CONTRATO DE SEGURO
DEVERES DE INFORMAÇÃO E DE PRONTIDÃO
VIOLAÇÃO PELA SEGURADORA
EFEITOS
INDEMNIZAÇÃO AO SEGURADO
Sumário

I - Por ser reconhecida a manifesta dificuldade ou mesmo impossibilidade probatória (numa acção cível destinada a obter uma indemnização emergente do contrato de seguro) do crime de furto, a jurisprudência tem considerado suficiente, para esse efeito, a participação do desaparecimento do veículo à autoridade policial desde que as circunstâncias relatadas sejam dotadas de verosimilhança de acordo com os ditames práticos da experiência de vida.
II - A prova designada de primeira aparência (facto-base da presunção) que é conferida à participação criminal não altera as regras do ónus da prova uma vez que o julgador deverá, em face do objecto do processo, aplicar as regras da lógica e da experiência de vida e em conformidade com o princípio da livre apreciação da prova, formar a sua convicção positiva ou negativa, devidamente fundamentada, sobre a ocorrência do sinistro.
III - No âmbito de um contrato de seguro facultativo, os deveres de informação e de celeridade exigidos à seguradora, assumem especial importância no caso de se verificar a perda total do veículo (furto) já que a entrega do capital permitirá, ao tomador/beneficiário do seguro, a compra de um outro veículo substitutivo.
IV - Quando se verifique, em face das circunstâncias apuradas, que não foram observados os deveres de informação e de prontidão, o segurado tem direito a ser indemnizado pelo dano patrimonial da privação do uso do veículo, por violação dos deveres acessórios de conduta por parte da seguradora.

Texto Integral

Processo n.º 1136/22.2T8PVZ.P1



Relatora: Anabela Andrade Miranda
Adjunto: Rui Moreira
Adjunta: Lina Castro Baptista


*



Sumário
……………………………………….
……………………………………….
……………………………………….


*




Acordam no Tribunal da Relação do Porto



I—RELATÓRIO


AA intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra “A..., S.A.–Sucursal em Portugal”, pedindo a sua condenação no pagamento da quantia de €31.315,72, acrescida de juros de mora contados à taxa legal, desde 15/01/2021, até integral pagamento, e de €75,00 por dia desde 15/01/2021, até integral pagamento da mesma quantia, liquidada em 1/09/2022 em €42.300,00, juros de mora, desde a citação, até integral pagamento, e ainda €2.500,00, acrescidos de juros, desde a citação, até integral pagamento.
Para tanto alegou, em resumo, ser proprietário de um veículo automóvel que foi furtado. A Ré assumiu os danos decorrentes de tal furto, mediante contrato de seguro celebrado com a mutuária BMW Bank GmbH – Sucursal portuguesa. O Autor celebrara contrato de mútuo para aquisição do veículo em causa, que revogou por acordo após o furto, após ter pago o montante ainda em dívida, sendo sub-rogado pela segurada perante a Ré dos direitos emergentes do contrato de seguro. Participou à Ré o furto. Encontra-se privado do uso do veículo em causa desde a data do furto e sofreu por via do incumprimento da Ré diversos danos não patrimoniais.
A Ré contestou alegando que não ocorreu o sinistro pelas razões que expôs.
*

Proferiu-se sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência:
A) Condenou a Ré a pagar ao Autor o montante a liquidar em decisão ulterior, correspondente ao valor do veículo automóvel com a matrícula n.º ..-XA-.., marca BMW, referida na alínea a) dos factos provados, determinado à data de 15 de Dezembro de 2020, acrescido de juros de mora, contados desde 1 de Agosto de 2021, à taxa legal para juros civis, até integral pagamento;
B) Julgou a presente acção improcedente, no restante e, em consequência, absolveu a Ré do pedido nessa parte.
*

Inconformado com a sentença, o Autor interpôs recurso finalizando com as seguintes
Conclusões
I-O Recorrente não se conforma com a sentença, na parte em que nela se absolve a Recorrida de lhe pagar uma indemnização pela privação do uso do seu veículo automóvel.
II- Como se evidencia, como provado, na sentença, o Recorrente era, nomeadamente em 15/12/2020, o proprietário do veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-XA-.., marca BMW; já que não dispunha de meios financeiros próprios, o Recorrente, para adquirir o referido veículo, celebrou com a BMW Bank GmbH, Sucursal Portuguesa, um contrato de crédito a consumidor; foi celebrado um contrato de seguro, titulado pela apólice nº ...00, através do qual a Recorrida declarou assumir perante a tomadora do seguro (entidade mutuante), o risco por roubo ou furto do referido veículo automóvel propriedade do Recorrente; no dia 15 de dezembro de 2020, o referido veículo automóvel foi apoderado por desconhecidos quando se encontrava estacionado na via pública, que o levaram para local desconhecido, não tendo o Recorrente voltado a recuperá-lo; no dia 16 de dezembro de 2020, o Recorrente comunicou à Recorrida a ocorrência do furto, entregando-lhe as chaves do veículo e os documentos; em 1 de julho de 2021, a Recorrida comunicou ao Recorrente que declinava qualquer responsabilidade pelo sinistro; o Recorrente, através do seu pai, pagou à entidade mutuante o valor de 28.360,32 € e, em contrapartida, esta declarou, por escrito, que sub-rogava o Recorrente em todos os direitos que detinha sobre a Recorrida, relativamente ao contrato de seguro; na sequência da privação do veículo, o Recorrente não dispôs de meios financeiros para adquirir um outro, e viu-se privado do uso que dele retirava.
III-Da conjugação do preceituado nos artigos 102º, nº1 e 104º ambos do RJCS, e atendendo às vicissitudes do caso concreto, resulta que a obrigação da Recorrida de proceder ao pagamento do valor do veículo furtado, pertencente ao Recorrente, venceu-se, no máximo, no dia 16 de março de 2021.
IV-A violação, por parte da Recorrida, da obrigação de proceder ao pagamento da prestação acordada, representa a violação de uma obrigação essencial do contrato de seguro,
V- Que teve, e tem ainda, como consequência o facto de o Recorrente ficar privado do uso de um veículo automóvel, nomeadamente de um veículo idêntico àquele lhe foi subtraído por terceiros e, assim, impedido de dele retirar todas as utilidades possíveis, pois,
VI-Como está demonstrado na sentença, o Recorrido, na sequência da privação do veículo, não dispôs de meios financeiros para adquirir um outro, e viu-se privado do uso que dele retirava (vide al.i) dos factos provados).
VII-Este dano – privação do uso do veículo – é um prejuízo que resulta diretamente, e nele encontra a sua causa adequada, do incumprimento contratual por parte da Recorrida,
VIII-A qual, por essa razão – artº798º do C.Civil -, fica responsável pelo ressarcimento do prejuízo causado.
IX-É certo que o contrato de seguro não contempla a cobertura da privação do uso do veículo,
X- Todavia, neste caso, a obrigação de ressarcimento desse dano a cargo da seguradora Recorrida não advém do contrato mas, antes, da consequência do seu incumprimento contratual,
XI-É o incumprimento contratual que está, portanto, na génese da obrigação, a cargo da Recorrida, de reparar os danos decorrentes da privação do uso do veículo.
XII-Repare-se, em prol do que acabamos de expor e pela forma lapidar como se apresenta, o que, a propósito, está escrito no acórdão do Tribunal da Relação ..., de 23/11/2020, relatado pelo Exmo. Desembargador Carlos Gil, e publicado em www.dgsi.pt: “O quadro em que se admite a ressarcibilidade do dano da privação do uso no caso de recusa injustificada do pagamento da prestação acordada no seguro de danos é bem distinto daquele em que essa obrigação resulta do próprio contrato de seguro. De facto, sendo a indemnização pela privação do uso prevista no contrato, o mesmo é ressarcível desde a data do sinistro; já no caso de tal indemnização se fundar em incumprimento do contrato de seguro de danos, esse dano apenas será ressarcível a partir do momento em que se verificar o vencimento da obrigação de pagamento da prestação acordada no contrato de seguro e fundado em incumprimento contratual.”.
XIII-Em idêntico sentido pronunciou-se o Supremo Tribunal de Justiça, mais concretamente no Ac. do STJ, de 27/11/2018, relatado pelo Exmo. Conselheiro Cabral Tavares, acessível em www.dgsi.pt, onde, no respetivo sumário, pode ler-se: “Contudo, ainda que o risco de privação do uso do veículo não se encontre adicionalmente coberto pelo contrato de seguro, pode tal ocorrência ser objeto de indemnização, em razão da violação culposa por parte da seguradora, de deveres acessórios de conduta, com a boa-fé conexionados na execução do contrato.”.
XIV-Assim, a Recorrida está incursa, desde, pelo menos, 16 de março de 2021 e até efetivo e integral pagamento, na obrigação de pagar ao Recorrente o valor do prejuízo decorrente da privação do uso do seu veículo automóvel, acrescido dos juros de mora, contabilizados à taxa legalmente prevista, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
XV-Ora, o dano de privação do uso de bem constitui dano autónomo indemnizável, bastando-se com a prova genérica que o lesado utilizava a viatura para fins de lazer/trabalho e, consequentemente, por via daquela privação deixou de poder fazê-lo; não podendo ser averiguado o valor exato do dano, e dentro dos limites do que for provado, será ele determinado pela equidade, nos termos previstos pelo artº566º, nº3 do C.Civil – neste sentido, veja-se o referido Ac. do STJ, de 27/11/2018.
XVI-Quer parecer ao Recorrente que o valor da indemnização a que tem direito por força do referido dano por si sofrido, há de corresponder, por cada dia de privação, ao valor diário do aluguer de um automóvel com as mesmas características do seu, ou seja, um veículo da mesma classe do que o seu.
XVII-O veículo do Recorrente era, recorde-se, de marca BMW, modelo ..., versão desportiva ..., com caixa automática.
XVIII-Consultando – a consulta é pública - os preços publicitados pelas mais diversas empresas que se dedicam à atividade de aluguer de veículos automóveis, muito facilmente se chega à conclusão de que não se consegue alugar um veículo automóvel com as mesmas características das do que foi subtraído ao Recorrente, por menos de 75 €/dia.
XIX-Assim, a sentença sob recurso deve, nesta parte específica, ser revogada por outra decisão que condene a Recorrida a pagar ao Recorrente, a título de privação do uso do seu veículo, a quantia de 75 €/dia, desde 16 de março de 2021 e até efetivo e integral pagamento do valor do veículo furtado, determinado à data do furto, acrescida dos juros de mora, contabilizados à taxa legalmente prevista, desde a citação e até integral pagamento.
XX-Ao decidir de forma diversa, a sentença sob recurso violou, entre outras normas jurídicas, as consignadas nos artºs 102º e 104º do RJCS, bem como, as constantes dos artºs 798º, 562º, 564º, nº1 e 566º, nº3 todos do Código Civil.
XXI-E a esta conclusão não obsta, salvo o devido respeito e melhor opinião contrária, o facto de não ser o Recorrente a figurar no contrato de seguro celebrado com a Recorrida, como tomador.
XXII-Com efeito, e desde logo, caso a Recorrida tivesse cumprido a sua obrigação de pagar à entidade mutuante e, simultaneamente, credora hipotecária do veículo pertencente ao Recorrente, o montante correspondente à soma de todas as prestações vencidas e não pagas e respetivos juros, e o capital ainda em dívida, dando o sobrante ao Recorrente,
XXIII-Libertando-o, dessa forma, das suas responsabilidades em função do contrato de crédito,
XXIV-Este ficaria, de novo, habilitado a adquirir um outro veículo automóvel, para substituir o que lhe foi subtraído, ainda que por recurso a um novo contrato de crédito e, dessa forma, não padeceria mais do prejuízo decorrente da privação do uso do veículo.
XXV-A Recorrida, ao proceder de forma bem diversa, declinando injustificadamente a sua responsabilidade, deixou o Recorrente adstrito às obrigações emergentes do contrato de crédito e, dessa forma,
XXVI-Impossibilitado, quer por ausência de meios financeiros próprios quer por inacessibilidade e um novo crédito, de adquirir um outro veículo automóvel para substituir o que lhe foi furtado,
XXVII- Perpetuando, assim, o dano da privação do uso.
XXVIII-É que, dada a relação jurídica – contrato de crédito com hipoteca – que está subjacente à celebração do contrato de seguro, este não pode deixar de classificar-se, também, como um contrato a favor de terceiro,
XXIX-Em que o terceiro é, obviamente, o Recorrente.
XXX-E, sendo o Recorrente o proprietário do veículo, é a ele que compete o gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição do bem em causa.
XXXI-Acresce que, de qualquer forma, como vimos, o Recorrente, mediante o escrito que constitui o documento nº10 junto aos autos com a petição inicial, ficou investido em todos os direitos que a entidade mutuante detinha sobre a Recorrida, relativamente ao contrato de seguro aqui em causa.
*

A Ré apresentou recurso subordinado:
1 -Vem a demandada, porque não se conforma, recorrer da Douta Sentença de fls..., na parte em que julga parcialmente improcedente o pedido e, por conseguinte, condena parcialmente a demandada num dos pedidos formulados, mais concretamente, a condenação constante da alínea A) da Parte Decisória.
2 - Não pode a demandada sufragar o entendimento, por um lado, que não logrou provar a versão por si alegada nos presentes autos e, por outro, que essa falta de prova conduza à procedência parcial do pedido, até porque o ónus probatório quanto à existência do alegado furto era do demandante.
3- A demandada desde já delimita o objecto do recurso subordinado às seguintes questões:
Alteração da matéria de facto por manifesta contradição entre os depoimentos prestados e a factualidade dada como provada;
Em função dessa alteração, considerar-se que a demandada não responde, nem pode responder, por manifesta falta de prova quanto à existência do alegado furto.
4 - A demandada entende, na sua modesta opinião, que a reapreciação, quer dos depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento, quer dos restantes elementos probatórios constantes dos autos, deverá conduzir à procedência do presente recurso e, em consequência, à absolvição da demandada de todos os pedidos formulados pelo demandante.
5 - Assim, uma vez que a demandada pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, no cumprimento da alínea b) do nº 1 do artº 640, bem como da alínea a) do nº 2 do mesmo artº 640º, ambos do Código de Processo Civil, desde já se indica os depoimentos em que funda essa sua pretensão, acompanhados da indicação exacta das respectivas passagens da gravação da audiência de discussão e julgamento em que se funda o seu recurso:
- BB: o seu depoimento ficou gravado em suporte digital, em 04/10/2023, com início a 00:00:01 e termo a 00:08:10, por referência à acta de audiência de discussão e julgamento;
- CC: o seu depoimento ficou gravado em suporte digital, em 04/10/2023, com início a 00:00:00 e termo a 00:18:22, por referência à acta de audiência de discussão e julgamento.
6 - Na modesta opinião da demandada, a reapreciação, em primeira linha, dos depoimentos das testemunhas acima identificadas, deverá levar à alteração da resposta dada ao Facto Provado sob a alíneas D).
7 - Sendo certo que a demandada procurará demonstrar, desde já, que, através da reapreciação da prova gravada, deverá ser esta a resposta final a dar: Alínea D) dos Factos Provados: NÃO PROVADO (até agora dado como provado).
8 - Conforme é referido na Douta Sentença aqui em recurso, ou conforme se retira dessa mesma Douta Sentença, para apreciar e decidir da verificação do alegado furto, foram tidos em consideração dois depoimentos, a saber:
- AA, na qualidade de demandante, em sede de declarações de parte;
- BB, na qualidade de testemunha, à altura dos factos namorada do demandante.
- Não considerou, o Tribunal, de todo, o depoimento da testemunha CC, na qualidade de Perito Averiguador que efectuou a averiguação do alegado furto participado.
9 - Nos termos e para os efeitos da alínea a) do nº 2 do artº 640º do Código de Processo Civil, as passagens da gravação em que a demandada funda o seu recurso são as que estão sublinhadas e em carregado.
BB – Testemunha
Nome do ficheiro áudio: Diligencia_1136-22.2T8PVZ_2023-10-04_14-56-13.mp3 Tempo áudio: 00:08:10 Data: 04/10/2023
Observações: BB designado(a) como BB: [00:06:04] Mandatária do Autor (Dra. DD): As chaves estavam consigo?
[00:06:05] BB: Estavam.
[00:06:15] Mandatário da Ré (Dr. EE): Quando é que estacionou lá o carro, pela última vez?
[00:06:19] BB: Antes de ir ao dentista.
[00:06:21] Mandatário da Ré (Dr. EE): E tinha andado com ele antes?
[00:06:23] BB: Sim.
[00:06:24] Mandatário da Ré (Dr. EE): Tinha-o trazido na véspera por via de ter vindo dormir a casa dos seus pais?
[00:06:28] BB: Acho que sim, é o que...
[00:06:29] Mandatário da Ré (Dr. EE): Acha que sim. E estacionou e ele ficou, nesse dia já ficou na Póvoa?
[00:06:34] BB: Sim.
[00:06:35] Mandatário da Ré (Dr. EE): Portanto, de 14 para 15 de dezembro?
[00:06:37] BB: Não lhe sei dizer.
[00:06:38] Mandatário da Ré (Dr. EE): Não sabe. Mas
[impercetível].
[00:06:41] BB: Na véspera, é como lhe digo, eu não sei se fui dormir aos meus pais nesse dia, ou se fui...
[00:06:46] Mandatário da Ré (Dr. EE): Já não consegue lembrar-se bem.
[00:06:47] BB: Não.
[00:06:48] Mandatário da Ré (Dr. EE): Pois, foi o que disse inicialmente. Mas a senhora já falou com alguém sobre este assunto, pergunto.
[00:06:53] BB: Não.
[00:06:54] Mandatário da Ré (Dr. EE): Nunca falou com ninguém sobre este assunto?
[00:06:56] BB:Com os meus pais.
[00:06:57] Mandatário da Ré (Dr. EE): Sim. Nunca foi abordada por um perito de uma companhia de seguros?
[00:07:01] BB:Sim, sim, em casa.
[00:07:02] Mandatário da Ré (Dr. EE): Ah, e falou consigo?
[00:07:04] BB: Sim, sim, sim.
[00:07:04] Mandatário da Ré (Dr. EE): E a menina falou com ele?
[00:07:06] BB: Certo.
[00:07:06] Mandatário da Ré (Dr. EE): Contou-lhe coisas sobre como isto foi?
[00:07:08] BB: Sim. Mas não me recordo.
[00:07:11] Mandatário da Ré (Dr. EE): Não se recorda.
[00:07:12] BB: Em que dia foi.
[00:07:14] Mandatário da Ré (Dr. EE): Mas já foi há algum tempo?
[00:07:16] BB: Já.
[00:07:17] Mandatário da Ré (Dr. EE): Foi logo a seguir ao desaparecimento dele?
[00:07:18] BB: Acho que foi logo a seguir que o perito falou connosco.
[00:07:21] Mandatário da Ré (Dr. EE): Sim.
[00:07:22] BB: Até foi na casa dos meus pais, que ele veio lá.
[00:07:24] Mandatário da Ré (Dr. EE): Sim senhor. E a menina contou-lhe o que na altura tinha para contar?
[00:07:27] BB:Acontecido.
CC – Testemunha
Nome do ficheiro áudio: Diligencia_1136-22.2T8PVZ_2023-10-04_15-05-01.mp3
Tempo áudio: 00:18:22
Data: 04/10/2023
Observações: CC designado(a) como CC:
[00:01:11] Mandatário da Ré (Dr. EE): O que é que nos pode dizer sobre se isto terá efetivamente acontecido ou não, das suas averiguações o que é que nos pode dizer?
[00:01:18] CC:Posso-lhe dizer aquilo que fiz.
[00:01:20] Mandatário da Ré (Dr. EE): Sim.
[00:01:20] CC: Pronto. Após a receção do processo do pedido de averiguação por parte da A..., o que é que eu faço sempre? Pesquisa a nível da Segurnet, pesquisa a nível das autoridades, deslocação às autoridades, saber se existe a participação do furto, confirmar, tentar obter a participação do furto, confirmação a nível da assistência em viagem, ver se há algum pedido registado, contacto com a marca, contacto, neste caso, com o usufrutuário do carro, com o condutor, leitura das chaves, contacto com as autoridades várias vezes, neste caso fui à GNR de Vila do Conde, depois o carro foi de um primeiro furto apareceu em Vila Nova de Gaia, contactei a PSP de Vila Nova de Gaia, contactei a Polícia Técnica da PSP, depois no segundo furto a PSP de Vila do Conde, Póvoa de Varzim, a marca.
[00:02:14] Mandatário da Ré (Dr. EE): Olhe, este veículo, qual é a marca?
[00:02:18] CC: BMW, ... [impercetível].
[00:02:19] Mandatário da Ré (Dr. EE): [impercetível] é um veículo, digamos, com um dispositivo de segurança?
[00:02:23] CC:Sim, 2.500.
[00:02:23] Mandatário da Ré (Dr. EE):É possível fazer andar este veículo sem as chaves?
[00:02:26] CC: Segundo informações da marca não.
[00:02:28] Mandatário da Ré (Dr. EE): Não. Só com as chaves [impercetível]?
[00:02:29] CC:Só com a chave.
[00:02:35] Mandatário da Ré (Dr. EE): O veículo terá sido então furtado duas vezes?
[00:02:38] CC: O veículo foi furtado em...
[00:02:41] Mandatário da Ré (Dr. EE): Pelo menos foi participado como tal.
[00:02:42] CC: Sim. Participado foi como... participado em novembro, foi furtado, apareceu num parque na zona de Vila Nova de Gaia, devidamente fechado e sem vestígios de estroncamento, o carro foi trazido...
[00:02:53] Mandatário da Ré (Dr. EE): Não tinha vestígios de estroncamento?
[00:02:55] CC: Não. Nem de arrombamento.
[00:02:57] Mandatário da Ré (Dr. EE): E outros vestígios?
[00:02:58] CC: Segundo informações das autoridades, da Polícia Técnica da PSP não tinha, o carro veio aqui para o concessionário...
[00:03:05] Mandatário da Ré (Dr. EE): Ele não tinha vestígios nenhuns de...
[00:03:08] CC: Não.
[00:03:09] Mandatário da Ré (Dr. EE): Nem danos nenhuns aparentes?
[00:03:10] CC: Não. Entretanto não foi solicitada qualquer peritagem relativamente a isso, o carro esteve aqui no concessionário BMW na ..., não foi feita qualquer reparação a qualquer dano, foram feitas apenas campanhas de manutenção que o carro tinha para fazer, o carro foi entregue novamente ao condutor e passado alguns dias o carro foi novamente furtado.
Segundo o que foi participado, atenção!
[00:03:37] Mandatário da Ré (Dr. EE): Sim. Falou com alguém relativamente a esse segundo alegado furto?
[00:03:44] CC: Falei... falei com alguém, como assim?
[00:03:45] Mandatário da Ré (Dr. EE): Sim. Se falou com o segurado, se falou com mais alguém [sobreposição de vozes]?
[00:03:48] CC:Sim, sim, falei, falei, isso foi tudo, falei com o condutor seguro e falei com a namorada na altura.
[00:03:54] Mandatário da Ré (Dr. EE): Sim senhor. A namorada concretamente o que é que lhe disse?
[00:03:57] CC:Sobre o segundo furto?
[00:03:58] Mandatário da Ré (Dr. EE): Sim.
[00:03:59] CC:Falou sobre os dois furtos, sobre o segundo furto o que é que ela me disse? Diz que no dia 14 de dezembro, digamos assim, eles andaram todo o dia com o carro, foram jantar em família ao ... à Póvoa... à Póvoa, desculpe, à ...,...
[00:04:12] Mandatário da Ré (Dr. EE): [impercetível].
[00:04:14] CC: ...na véspera, no dia, no dia, exatamente, no dia 14, foram jantar ao ... à ..., entretanto vieram para cá, a namorada deixou ficar o Sr. AA em casa dele, em ..., ..., veio para casa, veio para casa e estacionou o carro...
[00:04:28] Mandatário da Ré (Dr. EE): E trouxe o veículo?
[00:04:29] CC: E trouxe o veículo. Uma chave estava com a D. BB, não é? E a outra chave estava com o Sr. AA. Entretanto, por volta... estacionou por volta das 10h15, mais ou menos, por volta das 11h00 foi buscar a irmã, penso que trabalha no ..., foi buscá-la à Póvoa, veio, estacionou novamente o carro. No outro dia, no dia 15 de manhã saiu por volta das 08h00, foi levar a mãe ao ..., regressou, depois ainda foi levar mais tarde a irmã novamente ao centro da Póvoa...
[00:05:01] Mandatário da Ré (Dr. EE): Isso já no dia do desaparecimento?
[00:05:02] CC: Já no dia 5, exatamente, estacionou o carro. Entretanto, por volta das duas e meia foi ao dentista – isto está tudo escrito por eles, foi por volta das duas e meia foi ao dentista e o carro ainda estava no local estacionado, por volta das 16h30, quando regressou, já não estava o carro no local estacionado.
[00:05:19] Mandatário da Ré (Dr. EE): Quando veio do dentista, portanto?
[00:05:21] CC:Quando veio do dentista.
[00:05:23] Mandatário da Ré (Dr. EE): Isso foi o que ela lhe disse?
[00:05:25] CC:Foi o que eles me disseram os dois.
[00:05:26] Mandatário da Ré (Dr. EE): Sim senhor. O senhor fez alguma diligência relativamente às chaves do veículo?
[00:05:31] CC:Foi feita e entretanto, depois dessa reunião...
[00:05:33] Mandatário da Ré (Dr. EE): A si?
[00:05:34] CC: Sim. Foram entregues as chaves, foram levadas à BMcar.
[00:05:36] Mandatário da Ré (Dr. EE): As duas chaves?
[00:05:37] CC: As duas chaves, não aqui à Póvoa, mas sim à BMcar ..., foi feita a leitura e a leitura deu que a última vez que o carro circulou foi no dia 14/12, por volta das 22h00 da noite.
[00:05:52] Mandatário da Ré (Dr. EE): Portanto, foram lidas as chaves na BM, no ....
[00:05:54] CC: Foram feitas... lidas, foram recolhidos os [impercetível].
[00:05:56] Mandatário da Ré (Dr. EE): A último vez que o carro [impercetível] com alguma daquelas chaves.
[00:05:59] CC: Com alguma daquelas chaves foi no dia 14, por volta das 22h00 da noite.
[00:06:05] Mandatário da Ré (Dr. EE): Não obstante, ela disse-lhe a si que no dia 15 ainda foi levar [impercetível]?
[00:06:08] CC: Ela disse que no dia 14 ainda foi sair por volta das 11, regressou no dia 15, andou mais duas vezes no carro e pronto. Ah! E outra particularidade...
[00:06:17] Mandatário da Ré (Dr. EE): [impercetível] na vizinhança do local onde supostamente terá desaparecido, se alguém sabia alguma coisa, se havia vestígios?
[00:06:25] CC: Não, vestígios não havia, não havia absolutamente nada.
E tem outra particularidade, é que alegadamente uma das chaves estava em ... e outra estava aqui na Póvoa, com a BB, e as duas possuíam exatamente a mesma leitura. Ou seja, os dados de uma chave e os dados da outra chave eram exatamente os mesmos.
[00:06:45] Mandatário da Ré (Dr. EE): Exatamente os mesmos. Sim senhor, portanto, é isto que nos pode dizer?! [impercetível].
[00:06:53] CC: Sim, o que é que eu lhe posso dizer mais? Falei com o...porque quando o carro foi adquirido inicialmente foi apenas entregue uma chave, depois a outra chave foi entregue cerca de um mês depois, também foi declarado pelo condutor seguro, disse que as duas chaves... que eram as duas chaves que lhe tinham sido entregues, o carro foi vendido pelo Elói, que é um vendedor da BMW, tentei falar com o Elói, o Elói não quis prestar declarações, entretanto soube que este carro era um carro importado, fui à Alfandega saber quem é que importou o carro, foi um senhor que trabalha com a BMW e que pediu para o carro ser colocado naquelas feiras que se fazem e foi aí que o carro foi adquirido. Tentei falar com esse Sr. FF, mas ele disse que não estava disponível para falar nem para esclarecer o motivo pela qual inicialmente só foi entregue uma chave e depois outra.
[00:07:43] Mandatário da Ré (Dr. EE): Sim senhor. Da minha parte é tudo, senhor doutor Juiz.
[00:07:46] Meritíssimo Juiz:Uma coisa, disse-me há bocado que as leituras das duas chaves eram exatamente iguais?
[00:07:51] CC: Sim. Os dados de chave de uma chave e de outra eram exatamente iguais.
[00:07:55] Meritíssimo Juiz:Exatamente iguais como? Quanto à última vez que o carro circulou?
[00:07:58] CC:Sim, a última atualização, quilometragem, tudo, exatamente iguais.
[00:08:04] Meritíssimo Juiz: E isso será natural ou...?
[00:08:06] CC: Não pode ser porque se uma chave estava em ..., a outra estava aqui na Póvoa de Varzim...
[00:08:13] Meritíssimo Juiz: Sim, eu não sou perito, mas pus-me a pensar se tem como última utilização 14/12 as duas chaves, isso quer dizer que as duas chaves foram utilizadas pela última vez as duas?
[00:08:23] CC:Podem, sim, as duas chaves foram utilizadas da última vez, e estavam ao menos junto ao carro da última vez que foi utilizada, que isto são chaves confort, chaves, digamos, de bolso, e estavam as duas juntas. Só podem estar, é essa a única explicação que existe, segundo a marca.
[00:08:51] Meritíssimo Juiz: E disse-me que as chaves que foram entregues ao comprador com dilação uma da outra, não foram entregues as duas na altura da compra?
[00:08:59] CC: Segundo o que me disse o Sr. AA, quando comprou o carro foi entregue uma...
[00:09:02] Meritíssimo Juiz: [impercetível], mas isso é informação do Sr. AA.
[00:09:04] CC: Do Sr. AA, foi entregue uma e passado um mês foi-lhe entregue a segunda chave, uma outra chave, não sabe se era uma cópia – foi o que ele declarou, não sabe se era uma cópia, se era original, mas foi entregue, as duas que tinha, pronto, é as que tinha, que me entregou a mim.
[00:09:36] Mandatária do Autor (Dra. DD): Começando pelo final, quando fala nas duas chaves juntas, fala nas duas chaves no mesmo local, no bolso?
[00:09:45] CC:Sim, têm que estar as duas chaves a um raio de distância de cerca de 1 m, 1,5 m, que é o que ativa o carro, aquando da última utilização, do carro foi utilizado.
[00:10:12] Mandatária do Autor (Dra. DD):As duas.
Portanto, o que senhor está a dizer é que na altura em que ocorreu o furto, as duas chaves estavam no mesmo sítio?
[00:10:21] CC: Não, a última vez que aquele carro foi utilizado, as duas chaves tinham que estar juntas.
[00:13:24] CC: A viatura devido ao sistema anti arranque que tem, isso podem confirmar junto da BMW Portugal, devido ao sistema anti arranque que tem, sem uma chave original o carro não entra em funcionamento, ou seja, o carro não pode circular. Agora, essa informação tem que ser obtida junto da marca, da BMW Portugal.
[00:13:43] Mandatária do Autor (Dra. DD): Junto da BMW,...
[00:13:44] CC: Sim.
[00:16:07] CC: Não foram informalmente, eu fiz diligências no sentido de perceber até se estava a ser feita alguma investigação, devido à peculiaridade do caso, se estava a ser feita alguma investigação relativamente a isso, que na minha opinião devia ser feito e... por tudo, não é, por o carro ter aparecido fechado, sem estroncamento, devido à forma – que eu acho que isso é importante dizer, a forma como o carro estava estacionado desde o primeiro furto, estava entre dois carros, e conforme o Sr. AA confirmou o carro saiu dali a circular porque apresentava vestígios no chão de terem rodado as rodas, isso para mim era importante, por isso é que eu contactei também, conforme disse no início, a PSP, a área técnica, porquê? Para perceber se efetivamente isso que me tinha sido relatado era verdade ou não e se o carro tinha vestígios de estroncamento ou de arrombamento. Porque é assim, não é possível colocar um carro... entrar dentro do carro e andar com o carro sem este ter vestígios de estroncamento ou de arrombamento.
10 - A testemunha BB, cujo depoimento o Tribunal valorou, entrou em manifesta contradição com o que o Senhor Perito CC transmitiu ao Tribunal, e cujo depoimento, aparentemente, não foi minimamente considerado e tido em linha de conta.
11 - Com efeito, a testemunha BB afirmou que tinha utilizado o veículo pela última vez no dia 15, data do alegado furto.
12 - Contudo, o Senhor Perito CC confirmou que a leitura de ambas as chaves indicam que o veículo foi utilizado pela última vez no dia 14, e não no dia 15.
13 - E mais afirmou o Senhor Perito CC que, aquando da última utilização do veículo do demandante, as duas chaves estavam juntas, pois a leitura de ambas era absolutamente idêntica.
14 - POR OUTRO LADO, A LINHA DO DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA BB NÃO É MINIMAMENTE VEROSÍMIL.
15 - NÃO FAZ SENTIDO À LUZ DA TEORIA DO HOMEM MÉDIO.
16 - Pelo contrário, O DEPOIMENTO DO SENHOR PERITO CC, COM CONHECIMENTOS TÉCNICOS ESPECÍFICOS NESTA MATÉRIA, CONFIRMA QUE O VEÍCULO EM CAUSA, DE MARCA BMW, SÓ PODERIA CIRCULAR OU SER POSTO EM ANDAMENTO ATRAVÉS DE UMA CHAVE.
17 - Por outro lado, há que atender que não pode, ou não poderia, merecer credibilidade ao Tribunal a tese do furto, APENAS E SÓ COM BASE NAS PRÓPRIAS DECLARAÇÕES DE PARTE DO DEMANDANTE, ASSIM COMO NO DEPOIMENTO DA TESTEMUNHA BB, NA ALTURA DOS FACTOS NAMORADA DO DEMANDANTE.
18 - Assim sendo, deverá a matéria de facto ser alterada nos moldes supra expostos
19 - Por consequência, DEVE CONSIDERAR-SE QUE NÃO FOI PRODUZIDA QUALQUER PROVA QUANTO À EXISTÊNCIA DO ALEGADO FURTO.
20 - A Douta Sentença sob censura violou as normas dos artigos 615º, nº 1, alínea b), c), d) e e) e o nº 1, 4 e 5 do art. 609º, artigos 640.º do CPC.
*

O Autor respondeu e concluiu que:
A)Deve manter-se como provada a factualidade constante da alínea d) dos factos provados,
B)Como, consequentemente, inalterada deve ficar a condenação da ré a pagar ao autor montante a liquidar em decisão ulterior, correspondente ao valor do veículo automóvel com a matrícula ..-XA-.., marca BMW, referido na alínea a) dos factos provados, determinado à data de 15 de dezembro de 2020, acrescido de juros de mora.
*

II—Delimitação do Objecto do Recurso
As questões principais decidendas, delimitadas pelas conclusões dos recursos, principal e subordinado, consistem em saber se:
-deve ser alterada a resposta que deu como provada a subtracção do veículo do Autor por desconhecidos;
-mantendo-se inalterada a decisão sobre a referida factualidade, se o Autor tem direito a ser indemnizado pela privação do uso do veículo.
*

Da Modificabilidade da Decisão sobre a matéria de facto
Nos termos do artº. 662º. do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
A possibilidade que o legislador conferiu ao Tribunal da Relação de alterar a matéria de facto não é absoluta, apesar de poder formar a sua própria convicção, pois tal só é admissível quando os meios de prova revisitados apontam em sentido contrário ao decidido pelo tribunal a quo.
À luz da mencionada norma e da disciplina, de natureza adjectiva e material, sobre a temática da prova, cumpre reanalisar a decisão proferida sobre os factos em causa.
A Recorrente manifestou a sua discordância por ter sido declarado como provado queNo dia 15 de Dezembro de 2020, quando o veículo referido em a) se encontrava estacionado na rua da Cidade ..., na União de Freguesias ..., ... e ..., foi apoderado por desconhecidos, que o levaram para local não determinado, não tendo o autor voltado a recuperá-lo.”-alínea D).
A factualidade impugnada constitui o cerne do objecto da acção que consistiu justamente em apurar se, efectivamente, se verificou o risco de furto previsto no contrato de seguro celebrado com a Ré.
Portanto, a questão de facto fundamental que se suscita no presente recurso consiste em saber se os elementos típicos que integram o risco do crime de furto (subtracção com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa-v. art. 203.º, n.º 1 do C.Penal) devem ser provados pelo tomador de seguro/segurado para poder exigir da contraparte, a seguradora, a indemnização estipulada no contrato, ou se, para esse efeito, é suficiente a participação do evento às autoridades criminais.
Tem sido bastante debatida esta questão na jurisprudência reconhecendo-se, por um lado, a dificuldade manifesta do tomador do seguro ou do segurado em conseguir provar a ocorrência do crime de furto, por não dispor de meios humanos e técnicos bem como da autoridade que assiste aos órgãos de polícia criminal para investigar a notícia do crime, e, por outro, a realidade que advém dos casos de simulações de furto com a finalidade de obtenção, fraudulenta, do capital correspondente ao valor do veículo, acionando o contrato de seguro.
A dificuldade ou mesmo impossibilidade de índole probatória resulta desde logo de ser um tipo legal de crime praticado, em regra, de forma oculta, por forma a evitar que o seu autor ou autores sejam responsabilizados criminalmente.[1]
Por ser manifesta a dificuldade ou mesmo impossibilidade do segurado provar, numa acção cível destinada a obter uma indemnização emergente do contrato de seguro, todos os elementos típicos do crime de furto, o que carece de investigação criminal, como já salientámos, por vezes demorada, a jurisprudência tem considerado suficiente, para esse efeito, a participação do desaparecimento do veículo à autoridade policial mas com os esclarecimentos que infra serão consignados.
Recentemente, em resultado da reflexão sobre o tema da prova, considerou-se, e bem, que essa dificuldade não pode alterar as regras do ónus da prova e que, por esse motivo, a mera participação do desaparecimento do veículo não é suficiente para reconhecer o direito do autor á reclamada indemnização com fundamento no contrato de seguro.[2]
Assim, delinearam-se, em resumo, duas correntes: a que considera suficiente a apresentação da participação criminal desde que as circunstâncias relatadas sejam dotadas de verosimilhança de acordo com os ditames práticos da experiência de vida (designada de prova de primeira aparência) e uma outra, mais exigente em termos probatórios, no sentido de que a prova da ocorrência do evento não se basta com esse procedimento do segurado.
Segundo a primeira orientação da jurisprudência acima referida (destacando-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22/11/2018[3]-que alude à jurisprudência nacional e francesa) apesar de se reconhecer que incumbe ao segurado o ónus da prova do furto do veículo, como constitutivo do seu direito, considera-se suficiente, para esse efeito, a participação do evento, desde que a seguradora não consiga afastar essa prova designada de primeira aparência.
Por outras palavras, a apresentação de uma denúncia às autoridades policiais através da qual o segurado comunica o inesperado desaparecimento de um veículo, em determinadas circunstâncias de tempo e lugar, permitirá concluir, em princípio, que esse evento ocorreu em resultado de uma acção ilícita de terceiro(s).
Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11/07/2013[4], também concluiu que “a prova do furto há-de ser sempre indirecta e resultar de circunstancialismos dos quais se possa concluir a existência daquele furto, uma vez que este não foi presenciado. A conclusão resulta evidente quando se estaciona o veículo numa determinada via e, ao pretender recuperá-lo, se constata que o mesmo já lá não se encontra, sem que seja fornecida qualquer explicação para esse facto e sem que o seu proprietário volte a estar na sua posse, acrescendo a correspondente queixa por furto na PSP e a participação do desaparecimento à ré.”
O Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 27/10/2022,[5] seguindo a orientação dominante declarou que “Quando um contrato de seguro inclui entre os riscos por ele cobertos a prática de um determinado crime (v.g. o crime de furto), se é ao segurado que cumpre demonstrar a ocorrência do sinistro correspondente, não é exigível que este faça uma prova segura dos factos integrantes do ilícito criminal, equivalente àquela que é necessária para se aplicar uma pena, sendo suficiente que se apurem factos indiciários que revelem uma possibilidade razoável do crime ter ocorrido, sem que estejam demonstrados quaisquer outros factos que suscitem a dúvida sobre a sua verificação.” (itálico nosso)
Nesta conformidade, se as circunstâncias nomeadamente de tempo e lugar conjugadas com outras tidas por relevantes, alegadas pelo autor, forem impugnadas, motivadamente, pela contraparte de forma a suscitar sérias dúvidas ao julgador sobre essa realidade, ou na hipótese de se provarem factos que afastem aquela conclusão, não pode ser atendível a prova de primeira aparência assente apenas na participação criminal do alegado furto às autoridades policiais conjugada com as declarações do autor.
Os arestos que analisaram casos similares são unânimes no sentido de que compete ao autor a alegação e prova da ocorrência do sinistro, ou seja, o desaparecimento ilícito do veículo (art. 342.º, n.º 1 CC) e à ré os factos impeditivos, modificativos ou extintivos da sua responsabilidade (art. 342.º, n.º 2 CC); e, que em caso de dúvida, os factos devem ser julgados de forma desfavorável para o autor (art. 414.º do CPC).
Importa ainda notar que a participação criminal constitui uma exigência prevista nos contratos de seguro para o tomador poder ser indemnizado.
Salvo o devido respeito, a questão não nos parece que esteja a ser solucionada de forma significativamente divergente na jurisprudência, ao contrário do que parece resultar das mencionadas duas correntes.
A participação criminal, necessária para acionar a responsabilidade da seguradora, e apresentada pelo denunciante, contém, resumidamente, o relato dos factos, os quais serão sujeitos a investigação.
Como sabemos, a lei (cfr. art. 349.º do C.Civil) confere ao julgador mecanismos que lhe permitem inferir factos desconhecidos (furto) a partir das circunstâncias conhecidas.
A prova por presunção judicial assenta em máximas de experiência, juízos correntes de probabilidade, princípios de lógica e na própria intuição humana e que consiste, exactamente, no raciocínio lógico que permite chegar a um facto desconhecido por força do juízo crítico incidente sobre factos conhecidos.[6]
A presunção, para Luís Filipe Pires de Sousa[7], parte de factos adquiridos por admissão, notoriedade e/ou prova, opera como um método específico de valoração da prova tendo em vista alcançar a certeza de um facto para os fins do processo, permitindo obter novas afirmações a partir das já adquiridas processualmente.
É justamente este método, baseado na conjugação das regras da experiência com o raciocínio lógico, aplicado aos factos conhecidos (desaparecimento inesperado do veículo em determinadas circunstâncias participado criminalmente-prova de primeira aparência) que nos permite dar como demonstrados os factos típicos do crime de furto e declarar verificado o sinistro.
Da experiência de vida sabemos que o furto e roubo de veículos não são acontecimentos raros. Bem pelo contrário. Também é do conhecimento geral e dos tribunais que as simulações de furto também são uma realidade.
Portanto, se o dono do veículo é confrontado com uma situação de desaparecimento, em relação à qual não teve qualquer intervenção, desconhecendo o(s) autor(es) do facto, naturalmente que tomará as devidas providências nas quais se inclui a denúncia aos órgãos de polícia criminal para poder reaver o veículo e a comunicação do sinistro, como é seu dever, à seguradora.
Na hipótese de ser declinada a responsabilidade, como sucedeu no presente caso, o autor terá de convencer o tribunal, com os meios de prova ao seu dispor (designadamente com as suas próprias declarações, prova testemunhal, pericial ou documental) que o veículo desapareceu em circunstâncias que indiciam, com segurança, ter sido alvo de apropriação ilícita por terceiros.
Ou seja, a apresentação da participação criminal pelo tomador do seguro/segurado configura a primeira medida indispensável para tentar que o veículo seja encontrado e devolvido, ao mesmo tempo que alerta a seguradora, fazendo prova junto desta, sobre o desaparecimento do veículo, ou seja, comunicando eficazmente a ocorrência do sinistro cujo risco se encontra coberto.
No âmbito da acção judicial, o julgador irá analisar criticamente todas as provas produzidas no processo, aplicando as regras probatórias e as máximas da experiência à luz da livre apreciação das provas, e formar, consequentemente, a sua convicção sobre a veracidade da versão alegada pelo autor.
Na discussão e instrução da causa, a seguradora, que normalmente investiga o sinistro que lhe foi comunicado, poderá trazer ao processo informações e elementos probatórios que tornem duvidosa a versão do autor (art. 346.º-contraprova-CC) ou que até apontem seguramente para uma actuação fraudulenta.
Assim sendo, na nossa perspectiva, a prova designada de primeira aparência (facto-base da presunção) que é conferida à participação criminal não altera as regras do ónus da prova uma vez que o julgador deverá, em face do objecto do processo, e em conformidade com o princípio da livre apreciação da prova e aplicando as regras da lógica e da experiência de vida, concluir, fundamentadamente, se ocorreu o sinistro ou se a prova não foi suficiente para o convencer, dando o mesmo como não provado.
No caso concreto, a convicção do Mmo. Juiz baseou-se na seguinte análise dos meios de prova produzidos, que se transcreve:
Apontam para a ocorrência do furto o auto de queixa junto como documento n.º 4 com a petição inicial (fls. 18) e a localização posterior numa oficina em ... de duas portas do veículo em questão, como decorre da informação do DIAP ... de 11/10/023 (fls. 55). (sublinhado nosso)
A ré salienta em concreto três detalhes. A ocorrência de um furto do mesmo veículo poucos dias antes, tendo sido encontrado em Vila Nova de Gaia sem marcas de arrombamento, informação do fabricante segundo a qual não é possível o furto do veículo sem usar uma das chaves, o facto de ambas as chaves, a principal e a suplente, terem o último registo electrónico de utilização em 14/12/2020, às 22.00 horas, momento anterior ao declarado por BB como última vez que conduziu o veículo, já no dia do furto.
O autor assumiu a ocorrência de furto do mesmo veículo, recuperado seis dias depois em Vila Nova de Gaia. Não é uma base de partida muito forte para indiciar uma simulação, e podia mesmo indicia uma particular vulnerabilidade do veículo a furtos, como a existência de uma terceira chave na posse de terceiro, por exemplo.
A informação do fabricante também não é impressiva. O tribunal desconhece até hoje que existam no mercado veículos imunes a furto, e já se confrontou, em julgamentos, com procedimentos de clonagem electrónica de chaves de veículos, realizadas no próprio momento do furto.
O último detalhe foi trazido a julgamento pelo depoimento de CC, que averiguou o sinistro. É um dado que põe em causa um detalhe da narração de BB, que afirmou ter conduzido o veículo ainda na manhã de 15/12, e poderia colocar a questão de uma simulação, com entrega voluntária do veículo na noite anterior, seguida de uma queixa de falso furto no dia seguinte. É uma possibilidade, mas a discrepância poderia ter outras explicações, mas sobretudo é uma discrepância que, colocada no contexto da prova produzida e da fluência dos depoimentos, resulta objectivamente insuficiente para sustentar consistentemente uma hipótese de simulação neste caso concreto.”
A apreciação dos meios de prova merece total acolhimento desde logo porque aponta claramente para o desaparecimento ilícito, perpetrado por terceiros, o aparecimento de duas portas do veículo no âmbito de uma outra investigação criminal.
As declarações do Autor, na parte que se refere à questão do furto, carecem de utilidade para a decisão uma vez que quem conduzia a viatura, antes do desaparecimento, era a sua ex-namorada, a testemunha BB, que prestou depoimento de uma forma que nos pareceu genuína.
A Ré defende que a versão desta testemunha contraria o que foi relatado pelo perito que investigou o sinistro, a testemunha CC, por este ter afirmado que da leitura idêntica das duas chaves resulta que a viatura foi utilizada pela última vez no dia 14 e não no dia do alegado furto, dia 15.
A testemunha CC limitou-se a investigar o sinistro mas não é especialista/técnico da marca BMW.
Só um perito, devidamente credenciado e tecnicamente habilitado, estaria em condições de assegurar, sem qualquer dúvida, dando como pressuposto que a leitura das chaves era idêntica (o que não se provou pois não basta as declarações da testemunha nesse sentido) que é impossível fazer uma cópia das chaves pois como o Mmo. Juiz observou, já se confrontou em julgamentos com procedimentos de clonagem electrónica de chaves de veículos, realizadas no próprio momento do furto.
O furto ocorrido cerca de um mês antes, tendo sido recuperado o veículo sem qualquer dano apenas seis dias depois, constitui uma circunstância pouco usual mas que, ao contrário da conclusão da Ré, indica que estava, muito provavelmente, na mira de terceiros com intenção ilícita de apropriação.
Aliás, não nos parece que esse furto anterior do veículo (recuperado após seis dias) seja, por si só, susceptível de indiciar a inveracidade das declarações do Autor. Pelo contrário, quem pretende simular um furto, não o faz duas vezes, mediando entre os dois furtos um curto período temporal.
O primeiro furto, como bem refere o Mmo. Juiz, indicia uma particular vulnerabilidade do veículo e a existência de uma terceira chave.
Não se impõe, face às razões aduzidas, a alteração da resposta aos factos vertidos na alínea D).
Considerando que uma das questões suscitadas na acção e no recurso do Autor se prende com o dano da privação do veículo, irá ser aditado ao elenco factual as comunicações por e-mail, documentadas nos autos, e as coberturas do seguro do veículo.
*


III—FUNDAMENTAÇÃO

FACTOS PROVADOS (elencados na sentença)
a)O autor é titular da última inscrição de aquisição na Conservatória do Registo Automóvel de Vila Nova de Famalicão, datada de 16 de Janeiro de 2020, respeitante a um veículo automóvel com a matrícula n.º ..-XA-.., marca BMW;
b)O autor e um representante de BMW Bank GmbH, Sucursal Portuguesa apuseram as suas assinaturas no escrito junto em 15/11/2023 (fls. 74 e ss), intitulado “Contrato de crédito a Consumidor”, que aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual declararam nomeadamente aceitar celebrar um contrato de mútuo, pelo montante de €39.772,06, a pagar pelo autor em 85 prestações aí discriminadas, que incluíam nomeadamente uma parcela descrita como “seguro auto”;
b)-1-Ficou consignado que “Em caso de perda total…deverá o mutuário entregar ao mutuante a indemnização que vier a receber da seguradora, caso esta lhe seja directamente liquidada. O mutuário receberá o excesso ou pagará a diferença entre o valor devido nos termos da presente alínea e a indemnização paga pela seguradora.”
c)A ré fez emitir o documento junto 12/10/2023 (fls.58 e ss.), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, que numerou como apólice nº ...00, pela qual declarou nomeadamente assumir perante a tomadora BMW Bank GmbH, Sucursal Portuguesa o risco por furto ou roubo do veículo automóvel marca BMW, matrícula n.º ..-XA-.., pelo capital de €31.315,72, mediante o pagamento pela tomadora de uma contraprestação anual convencionada, no período anual desde 4/10/2019 e anos seguintes;
c)1-Na mencionada apólice a ré assumiu ainda a responsabilidade civil obrigatória e um veículo de substituição, constando da mesma como credora hipotecária a BMW Bank GmbH, Sucursal Portuguesa e “Segurado/Proprietário” a mencionada credora (mutuária) e o Autor, condutor habitual da viatura.
d)No dia 15 de Dezembro de 2020, quando o veículo referido em a) se encontrava estacionado na rua da Cidade ..., na União de Freguesias ..., ... e ..., foi apoderado por desconhecidos, que o levaram para local não determinado, não tendo o autor voltado a recuperá-lo;
e)No dia 16 de Dezembro de 2020, o autor comunicou à ré a ocorrência do furto, entregando as chaves do veículo e os documentos;
e)-1 O A. deu também imediato conhecimento do sinistro à entidade mutuante.
e)-2 Por intermédio do seu advogado, o A. dirigiu à R., em 9 de março de 2021, um e-mail solicitando-lhe, no prazo de oito dias, uma decisão relativamente ao assunto versado;
e)-3 Com data de 5 de abril de 2021, o A., por intermédio do seu advogado, dirigiu um outro e-mail à R., solicitando-lhe, uma vez mais, informação sobre o estado em que se encontrava o processo de regularização do sinistro em causa;
e)-4 A R. bem sabia que existia um contrato de financiamento associado à aquisição do veículo furtado que continuava em vigor, encontrando-se o A. adstrito à obrigação de pagar as respetivas prestações à entidade mutuante;
e)-5 Com data de 7 de abril de 2021, a R. respondeu ao advogado do A., informando-o que “…estamos a efetuar diligências de forma a podermos instruir o nosso processo. Voltaremos ao seu contato com a maior brevidade possível, assim que essas mesmas diligências estiverem concluídas. …”;
e)-6 Com data de 9 junho de 2021, enviou novo e-mail para a R., solicitando-lhe, outra vez, informação sobre o estado em que se encontrava o processo interno de regularização do sinistro;
f) A R., no dia 01 do mês de julho de 2021, comunicou ao A., que declinava toda e qualquer responsabilidade pela regularização do sinistro, uma vez que “O sinistro não terá ocorrido de forma aleatória, súbita e/ou imprevista”;
g)O autor, GG e um representante de BMW Bank GmbH, Sucursal Portuguesa apuseram as suas assinaturas no escrito junto em como documento n.º 10 com a petição inicial (fls. 22 e ss), intitulado “Transacção”, que aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual conta nomeadamente: “1 -Os 1.º e 2.º outorgantes obrigam-se, solidariamente, para liquidação total das suas responsabilidades relativamente ao contrato de crédito acima melhor descrito, a pagar à 3.ª outorgante, a quantia de 28.360,32 euros, (…) 5 - Por sua vez, a 3.ª outorgante declara, desde já que, com o efetivo e integral recebimento da referida quantia, automaticamente nada mais tem a exigir dos 1.º e 2.º outorgantes, seja a que título for, relativamente ao contrato aqui em causa, considerando-se totalmente ressarcida. 6 - Com o efetivo e integral recebimento da referida quantia por parte da 3.ª outorgante, esta declara, desde já que, automaticamente sub- roga o 1.º outorgante em todos os direitos que detém sobre a companhia de seguros "A...", relativamente ao contrato de seguro identificado nos considerandos supra.”;
h)GG procedeu ao pagamento a BMW Bank GmbH, Sucursal Portuguesa do valor de €28.360,32, referido em g) em 22/11/2021;
i)Na sequência da privação do veículo o autor não dispôs de meios financeiros para adquirir um outro, e viu-se privado do uso que dele retirava, para realização de passeios de fim-de-semana, recorrendo para o efeito a um veículo cedido ocasionalmente pelo seu pai.
*

FACTOS NÃO PROVADOS
-Que o veículo descrito em a) tenha um valor locativo diário de €75,00.
-Que o autor sentisse tristeza, ansiedade e depressão por não ser ressarcido pela ré do valor do veículo e que por isso tenha passado a figurar como incumpridor no registo do Banco de Portugal.
*

IV-DIREITO

Com a presente acção judicial, o Autor exige o pagamento de uma quantia pecuniária correspondente à perda total do veículo por ter sido furtado, acrescido da indemnização pela privação do uso, alicerçando-se no contrato de seguro facultativo, por danos próprios.
No que concerne à ocorrência do risco coberto pelo contrato de seguro, o Autor logrou provar o furto do veículo, como lhe competia, mas a Ré foi absolvida do pedido de indemnização da privação do uso.
Inconformado com a parte da decisão que lhe foi desfavorável, o Autor recorreu, pedindo a reapreciação dessa questão argumentando que a indemnização peticionada fundamenta-se na recusa injustificada por parte da Ré em cumprir a obrigação decorrente do contrato de seguro, sendo o beneficiário da mesma.
A Ré celebrou com a entidade mutuante um contrato de seguro, cujo beneficiário também é o Autor, mutuário e proprietário do veículo.
José Vasques[8] define o contrato de seguro como sendo aquele pelo qual a seguradora, mediante retribuição pelo tomador de seguro, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização de prejuízos resultantes, ou ao pagamento de valor pré-definido, no caso de se realizar um determinado evento futuro e incerto.
A obrigação do tomador do seguro consiste no pagamento do prémio convencionado e a obrigação da seguradora, verificado o risco, no pagamento de uma indemnização ou de capital.
O risco, como refere José Vasques[9], pode ser definido como o evento futuro e incerto cuja materialização constitui o sinistro, sendo um elemento essencial do contrato de seguro.
Apesar de estar sujeito ao princípio da liberdade contratual, o contrato de seguro em apreciação, tal como é frequente, contém cláusulas pré-definidas, sem negociação, em relação às quais os destinatários se limitam a aceitar ou a subscrever.
Enquadra-se, por isso, nos designados contratos de adesão, e consequentemente, deve ser submetido à disciplina do Dec.-Lei n.º 446/85 de 25.10, com as alterações introduzidas pelos Dec.-Leis n.os 220/95 de 31/08 (transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva das Cláusulas Abusivas n.º 93/13/CEE de 05 de Abril de 1993), 249/99 de 07/07 e 323/2001 de 17/12).
A qualificação da indemnização do dano da privação do uso, como dano patrimonial autónomo, é, actualmente, praticamente pacífica, apesar de ter suscitado controvérsia no passado, como espelham várias decisões proferidas nas instâncias sobre essa temática.
Assim, a ideia consolidada sobre esta matéria é a de que a privação do uso de um veículo constitui um dano patrimonial, emergente[10], de avaliação abstracta, não sendo, por isso, exigível a alegação e prova de concretas despesas com a utilização de meios de transporte alternativos, as quais já seriam integráveis no designado dano de cálculo (correspondente à diminuição patrimonial causada pela lesão).
No caso concreto, o risco de furto, que efectivamente ocorreu, obrigava a Ré, nos termos do contrato de seguro facultativo, a proceder à entrega do capital aí acordado.
Na hipótese, que se verificou neste caso, de essa obrigação não ser cumprida pela seguradora, cumpre saber se o tomador ou/e beneficiário do seguro tem direito a exigir uma indemnização pela privação do uso do veículo, apesar de ser um risco não coberto pelo contrato de seguro.
Na ausência de prazo estipulado no contrato, a primeira questão com que imediatamente nos confrontamos, é a referente ao prazo de realização dessa prestação, ou seja, a partir de que data era exigível ao devedor, seguradora, a entrega do capital previsto no contrato de seguro por danos próprios.
Segundo a norma civil inserta no artigo 805.º, n.º 1, o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.
De harmonia com o regime especial decorrente das disposições conjugadas dos artigos 102.º e 104.º da Lei do Contrato de Seguro, a obrigação do segurador vence-se trinta dias após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências, que, como sabemos, poderá variar em conformidade com a maior ou menor complexidade das averiguações necessárias para esse efeito.
A contagem deste prazo está, assim, dependente da confirmação das causas, circunstâncias e consequências do sinistro, o que pode protelar o início da mora e consequentemente, o cálculo dos juros indemnizatórios.
Com efeito, como se esclarece no Acórdão do STJ de 27/11/2018[11] “…o RJCS é de todo omisso quanto ao processo de regularização do sinistro e, no que respeita ao prazo para a realização da prestação pelo segurador (arts. 102º e 104º, cits.), sujeita-o a um termo inicial, suspensivo e incerto, condicionado à iniciativa do próprio obrigado.
A apontada omissão procedimental quanto à regularização do sinistro e o auto-cometimento ao segurador na adequação do prazo para a realização da prestação devida devem, no que à execução do contrato ora interessa, ser preenchidos com a aplicação de critérios mais exigentes, em termos de diligência e de boa-fé, na apreciação do caso.”
O art. 130º da Lei do Contrato de Seguro [LCS] estatui o seguinte:
“1. No seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro.
2. No seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado.
3. O disposto no número anterior aplica-se igualmente quanto ao valor de privação de uso do bem.”
Por conseguinte, o nº 2 estabelece que o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado, e o nº 3 estende este regime à privação do uso do bem.
Recentemente surgiu uma tese na jurisprudência que equipara a cobertura referente à disponibilização do veículo de substituição à indemnização pelo dano de privação do uso.[12]
Neste particular, consideramos que estamos perante coberturas distintas.
Em primeiro lugar, importa não esquecer que o contrato de seguro é um negócio de natureza formal, pelo que “não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”, como determina o art. 238.º, n.º 1 do C.Civil.
No contrato de seguro a convenção de entrega de uma viatura de substituição para evitar o prejuízo que decorre, em regra, do segurado ficar sem a poder utilizar por se encontrar na oficina para reparação, não corresponde exactamente à obrigação que emerge da contratualizada indemnização pecuniária desse dano; apenas terá como efeito, por redução do período de privação do uso, a redução do valor da indemnização, a esse título, caso seja devida.
Assim sendo, por esta via contratual, não é enquadrável a indemnização peticionada pelo Autor.
Todavia, a jurisprudência, desde há, pelo menos dez anos,[13] que tem, de forma reiterada, defendido a admissibilidade do pedido de indemnização pela privação do uso do veículo mesmo que não tenha sido convencionada essa cobertura, desde que as circunstâncias demonstradas no caso concreto nos permitam concluir que ocorreu uma violação dos deveres acessórios de conduta.
Neste sentido, o Acórdão do STJ, de 15/03/2023[14]concluiu, no respectivo sumário que III-“…em caso de atraso injustificado na realização da prestação convencionada – caso a seguradora não tenha atuado de forma diligente, equitativa, transparente e com consideração e respeito pelos interesses do segurado/credor na prestação, caso a seguradora haja violado os deveres acessórios de conduta e não haja tomado todas as providências necessárias (e razoavelmente exigíveis) para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do credor na sua prestação – tem a seguradora que indemnizar a não satisfação do interesse do credor, tendo, a tal título e com tal enfoque jurídico, que indemnizar o chamado dano de privação de uso.IV- Terá sempre que ser perante os contornos da concreta situação que tal conclusão (a propósito da violação ou não dos deveres acessórios de conduta) pode/deve ser estabelecida.”
Com efeito, o disposto no artigo 762.º, n.º 2 do C.Civil determina que, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé, estendendo o princípio da boa fé objectiva à complexidade das obrigações[15].
E este princípio da boa fé implica a consideração, na relação obrigacional, dos designados deveres acessórios de conduta, destinados a permitir que a execução da prestação corresponda à plena satisfação do interesse do credor e que essa execução não implique danos para qualquer das partes. (negrito nosso)[16]
Os deveres acessórios de conduta distinguem-se evidentemente da prestação principal mas também dos deveres secundários uma vez que estes, ao contrário daqueles, estão funcionalmente ligados à prestação principal, abrangidos, por isso, pelo sinalagma e consequente acção de cumprimento.[17]
Nesta sequência, o cumprimento dos deveres de averiguação, confirmação e resolução do sinistro, em prazo razoável, configuram deveres acessórios de conduta, não abrangidos pelo contrato de seguro, nem a título principal nem em moldes secundários.
É que averiguação interna das circunstâncias em que ocorreu o sinistro, das suas causas/consequências e posterior comunicação ao tomador do seguro sobre o reconhecimento do evento, apesar de consubstanciar um procedimento relacionado com o contrato de seguro, não constitui, numa análise rigorosa dos conceitos, uma prestação estritamente ligada à obrigação de entrega do capital correspondente ao dano, emergente do contrato.
Como lugar paralelo nesta área do seguro do ramo automóvel, o art. 36.º do Dec.-Lei 291/2007 de 21/08 (REGIME DO SISTEMA DE SEGURO OBRIGATÓRIO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AUTOMÓVEL) impõe à seguradora um especial dever de prontidão e diligência, determinando que:
“1 - Sempre que lhe seja comunicada pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro, a empresa de seguros deve:
a) Proceder ao primeiro contacto com o tomador do seguro, com o segurado ou com o terceiro lesado no prazo de dois dias úteis, marcando as peritagens que devam ter lugar;
b) Concluir as peritagens no prazo dos oito dias úteis seguintes ao fim do prazo mencionado na alínea anterior;
e)Comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 30 dias úteis, a contar do termo do prazo fixado na alínea a), informando desse facto o tomador do seguro ou o segurado e o terceiro lesado, por escrito ou por documento electrónico;
(…)”.
Feitas estas considerações prévias, recordemos o quadro factual demonstrado nos autos.
O Autor comunicou o sinistro à Ré no dia 16 de Dezembro de 2020, entregando as chaves do veículo e os documentos.
Ficou privado de utilizar o veículo, em consequência do furto, e continuou a pagar à mutuante as prestações a que se tinha vinculado para obter o crédito destinado à sua aquisição.
Volvidos cerca de três meses, sem que lhe tenha sido prestada qualquer informação, concedeu, em 9 de março de 2021, um prazo de 8 dias para a Ré resolver o assunto.
Por não ter obtido resposta, no mês seguinte, em 5 de abril de 2021, solicitou, uma vez mais, informação sobre o estado em que se encontrava o processo de regularização do sinistro em causa.
A Ré respondeu, no dia 07, informando que “…estamos a efetuar diligências de forma a podermos instruir o nosso processo. Voltaremos ao seu contato com a maior brevidade possível, assim que essas mesmas diligências estiverem concluídas. …”;
Com data de 9 junho de 2021, enviou novo e-mail para a Ré, solicitando-lhe, outra vez, informação sobre o estado em que se encontrava o processo interno de regularização do sinistro.
No dia 01 do mês de julho de 2021, comunicou ao Autor que declinava toda e qualquer responsabilidade pela regularização do sinistro, uma vez que “O sinistro não terá ocorrido de forma aleatória, súbita e/ou imprevista”.
Em resumo, após ter decorrido cerca de seis meses, a Ré, sem concretizar os motivos da sua decisão, limitou-se a informar o Autor que não assumia a responsabilidade pelo cumprimento da obrigação de pagamento do capital seguro.
A Ré, no caso concreto, tinha ainda um especial dever de celeridade por ter conhecimento que este seguro estava associado a um contrato de crédito para aquisição do veículo furtado.
Desta forma, para além de não ter recebido o capital previsto para o risco de furto do veículo, que lhe possibilitaria a aquisição de um outro veículo, caso assim decidisse, ficou sem poder utilizar o veículo nas viagens de lazer e continuou adstrito ao pagamento das prestações do contrato de crédito, as quais, a partir de Março, deixou de cumprir, o que motivou a resolução do contrato pela mutuante.
O pai do Autor emprestou-lhe o dinheiro necessário para devolver à mutuante o valor em dívida, celebrando os contraentes uma transacção, que lhe conferiu todos os direitos que pertenciam a esta última.
Aqui chegados, podemos concluir que a Ré não actuou em conformidade com os ditames da boa-fé, ao não responder atempadamente ao Autor sobre se iria ou não cumprir com a obrigação de entrega do capital correspondente ao valor do veículo sinistrado e por ter declinado a responsabilidade sem justificar cabalmente a sua decisão.
Com efeito, o comportamento normal expectável da seguradora era o de comunicar ao Autor as razões que a levaram a declinar tal responsabilidade, o que nunca sucedeu, antes da propositura desta acção.
Os deveres de informação e de celeridade assumem especial importância no caso de perda total do veículo uma vez que a entrega do capital permitirá, ao tomador/beneficiário do seguro, comprar um outro veículo substitutivo.
Acresce que a disponibilização de uma viatura de substituição, por ser uma cobertura contemplada no contrato de seguro, até à tomada de decisão, teria evitado o prejuízo decorrente da impossibilidade de utilização da viatura durante seis meses.
A posição mais frágil do segurado em confronto com a seguradora impõe a execução diligente de procedimentos, com vista à resolução do sinistro, num prazo razoável.
Ou seja, na hipótese de o segurado/tomador do seguro não receber, em tempo devido, o capital previsto no contrato de seguro para a perda total do veículo, sem justificação plausível, assiste-lhe o direito de receber uma indemnização pela violação dos deveres acessórios de conduta que impendem sobre as seguradoras e que excedem os prejuízos da simples mora da obrigação pecuniária.
A violação dos deveres acessórios,[18]que se impunham neste caso por aplicação do princípio da boa-fé, constituiu a Ré na obrigação de indemnizar o Autor pelos danos sofridos.
Por conseguinte, não obstante a cobertura da privação de uso não se encontrar especialmente contemplada no contrato, assiste ao Autor, neste caso concreto, o direito de ser indemnizado por ter suportado esse prejuízo, em consequência do incumprimento dos deveres acessórios de informação e de adequada prontidão, como lhe competia.
Em suma, conclui-se que, in casu, a indemnização pelo dano patrimonial decorrente da privação do uso do veículo tem a sua fonte na responsabilidade contratual, por violação dos deveres acessórios de conduta.
A solução jurídica encontrada para resolver esta problemática pretende compaginar a linha de liberdade e de racionalidade que se espera de um julgador justo e equitativo, atento aos usos do tráfico.[19]
Do Quantum indemnizatório
O Autor peticionou o pagamento da indemnização pela privação do veículo que liquidou, em 01/09/2022, na quantia de 42.300,00 euros, acrescida dos juros de mora, contabilizados à taxa legalmente prevista, desde a citação e até efetivo e integral pagamento, baseando-se no valor de 75,00 euros por dia, contabilizado desde 15 de janeiro de 2021 e até ao efetivo recebimento da quantia correspondente ao valor do veículo.
Alegou, para tanto, que “deixou de poder utilizar o seu veículo automóvel, como até aí fazia, para se deslocar para o seu local de trabalho e daí para casa, para passear com os amigos, família e namorada, para ir de férias, para fazer compras, nomeadamente nos supermercados.”
Acrescentou que o valor da indemnização deverá corresponder ao valor do aluguer de um veículo automóvel com características idênticas àquele que foi subtraído ao Autor.
Na sentença perfilhou-se o entendimento de que a indemnização em causa não é devida por não ter sido contemplada no contrato de seguro, não tendo sido equacionada a violação dos deveres acessórios que impendem sobre a seguradora.
Como explica Abrantes Geraldes[20] os prejuízos podem assumir alguma variação de acordo com as circunstâncias que puderem ser consideradas nomeadamente com o grau de utilização que efectivamente seria dado ao veículo no período de imobilização caso não ocorresse o evento lesivo. (sublinhado nosso)
Acrescentando que não é despicienda, por exemplo, a quantia necessária para proceder ao aluguer de um veículo de características semelhantes às do sinistrado (mesmo na ausência de prova de aluguer efectivo) como elemento a atender, com recurso à equidade (sem contar, nesta hipótese, com o preço comercial que envolve as despesas de exploração e o lucro da actividade de aluguer).
Neste sentido Paulo Mota Pinto[21]aponta, como um dos critérios de quantificação do dano de privação do uso, o custo de um aluguer durante o lapso de tempo em causa, subtraído do lucro do locador e dos custos de manutenção da frota.
Esse é um critério meramente orientador do julgador, que, eventualmente, poderá ser atendido em articulação com outras circunstâncias relevantes que tenham sido alegadas e provadas no processo.[22]
A seguradora, à luz do contrato, estava obrigada a evitar o dano de privação do veículo, por ter ficado acordada a disponibilização de um veículo de substituição, que naturalmente não se cinge à situação (normal) de reparação do veículo em consequência de acidente.
Como estamos no âmbito da responsabilidade contratual em que a indemnização emerge da violação dos deveres acessórios de conduta, ou seja, na demora injustificada na regularização do sinistro, e por ter sido prevista a disponibilização de um veículo de substituição, o período atendível de privação das utilidades do veículo, para esse efeito, contabiliza-se desde o dia seguinte à comunicação do furto até à data em que for entregue o capital correspondente ao valor do veículo que será liquidado em decisão ulterior, como foi decidido.
Sobre esta questão do período temporal a atender para efeitos de contabilização do dano de privação do uso, a posição da jurisprudência do STJ, foi resumida, no Acórdão de 08/09/2021[23]nos seguintes termos: “…a indemnização pela privação do uso engloba necessariamente todo o período compreendido entre o acidente e a data da entrega de veículo de substituição ou o pagamento da indemnização ou a reparação do veículo, só nesta última circunstância se verificando a indemnização do dano sofrido (veja-se, a título meramente exemplificativo, Acs. S.T.J. 17/1/2013, pº 2395/06.3TJVNF.P1.S1 – João Trindade, S.T.J. 8/5/2013, pº 3036/04.9TBVLG.P1.S1 – Maria dos Prazeres Beleza, e Ac. R.C. 16/3/2016, pº 288/14.0T8LRA.C1 – Carlos Moreira).”
No sumário do douto aresto consignou-se que “Não reposta a situação anterior ao evento lesivo, as consequências da privação do uso serão tanto maiores quanto maior for o período em que o lesado se mostre impedido de utilizar um veículo de características idênticas ao acidentado – reposta a situação anterior, cessa o dano da privação do uso.”

Do quadro factual resulta que apenas ficou provado que o Autor utilizava a viatura em passeios, aos fins-de-semana, recorrendo, para esse efeito, após o furto, a um veículo cedido ocasionalmente pelo seu pai.
Ora, na falta de elementos fácticos seguros que nos permitam fixar o valor diário do uso de um veículo similar, que o Autor não demonstrou, devemos recorrer à equidade.
Com efeito, se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, como acontece no caso sub judice relativamente ao dano de privação do uso, o tribunal deve socorrer-se da equidade, dentro dos limites que tiver por provados—n.º 3 do citado art. 566.º do C.Civil.
O valor diário que tem sido atribuído na maioria das decisões judiciais, considerado adequado para os casos normais de utilização diária do veículo pelo agregado familiar, varia entre 10 a 30 euros por dia.[24]
Nesta conformidade, não podemos aderir ao entendimento perfilhado pelo Recorrente face às decisões proferidas nos tribunais, na maioria das quais o veículo é utilizado diariamente pelo segurado na vida profissional e pessoal.
Em suma, tendo em consideração que o Autor utilizava o veículo para se deslocar em passeios, aos fins-de semana, e norteados por critérios baseados na equidade e em decisões similares, o cálculo do dano a ressarcir terá de basear-se no valor de 10€/dia, contabilizando-se apenas os fins-de-semana em que não pôde conduzir o veículo, até ao cumprimento da obrigação de entrega do capital correspondente ao valor do veículo.
Procede, embora parcialmente, o recurso do Autor.
*


V-DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso da Ré e parcialmente procedente o recurso do Autor, e em consequência, condenam a Ré a pagar ao Autor uma indemnização a título de privação do uso do veículo, a liquidar em decisão ulterior, nos termos acima mencionados, acrescida dos juros moratórios contados desde a citação até integral pagamento.

Custas por ambas as partes, na proporção dos respectivos vencimentos.

Notifique.




Porto, 2025/03/11.

Anabela Miranda
Rui Moreira
Lina Castro Baptista

_________________________________________-
[1] Neste sentido, entre outros, o Ac.RelLisboa, de 22/11/2018, Rel. Pedro Martins, disponível em www.dgsi.pt.
[2]Parecem seguir essa orientação os Acs. desta Relação de 23/02/2023, 21/03/2024 (Rel.Aristides Almeida) e de 21/10/2024 (Rel. Ana Olívia Loureiro) disponíveis em www.dgsi.pt.
[3] Disponível em www.dgsi.pt.
[4] Rel. Ana Cristina Duarte, disponível em www.dgsi.pt.
[5] Rel. João Cura Mariano, disponível em www.dgsi.pt.
[6] Cfr. Lima, Pires de, Varela, Antunes, Código Civil Anotado, I, 312.
[7] Prova por Presunção no Direito Civil, 2.º edição, pág. 160.
[8] Contrato de Seguro, Coimbra Editora, pág. 94.
[9] Ob. cit., pág. 127.
[10] Neste sentido v. Rocha, Francisco Rodrigues, Do Princípio Indemnizatório no Seguro de Danos, Almedina, pág. 207, citando Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, pág. 751 e Ac. Rel Porto de 15.05.2012 disponível em www.dgsi.pt.
[11] Rel. Cabral Tavares, disponível em www.dgsi.pt.
[12] Acs. Rel.Lisboa de 04/11/2021 (Rel. Ana de Azeredo Coelho) e da Rel. Porto de 11/12/2024 (Rel. João Venade) disponíveis em www.dgsi.pt.
[13] Cfr. entre outros, STJ-Acs de 09/07/2015,14/12/2016 (ambos rel. por Fernanda Isabel de Sousa Pereira), 23/11/2017 (Távora Victor), 27/11/2018 (Cabral Tavares), e 15/03/2023 (António Barateiro Martins); RelGuim.-Acs. de 09/03/2017 (por mim relatado) e de 05/12/2019 (Rosália Cunha), Rel. Porto-Acs. de 23/11/2020 (Carlos Gil), 13/09/2022 (rel. pelo ora 1.º adjunto, Rui Moreira) e 05/03/2024 (Maria da Luz Seabra); Rel. Coimbra-Ac. 25/01/2022 (Arlindo Oliveira e de 05/03/2024 (Luís Filipe Cravo) disponíveis em www.dgsi.pt.
[14] Relator António Barateiro Martins, disponível em www.dgsi.pt.
[15] Cfr. Menezes Cordeiro, Tratado, I, 1, pág. 407.
[16] Cfr. Leitão, Luís Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, 2015, pág. 108.
[17] Cfr. Leitão, Luis Manuel Teles de Menezes, ob. cit., pág. 108.
[18] No Acórdão da Rel. Porto, de 14/03/2016 disponível em www.dgsi.pt a factualidade não é coincidente porquanto a seguradora manifestou ao lesado a sua discordância relativamente à assunção de responsabilidade.
[19] Cfr. Alarcão, Rui, Direito das Obrigações, Lições ao 3.º ano jurídico, 1983, Coimbra, pág. 114.
[20] Temas da Responsabilidade Civil, 3.ª edição, Almedina, pág. 86.
[21] Cfr. Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, vol. I, 2008, pág. 592, nota 1699.
[22] Nesse sentido, v. Acs.Rel Porto de 07/10/2024 (Rel Carlos Gil), de 25/11/2024 (Rel. Eugénia Cunha) disponíveis em www.dgsi.pt.
[23] Rel. Vieira e Cunha, disponível em www.dgsi.pt.
[24] Cfr. entre outros Acs.TRP de 10/01/2022, 14/12/2022, 07/11/2023, 22/04/2024, 25/11/2024; TRC de 03/06/2012 e de 02/06/2018, TRL de 30/03/2023 disponíveis em www.dgsi.pt.