DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
AUDIÇÃO PRÉVIA DA PARTE
Sumário

I - No caso específico de suspensão da instância por falecimento de uma das partes, uma vez que o prosseguimento da instância depende em exclusivo do impulso das partes em requerer a habilitação de herdeiros, não cabendo nos poderes/deveres oficiosos do tribunal, as partes têm obrigação de saber, ou não podem ignorar, para mais estando devidamente representadas por advogado, que se não procederem à habilitação de herdeiros da parte falecida no prazo de 6 meses, ou não derem conta ao tribunal de eventuais dificuldades impeditivas de requerer a habilitação dentro daquele prazo, a instância extinguir-se-á por deserção ao abrigo do art. 281º do CPC.
II - Resultando directamente da lei a consequência do não cumprimento do ónus de habilitação de herdeiros por negligência das partes (arts. 269.º n.º 1 al. a), 276.º n.º 1 al. a) e 281.º do CPC), não havia que proceder à audição da parte a quem competia tal ónus, previamente à decisão que declarou a extinção da instância por deserção.

Texto Integral

Processo n.1884/22.7T8VCD.P1- Apelação
Juízo Local Cível de Vila do Conde- Juiz 1

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Sumário (elaborado pela Relatora):
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I. Relatório
1. AA intentou Processo Especial de Inventário para partilha das heranças abertas por óbito de BB e CC, no qual foi nomeada como cabeça de casal.

2. No âmbito das diligências de citação, desconhecendo-se o paradeiro dos interessados DD e EE, foram os mesmos citados editalmente, e após foi citado o Magistrado do MP em representação desses dois interessados ausentes.

3. Tendo vindo devolvida a citação da interessada FF com a menção “falecida”, foi ordenado à requerente/cabeça de casal que procedesse à junção da certidão de óbito dessa interessada, documento que, entretanto, foi junto aos autos.

4. Após, foi proferido despacho em 28.11.2023, Ref Citius 454218157, com o seguinte teor:
“A Requerente AA juntou aos autos um documento que comprova o óbito de FF.
Ora, o óbito da interessada determina a imediata suspensão dos autos, nos termos do disposto nos arts. 269.º, n.º 1, al. a) e 270.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil.
Assim sendo, suspende-se a instância até que sejam habilitados os sucessores da falecida FF nos termos do art. 1096.º do Código de Processo Civil, sem prejuízo do disposto no art. 281.º do mesmo código.
Notifique.”

5. Nada tendo sido entretanto requerido, foi proferido despacho em 25.06.2024, Ref Citius 461373060, com o seguinte teor (transcrição integral):
“Os autos encontram-se parados desde 28.11.2023 por ter falecido a interessada FF e porque ficaram a aguardar que algum dos outros interessados deduzisse o competente incidente de habilitação, sem prejuízo do disposto no art. 281.º do Código de Processo Civil.
Assim sendo e decorridos que estão mais de seis meses sobre a notificação de suspensão da instância, os interessados não deram o devido impulso processual (considerando o disposto no art. 144º, n.º 1 do Código de Processo Civil sobre prazos de seis meses que não se suspendem em férias), não deduzindo o competente incidente do art. 1089.ºdo Código de Processo Civil.
As partes foram advertidas do disposto no art. 281.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, por isso declara-se a instância deserta.
Por todo o exposto e ao abrigo do disposto nos arts. 277.º, al. c) e 281.º, n.º 1 do Código de Processo Civil julga-se extinta a instância por deserção.
Custas a cargo da Requerente, nos termos do disposto no art. 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, fixando-se aos autos o valor de €.7500,00, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Registe e notifique.”

6. Inconformada, a interessada AA interpôs recurso de apelação da referida decisão, formulando as seguintes
CONCLUSÕES
1. Não pode a Recorrente se compadecer com a douta sentença de 25.06.2024, porquanto a mesma incorre numa incorreta apreciação e aplicação do direito.
2. Desde logo, importa notar que são dois os pressupostos essenciais à verificação da deserção da instância: - um, objectivo, ou seja, o decurso de um período de tempo superior a 6 meses em que o processo, sem andamento, esteja a aguardar o impulso processual das partes; - outro, subjectivo, consistente na negligência das partes na promoção dos seus termos (causadora da inacção ou paragem processual), cfr Acórdão do Tribunal da Relação do Porto.
3. No caso em apreço nenhum dos dois requisitos se encontra preenchido pelo que inexistia fundamento para declarar por despacho tal deserção da instância.
4. Verificamos que não consta expresso na decisão impugnada em que concreta data considerou o Tribunal a quo ter começado a correr o prazo de seis meses apto a fazer operar a causa de extinção da instância por deserção que entendeu relevar e menos ainda consta a data em que no entender do mesmo terá sido ultrapassado o dito prazo de seis meses.
5. Mas ainda que assim não se entendesse cumpre dizer que a especificidade do processo em causa e designadamente das funções nele assumidas pela Apelante inviabilizaria a declaração de deserção da instância, por não ser correcto falar em negligência da parte.
6. Com efeito, a ora Apelante não é “apenas” Requerente nos presentes autos, pois desempenha neles, por ter sido designada como tal, as funções de cabeça-de-casal.
7. Ora o despacho proferido pelo Tribunal a quo exigindo à Apelante a apresentação de vasta documentação e a reformulação/correcção de declarações prestadas como cabeça-de-casal tem na sua base o cumprimento de um puro dever de colaboração não assentando propriamente na omissão da prática de um ato da parte destinado ao exercício de um seu direito.
8. Por conseguinte, o não cumprimento, ou cumprimento meramente parcial, do que for exigido legalmente ao cabeça-de casal apresentar no processo de inventário para o instruir adequadamente pode dar origem à aplicação de uma sanção e até à remoção do mesmo, se for requerida, ao abrigo do disposto no artigo 2086.º, n.º 1, do Código Civil, mas não à deserção da instância.
9. Acresce ainda notar que demandava, no mínimo, que o Tribunal a quo apurasse junto da mesma com mais precisão com que obstáculos concretos estava a deparar-se atendendo à previsão constante do n.º 4 do artigo 7.º do CPC, vide Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 1.º, 4.ª edição, 2018, Almedina, pág. 573), Tribunal da Relação de Évora de 24/01/2018, Proc.º 1393/12TBOLH.E1, relator Francisco Matos, acessível para consulta in www.dgsi.pt.
10. Por fim, urge notar que a Recorrente e os demais interessados melhor identificados nos autos não foram alertadas para consequência da omissão do impulso da habilitação de herdeiros.
11.Por tudo o supra exposto, é forçoso concluir que ao não terem sido determinadas diligência probatórias que se afiguravam, em si mesmas, essenciais ou determinantes para a decisão do incidente da nulidade de citação, foi violado o dever de gestão processual e o direito de acesso aos tribunais, contido no art. 20.º da CRP, violação essa que expressamente se invoca.
12.Ora, a omissão das diligências supra citadas configura uma nulidade nos termos do artigo 195.º do CPC, a qual expressamente se invoca para os devidos efeitos legais.
13.No mais, salvo o devido respeito por entendimento contrário, todas as diligências probatórias teriam queser produzidas, em sedede audiência, paraa qual tivessem sido regularmente notificados todos os interessados no processo de inventário, termos do artigo 225.º do CPC.
14.Ora, tal diligência probatória deveria ter sido realizada de moldes preceituados pelo art. 225.º do CPC, o que não sucedeu.
15.E por via disso a aqui Recorrente e os demais interessados viram cerceados os referidos princípios do dispositivo e do contraditório, configurando o despacho em crise uma decisão-surpresa., vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 02-12-2019.
16.Do cotejo da sentença de que se recorre com a leitura atenta dos artigos supra citados, verifica-se que foram omitidas a prática das diligências prescritas nos artigos 3.º, n.º 3, 7, todos do CPC, constituindo uma decisão-surpresa.
17.Há, assim, que concluir que o despacho é nulo e nessa conformidade deverá o despacho recorrido ser revogado e deverá anular-se todo o processado posterior à sentença recorrida, ordenando-se que a aqui recorrente e os demais interessados devem ser notificados da intenção de decretar a deserção da instância.
Concluiu, pedindo que seja julgado o presente recurso procedente, revogando a sentença recorrida, por ser nula, e, em consequência, ordenando-se a substituição da mesma, devendo o mesmo ser substituído por outro que determine o prosseguimento do processo nos termos propugnados.

7. Foi apresentada resposta ao recurso por parte do Magistrado do MP, pugnando pela confirmação do julgado.

8. Foram observados os vistos legais.
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II. Delimitação do Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
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A questão a decidir, em função das conclusões do recurso, é a seguinte:
-se se verificam os pressupostos para a declaração de extinção da instância por deserção.
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III. Fundamentação de Facto
Para a decisão a proferir relevam todos os factos, inerentes à tramitação processual e respectivas peças processuais, constantes do relatório acima elaborado, tendo-se procedido à consulta integral dos autos para prolação da presente decisão.
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IV. Fundamentação Jurídica
Cumpre-nos apreciar se a decisão recorrida observou os pressupostos legais para que pudesse ser declarada extinta a instância por deserção.
Previamente àquela decisão havia sido junto aos autos pela cabeça de casal (requerente) documento comprovativo do falecimento de uma das interessadas no inventário judicial em curso, tendo o Tribunal a quo proferido despacho em 28.11.2023 a declarar suspensa a instância até que fossem habilitados os sucessores da falecida FF nos termos do art. 1096.º do CPC, sem prejuízo do disposto no art. 281º do CPC, decisão esta notificada aos demais interessados, entre eles a cabeça de casal devidamente representada por advogado.
Dispõe o artigo 281º nº 1, do CPC, que “sem prejuízo do disposto no nº 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.
Afigura-se-nos consensual que a deserção da instância exige, para além da paragem do processo por mais de 6 meses consecutivos, que a falta de impulso processual decorra da negligência das partes e que a avaliação dessa negligência deva ser aferida casuisticamente dos elementos extraídos dos autos.
Não obstante, a nosso ver há muito resulta consolidado o entendimento de que no caso específico de suspensão da instância por falecimento de uma das partes, como é o presente caso, uma vez que o prosseguimento da instância depende em exclusivo do impulso das partes em requerer a habilitação de herdeiros, não cabendo nos poderes/deveres oficiosos do tribunal, as partes têm obrigação de saber, ou não podem ignorar, para mais estando devidamente representadas por advogado, que se não procederem à habilitação de herdeiros da parte falecida no prazo de 6 meses, ou não derem conta ao tribunal de eventuais dificuldades impeditivas de requerer a habilitação dentro daquele prazo, a instância extinguir-se-á por deserção ao abrigo do art. 281º do CPC.
Nestes termos foi notificada a requerente do inventário- também cabeça de casal- de que devia habilitar os herdeiros da interessada falecida para que o inventário prosseguisse, tendo sido inclusivamente advertida, no despacho que declarou suspensa a instância, de que se não promovesse o necessário incidente de habilitação de herdeiros, sem o qual a instância não estava em condições de prosseguir, a instância extinguir-se-ia por deserção, pelo que, tendo-se esgotado os 6 meses consecutivos desde a notificação às partes daquele despacho sem que a requerente do inventário apresentasse requerimento de habilitação de herdeiros ou justificasse a sua inércia, deve ter-se por verificada a negligência a que alude o art. 281.º n.º 1 do CPC, a qual se extrai com segurança dos referidos elementos objectivos que resultam dos autos.
Resultando directamente da lei a consequência do não cumprimento do ónus de habilitação de herdeiros por negligência das partes (arts. 269.º, n.º 1, al. a), 276.º, n.º 1, al. a), e 281.º do CPC), a aqui Apelante sabia claramente, ou pelo menos tinha obrigação de saber (sendo que a ignorância da lei não lhe aproveita) que decorrido o prazo previsto no art. 281º CPC a instância seria extinta por deserção, e assim sendo não havia que proceder à sua audição previamente à decisão recorrida que declarou a extinção da instância por deserção, uma vez que tal consequência já havia sido anteriormente antecipada para o caso de a habilitação de herdeiros não vir a ser instaurada.
Esta é a posição por nós assumida, e que se mostrava também acolhida, entre outros, no Ac STJ de 7.12.2023, Proc. 18860/16.1T8LSB.L2.S1, Ac STJ de 10.10.2023, Proc. Nº783/17.4T8AVR.P1.S1, Ac STJ de 20.6.2023, Proc. Nº 19176/16.9T8LSB.L3.S1, Ac STJ de 16.03.2023, Proc. Nº 543/18.0T8AVR.P1.S1.
Entretanto, perante a publicação do recente AUJ nº 2/2025, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do Proc. Nº 4368/22.0T8LRA.C1.S1, cremos que clarificado ficou o regime a aplicar em caso de inércia das partes em promover o andamento regular do processo após o despacho a declarar a suspensão dos autos, quando estes ficam a aguardar o impulso processual das partes.
Nesse aresto ficou uniformizada a seguinte jurisprudência:
“I - A decisão judicial que declara a deserção da instância nos termos do artigo 281º, nº 1, do Código de Processo Civil pressupõe a inércia no impulso processual, com a paragem dos autos por mais de seis meses consecutivos, exclusivamente imputável à parte a quem compete esse ónus, não se integrando o acto em falta no âmbito dos poderes/deveres oficiosos do tribunal.
II – Quando o juiz decida julgar deserta a instância haverá lugar ao cumprimento do contraditório, nos termos do artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, com inerente audiência prévia da parte, a menos que fosse, ou devesse ser, seguramente do seu conhecimento, por força do regime jurídico aplicável ou de adequada notificação, que o processo aguardaria o impulso processual que lhe competia sob a cominação prevista no artigo 281º, nº 1, do Código de Processo Civil.”
Parece-nos despiciendo tecer mais considerandos que aqueles que ficaram exemplarmente exarados no referido AUJ e, como tal, pela clareza da argumentação, tomamos a liberdade de a reproduzir, no que para aqui importa decidir:
“(…) a deserção da instância na acção declarativa implicará necessariamente a apreciação e valoração jurisdicional, caso a caso, do comportamento omissivo das partes, sendo mister concluir-se que foi devido a tal postura negativa que o processo se manteve sem andamento algum durante o lapso temporal legalmente exigido (seis meses e um dia).
(…)A decisão judicial que declara a instância deserta e, nessa medida, extinta nos termos dos artigos 281º, nº 1, e 277º, alínea c), do Código de Processo Civil, tem como pressuposto essencial a negligência em promover o impulso processual por parte daquele sobre quem impende esse ónus, conjugada com o decurso do período temporal consignado na lei e conducente a tal desfecho.
Não é, portanto, suficiente para a produção deste efeito processual - extinção da instância por efeito de deserção - a simples paragem do processo pelo tempo legalmente previsto (mais de seis meses consecutivos).
Exige-se ainda, como conditio sine qua non, que esse imobilismo seja devido à injustificada inércia da parte a quem cabe o ónus de promover o prosseguimento dos autos, que dele estava ou deveria estar seguramente ciente, e que não o satisfez.
Ou seja, é absolutamente essencial para a declaração de deserção da instância que, em virtude da existência de disposição legal donde resulta o ónus de impulso processual e pela forma como o tribunal lhe comunica, de forma clara, directa e inequívoca, essa necessidade processual de agir, a parte tivesse ou devesse ter o necessário conhecimento, nesse particular circunstancialismo, de que o processo só poderia prosseguir sob o seu impulso e que, se nada fizesse, a instância caminharia inexoravelmente, em morte lenta, para o seu fim.
Este instituto jurídico assenta, portanto, no demonstrado desinteresse, incúria ou indesculpável desleixo da parte (que sabia ou devia saber que sobre ela recaía o impulso processual) em promover os termos da causa, concretizando-se, portanto, na falta do empenho e cooperação (cfr. artigos 7º, nº 1, e 8º do Código de Processo Civil) que lhe eram em concreto exigíveis, não sendo admissível que a instância subsista indefinidamente à espera da prática do acto processual que lhe competia diligentemente realizar e que durante tanto tempo inexplicavelmente omitiu.
Assim sendo, o tribunal apenas pode declarar a extinção da instância por deserção quando dispuser dos elementos que lhe permitam concluir, com inteira segurança, que deve fundar-se na rigorosa e atenta análise dos autos, que existiu de facto negligência em promover o seu impulso, exclusivamente imputável à parte interessada, a qual estava sujeita aos efeitos decorrentes dos princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade que vigoram no direito processual civil.
Logo, e como se disse, é absolutamente decisivo para que seja legalmente possível declarar a deserção da instância a prévia e detalhada análise do circunstancialismo próprio e singular de cada situação processual concreta.
Neste sentido, constituirá elemento especialmente importante, e que poderá conduzir à conclusão de que existiu, ou não, negligência da parte em promover o impulso processual, a forma como se expressou o despacho que a interpela e adverte a realizar o acto que lhe incumbia, onde deverão constar ainda, expressamente, as consequências processuais associadas (em concreto a cominação da extinção da instância por deserção por efeito da dita inércia).
Não será ainda despicienda, na análise do caso concreto, a circunstância de a parte se encontrar devidamente assistida por advogado, o qual, enquanto profissional especialista em matéria jurídica, se encontrava naturalmente habilitado a entender o verdadeiro sentido e alcance da notificação realizada nos termos do artigo 281º, nº 1, do Código de Processo Civil, competindo-lhe agir em conformidade.
Importa outrossim salientar que a negligência processual relevante para que possa vir a ser declarada, pelo juiz da causa, a deserção da instância, nos termos do artigo 281º, nº 1, do Código de Processo Civil, pressupõe sempre que, no caso concreto, compita exclusivamente à parte o ónus do impulso processual e que o não cumpra pelo período de mais de seis meses consecutivos, com a inerente e consequente paragem dos autos nessas circunstâncias temporais.
Ou seja, é mister que o acto que importa praticar (e que terá sido omitido) não se situe na esfera de competência dos poderes/deveres oficiosos do juiz, designadamente por via do exercício do dever de gestão processual, integrando a obrigação de direcção e condução dos autos de que é o titular (cfr. artigo 6º, nºs 1 e 2, e 7º, nº 1, do Código de Processo Civil), que lhe estão legalmente cometidos, sendo certo que neste último caso a eventual inércia da parte quanto ao impulso processual não relevará para efeitos do funcionamento do instituto da deserção da instância.
Coloca-se ainda, no âmbito da presente revista ampliada, a questão essencial de saber se a decisão judicial que declara a extinção da instância terá de ser sempre, em termos imperativos e necessários, antecedida da notificação da parte interessada para que esta possa alegar o que tiver por conveniente, em obediência ao princípio geral consignado no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil.
(…) No sentido da inexistência do dever e da obrigatoriedade de audiência prévia da parte interessada – pelo menos na generalidade das situações – tem-se pronunciado a larga e firme maioria dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que versou, ao longo dos anos, sobre esta questão.
(…)O princípio do contraditório constitui indiscutivelmente pedra angular no nosso panorama processual civil.
Daqui não resulta, porém, que exista fundamento legal para obrigar o juiz, antes de declarar a deserção da instância nos termos do artigo 281º, nº 1, do Código de Processo Civil, e sempre que a questão se suscite, a cumprir invariavelmente o contraditório previsto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, através da prévia audiência das partes.
Nenhuma norma ou princípio processual especificamente o impõe para todas e cada uma das situações, mormente face à sua clara e inequívoca desnecessidade no caso concreto.
(Diga-se, aliás e a este propósito, que no âmbito da acção executiva, e nos termos do nº 5 do artigo 281º do Código de Processo Civil, a deserção da instância não é sequer declarada pelo juiz, o que significa a afirmação da desnecessidade de audiência prévia das partes (enquanto regra) nesse momento – o da deserção - em todos os processos desta natureza).
Com efeito, a negligência processual relevante para a deserção da instância pode e deve estar necessariamente espelhada, em termos claros e inequívocos, na própria tramitação processual e na sua singular conformidade com quadro legal aplicável, cuja análise permitirá, com a necessária segurança, concluir que a parte tinha (ou devia ter) naquele caso concreto a consciência de que os autos se encontravam parados à espera da prática do acto processual que lhe competia, tendo ainda a mesma a noção segura e efectiva dos efeitos processuais associados à sua eventual e futura inércia.
Ou seja, constitui pressuposto essencial deste instituto o juízo extraído pelo tribunal no sentido de que, com base no que é concretamente revelado pela análise detalhada da tramitação processual e pela atenta e rigorosa tomada em consideração do regime jurídico aplicável ao caso concreto, a parte estava (ou deveria estar naquelas circunstâncias específicas e peculiares) perfeitamente ciente da sua obrigação de agir (não o fazendo), num domínio em que imperam os princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade.
Assim, assente nestes particulares pressupostos, afrontará o princípio da economia processual expresso no artigo 130º do Código de Processo Civil pretender artificialmente acrescentar, em todos os casos, sistematicamente, uma nova obrigação processual adicional não prevista normativamente – a obrigatoriedade incontornável da audiência da parte antes da prolação do despacho de deserção da instância (cujos pressupostos devem resultar afinal, com segurança e em termos absolutamente objectivos, da simples leitura dos autos, desde que devidamente conjugada com a aplicação das normas legais pertinentes) - e que, uma vez não observada, fulminaria inexoravelmente a decisão judicial com o vício de nulidade (artigo 195º do Código de Processo Civil).
Importa, portanto, afastar o entendimento de que, em todas as situações processuais que tenham a ver com a possibilidade de declarar a deserção da instância nos termos do artigo 281º, nº 1, do Código de Processo Civil, a ausência da prévia audiência da parte interessada redundaria invariavelmente na violação dos princípios do contraditório e da proibição de decisões surpresa consignados no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil.
Desde logo, na medida em que sendo exigível para a verificação da negligência processual relevante o conhecimento (ou dever do conhecimento) da parte relativamente à obrigatoriedade da prática do acto processual em falta e à consciência da consequência legal associada, os seus direitos de defesa neste tocante encontram-se já, por sua natureza, devida e inteiramente salvaguardados, não sendo razoável invocar-se a obrigatoriedade de concessão de nova oportunidade para que esta – que se concluiu, de forma absolutamente clara e inequívoca, haver falhado o dever processual a que se encontrava especialmente adstrita – se pronunciasse sobre aquilo que já antes bem sabia ou que, actuando diligentemente, deveria necessariamente saber.
Contrariando a pretensa imperatividade, indiferenciadamente e em todos os casos, da sua audiência prévia para assegurar o exercício do contraditório, nos termos gerais do artigo 3º, nº 3, do Código Civil, dir-se-á igualmente:
- ou a parte poderia não ter (ou não deveria ter) no caso concreto consciência e total segurança quanto à sua obrigação de agir processual e, então, justifica-se nessas circunstâncias que fosse ouvida, designadamente para poder afirmar que não se encontrava numa situação de negligência relevante para a declaração de extinção da instância por deserção;
- ou, pelo contrário, se existe de facto devidamente comprovado no processo esse mesmo conhecimento, em termos claros e inequívocos, face ao regime jurídico aplicável que estabelecia indubitavelmente essa sua obrigação de agir, perante um tão impactante silêncio omissivo por mais de seis meses, torna-se difícil de compreender e aceitar, em termos de razoabilidade e da eficácia do funcionamento da própria instituição judiciária, bem como da racionalidade e economia na utilização dos meios ao seu dispor, a exigência da obrigação processual imposta ao tribunal de indagar junto da própria parte (faltosa) acerca das hipotéticas razões pelas quais, afinal de contas, sendo a especial interessada no expedito andamento dos autos, permaneceu silenciosa e inerte durante tão longo período temporal.
Assim sendo, inexiste nestas circunstâncias qualquer tipo de prolação de decisão surpresa proibida pelos princípios gerais do contraditório e da tutela da confiança.
Exigindo-se, nesses termos e para este concreto efeito, que a parte tivesse consciência da obrigação da prática do acto processual e da consequência da sua inércia pelo prazo (mais de seis meses) legalmente fixado, não fará, em princípio, sentido considerar que a mesma, nada tendo, entretanto, feito no processo – como especialmente lhe competia -, não pudesse razoavelmente contar com o desfecho (esperado e não surpreendente) para o qual, há longos seis meses, havia sido expressamente advertida e de que ficara naturalmente ciente.
O que significa basicamente, e em termos práticos, que ao decidir julgar deserta a instância deverá, em princípio, haver lugar ao cumprimento do contraditório, nos termos do artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil, com inerente audiência prévia das partes, desde que a parte interessada não devesse ter conhecimento, por força do regime jurídico aplicável ou de notificação oportunamente realizada, que o processo aguardaria o seu impulso processual sob tal cominação.
(Sufraga-se, desta forma e inteiramente, a corrente jurisprudencial consolidada e firme do Supremo Tribunal de Justiça de que se deu notícia supra e à qual se adere sem dúvidas ou hesitações).”
Ora, nesse mesmo aresto fez-se menção expressa às hipóteses em que a instância fica suspensa a aguardar que a parte promova a habilitação de herdeiros no caso de falecimento da outra parte ou comparte, no sentido já por nós defendido de que, recaindo sobre a parte o ónus de providenciar pela habilitação de herdeiros em caso de falecimento da outra parte ou comparte (neste caso de uma das interessadas no processo de inventário), não está o Tribunal obrigado a cumprir previamente o contraditório antes de decidir pela extinção da instância por deserção, não consubstanciando esta uma decisão surpresa.
Assim se pode ler a esse propósito, que “atente-se, a título de exemplo paradigmático, no caso típico da suspensão da instância por falecimento da parte em conformidade com o disposto no artigo 269º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil.
O despacho do juiz declarando a suspensão da instância é notificado à parte, aguardando os autos pela promoção do incidente de habilitação que permitirá fazer cessar a suspensão nos termos gerais do artigo 276º, nº 1, alínea a), do Código de Processo Civil.
A parte tem, ou deverá ter, neste contexto, a perfeita consciência de que, força do regime jurídico aplicável, deverá impulsionar nos autos o incidente de habilitação nos termos gerais do artigo 351º do Código de Processo Civil.
Se nada faz no processo, passados seis meses e um dia, o juiz deverá desde logo julgar deserta a instância, nos termos do artigo 281º, nº 1, do Código de Processo Civil, sem qualquer necessidade de exercício do contraditório que, neste circunstancialismo, deixa de ser justificável.”
Se é certo que a declaração de extinção da instância por deserção não prescinde de uma análise casuística dos elementos que objectivamente se extraiam dos autos quanto à negligência da parte em termos processuais, e por princípio só deva ser declarada após a audição prévia da parte, devem ser ressalvados os casos em que o regime jurídico prescinde do exercício do contraditório prévio, como sempre se entendeu ser o caso da suspensão da instância por falecimento de uma das partes para ser promovida a necessária habilitação de herdeiros da parte falecida.
O que resulta objectivamente dos presentes autos é que a requerente do inventário, e simultaneamente cabeça de casal, tomou conhecimento do falecimento de uma das interessadas, juntou aos autos documento comprovativo desse falecimento e foi notificada do despacho que declarou suspensa a instância para que fossem habilitados os herdeiros da interessada falecida, com expressa advertência de que o devia fazer sem deixar esgotar o prazo previsto no art. 281º do CPC, pelo que a requerente, inclusivamente representada por advogado, ficou perfeitamente ciente de que se não habilitasse os herdeiros daquela interessada no prazo de 6 meses consecutivos, contados desde a notificação daquele despacho de 28.11.2023, a instância seria extinta por deserção, como o foi por despacho de 25.06.2024, altura em que tal prazo se mostrava esgotado.
É totalmente irrelevante a argumentação apresentada pela Apelante de que não consta de forma expressa na decisão recorrida em que concreta data o Tribunal a quo considerou ter começado a correr o prazo de 6 meses e em que data tal prazo foi ultrapassado, porquanto dele consta que na data em que a decisão recorrida foi proferida “os autos encontram-se parados desde 28.11.2023 por ter falecido a interessada FF e porque ficaram a aguardar que algum dos outros interessados deduzisse o competente incidente de habilitação, sem prejuízo do disposto no art. 281.º do Código de Processo Civil.
Assim sendo e decorridos que estão mais de seis meses sobre a notificação de suspensão da instância, os interessados não deram o devido impulso processual (considerando o disposto no art. 144º, n.º 1 do Código de Processo Civil sobre prazos de seis meses que não se suspendem em férias), não deduzindo o competente incidente do art. 1089.º do Código de Processo Civil”, estando devidamente evidenciado na sentença recorrida o elemento objectivo da inércia da parte em impulsionar o processo durante o período de 6 meses consecutivos, assim como o elemento subjectivo da negligência relevante para efeitos do decretamento da deserção da instância.
Contrariamente ao que parece sustentar a Apelante, nos casos de suspensão da instância por falecimento de uma das partes ou compartes a junção do documento comprovativo desse falecimento determina de imediato a suspensão da instância para que seja promovida pela parte sobreviva a habilitação de herdeiros, e nesse caso, como é o dos presentes autos, não estamos perante um mero dever de colaboração da parte para com o tribunal, mas o dever de a parte apresentar requerimento de habilitação de herdeiros, dever que lhe compete em exclusivo, não podendo ser promovido oficiosamente pelo tribunal, e que a parte bem sabe que se o não apresentar no prazo de 6 meses acarretará inevitavelmente a deserção da instância.
Resulta ainda inegável que quem tem o ónus de habilitar os herdeiros da interessada falecida é quem tem interesse em que o processo prossiga, sendo deste modo quem intentou os presentes autos de inventário.
A requerente omitiu a prática de um acto que a ela incumbia, como parte requerente do processo de inventário, pois que dele dependia em absoluto o prosseguimento dos autos, tendo-se remetido ao silêncio porque nenhum obstáculo comunicou ao tribunal que a impedisse ou lhe dificultasse a apresentação do requerimento de habilitação de herdeiros, assim como se remeteu à mais pura inércia processual apesar de devidamente advertida das consequências legais dessa sua postura omissiva, consequências essas que decorrem pura e simplesmente da lei, neste caso do art. 281º do CPC, o qual foi expressamente mencionado no despacho que declarou a suspensão da instância.
Uma derradeira e breve palavra sobre as Conclusões 11 a 14 para concluir que se devem porventura a lapso, porquanto a situação subjacente à decisão recorrida não se traduziu em qualquer incidente de nulidade de citação, nem foram requeridas quaisquer diligências probatórias (que a Apelante nem sequer concretizou) que porventura se mostrassem essenciais ou determinantes para a decisão, sendo que qualquer nulidade que a parte pudesse arguir nos termos do art. 195º do CPC teria de o ter feito perante o Tribunal a quo, o que não sucedeu.
Não estamos perante qualquer situação que demandasse pelo Tribunal a quo o exercício do dever de gestão processual, pois como vimos o que estava em causa era pura e simplesmente a necessidade de habilitação de herdeiros de uma interessada falecida, incidente processual que não cabe ao tribunal promover, mas sim à parte.
Também não se mostra violado o direito de acesso aos tribunais porquanto a requerente acedeu legitimamente a tribunal para ver decidido um inventário, o qual veio a ser declarado extinto por sua única e exclusiva responsabilidade, não existindo a apontada violação do art. 20º da CRP.
Quanto à alegada prolação de decisão surpresa, por preterição do princípio do contraditório remetemos para a fundamentação acima explanada e mormente para a citação a esse propósito feita do AUJ nº 2/2025 que fundamentadamente arreda qualquer violação desse princípio porque neste caso específico nenhum contraditório prévio se impõe.
Perante a total improcedência dos argumentos recursivos, a sentença recorrida só pode ser por nós confirmada.
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V. Decisão
Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o presente recurso de apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Apelante, que ficou vencida (sem prejuízo do apoio judiciário).
Notifique.

Porto, 11.03.2025
Maria da Luz Seabra
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda

(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)