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), requerer a qualificação dessa insolvência como culposa, com afectação dos seus gerentes AA e BB.
Declarado aberto o incidente de qualificação da insolvência, veio o Ministério Público (MP), ao abrigo disposto no artigo 188.º, n.º 7, do CIRE, emitir parecer no mesmo sentido.
Cumprido o disposto no n.º 9, do mesmo artigo 188.º, o requerido BB deduziu oposição, concluindo que não se encontram reunidos os requisitos legais necessários para que seja afectado pela qualificação da insolvência como culposa.
Não tendo sido apresentada qualquer resposta, foi dispensada a realização de tentativa de conciliação, proferido despacho saneador, identificado o objeto do litígio, enunciados os temas da prova e designada data para audiência de julgamento, que veio a realizar-se, após o que foi proferida sentença que termina com o seguinte dispositivo:
«Em face do atrás exposto, decide-se julgar procedente, por provado, o incidente da qualificação e em consequência:
I) Qualificar como culposa a insolvência de B..., Lda.
II) Declarar afetado pela insolvência como culposa seus gerentes AA e BB.
III) Decretar a sua inibição, para, durante um período de 2 anos e seis meses:
i) administrar patrimónios de terceiros; e-
ii) o exercício do comércio e para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa; e ainda,-
IV) Condenar BB e AA a indemnizarem os credores da devedora declarada insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças do respetivo património, correspondendo tal montante ao valor dos créditos reconhecidos em sentença de verificação e graduação de créditos em respetivo apenso»

*
Inconformado, o requerido BB apelou desta sentença, concluindo assim a sua alegação:
«1. A afetação do recorrente com a inibição pelo período de 2 anos e seus meses de administrar patrimónios de terceiros, de exercer do comércio e para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa e ainda indemnizar os credores da devedora até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, não se encontra em consonância nem com a prova produzida em sede de audiência de discussão de julgamento., nem com o direito aplicável, razões pelas quais o presente recurso, que versa sobre questores de facto, com a reapreciação da prova, mormente, a gravada, bem como, e sobretudo, sobre questões de direito.
2. O imediatismo e a oralidade se assumem, e com a razão como pedras angulares no que respeita à apreciação e valoração da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, especialmente a testemunhal.
3. Imediatismo e oralidade assentam fundamento na existência de uma relação direta, pessoal, entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valora e com aos documentos que servirão para fundamenta a decisão da matéria de facto,
4. O processo, impõe-se, no entender do ora recorrente, seja reapreciada a totalidade da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento.
5. O Tribunal desconsiderou, de todo, o teor do depoimento da Testemunha CC, contabilista certificada da sociedade, depoimento gravado no programa “Habilus Media Studio”, com a duração de 00H:07M:09S, das 11he 24m às 11H:31M, no 04 de novembro de 2024, que pese embora o primeiro contacto tenha sido feito com o recorrente, todos os assuntos eram tratados por mail e eram tratados pelo AA.
6. Não foram extraídas todas as conclusões das declarações de parte do ora recorrente, depoimento gravado no programa “Habilus Media Studio”, com a duração de 00H:21M:3S, das 10h31:m às 10H:55M, no 04 de novembro de 2024 que confiava no amigo co-R, e que era o co- R. e quando começou a receber as cartas quer da AT, quer do AI as entregou ao Sr., AA que o informou que iria resolver todas as questões.
7. Em 2021, não tomou nenhuma medida porque mais uma vez o co- R e porque confiava nele, lhe transmitiu que iria resolver todas as questões, as declarações do co-.R depoimento gravado no programa “Habilus Media Studio”, com a duração de 00H:26M:51S, das 10h56:m às 11H:23M, no 04 de Novembro de 2024 que o recorrente era seu amigo, que confiava nele que se desleixou e que e 2021 o Recorrente lhe entregou toda a correspondência e que ele entregue todo ao advogado para que tratasse da situação e que iria resolver a situação, referindo que só não decidiu encerrar a empresa porque estava a tentar cobrar um valor de uma outra empresa que lhe permitia resolver todas as questões, nomeadamente a liquidez da empresa.
8. Assim, dever-se -à proceder, com especial relevância, à reapreciação da prova produzida por estas duas declarações, única com o conhecimento direto.
9. Na resposta à matéria de facto, não refere a origem dos problemas da sociedade e que a mesma se ficou a dever a qualquer comportamento da parte do Recorrente, e a partir do momento em que este se apercebesse que a situação era irreversível, pelo que se deverá proceder à reapreciação da totalidade da prova produzida, com especial relevo para as declarações de parte do Recorrente e do co-R, promovendo às alterações à matéria de facto dado como provada.
10. Inexiste prova nos autos, quer documental, quer declarações de parte, para se considerar provado o facto 11, impondo-se, para verificação desta inexistência reapreciação de toda a prova documental e, também das declarações de parte do recorrente e do c- R. produzidas em sede de audiência de discussão e julgamento.
11. Para a aplicação do período de inibição previsto no artigo 189º nº 3 alínea b) do CIRE, de dois anos e meio, o Meritíssimo Juiz a quão não invoca qualquer fato que sustente a aplicação de dois anos e meio, sendo de justeza, adequação, gravidade, conceitos que careçam de positivação em factos concretos.
12. Carecendo a sentença, nesta parte, de fundamentação adequada, vicio que expressamente se invoca para todos os efeitos legais.
13. Quanto às presunções constantes do artigo 186º nº 3 do CIRE, entende o Recorrente terá andado mal a sentença sob recurso;
14. Não obstante a referida sociedade não desconhecer a sua situação de insolvência, pelo menos desde 2021, ainda não se apresentou à insolvência”, e por outro lado, que a insolvente não procedeu ao depósito das contas referentes ao ano de 2021.
15. O nº 3 do artigo 186º do “CIRE” apenas presume a existência de culpa grave, certo de que não foi ilidia a presunção estabelecida naquele artigo, bem como pelo contrário.
16. As presunções constantes do nº 3, são de culpa grave, por referência a situação do ora recorrente, não se presumindo, destas, que a insolvência é culposa, encontrando.se em patamares completamente distintos.
17. Mesmo que se considerem verificadas as situações invocadas constantes do nº 3, tal não poderá determinar, diretamente a qualificação da insolvência como culposa, tendo que se verificar os demais requisitos constantes da noção geral prevista nº 1, seja “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
18. Os comportamentos – cuja culpa grave se presume – tenham criado ou agravado a situação de insolvência, contudo importa depois,, em atenção ao disposto no nº 1 do artigo verificar se os demais requisitos, nomeadamente, o nexo de causalidade entre a conduta omissiva dos administradores e situação de insolvência do devedor, de tal forma que para se qualificar a insolvência como culposa torna-se necessária que esse facto ou omissão tenha criado ou agravado a situação de insolvência, não bastando a mera constatação objetiva desse comportamento omissivo, embora, no caso em concreto, e no entender do ora recorrente, não o tenha efetivado.
19. O depósito legal das contas em 2021., tinha como termius abril 2022, em condições normais em, tendo dado a Meritíssima Juiz “a quo” como assente a situação de insolvência em fiais, inexistindo assim, nexo de causalidade entre o não deposito das contas com a situação de insolvência reconhecida.
20. Deverá ser levado a cabo no que respeita à não apresentação atempada à insolvência, na medida em que reconhecida a situação de insolvência 2021, inexiste nexo de causalidade entre não apresentação e a situação de insolvência.
21. A sociedade foi declarada insolvente29/01/2024, embora o pedido de declaração de insolvência tenha dado entrada no tribunal em 27/12/2023.
22. para efeito de apreciação à insolvência, torna-se mister não a data da declaração de insolvência, mas antes a da apresentação, no caso requerido por terceiro, por forma a censura ou não a falta de apresentação.
23. Como fundamento para a qualificação da insolvência como culposa, deverão ser as mesmas desconsiderado que tange à qualificação do recorrente na decisão posta em crise, nomeadamente, por não se encontra demostrado o nexo de causalidade entre a não apresentação das contas sociais e não apresentação atempada, com a situação de insolvência.
24.Não deverá ser o ora recorrente afetado pela insolvência culposa da insolvência de B..., Lda,»
*
O Ministério Público respondeu à alegação da recorrente, pugnando pela total improcedência da apelação.
*

II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir traduzem-se em saber se ocorreu um erro no julgamento da matéria de facto, mais concretamente do ponto 11 dos factos provados, e se os factos provados permitem qualificar a insolvência como culposa.
*

III. Fundamentação

A. Fundamentação de Facto

1. Factos provados

O Tribunal a quo julgou provados os seguintes factos:
1. No dia 27/12/2023 A... Lda. requereu a insolvência de B..., Lda., a qual veio a ser decretada por sentença proferida aos 29/01/2024.
2. BB e AA são sócios gerentes da sociedade C... desde que a mesma foi constituída.
3. A sociedade B..., Lda., com NIPC ...48, foi constituída em 2020/08/18, com €5.000,00 de capital social, detendo cada um dos requeridos uma quota no valor de €2.500,00, consistindo o objeto social no comércio por grosso e a retalho de produtos desinfetantes, proteções individuais, batas, máscaras, proteção de calçado, toucas, óculos de proteção e viseiras luvas de borracha e em plástico, manguitos materiais de proteção plásticos, (aventais e penteadores). Comércio por grosso e a retalho de produtos e equipamentos de proteção individual e vestuário de trabalho. Fabricação de outro vestuário de malha, compreende a fabricação de pulôveres, casacos e outro vestuário de malha tricotados de produção própria ou adquirida, confeção de vestuário de trabalho. Importação e Export.
4. O AI endereçou uma carta a cada um dos requeridos, solicitando o envio de informações e documentos, sem ter recebido resposta ou colaboração, apesar as mesmas terem sido recebidas.
5. O AI deslocou-se à sede ali se encontrando a laborar outra empresa.
6. O AI não localizou bens da sociedade, nem acedeu à informação contabilística, e a ausência de resposta e colaboração dos requeridos impediu de obter o conhecimento sobre a verdadeira situação económica e financeira da C....
7. O processo de Insolvência foi encerrado por insuficiência de massa insolvente, não se tendo logrado localizar nem apreender qualquer bem.
8. O valor total do passivo reconhecido na Lista a que alude o art. 129.º do CIRE ascende a €147.112,36:
i. – à Autoridade Tributária e Aduaneira, desde 08-06-2021, valor de €113.135,63+€23.643,80;
ii. – à A..., Lda., no valor de € 2.317,22 e € 6.952,57, decorrente de ausência de pagamento de mercadorias fornecidas e faturadas em novembro e dezembro de 2020;
iii. – ao Instituto da Segurança Social, I.P., de 05-2021, no valor de €1.056,00 e € 6,84 por contribuições de maio, junho e julho de 2021;
iv. – à MEO (…), S.A., data 09-2017, valor de €1.552,95.
9. Apenas se encontram depositadas as contas referentes ao exercício de 2020.
10. A sociedade não tem contabilidade organizada desde agosto de 2021.
11. Era BB R. e AA B. quem decidiam que negócios encetar e os seus termos, acordando quais as relações que a sociedade mantinha com terceiros, cabendo-lhes também a decisão de afetação dos seus recursos financeiros à satisfação das respetivas necessidades.
12. Era AA B. quem tratava diretamente com os fornecedores e clientes.
13. A C... deixou de ter atividade em meados de 2021.
*

2. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto está expressamente consagrada e regulada nos artigos 640.º e 662.º do CPC.
De harmonia com o disposto no n.º 1, deste artigo 662.º, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Porém, nos termos do n.º 1, daquele artigo 640.º, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, (a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, (b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e (c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, conforme preceitua a al. a), do n.º 2, do mesmo artigo.
No caso em apreço, para além de alegar de forma vaga e imprecisa que importa reapreciar toda a prova produzida e promover alterações à matéria de facto dada como provada (cfr. conclusões 4 e 9), o recorrente acaba especificar que considera incorrectamente julgado o ponto 11 dos factos provados (cfr. conclusão 10), baseando-se no depoimento da testemunha CC, nas declarações de parte dos requeridos e na ausência de prova documental, pelo que importa considerar cumpridos, nesta medida, os ónus primários consagrados no artigo 640.º n.º 1, alíneas a) e c), do CPC.
Todavia, é pelo menos discutível que o recorrente tenha dada cabal cumprimento ao ónus primário previsto na al. b) do mesmo número, assim como ao ónus secundário previsto na al. a), do n.º 2, do mesmo artigo.
Por um lado, embora o recorrente afirme que inexiste prova nos autos para se considerar provado o facto 11, assim sugerindo que todo o teor deste ponto deve transitar para os factos não provados, da sua restante alegação parece decorrer que aquele ponto 11 não merece censura no que concerne ao co-requerido AA. Porém, para além de afirmar a inexistência de prova para se considerar provado o facto 11, o recorrente não chega a especificar o que deve permanecer nos factos provados e o que deve transitar para os factos não provados-
Por outro lado, embora se baseie em prova gravada, o recorrente não indica com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, limitando-se a mencionar a duração total do depoimento da testemunha CC e das declarações de parte dos requeridos, a indicar a hora, o minuto e o segundo em que as respectivas gravações iniciam e terminam e a fazer uma breve alusão ao conteúdo destes depoimento e declarações, sem fornecer dados que permitam a este Tribunal localizar com facilidade os excertos da gravação em que se baseia.
Mas ainda que se admita que a leitura da alegação permite a este Tribunal compreender o sentido da impugnação e a prova em que a mesma se baseia, importa ter em consideração que, conforme é entendido de forma pacífica na doutrina e na jurisprudência, a Relação não deve reapreciar a matéria de facto se a alteração pretendida não tiver qualquer relevância jurídica, isto é, se for inócua para a decisão da causa, se for insusceptível de fundamentar a sua alteração, sob pena de levar a cabo uma actividade processual inútil que, por isso, lhe está vedada pela lei (artigo 130.º do CPC).
Neste sentido, afirma-se o seguinte no ac. do TRC, de 16.02.2017 (proc. n.º 52/12.0TBMBR.C1, disponível em www.dgsi.pt, onde pode ser consultada a demais jurisprudência citada sem indicação da fonte): «Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente».
No mesmo sentido, afirma-se no ac. do TRG, de 11.11.2021 (proc. 671/20.1T8BGC.G1) que «[n]ão se deve proceder à reapreciação da matéria de facto quando a alteração nos termos pretendidos pelos Recorrentes, tendo em conta as específicas circunstâncias em causa, não tenha qualquer relevância jurídica, sob pena de, assim não sendo, se estarem a praticar atos inúteis, que a lei não permite».
Ainda no mesmo sentido se pronunciou o TRL, no seu ac. de 26.09.2019 (proc. n.º 144/15.4T8MTJ.L1-2).
Também o STJ sufraga esta jurisprudência, afirmando o seguinte no seu ac. de 14.07.2021 (proc. 65/18.9T8EPS.G1.S1): «Se o facto que se pretende impugnar for irrelevante para a decisão, segundo as várias soluções plausíveis, não há qualquer utilidade naquela impugnação da matéria de facto, pois o resultado a que se chegar (provado ou não provado) é sempre o mesmo: absolutamente inócuo. O mesmo é dizer que só se justifica que a Relação faça uso dos poderes de controlo da matéria de facto da 1ª instância quando essa actividade da Relação recaia sobre factos que tenham interesse para a decisão da causa, ut artº 130º do CPC. Quando assim não ocorre, a Relação deve abster-se de apreciar tal impugnação».
É, precisamente, o que ocorre no caso vertente pois, como melhor decorrerá da exposição subsequente, ainda que se considerasse não provado que as decisões sobre os negócios a encetar e os seus termos, sobre as relações que a sociedade mantinha com terceiros e sobre afetação dos seus recursos financeiros eram tomadas em conjunto pelo recorrente e pelo co-requerido AA, sempre se concluiria pela improcedência da apelação.
Pelo exposto, decide-se não conhecer da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
*



B. Fundamentação de Direito

1. Nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave (mas já não com culpa leve ou levíssima), do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Dispõe, por sua vez, o n.º 2 do mesmo artigo que se considera sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham praticado alguma das condutas tipificadas nas suas diversas alíneas.
É praticamente uniforme na jurisprudência o entendimento de que este n.º 2 consagra presunções juris et de jure, pelo que a prova de alguma das situações ali contempladas determina, inexoravelmente, a qualificação da insolvência como culposa, dispensando a prova tanto do dolo ou da culpa grave do gerente ou administrador, como do nexo de causalidade entre a sua conduta e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, e não admitindo prova em contrário, nos termos do disposto no artigo 350.º, n.º 2, parte final, do Código Civil (CC).
Alguma doutrina, com eco numa jurisprudência que julgamos ser ainda minoritária, suscita reservas quanto à qualificação das regras deste n.º 2 como verdadeiras presunções – que o artigo 349.º do CC define como «as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido – e quanto à sua falta de autonomia relativamente ao n.º 1.
Neste sentido, Rui Pinto Duarte escreve o seguinte: «o n.º 1 do art. 186.º contém uma proposição que visa ligar certos efeitos (mediados pela qualificação da insolvência como culposa) ao facto de a insolvência ter sido criada ou agravada por actuação dolosa ou culposa do devedor ou dos seus administradores; o n.º 2 não tem, pelo menos, nalgumas das suas alíneas, por objecto ligar o estabelecimento desse facto a outros, como seria próprio de uma presunção, antes contém proposições substantivas especiais, que em parte são concretizações da proposição geral e em parte afastamentos dela; na medida em que não visam a aplicação do n.º 1, os enunciados do n.º 2 não são presunções da existência da hipótese de facto nele descrita; as regras do n.º 3, essas sim, admitindo a categoria das presunções legais (sobre cuja utilidade tenho dúvidas, por entender que as mesmas se reconduzem tendencialmente a regras sobre ónus de prova e ficções), podem ser qualificadas como presunções de a insolvência ter sido criada ou agravada por actuação dolosa ou culposa dos administradores do devedor» (Responsabilidade dos administradores: coordenação dos regimes do CSC e do CIRE, III Congresso de Direito da Insolvência, Cord. Catarina Serra, Coimbra 2015, p. 160, nota 22).
No mesmo sentido, escreve-se o seguinte no ac. TRP de 10.02.2011 (proc. n.º 1283/07.0TJPRT-AG.P1):
«Neste contexto, e como se refere em douto acórdão do Tribunal Constitucional referido pelo recorrente – acórdão n.º 570/2008 – “… é duvidoso que na previsão do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE se instituam verdadeiras presunções… o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico-sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal de situações típicas de insolvência culposa”.
Por isso que seja mais correcto afirmar-se em nosso entender, que nas situações a que se faz referência no artº 186º, nº2, do CIRE, mais do que uma presunção legal, se verifica o que Batista Machado define – “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, págs. 108 e 109 – como “ficções legais”, pois que, o que o legislador extrai a partir do facto base, não é um outro facto, mas antes uma conclusão jurídica, numa remissão implícita para a situação definida no nº 1 do artº 186º do CIRE. E por isso que, à semelhança das presunções juris et de jure não admita prova em contrário, sendo que dispensa a alegação – e consequentemente a prova – de qualquer outro facto, ficcionando desde logo, a partir da situação dada, a verificação da situação de insolvência dolosa».
Seja como for, estas diferentes qualificações da natureza das regras do n.º 2 não geram dissensos relevantes quanto ao seu efeito prático: a prova de uma das hipóteses previstas naquele n.º 2 conduz necessariamente à qualificação da insolvência como culposa e à afectação do seu autor por esta qualificação.
Nos termos do n.º 3, do mesmo artigo 186.º do CIRE, presume-se a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido alguma das obrigações descritas nas suas alíneas.
É pacífico na jurisprudência e na doutrina que esta norma consagra verdadeiras presunções juris tantum da culpa grave a que alude o n.º 1 do mesmo artigo, que apenas serão afastadas se o visado lograr fazer prova do contrário, nos termos do disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 350.º do CC.
Menos pacífica começou por ser a questão de saber se esta presunção abrange igualmente o nexo de causalidade, isto é, se esta norma dispensa igualmente a prova do nexo de causal entre a conduta do administrador (que se presume gravemente culposa) e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Na jurisprudência sempre foi claramente maioritária a resposta negativa a esta questão. Neste sentido, escreveu-se o seguinte no ac. do TRC de 16.09.2014 (proc. n.º 1146/12.8TBCVL-B.C1):
«A qualificação da insolvência como culposa pressupõe, (…) de acordo com a norma citada [referindo-se ao artigo 186.º, n.º 1, do CIRE]: que a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada por determinada conduta ou actuação do devedor ou dos seus administradores; que tal actuação seja dolosa ou gravemente culposa e que esta actuação tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Contudo, o nº 2 da norma citada enuncia um conjunto de situações, cuja verificação determina, por si só, a qualificação da insolvência como culposa, presumindo o legislador – sem admitir prova em contrário, como decorre da expressão “considera-se sempre” – que em tais situações a insolvência é sempre culposa, sem que seja necessária a efectiva constatação de que existiu dolo ou culpa grave do devedor e de que existiu um nexo causal entre a actuação (dolosa ou gravemente culposa) do devedor ou dos seus administradores e a criação ou agravamento da situação de insolvência.
Situação diversa ocorre nas situações previstas no nº 3 da norma citada, onde apenas se presume a existência de culpa grave, sem dispensa, portanto, da demonstração do nexo causal entre o comportamento do devedor – que a lei presume como gravemente culposo – e a criação ou agravamento da situação de insolvência. Por outro lado, e ao contrário do que acontece nas situações a que alude o nº 2, a presunção de culpa estabelecida no nº 3 pode ser ilidida mediante prova em contrário (conclusão que se impõe em face do disposto no art. 350º, nº 2, do C.Civil e em face da circunstância de a lei o não proibir)».
No mesmo sentido, a título meramente exemplificativo, vide os ac. do STJ de 06.10.2011 (proc. n.º 46/07.8TBSVC-O.L1.S1) e de 29.10.2019 (proc. n.º 434/14.3T8VFX-C.L1.S1), o ac. do TRC de 14.01.2014 (proc. n.º 785/11.9TBLRA-A.C1) e os ac. do TRP de 10.02.2011 (proc. n.º 1283/07.0TJPRT-AG.P1) e de 27.10.2020 (proc. n.º 1139/19.4T8AMT-B.P1).
Mas alguma jurisprudência minoritária, com o apoio de diversa doutrina, vinha fazendo uma leitura distinta da norma deste n.º 3.
Assim, escreveu-se no ac. do TRC, de 22.11.2016 (proc. n.º 2675/13.1TBLRA-E.C1) que «[o] incumprimento do dever de apresentação à insolvência, acarretando uma presunção de culpa qualificada na insolvência (art. 186º, nº3, al. a)), dispensa a prova do nexo causal entre tal facto e a criação ou agravamento da insolvência, onerando o devedor com o ónus da prova de que não foi a sua conduta que deu causa à insolvência ou ao seu agravamento, mas outros fator externo ou independente da sua vontade».
Na doutrina, Catarina Serra sustentou que o n.º 3, do artigo 186.º, do CIRE «consagra não meras presunções (relativas) de culpa grave, como vinha defendendo grande parte da jurisprudência portuguesa, mas autênticas presunções (relativas) de insolvência culposa (ou de culpa na insolvência), como tem sido entendido mais recentemente» (O Regime Português da Insolvência, 5.ª ed., Coimbra 2012, p. 141).
Tal como afirmavam os defensores da tese maioritária, cremos que este entendimento de que a presunção abrange o próprio nexo de causalidade não tinha a indispensável correspondência na letra da lei, como impõe o artigo 9.º, n.º 2, do CC (neste sentido: Rui Pinto Duarte, cit., p. 161, nota 24; ac. do TRP, de 10.02.11, já antes citado).
Em todo o caso, a questão está hoje ultrapassada, por força da nova redacção do corpo do n.º 3, do artigo 186.º, do CIRE, introduzida pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, que, numa clara interpretação autêntica deste preceito, passou a afirmar que se presume unicamente a existência de culpa grave, não prescindindo, portanto, da prova do nexo de causalidade exigido pelo n.º 1, do mesmo artigo.
Para além do exposto, importa ainda realçar que, como se afirma no ac. do STJ, de 29.10.2019 (proc. n.º 434/14.3T8VFX-C.L1.S1), «[a] insolvência culposa tem consequências gravosas, previstas nos n.2 e 3 do art.189º do CIRE, traduzidas em inibições várias, às quais é conferida publicidade, por via da inscrição no registo civil e no registo comercial. Por isso, deve a matéria de facto provada fornecer uma inequívoca demonstração do preenchimento dos requisitos exigidos pelas diversas hipóteses do art.186º do CIRE».
2. No caso concreto, o Tribunal a quo qualificou a insolvência como culposa por considerar verificada a circunstância previstas no artigo 186.º, n.º 2, al. h), do CIRE.
Mas considerou improcedente a qualificação da insolvência como culposa ao abrigo da al. i), do mesmo n.º 2.
Considerou ainda não resultar verificada a insolvência culposa da insolvente por violação do disposto nas alíneas a) ou b), do n.º 3, do mesmo artigo 186.º.
O recorrente parece não ter interpretado assim a decisão recorrida, pois veio alegar que esta decisão andou mal no que respeita às presunções constantes do artigo 186.º, n.º 3, concluindo que as mesmas deverão ser desconsideradas no «que tange à qualificação do recorrente na decisão posta em crise, nomeadamente, por não se encontra demostrado o nexo de causalidade entre a não apresentação das contas sociais e não apresentação atempada, com a situação de insolvência» (sic) – cfr. conclusões 13 a 23.
Ora, foi precisamente a falta de demonstração do nexo de causalidade entre a omissão das obrigações previstas nas duas alíneas do n.º 3, do artigo 186.º, do CIRE e a situação de insolvência ou o seu agravamento que levou o Tribunal a quo a julgar não verificada a insolvência culposa da insolvente por violação do disposto nessas alíneas.
A apreciação da argumentação do recorrente relativamente às duas alíneas do n.º 3 do artigo 186.º do CIRE está, portanto, prejudicada, sendo certo que aquele nem sequer teria legitimidade para recorrer desta parte da sentença, por lhe ser totalmente favorável.
3. Para além desta argumentação, o recorrente limita-se a alegar que não deve ser afectado pela qualificação da insolvência como culposa (cfr. conclusão 24), afirmando que tal afectação «não se encontra em consonância nem com a prova produzida em sede de audiência de discussão de julgamento, nem com o direito aplicável» (cfr. conclusão 1), mas sem analisar de forma expressa o fundamento legal em que a decisão recorrida baseou essa qualificação (o artigo 186.º, n.º 2, al. h), do CIRE), afirmando ainda que a Meritíssima Juiz a quo não invoca qualquer fato que sustente a aplicação do período de inibição, previsto no artigo 189.º, n.º 2, al. b), do CIRE (a referência ao n.º 2 ficou a dever-se a um lapso manifesto), de dois anos e meio (cfr. conclusão 11).
Nestes termos, impõe-se verificar se os factos apurados preenchem a previsão do artigo 186.º, n.º 2, al. h), do CIRE, se o recorrente pode ser afectado pela qualificação da insolvência como culposa ao abrigo desta norma e se o período de inibição de dois anos e meio deve ser mantido.
3.1. Nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 2, al. h), do CIRE, considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
São, portanto, três as situações que podem servir de base a esta presunção: o incumprimento substancial da obrigação de manter contabilidade organizada; a manutenção de uma contabilidade fictícia ou de uma dupla contabilidade; a prática de irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
No caso concreto, provou-se que a Insolvente não tem contabilidade organizada desde Agosto de 2021 (cfr. ponto 10), mais se tendo provado que deixou de ter actividade em meados de 2021 (cfr. ponto 13).
Não está, assim, em causa que a insolvente tenha mantido uma contabilidade fictícia ou de uma dupla contabilidade, nem que tenha praticado alguma irregularidade (distinta da não manutenção de contabilidade organizada) com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor. Perante aquela factualidade, a questão que se coloca é a de saber se ocorreu um o incumprimento substancial da obrigação de manter contabilidade organizada.
A respeito da interpretação das previsões do artigo 188.º, n.º 2, do CIRE, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Vol. II, Lisboa, 2005, p. 15) escrevem o seguinte: «De uma maneira geral, as situações previstas nas várias alíneas do n.º 2 não suscitam difíceis problemas de interpretação, sem prejuízo de, na sua aplicação concreta, se dever atender às circunstâncias próprias da situação de insolvência do devedor. Aponta nesse sentido o recurso que nelas se faz a conceitos indeterminados, de que são exemplos significativos os que se identificam nos seguintes termos: «em parte considerável» [al. a)], «criado ou agravado artificialmente [a. b)], «preço sensivelmente inferior [al. c)], incumprido em termos substanciais» [al. h)]».
Julgamos ser consensual na doutrina e na jurisprudência que o incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada será substancial quando comprometer ou afectar de modo relevante as finalidades dessa obrigação. Neste sentido vide, a título de exemplo, o ac. do TRG, de 19.10.2020 (proc. n.º 1373/17.T8CHV.G1, rel. Heitor Gonçalves), o ac. do STJ, de 02.03.2023 (proc. n.º 3071/16.4T8STS-F.P1.S1, rel. Ana Paula Boularot) e o ac. do TRC, de 14.03.2023 (proc. n.º 1937/21.9T8CBR-A.C1, rel. Maria Catarina Gonçalves).
A obrigação de dispor de contabilidade organizada recai, por força do artigo 123.º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC), sobre as sociedades comerciais ou civis sob forma comercial, as cooperativas, as empresas públicas e as demais entidades que exerçam, a título principal, uma atividade comercial, industrial ou agrícola, com sede ou direção efetiva em território português, bem como sobre as entidades que, embora não tendo sede nem direção efetiva naquele território, aí possuam estabelecimento estável.
Esta obrigação visa, primacialmente, permitir o apuramento e o controlo do lucro tributável, como decorre daquela norma, conjugada com o artigo 17.º do CIRC, maxime o seu n.º 3.
Para esse efeito, a contabilidade deve, para além do mais, refletir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo a que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes; todos os lançamentos devem estar apoiados em documentos justificativos, datados e suscetíveis de serem apresentados sempre que necessário; as operações devem ser registadas cronologicamente, sem emendas ou rasuras.
Segundo Luís Brito Correia, citado no ac. do TRG, de 19.10.2020 (proc. n.º 1373/17.T8CHV.G1, rel. Heitor Gonçalves), «“chama-se contabilidade à compilação, registo, análise e apresentação de informações, em termos monetários, sobre operações patrimoniais” (Direito Comercial, I-257), devendo a sua elaboração ser orientada segundo os princípios de clareza e de verdade, por isso implica o arquivo em pastas próprias, por ordem cronológica, de todos os documentos relativos a actos com expressão patrimonial (v.g. compras e vendas, entradas e saídas de caixa e operações bancárias), de molde a permitir às autoridades públicas a verificação da regularidade tributária e o conhecimento pelos sócios da situação patrimonial da empresa, e servindo também “para verificar a regularidade da actuação do comerciante, nomeadamente em caso de falência, tendo em vista o interesse público” (cfr. obra citada, p. 253)».
Em suma, a obrigação de manter contabilidade organizada configura um instrumento destinado a dar a conhecer, de forma completa, rigorosa e fiável, a situação patrimonial e financeira da entidade a que respeita. Logo, nas palavras do ac. do TRC de 14.03.2023 antes citado, «o incumprimento dessa obrigação será substancial quando (…) não fornece uma imagem compreensível, completa e fiável da situação financeira da empresa, seja porque os termos em que foi organizada não permitem ou dificultam, de modo relevante, a exacta interpretação e compreensão da situação financeira que que ali se pretendeu retratar, seja porque induz à percepção de uma situação financeira que diverge, em termos substanciais e relevantes, da real situação da empresa». No mesmo sentido, vide o ac. do STJ, de 19.10.2021 (proc. n.º 421/19.5T8GMR-A.G1.S1, rel. Pinto de Almeida).
Deste modo, como se acrescenta no mesmo acórdão do TRC, citando os acórdãos do STJ de 05.07.2022 e de 19.10.2021, as três situações previstas na al. h), do n.º 2, do artigo 186.º, do CIRE, pressupõem a demonstração de um «prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor», expressamente mencionado a respeito da última daquelas situações.
A jurisprudência que julgamos ser maioritária entende que a verificação objectiva da situação descrita na alínea que vimos analisando é suficiente para se considerar preenchida a base da presunção de insolvência culposa, sem necessidade de demonstração das intenções subjacentes ao comportamento em causa.
Porém, alguma jurisprudência vem defendendo que o incumprimento da obrigação de manter contabilidade organizada apenas será substancial se aquele comportamento objectivo for acompanhado de elementos factuais que revelem o intuito de ocultar a situação financeira da empresa.
Neste sentido se pronunciou o ac. do STJ de 02.03.2021 acima citado, no qual, a propósito de uma situação semelhante à destes autos, se afirma que, isoladamente considerada, a ausência da organização da contabilidade inculca a existência de uma irregularidade contabilística, mas já não «que tenha havido por banda da devedora um qualquer comportamento tendente a esconder, alterar, ou adulterar as contas da empresa, por forma a dar a entender um giro comercial diverso do existente e muito menos que tivesse fugido às regras gerais do POC, porquanto foi pura e simplesmente omitida, nem tão pouco se indicia que esta omissão tivesse implicado um prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da devedora», pelo que aquela omissão, por si só, não demonstra «aquele incumprimento substancial que a norma exige» e, por conseguinte, não leva sem mais à declaração de insolvência culposa.
Em sentido contrário, defendendo que «a intenção ou os objectivos visados com o comportamento que lhe está subjacente são factores totalmente alheios ao juízo a fazer sobre a verificação (ou não) da situação prevista na norma citada», argumenta-se no ac. do TRC de 14.03.2023 que «além de essa especial exigência não encontrar o mínimo apoio na letra da lei, a exigência de prova de um comportamento praticado com aquela intenção e objectivos equivalia, ao que parece, a exigir a prova de um comportamento doloso (porque de outro modo não poderia ser considerado o comportamento de alguém que não cumpre os seus deveres em relação à contabilidade com a intenção e o propósito de adulterar as contas da empresa e de, por essa via, ocultar a sua verdadeira situação financeira e impedir que as causas da insolvência ou do seu agravamento fossem do cabal conhecimento de quem analisa a contabilidade da empresa) quando é certo que, nas situações previstas no n.º 2 do art.º 186.º (onde se insere a alínea em questão), o legislador pretendeu prescindir de qualquer análise ou juízo relativamente à culpa do agente, bastando-se com a verificação objectiva das situações aí descritas. Entendemos, portanto, que esse incumprimento tem que ser visto em termos objectivos – independentemente, portanto, das motivações e intenções que lhe estão subjacentes e da culpa ou grau de culpa que lhe esteja associado – em face das concretas anomalias que são evidenciadas na contabilidade».
Poderá contra-argumentar-se que a culpa (na modalidade de dolo ou de culpa grave) que o artigo 186.º, n.º 2, al. h), do CIRE presume de forma inilidível tem como referência a criação ou o agravamento da situação de insolvência e não o prejuízo para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor.
Em todo o caso, nada na letra ou no espírito da referida norma permite afirmar que o legislador pretendeu consagrar uma espécie de “dolo específico” relativo à intenção de causar prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor. Pelo contrário, decorre do que já ficou exposto que a exigência desse prejuízo relevante se limita a densificar o conceito indeterminado de “incumprimento substancial”, pelo que configura apenas um dos elementos objectivos da base da presunção.
Deste modo, aderimos à tese que começámos por apresentar como sendo maioritária na jurisprudência. Assim sendo, não podemos deixar de concluir como o ac. do TRC que vimos citando: «A situação prevista na referida alínea h) tem-se, portanto, como verificada quando a contabilidade não permite perceber e compreender a exacta e real situação patrimonial e financeira da empresa ou cria dificuldades sérias e relevantes para essa compreensão, seja porque tal contabilidade nem sequer existe (incumprimento absoluto – e, necessariamente, substancial – do dever de manter contabilidade organizada), seja porque a contabilidade existente omite elementos essenciais para aquela compreensão, seja porque contém incorrecções ou irregularidades (formais ou materiais) que são susceptíveis de afectar e condicionar, de modo relevante e significativo, aquela percepção e compreensão ou seja porque existe uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade que, obviamente, não reflecte a realidade».
É certo que a insolvente apenas deixou de ter contabilidade organizada a partir do momento em que deixou de ter actividade, como decorre da conjugação dos pontos 11 e 13 dos factos provados.
Contudo, esta circunstância não só não obstava, como não dispensava a insolvente da obrigação de manter uma contabilidade organizada, que reflectisse, para além do mais, a referida inexistência de actividade, de forma a permitir às autoridades públicas a verificação da regularidade tributária e o conhecimento pelos diversos interessados da situação patrimonial da empresa, bem como a verificação da regularidade da actuação da insolvente, maxime em caso de insolvência. Em sentido contrário não se argumente que a falta de contabilidade não causou qualquer dificuldade de compreensão da situação patrimonial e financeira da insolvente por parte de terceiros, como se pudéssemos partir do pressuposto de que estes conheciam ou não deviam ignorar a situação patrimonial e financeira da insolvente, inclusivamente se tinha encomendas, se adquiria matérias primas, se fornecia mercadorias, etc.
Em suma, importa confirmar a decisão recorrida na medida em que julgou verificada a situação prevista no artigo 186.º, n.º 2, al. h), do CIRE, tanto bastando para que se qualifique a insolvência como culposa.
3.2. Porém, a alegação do recorrente, maxime a impugnação da matéria de facto, tem subjacente o entendimento de que este era um mero gerente de direito, não exercendo essas funções de facto, e que, por essa razão, não pode ser afectado pela qualificação da insolvência como culposa.
A este respeito importa, antes de mais, referir que a eliminação do ponto 11 dos factos provados – pretendida pelo recorrente, pelo menos na parte que lhe diz respeito – seria insuficiente para considerarmos que o mesmo era um mero gerente de direito. Estando provado que o mesmo tinha a categoria de gerente (cfr. ponto 2), a conclusão de que não exercia de facto essas funções não se bastaria com a mera ausência de prova das funções efectivamente exercias, exigindo-se a demonstração de que a gerência cabia exclusivamente a outra ou outras pessoas e que o recorrente não tinha qualquer intervenção nessa gestão.
Em todo o caso, mesmo que estivesse demonstrado que o recorrente era um mero gerente de direito, sem exercer de facto essas funções, não haveria razões para se considerar que o mesmo não podia ser afectado pela qualificação da insolvência como culposa.
É pacífico na doutrina e na jurisprudência que os gerentes de direito que não o sejam de facto não estão isentos de serem afectados pela qualificação da insolvência como culposa, sem prejuízo, naturalmente, da necessidade de se apurarem os restantes requisitos legais de que os diversos números do artigo 186.º do CIRE fazem depender essa afectação. Como se escreve no acórdão desta mesma secção do TRP, de 27.10.2020 (proc. n.º 1139/19.4T8AMT-B.P1), «a previsão do art.º 186.º n.ºs 1 e 2 CIRE não visou excluir os administradores de direito, que o não fossem de facto, mas, inversamente, estender a qualificação a actos praticados por administradores de facto (assim, Acs.R.C. 11/10/16 Col.IV/15 e de 22/11/16 Col.V/23, ambos relatados pela Desª Mª João Areias)».
E compreende-se que assim seja. Como ensina Coutinho de Abreu (Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedade, 2010, p. 25), citado no acórdão do TRP acima referido, os gerentes ou administradores da sociedade devem observar deveres de cuidado e deveres de lealdade, nos termos previstos no artigo 64.º do Código das Sociedades Comerciais (CSC), englobando-se nos primeiros «o dever de controlar e vigiar a condução da actividade da sociedade e o dever de se informar sobre as eventuais causas de danos sociais rectius de se informar sobre a situação económico-financeira da sociedade». Assim, como se afirma no ac. do TRC, de 22.11.2016 (proc. n.º 2675/13.1TBLRA-E.C1), «a ignorância e o alheamento dos destinos da sociedade constituem, por si só, uma violação dos deveres gerais que se lhe impunham, enquanto gerente da insolvente». Por isso, como se escreve neste mesmo acórdão, «[u]m administrador de direito que o não seja de facto pode ser também ele afetado pela qualificação de insolvência como culposa, nomeadamente quando se encontre em causa um comportamento omissivo dos deveres que sobre o mesmo impendiam enquanto fazendo parte do órgão de gestão da devedora, nomeadamente o de apresentação da devedora à insolvência.»
Tal não significa que seja irrelevante a circunstância de o gerente de direito não exercer de facto essas funções. Tudo depende, como dissemos anteriormente, da prova dos demais factos susceptíveis de preencher pelo menos uma das estatuições do artigo 186.º do CIRE.
Já vimos que, no caso concreto, a qualificação da insolvência como culposa repousa na verificação da presunção inilidível (ou na ficção legal) de insolvência culposa prevista non artigo 186.º, n.º 2, al. h), do CIRE.
Ora, como já referimos, ainda que o recorrente não exercesse efectivamente a gerência da devedora, os deveres fundamentais consagrados no artigo 64.º do CSC, bem como regime legal da responsabilidade dos gerentes e administradores perante a sociedade, regulado no artigo 72.º do mesmo código (cujo n.º 1 preceitua assim: «Os gerentes ou os administradores respondem para com a sociedade pelos danos a esta causados por atos ou omissões praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais, salvo se provarem que procederam sem culpa»), impunham-lhe que vigiasse e controlasse a organização e a condução da actividade da sociedade, bem como a evolução da sua situação económico-financeira, e que, consequentemente, não ignorasse nem se mantivesse inerte perante a falta de manutenção de uma contabilidade organizada.
É, assim, inquestionável que a sua conduta preenche a situação prevista no artigo 186.º, n.º 2, al, h), do CIRE.
Pelas razões expostas, concordamos com a bem fundada decisão recorrida quando conclui pela qualificação da insolvência como culposa e pela afectação do aqui recorrente.
3.3. Alega, ainda, o recorrente que a decisão recorrida não invoca qualquer fato que sustente a fixação do período de inibição previsto no artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do CIRE, em dois anos e meio.
Nos termos do disposto nesta disposição legal, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve decretar a inibição das pessoas afetadas para administrarem patrimónios de terceiros, por um período de 2 a 10 anos.
A Sra. Juíza a quo fundamentou assim a sua decisão: «se tivermos em conta que a inibição mínima de 2 anos deve ter lugar quando o grau de culpa é menor e a máxima de 10 anos para um grau de culpa máximo, consideramos que, em face da culpa do aqui gerente, entende-se ser de fixar a sanção de inibição para administrar e patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio e para ocupar qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, a qual, atendendo ao circunstancialismo apurado se fixa no mínimo legal de 2 anos e seis meses».
Embora este período de dois anos e seis meses não corresponda ao mínimo legal (referência que parece dever-se a um lapso) está muito próximo do mesmo.
Por isso mesmo, não vemos razões para reduzir ainda mais esse período, nem o recorrente aduziu argumentos nesse sentido. Se é verdade que facilmente se concebe um leque muito variado de situações em que a gravidade do comportamento das pessoas abrangidas pela qualificação da insolvência se revela muito maior, como sucederá na generalidade das situações em que se demonstre que essas pessoas causaram ou agravaram a situação de insolvência em benefício próprio ou de terceiros, ainda assim é possível conceber situações em que essa gravidade é menor. Na falta de outros elementos, não podendo o Tribunal deixar de decretar a inibição em causa e de fixar o respectivo período entre os 2 e os 10 anos, entendemos que o Tribunal a quo revelou parcimónia e equilíbrio na decisão que tomou, não constando dos autos nenhum dado ou elemento que imponha uma decisão diversa.
4. Por tudo quanto ficou exposto, mantém-se a decisão recorrida.
Na total improcedência da apelação, incumbe ao recorrente o pagamento das respectivas custas, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
*


Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
…………………………………………………………
…………………………………………………………
…………………………………………………………


*



IV. Decisão

Pelo exposto, nos Juízes desta 2.ª secção do Tribunal da Relação do Porto julgam totalmente improcedente a apelação e confirmam a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.

Registe e notifique.



*





Porto, 11 de Março de 2025

Relator: Artur Dionísio Oliveira
Adjuntos: Anabela Andrade Miranda
Lina Baptista