SENTENÇA ARBITRAL
ARBITRAGEM INTERNACIONAL
REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Sumário

I. A Lei da Arbitragem Voluntária (Lei 63/2011) destina um capítulo ao reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras, aplicável sem prejuízo do que é imperativamente preceituado pela Convenção de Nova Iorque de 1958, sobre o reconhecimento e a execução das mesmas sentenças, bem como por outros tratados ou convenções que vinculem o Estado português (artigo 55.º).
II. O disposto nos preceitos constantes do capítulo da LAV destinado ao reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras tem um âmbito de aplicação residual, aplicando-se essencialmente às sentenças arbitrais oriundas de Estados que não ratificaram a Convenção de Nova Iorque e com os quais Portugal não tenha celebrado outras convenções internacionais nesta matéria.
III. Nos termos da LAV (56.º/1 b) ii)), o reconhecimento de uma sentença arbitral proferida numa arbitragem localizada no estrangeiro pode ser recusado se o tribunal verificar que conduz a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado português.
IV. A ordem pública internacional é mais restrita, tem menos normas e/ou princípios, do que a ordem pública interna, atuando como travão do direito, de decisões, de ordens e de atos estrangeiros apenas quando a sua aplicação ou validação conduziria a uma situação intolerável à luz de princípios jurídicos fundamentais do Estado que os iria aplicar ou validar; estando em causa a aplicação de lei estrangeira ou o reconhecimento de decisões estrangeiras, existe uma maior tolerância para com as regras do sistema jurídico estrangeiro.
V. A Convenção de Nova Iorque (V/2 b)) permite a recusa pela autoridade competente do país em que o reconhecimento é pedido, se se constatar que o mesmo é contrário à ordem pública desse país (sic), devendo entender-se que se trata de ordem pública internacional desse país.
VI. Não viola qualquer norma de ordem pública do Estado português uma decisão que fixa como indemnização devida ao comprador, pelo incumprimento definitivo e total por parte do vendedor, a diferença entre o preço acordado no contrato e o preço (mais elevado) vigente na data do incumprimento.
VII. O privilégio da nacionalidade conferido pelo artigo 983.º/2 do CPC pressupõe, entre outros requisitos, que, de acordo com a norma de conflitos portuguesa, se devesse aplicar a lei portuguesa, o que não se verifica no caso sub judice.

Texto Integral

Acordam os abaixo identificados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
“A”, LDT, sociedade de responsabilidade limitada constituída segundo as leis de Singapura com sede em …, Singapura, registada sob o número Singapure UEN …C1, intentou a presente
Ação especial de reconhecimento de sentença arbitral estrangeira, contra
“B”, UNIPESSOAL, LDA. (ZONA FRANCA DA MADEIRA), sociedade unipessoal por quotas, com sede na Rua … Funchal, com capital social de € 5.000,00, registada sob o número de pessoa coletiva …22, alegando, em síntese, que:
- Celebrou com a requerida um contrato de compra e venda de açúcar cristal branco brasileiro, o qual, conforme constante da sua cláusula 17, epigrafada “Arbitragem”, continha a seguinte convenção arbitral: “Todos os litígios decorrentes do contrato serão submetidos à apreciação da Refined Sugar Association de Londres, para a resolução em conformidade com as regras de arbitragem da associação”;
- Porque a requerida incumpriu o contrato, a requerente demandou-a perante a Refined Sugar Association de Londres, tendo, em 19/12/2023, sido proferida decisão final (arbitral) pelo conselho da associação, e que pretende executar em Portugal;
- Tal sentença cumpre todos os requisitos legais necessários à sua confirmação.
Termina pedindo a confirmação da sentença arbitral proferida pela Refined Sugar Association, para todos os legais efeitos, maxime, para que a mesma produza os seus efeitos em Portugal e possa, assim, ser executada.
Citada, a parte contrária contestou, alegando, resumidamente, que:
- A sentença arbitral condenou a requerida a pagar à requerente: i) 498.231 Dólares; ii) juros simples de 7,5% ao ano, calculados sobre a referida quantia, desde 1 de junho de 2023 até à data da presente decisão; iii) juros simples de 8% ao ano, calculados sobre a referida quantia, desde a data de prolação da presente decisão até à data do efetivo pagamento;
- Do regulamento do tribunal arbitral instituído junto da Refined Sugar Association resulta “Sem prejuízo das disposições da secção 34 da Lei de Arbitragem de 1996, o Conselho não estará vinculado às regras estritas de prova e terá a liberdade de admitir e considerar qualquer material, não obstante poder não ser admissível sob a lei de prova”;
- A alteração do critério-regra de distribuição do ónus da prova atenta contra o princípio da igualdade e anula a segurança jurídica; quem se quer fazer valer de factos que alega, na sustentação de uma posição jurídica de que se arroga, tem o ónus da sua demonstração (art. 342.º do Cód. Civ.), regra que não representa uma mera opção do legislador, mas de um imperativo num Estado de direito, fundado na dignidade da pessoa humana, e no princípio constitucional da igualdade;
- O procedimento admitido pelo tribunal arbitral no qual foi proferida a decisão aqui sob reconhecimento não garantiu o mínimo indispensável do direito das partes à igualdade de armas, dispositivo e contraditório, foi arbitrário e contrário aos mais elementares princípios de um Estado de direito, o que obsta à revisão e confirmação da respetiva sentença, seja pelo não preenchimento do disposto na alínea e) do artigo 980.º do CPC (imposição do cumprimento do princípio da igualdade e contraditório), seja pelo não preenchimento do disposto na alínea f) do mesmo artigo (violação manifesta de princípio de ordem pública internacional do Estado Português);
- A indemnização arbitrada constitui grotesco enriquecimento sem causa que o direito português não permite;
- O tribunal arbitral condenou a requerida a pagar à requerente a quantia de 498.231 USD, a que chegou com base nos seguintes pressupostos e raciocínio: a requerente acordou comprar à requerida 8100 toneladas de açúcar ao preço de 600 USD por tonelada; o contrato foi celebrado em 24/03/2023; a requerida pôs termo ao contrato de forma unilateral e sem motivo legítimo em 06/04/2023; nesta última data o preço de mercado do mesmo produto era de 661,51 USD, portanto, mais 61,51 USD por tonelada; multiplicando esse acréscimo de preço pelas 8100 toneladas alcança-se a quantia arbitrada a título de indemnização;
- A requerente nunca adquiriu tal quantidade de açúcar para suprir o pretenso não cumprimento do contrato por parte da requerida, nem alegou que o tenha feito (em sede de tribunal arbitral) e nem provou que o tenha feito (em sede tribunal arbitral), pelo que inexiste prejuízo que cumpra ressarcir;
- A requerente não comprou o açúcar à requerida e também nada pagou à requerida pelo açúcar que lhe iria adquirir se o contrato em negociação se tivesse concluído;
- Não foram observados no processo arbitral os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
- A decisão cujo reconhecimento se pede conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português;
- Se o caso tivesse sido resolvido de acordo com a lei portuguesa, a sentença teria sido mais favorável à requerida, pelo que invoca o privilégio da nacionalidade previsto na lei.
Termina impetrando a improcedência da ação.
A requerente, notificada, veio exercer contraditório. Em suma, discordou da análise jurídica da requerida, relativa à inobservância dos princípios do contraditório e da igualdade das partes, à incompatibilidade com princípios de ordem pública internacional do Estado Português, e à verificação dos pressupostos do privilégio da nacionalidade.
Findos os articulados, foi concedido prazo de 15 dias para alegações, às partes e ao Ministério Público, tendo as primeiras apresentado alegações escritas, que, em substância, repetiram as que constavam dos articulados.
Cabe julgar segundo as regras da apelação (artigo 57.º, n.º 4, da Lei da Arbitragem Voluntária – LAV, de ora em diante – aprovada pela Lei 63/2011, de 14 de dezembro).
Apesar de se tratar de uma mera ação de reconhecimento de sentença arbitral estrangeira, as partes não estão de acordo e o caso, no universo da espécie processual em causa, não é dos mais simples, pelo que foram colhidos os vistos para decisão coletiva, em audiência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
Nomeadamente, este tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
A requerente identificou o processo como revisão de sentença estrangeira, processo especial previsto e regulado nos artigos 978.º a 985.º do CPC. No entanto, existe um processo especial para a confirmação de sentenças arbitrais estrangeiras, regulado nos artigos 55.º a 58.º da LAV, em capítulo intitulado «Do reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras». Os trâmites processuais são idênticos em ambos os processos, pelo que é quase um preciosismo a correção que aqui fazemos, ao abrigo do disposto no artigo 193.º, n.º 3, do CPC, para o processo de reconhecimento de sentença arbitral estrangeira.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciárias, e são legítimas.
Não foram invocadas nem há outras exceções ou nulidades que obstem ao conhecimento da causa.
Questões a decidir:
a) Em que termos pode ser reconhecida uma sentença de tribunal arbitral estrangeiro?
b) No processo arbitral em causa nos autos não foram observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes?
c) O reconhecimento da decisão arbitral em causa nos autos conduziria a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português?
d) O resultado da ação teria sido mais favorável à requerida, sociedade de direito português, se o tribunal arbitral estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, assistindo-lhe o direito de invocar o privilégio da nacionalidade previsto no CPC?
II. Fundamentação de facto
Os factos relevantes são os que constam do relatório e, ainda, o conteúdo da sentença arbitral cujo reconhecimento é pedido e que passamos a descrever, recorrendo também à reprodução (usando a sentença traduzida junta com a p.i.) de partes especialmente relevantes para o objeto desta ação.
«Decisão Final
Sentença n.º 2369 de 19 de dezembro de 2023»
O Painel de Árbitros da Refined Sugar Association foi chamado a pronunciar-se enquanto Árbitros sobre um litígio entre:
“A” LTD Demandante (Comprador) v “B”, UNIPESSOAL LDA Demandado (Vendedor) decorrente de um contrato n.°. EP-S00290 de 24 de março de 2023, “A” Ltd de Singapura ("LPG" ou "Comprador") acordou comprar, e a “B”, Unipessoal Lda da Madeira, Portugal ("EP" ou "Vendedor") acordou vender 8100 t de Açúcar Cristal Branco Brasileiro em contentores de 300 x 20' para entrega EM CFR Nouakchott, Mauritânia (o "Contrato" ou o "Contrato 300 FCL").»
Após alguns considerandos:
«As Condições do Contrato
1. O Contrato, que foi assinado em nome de ambas as partes e ao qual ambas as partes apuseram o selo da sua empresa, previa, na medida do necessário, o seguinte:
"3. QUANTIDADE:
8100 TONELADAS MÉTRICAS EM CONTENTORES DE 300 X 20 PÉS A SEREM CHEIOS COM CERCA DE 27 TM CADA
4. QUALIDADE:
AÇÚCAR CRISTAL BRANCO BRASILEIRO... COR 150 ICUMSA MAX
6. ORIGEM:
SANTOS, BRASIL
7. DESTINO:
CFR - NOUAKCHOTT, MAURITÁNIA
EXPEDIÇÃO:
MAIO - JUNHO DE 2023
O PRAZO DE EXPEDIÇÃO ESPECIFICADO NO PRESENTE É INDICADO SEM GARANTIA E ESTÁ SUJEITO ÀS CONDIÇÕES DE RESERVA DO NAVIO CONTRATADAS PELOS VENDEDORES PARA O TRANSPORTE DO PRODUTO ATÉ AO DESTINO, AS QUAIS SÃO AQUI INCORPORADAS QUANDO NÃO ESTIVEREM EM CONTRADIÇÃO COM OS TERMOS DO PRESENTE CONTRATO. OS VENDEDORES NÃO SERÃO RESPONSÁVEIS OU RESPONSABILIZADOS EM CASO DE QUALQUER ATRASO NA CHEGADA E/OU À CHEGADA E/OU DURANTE O CARREGAMENTO E/OU PARTIDA DO NAVIO NO PORTO DE CARGA; EM CASO DE ATRASO, O PERÍODO DE EXPEDIÇÃO SERÁ CONSIDERADO AUTOMATICAMENTE PRORROGADO PELO PERÍODO DE QUALQUER ATRASO. O PRESENTE CONTRATO MANTÉM-SE VÁLIDO ATÉ À SUA EXECUÇÃO PLENA E DEFINITIVA NOS TERMOS DA NOTA DE RESERVA INICIAL, SUJEITO A UMA ALTERAÇÃO E/OU UM PROLONGAMENTO DO PERÍODO DE EXPEDIÇÃO.
8. PREÇO:
PREÇO FINAL E FIXO DE 600,00 USD (SEISCENTOS DÓLARES) POR TONELADA MÉTRICA. CFR - NOUAKCHOTT, MAURITÁNIA. INCOTERM 2010.
(…)
O COMPRADOR DEVE ENVIAR INSTRUÇÕES DOCUMENTAIS PARA ...@ O MAIS TARDAR ATÉ 2 (DOIS) DIAS ÚTEIS APÓS O ENVIO DO CONTRATO ASSINADO.
10. PAGAMENTO:
5 % ANTECIPADAMENTE (in advance, no original) 5 % CONTRA CARREGAMENTO 90 % DA - DOCUMENTO CONTRA ACEITAÇÃO 7 DIAS
NO CASO DE O COMPRADOR EXIGIR UM "CONHECIMENTO DE EMBARQUE EXPEDIDO", O PAGAMENTO DEVE SER EFETUADO 100 % ANTECIPADAMENTE
OS PAGAMENTOS EM ATRASO ESTÃO SUJEITOS A JUROS DE MORA À TAXA DE 12 % POR ANO.
OS ENCARGOS BANCÁRIOS DOS COMPRADORES SÃO POR CONTA DOS COMPRADORES. OS ENCARGOS BANCÁRIOS DOS VENDEDORES SÃO POR CONTA DOS VENDEDORES. OS VENDEDORES DEVEM RECEBER 100 % DO PREÇO FATURADO; SEM QUALQUER DEDUÇÃO DE ENCARGOS BANCÁRIOS DO BANCO DO COMPRADOR
NO CASO DE O COMPRADOR NÃO EFETUAR QUALQUER PAGAMENTO, O VENDEDOR TEM, AO SEU EXCLUSIVO CRITÉRIO, O DIREITO DE EXECUTAR QUALQUER UMA DAS SEGUINTES OPÇÕES NÃO EXAUSTIVAS:
(A) APLICAR QUAISQUER CUSTOS INCORRIDOS PELO VENDEDOR AO PREÇO DO CONTRATO E/OU RENEGOCIAR O PREÇO DO CONTRATO;
(B) RESCINDIR (terminate, no original) O ACORDO COM EFEITOS IMEDIATOS E VENDER A CARGA (SUJEITA AO CONTRATO) A OUTRA CONTRAPARTE À SUA ESCOLHA;
(C) PRORROGAR O PRAZO DE EXPEDIÇÃO ATÉ AO MOMENTO EM QUE O COMPRADOR CUMPRA AS SUAS OBRIGAÇÕES DE PAGAMENTO NOS TERMOS DO CONTRATO.
(…)
EM CASO DE NÃO RECEÇÃO DO MONTANTE ACORDADO, A EP COMMERCIAL INVALIDARÁ O CONTRATO E MANTERÁ A POSSE DA CARGA.
QUALQUER ADIANTAMENTO/DEPÓSITO RECEBIDO SERÁ UTILIZADO PARA COBRIR O CUSTO DA REVENDA DA CARGA E QUAISQUER OUTRAS PERDAS POSSÍVEIS.
11. PROPRIEDADE
A PROPRIEDADE DAS MERCADORIAS SÓ SERÁ TRANSFERIDA APÓS O VENDEDOR TER RECEBIDO O PAGAMENTO DAS MERCADORIAS EM CONFORMIDADE COM AS SUAS INSTRUÇÕES.
17. ARBITRAGEM
TODOS OS LITÍGIOS DECORRENTES DO CONTRATO SERÃO SUBMETIDOS À APRECIAÇÃO DA REFINED SUGAR ASSOCIATION DE LONDRES, PARA RESOLUÇÃO EM CONFORMIDADE COM AS REGRAS DE ARBITRAGEM DA ASSOCIAÇÃO.
18. GERAL
O PRESENTE CONTRATO ESTÁ SUJEITO ÀS REGRAS DA REFINED SUGAR ASSOCIATION, DE FORMA TÃO COMPLETA COMO SE AS MESMAS TIVESSEM SIDO EXPRESSAMENTE INSERIDAS NO PRESENTE CONTRATO, QUER AS PARTES SEJAM OU NÃO MEMBROS DA ASSOCIAÇÃO OU SEJAM ASSOCIADAS DA MESMA.
EM CASO DE INCOERÊNCIA ENTRE O CONTRATO E AS REGRAS DA ASSOCIAÇÃO APLICÁVEIS, PREVALECERÃO OS TERMOS E CONDIÇÕES DO CONTRATO"» (ênfases acrescentadas).
Em seguida, sob o título «Antecedentes Factuais», a sentença descreve: as trocas de comunicações escritas por mensagens via WhatsApp, entre empregados ou representantes das partes, e por email; um testemunho indireto da EP da chamada entre o Sr. “E” e o Sr. “F” a 4 de abril de 2023; e a correspondência entre AA e BB e entre EP e LPG.
Segue-se a pretensão da autora, e uma pormenorizada exposição (descrita no curso de 12 páginas) sobre as posições das partes relativas às seguintes questões:
i. Foi celebrado um contrato vinculativo?
ii. Existia um prazo para a LPG devolver o Contrato assinado?
iii. Existia um prazo para a LPG efetuar o pagamento antecipado de 5 %?
iv. Qual é o efeito jurídico da Fatura Pró-Forma e quais os requisitos que impôs?
v. Qual foi o efeito das trocas de mensagens WhatsApp e de e-mail e a EP renunciou a alguma condição de pagamento?
vi. Quando foi rescindido (terminated) o Contrato?
vii. Como devem ser avaliados os danos?
Nas seis páginas subsequente, o tribunal faz a sua apreciação do caso, dividida pelas seguintes questões:
a) Foi celebrado um contrato vinculativo?
b) Existia um prazo para a LPG devolver o Contrato assinado?
c) Existia um prazo para a LPG efetuar o pagamento antecipado de 5 %?
d) Qual era o efeito da Fatura Pró-Forma?
e) Houve uma violação do Contrato e, em caso afirmativo, quando?
f) Como devem ser avaliados os danos causados à LPG? [e não «pela LPG» como consta da tradução, a pergunta original How should LPG’s damages be assessed?, à letra, Como devem os prejuízos da LPD ser avaliados?]
Vamos reproduzir a análise jurídica do tribunal arbitral a que acabamos de fazer referência e o dispositivo da mesma sentença arbitral:
«CONSIDERAMOS E DECIDIMOS O SEGUINTE:
Foi celebrado um contrato vinculativo?
56. Analisámos cuidadosamente todos os elementos de prova que nos foram apresentados, incluindo as trocas contemporâneas de e-mail e de mensagens WhatsApp entre as partes. Neste contexto, verificámos que não havia dúvidas de que tinha sido celebrado um acordo vinculativo e que o Contrato passou a existir quando as partes acordaram os termos a 24 de março de 2023. O Sr. “C” agradeceu à LPG pelo negócio e, na mesma noite, enviou o Contrato e a Fatura Pró-Forma.
57. Verificámos igualmente que, apesar de a EP pretender, compreensivelmente, que lhe fosse devolvida atempadamente uma cópia do contrato assinado, não havia provas de que isso constituísse uma condição prévia à entrada em vigor de uma obrigação vinculativa. Pelo contrário, verificámos que a devolução do Contrato assinado era uma mera formalidade e não tinha qualquer efeito sobre o acordo já alcançado entre o Sr. “C” e a Sr.a “D”. Verificámos igualmente que não existiam quaisquer elementos de prova que corroborassem o argumento da EP de que o facto de a LPG ter de efetuar o pagamento do adiantamento de 5 % à vista (mais um dia) constituía uma condição sine qua non ou uma condição prévia à entrada em vigor do contrato.
58. Para além do facto de o contrato não mencionar qualquer condição prévia, a correspondência não mencionava que o Sr. “C” aguardava a devolução de um contrato assinado pela LPG (ou o pagamento do adiantamento de 5 %) antes de assumir qualquer compromisso contratual vinculativo. Efetivamente, a correspondência entre as partes na altura era inteiramente consistente com a nossa conclusão de que um Contrato vinculativo fora celebrado a 24 de março de 2023. Verificámos que não se tratava claramente, como a EP argumentava, de um mero "acordo para acordar".
59. Verificámos igualmente que o facto de o mercado do açúcar ter sido ou não volátil durante o período em causa era irrelevante, tal como o modus operandi da EP e de outras empresas comerciais. A questão era saber se as partes tinham assumido um compromisso vinculativo a 24 de março de 2023, o que concluímos que era claramente o caso. Na nossa opinião, a reação imediata da LPG ao WhatsApp da EP de 3 de abril de 2023, em que a Sr.a “D” recordava ao Sr. “C” que a LPG tinha uma encomenda confirmada e um contrato com a EP, era inteiramente justificada.
60. O Contrato, celebrado a 24 de março de 2023, incluía uma convenção de arbitragem escrita. Por conseguinte, ficámos convencidos de que tínhamos competência para apreciar o litígio que nos foi submetido (o que, aliás, não foi contestado nem pela LPG nem pela EP) e também de que as partes, ambas representadas por advogados, tinham tido várias oportunidades na arbitragem para apresentar os seus argumentos e documentação de apoio.
Existia um prazo para a LPG devolver o Contrato assinado?
61. Analisámos cuidadosamente as alegações das partes e todos os elementos de prova que nos foram apresentados relativamente a esta questão. Neste contexto, verificámos que não havia um prazo específico acordado para que a LPG devolvesse o Contrato assinado com a EP, muito menos um prazo de um dia, como a PE nos pediu para constatar. Verificámos que nem o Contrato nem a Fatura Pró-Forma continham qualquer cláusula nesse sentido. Com efeito, tendo em conta que a devolução do Contrato assinado era uma mera formalidade, como constatámos, não seria expectável que as partes tivessem acordado qualquer prazo específico para a sua devolução.
62. Concordámos igualmente com a LPG que, se tivesse sido acordado um prazo para a devolução do Contrato assinado, era provável que o Sr. “C” o tivesse referido na correspondência trocada nessa altura. No entanto, verificámos que, em nenhum momento antes de 6 de abril de 2023, a EP fez referência a qualquer prazo, ou ao termo de qualquer prazo, para a devolução do Contrato assinado.
63. Por exemplo, quando o Sr. “C” enviou o Contrato e a Fatura Pró-Forma por PDF na noite de 24 de março de 2023 e por e-mail na manhã seguinte, a 25 de março de 2023, não fez qualquer referência a um prazo para a devolução do Contrato assinado. Quando a Sr.a “D” sugeriu, a 27 de março de 2023, que a LPG voltaria a contactar a EP sobre o Contrato nesse dia ou no dia seguinte, o Sr. “C” confirmou: "Não se preocupe". Do mesmo modo, na terça-feira, 28 de março de 2023, o Sr. “C” perguntou se a Sr.a “D” achava que a LPG poderia devolver o contrato assinado "esta semana". Verificámos que, embora o Sr. “C” tenha perguntado educadamente se a LPG poderia devolver o contrato assinado no prazo de uma semana, não sugeriu que a Sr.a “D” tivesse falhado ou estivesse prestes a falhar um prazo urgente (ou mesmo qualquer prazo).
64. Do mesmo modo, a 29 de março de 2023, o Sr. “C” perguntou se a cópia assinada poderia ser recebida "ainda hoje." No entanto, quando a Sr.a “D” respondeu que assinaria o contrato no dia seguinte e o devolveria, a resposta do Sr. “C” foi "sim, por favor" Quando a Sr.a “D” devolveu o Contrato assinado ao Sr. “C” na noite de sexta-feira, 31 de março de 2023, este limitou-se a agradecer-lhe. Não fez qualquer tipo de comentário relativo a prazos ou atrasos e, em especial, não disse que a LPG tinha violado qualquer obrigação contratual no que respeita à devolução do Contrato assinado.
65. Só a 6 de abril de 2023, alguns dias depois de a Sr.a “D” ter devolvido o Contrato assinado e depois de a LPG ter efetuado o pagamento do adiantamento de 5 %, é que a EP levantou a questão num e-mail em que alegava que "o prazo para a conclusão do negócio é de 1 dia (útil)."
Existia um prazo para a LPG efetuar o pagamento antecipado de 5 %?
66. A EP argumentou que, tal como refletido nos termos da Fatura Pró-Forma, que alegou ser complementar ao Contrato e que devia ser lido em conjunto com este, a LPG era obrigada a efetuar o pagamento dos 5 % iniciais no máximo um dia (ou dois dias, dada a diferença horária entre o Brasil e Singapura) após as partes terem chegado a acordo sobre as condições a 24 de março de 2023.
67. Analisámos atentamente os termos do Contrato e a disposição para o pagamento de 5 % «antecipadamente" com mais «5 % contra carregamento" e o saldo de 90 % "contra aceitação 7 dias". Constatámos que, embora as partes tivessem previsto um prazo para o pagamento do saldo de 90 % contra documentos de expedição, essa disposição não existia em relação ao primeiro adiantamento de 5 %. Não ficámos convencidos com argumento da EP de que, enquanto parte redatora, não se podia esperar que a EP considerasse todas as situações hipotéticas ao redigir o contrato. Verificámos que, tal como a LPG salientou, se a EP tivesse pretendido estabelecer um prazo específico para o pagamento do adiantamento de 5 %, poderia facilmente ter incluído essa disposição no Contrato, mas não o fez.
68. Também analisámos cuidadosamente as várias trocas de mensagens WhatsApp e de e-mail entre as partes. Neste contexto, verificámos que estes não eram coerentes com a afirmação da EP de que existia um prazo firme (e muito menos um prazo de um dia útil) para efetuar o adiantamento. Se tivesse sido acordado um prazo de um dia para o pagamento do adiantamento de 5 %, seria de esperar que o Sr. “C” fizesse referência a esse prazo aquando do envio do contrato por WhatsApp a 24 de março de 2023 e por e-mail a 25 de março de 2023. Mas não mencionou qualquer prazo para o pagamento do adiantamento de 5 %.
69. Se o prazo para a LPG devolver o Contrato assinado e efetuar o pagamento do adiantamento de 5 % tivesse sido um dia útil a contar da data em que o Contrato e a Fatura Pró-Forma foram enviados pela EP para a LPG, então o prazo teria expirado a 27 de março de 2023. No entanto, nessa data, não houve qualquer menção em qualquer troca de mensagens WhatsApp sobre esse prazo ou sobre a sua validade. Além disso, numa troca de mensagens a 28 de março de 2023 (já depois do prazo de um dia), o Sr. “C” pediu à Sr.a “D” que o informasse sobre o pré-pagamento dos 300 contentores. No entanto, o que o Sr. “C” não disse, nomeadamente, foi que o prazo para efetuar esse pré-pagamento já tinha expirado ou que estava prestes a expirar. Em resposta à indicação da Sr.a “D”, a 28 de março de 2023, de que a LPG tentaria remeter os 5 % para a EP nessa semana, o Sr. “C” respondeu "Não se preocupe, querida" Não mencionou qualquer problema com o facto de a Sr.a “D” tentar efetuar o pagamento antecipado nessa semana (ou seja, por volta do final de março ou início de abril de 2023). Ele não levantou qualquer objeção ao que ela propôs.
70. Além disso, no seu e-mail de 31 de março de 2023, a Sr.a “D” indicou que a LPG iria "... tentar enviar o adiantamento de 5 % na próxima semana". Mais uma vez, o Sr. “C” não levantou qualquer objeção quanto ao facto de a LPG se ter atrasado no pagamento ou não ter cumprido qualquer prazo para pagar o adiantamento de 5 %. Na verdade, não fez qualquer objeção.
71. Na nossa opinião, se tivesse sido acordado um prazo de um dia para efetuar o pagamento do adiantamento de 5 %, é inconcebível que o Sr. “C” não tivesse exercido bastante pressão para o pagamento nas suas respostas de 28 e 31 de março de 2023. Efetivamente, esperávamos que tivesse avisado claramente a LPG de que o tempo era fundamental e que era essencial que o pagamento fosse feito sem demora No entanto,
71. Sr. “C” não reagiu dessa forma, o que considerámos inteiramente coerente com o facto de não existir um prazo imediato ou iminente para a LPG efetuar o pagamento antecipado de 5 %. Só depois de a LPG ter efetuado o pagamento antecipado, a 6 de abril de 2023, é que a EP enviou um e-mail à LPG declarando: "Foi acordado um pagamento antecipado no âmbito da negociação, mas o pagamento efetivo foi recebido a 06/04, com um atraso de doze dias".
72. Concordámos igualmente com a LPG quanto ao facto de o alegado modus operandi da EP e a sua explicação quanto à razão para impor um prazo de um dia para que a LPG efetuasse o pagamento do adiantamento de 5 % relativo ao Contrato FCL 300 podia ser conciliado com a posição da EP relativamente ao contrato 15 FCL, em que acordou o pagamento 100 % em numerário contra documentos digitalizados.
73. Por todas estas razões, concluímos que não existia um prazo contratual de um dia a contar da celebração do contrato 300 FCL para a LPG efetuar o pagamento antecipado.
Qual foi o efeito da Fatura Pró-Forma?
74. Passámos então à Fatura Pró-Forma. No que se refere ao estatuto e ao conteúdo desse documento, não conseguimos chegar a acordo com a EP quanto ao seu significado. Considerámos que o documento essencial, e o que prevaleceu, era o próprio Contrato.
75. Verificámos que a Fatura Pró-Forma resumia as condições do Contrato no que diz respeito ao Produto de base a expedir, Quantidade, Embalagem, Porto de Carregamento, Porto de Destino, Período de Expedição e Incoterm. A Fatura Pró-Forma repetia então exatamente a primeira linha da cláusula de pagamento, a saber "5 % antecipadamente, 5% contra carregamento, 90 % Documento DA"
76. Verificámos que a parte principal da Fatura Pró-Forma que continha disposições relevantes para além das condições do Contrato era a parte que continha as instruções de pagamento (referindo-se a uma conta do Citibank de Nova Iorque), o pedido para que o número da fatura fosse mencionado no campo "Referência do Beneficiário" e o cálculo dos dois primeiros pagamentos de 5 % (243 000,00 USD cada) e o montante total devido (4 860 000 USD). Verificámos que o objetivo da Fatura Pró-Forma era fornecer um número de referência e os dados da conta a utilizar pela LPG ao realizar um pagamento via Swift (como a LPG fez a 6 de abril de 2023). Constatámos igualmente que a Fatura Pró-Forma não se referia apenas ao primeiro adiantamento de 5 %.
77. Analisámos cuidadosamente as provas que nos foram apresentadas e as alegações das partes quanto ao significado e ao efeito das palavras "Validade: 1 dias", que constavam por baixo do resumo das condições de pagamento e por cima do cálculo dos dois pagamentos de 5 %. Neste contexto, não pudemos aceitar o argumento da EP de que se tratava de uma disposição que exigia que a LPG efetuasse o pagamento do adiantamento de 5 % no prazo de um dia.
78. Analisámos com muita atenção a redação "Validade*" da Fatura Pró-Forma, mas não ficámos convencidos de que tivesse o efeito que a EP nos pediu que constatássemos que tinha. Já verificámos que, se as partes quisessem prever um prazo de pagamento para o primeiro adiantamento de 5 % deste tipo, poderiam facilmente tê-lo feito. Essa cláusula poderia, por exemplo, estabelecer que a LPG era obrigada a efetuar o pagamento antecipado de 5 % no prazo de (ou no máximo até um determinado número de dias a contar de um ponto de partida claramente definido, quer se tratasse da data do acordo sobre as condições ou de qualquer outro momento.
79. No entanto, na nossa opinião, do ponto de vista semântico, é difícil perceber que uma disposição que indica "Validade: 1 dias" na Fatura Pró-Forma se destinasse a constituir um prazo de pagamento contratual. Esta opinião foi reforçada pelo facto de a redação "Validade: 1 dias" surgir imediatamente a seguir à cláusula "Condições de pagamento" (que mencionava três tranches separadas: 5 %, 5 % e 90 %) e imediatamente antes da secção de cálculo, utilizando o preço unitário CFR de 600,00 USD e definindo valores para o "Montante Antecipado", "Montante Contra Carregamento" e "Montante Total Devido", concluiu que não havia nada que sugerisse que a cláusula "Validade: 1 dias" se aplicava a apenas uma das três tranches de pagamento resumidas na frase acima (ou seja, ao adiantamento de 5 %), ou mesmo qualquer boa razão para concluir que se aplicava a qualquer pagamento. Por conseguinte, considerámos que não constituía um prazo de pagamento. (Também considerámos que os argumentos relacionados com o alegado erro tipográfico na disposição "Validade" não tinham qualquer relevância).
80. Na nossa opinião, do ponto de vista do bom senso comercial, era muito mais provável que a disposição "Validades" se referisse ao período de validade da proposta apresentada pela EP à LPG a 24 de março de 2023. Para chegar a esta conclusão, baseámo-nos no facto de a validade de outras ofertas feitas aproximadamente na mesma altura pela EP à LPG (incluindo a oferta do Sr. “C” ao Sr. CC a 23 de março de 2023) ser de 1 dia. Verificámos também que uma disposição de validade deste tipo não era invulgar num mercado de produtos de base flutuante como o do açúcar. Isto também era consistente com o comportamento das partes na altura. A Sr.a “D” respondeu muito rapidamente e, seguramente, no prazo de um dia, à oferta do Sr. “C” feita a 24 de março de 2023.
81. Para chegar a esta conclusão, tomámos igualmente em consideração o facto de a Fatura Pró-Forma da EP enviada à LPG relativamente ao carregamento de 15 FCL de abril de 2023 conter uma disposição idêntica "Validade: 1 dias", apesar de não ter sido efetuado qualquer adiantamento de 5 % (ou outra percentagem) relativamente a esse carregamento, uma vez que as condições de pagamento foram acordadas em 100 % CAD. Neste contexto, a menção "Validade: 1 dias" não significava claramente a data-limite para o pagamento de um adiantamento pela LPG, uma vez que este não fora efetuado.
Houve uma violação do Contrato e, em caso afirmativo, quando?
82. Tendo em conta a nossa conclusão de que existia um contrato vinculativo a 24 de março de 2023 e que não existia um prazo para a LPG devolver o contrato assinado, concluímos que não houve qualquer incumprimento do contrato por parte da LPG ao devolver o contrato assinado, tal como fez, a 31 de março de 2023.
83. Analisámos cuidadosamente as discussões entre as partes a 3 e 4 de abril de 2023. Neste contexto, considerámos que, apesar de o Sr. “C” ter indicado nas suas mensagens de 3 e 4 de abril de 2023 que era provável que houvesse um problema com a execução do Contrato, só a 6 de abril de 2023, após a receção do pagamento do adiantamento de 5 % da LPG, é que a EP notificou claramente por escrito que o Contrato seria doravante considerado nulo, que a EP só estava disposta a executar o Contrato "sob novo preço e condições" e que a EP devolveria o adiantamento de 5 %.
84. Considerámos que, no contexto de um Contrato CFR para contentores celebrado a 24 de março de 2023, que previa o envio em maio/junho de 2023, e na ausência de qualquer prazo contratual expresso para o pagamento do adiantamento de 5 %, era perfeitamente razoável que a LPG efetuasse esse adiantamento de 5 % quando o fez, a 6 de abril de 2023, altura em que considerámos que o Contrato ainda existia.
85. (Tendo em conta a nossa conclusão de que não era exigido à LPG que devolvesse o contrato assinado e/ou que efetuasse o pagamento do adiantamento de 5 % no prazo de um dia, como alegado pela EP, e que, por conseguinte, não existia qualquer infração por parte da LPG, não era necessário considerar se tinha havido qualquer renúncia por parte da EP.) BC.
86. Considerámos igualmente que, uma vez que não se tratava de uma situação em que o comprador não tivesse efetuado qualquer pagamento, as opções previstas na cláusula 10 do Contrato não eram aplicáveis e a EP não podia invocar a cláusula 10.
87. Assim, concluímos que as ações da EP ao considerar o contrato nulo a 6 de abril de 2023, reembolsando subsequentemente o adiantamento, que tinha sido corretamente efetuado nos termos do Contrato, e recusando-se a entregar o açúcar nos termos contratuais acordados, foram ilícitas e violaram o Contrato. Não podemos concordar com a alegação da EP de que tinha o direito de rescindir o contrato, mesmo que a sua razão para o fazer fosse a evolução do mercado.
Como devem ser avaliados os danos causados [à] LPG?
88. Analisámos cuidadosamente as alegações apresentadas por ambas as partes a este respeito. Neste contexto, concordámos com a LPG que a abordagem correta, partindo do princípio de que existia um mercado (o que verificámos que existia), era avaliar os danos com referência ao preço a que o açúcar podia ser comprado no mercado, sem referência a outros fatores externos. Também concordámos com a LPG que era irrelevante o facto de a LPG poder ter concordado em vender o açúcar a um terceiro por um preço superior ou inferior ao preço de mercado.
89. Especificamente, considerámos que a abordagem correta era a estabelecida por Wilby & Tettenborn, que consistia em tratar o comprador como se tivesse mitigado a sua perda comprando no mercado no momento do incumprimento. Isto também era consistente com o raciocínio em Bunge vs. Nidera.
90. Por conseguinte, considerámos que, nestas circunstâncias, a abordagem a adotar deveria consistir em analisar a situação da LPG no momento do incumprimento da EP. Depois de analisar cuidadosamente as várias opções, verificámos que a data de incumprimento era 6 de abril de 2023, data em que a EP tinha deixado claro que ".... este contrato é doravante considerado nulo..."
91. Tivemos em conta a concessão da LPG nas suas alegações de que, se a data da violação fosse 6 de abril de 2023, "o montante dos danos seria diferente porque o preço dos futuros a 6 de abril de 2023 era de 23,61, equivalente a 664,50 USD por tonelada"
CONSIDERAMOS E DECIDIMOS O SEGUINTE:
92. A EP pagará à LPG a quantia principal de 498 231 USD, calculada com base no preço de liquidação a 6 de abril de 2023 para o Açúcar NY#11 de maio de 2023 (a data em que verificámos que o Contrato foi rescindido) e deduzindo desse valor o preço de liquidação a 24 de março de 2023 (a data em que o Contrato foi celebrado):
23,61 - 20,82 = 2,79 x 22,04622 = 61,5089538 USD = 61,51 USD por tonelada, mantendo o mesmo prémio físico para ambas as datas. Com base na quantidade contratual de 8100 t, isto geriu um cálculo de danos de 61,51 x 8100 t = 498 231 USD.
TAMBÉM CONSIDERAMOS QUE:
93. A EP pagará à LPG juros simples a partir de 1 de junho de 2023 até à data da presente Decisão, à taxa de 7,5 % (sete e meio por cento) por ano, sendo esta taxa baseada, aproximadamente, na Secured Overnight Financing Rate ("SOFR") durante o período relevante, acrescida de 2 %. Considerámos também que os juros devem ser concedidos à taxa de juro da sentença, a contar do dia imediatamente a seguir à data da Decisão até à data do pagamento.
94. Considerámos também que, dado que a LPG tinha conseguido recuperar os danos, embora num montante
inferior ao que tinha pedido, este era um caso adequado em que os custos deveriam acompanhar o evento.
POR CONSEGUINTE, DECIDIMOS E ORDENAMOS QUE:
95. A EP pague à LPG
(i) o montante principal de 498 231 USD; e
(ii) juros simples sobre o referido montante principal a uma taxa de 7,5 % (sete e meio por cento) por ano a partir de 1 de junho de 2023 até à data da presente Decisão; e
(iii) juros simples à taxa de 8 % (oito por cento) por ano a partir do dia imediatamente seguinte à data da presente Decisão até ao pagamento.
DECIDIMOS E ORDENAMOS AINDA QUE:
96. A EP pague imediatamente à LPG as custas judiciais da LPG relativas à presente Decisão Final, que serão avaliadas numa base padrão pelo Supremo Tribunal inglês se não houver acordo.
97. A EP pague as custas da Associação relativas à presente Decisão Final, na condição de que, se a LPG tiver pagado a totalidade ou parte dessas custos em primeira instância, tenha direito ao seu reembolso imediato pela EP.
98. Fixamos as custas da presente Decisão Final em 24 300,00 £, excluindo o Imposto sobre o Valor Acrescentado.»
III. Apreciação do mérito do recurso
1. Do reconhecimento de sentença arbitral estrangeira
Antes de nos determos sobre as três questões suscitadas pela requerida no sentido de obstar à confirmação pedida pela requerente, importa enquadrar em termos gerais a pretensão da requerente.
À semelhança do que se passa com as sentenças estrangeiras em geral, também as sentenças proferidas em arbitragens localizadas no estrangeiro carecem de reconhecimento pelo tribunal estadual português competente para terem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes. A LAV inclui um capítulo dedicado ao reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras, que compreende os seus artigos 55.º a 58.º, próximo do processo de revisão de sentenças estrangeiras do CPC (artigos 978.º a 985.º).
O artigo 55.º da LAV abre o capítulo com a seguinte declaração: Sem prejuízo do que é imperativamente preceituado pela Convenção de Nova Iorque de 1958, sobre o reconhecimento e a execução de sentenças arbitrais estrangeiras, bem como por outros tratados ou convenções que vinculem o Estado português, as sentenças proferidas em arbitragens localizadas no estrangeiro só têm eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, se forem reconhecidas pelo tribunal estadual português competente, nos termos do disposto no presente capítulo desta lei.
A Convenção sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras, celebrada em Nova Iorque aos 10 de junho 1958 (de ora em diante, Convenção), foi aprovada, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República 37/94, de 8 de julho, tendo iniciado a sua vigência em Portugal a 16 de janeiro de 1995. Vigorará na ordem interna enquanto vincular internacionalmente o Estado Português, com primazia sobre o direito interno, como é expressamente reconhecido na LAV (v. artigo 8.º da Constituição da República Portuguesa). O disposto nos preceitos constantes do capítulo da LAV destinado ao reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras tem, portanto, um âmbito de aplicação residual, aplicando-se essencialmente às sentenças arbitrais oriundas de Estados que não ratificaram a Convenção de Nova Iorque e com os quais Portugal não tenha celebrado outras convenções internacionais nesta matéria (assim também o Ac. do STJ de 22/06/2023, proc. 991/20.5YRLSB.S1, Cons. Fernando Baptista).
Encontramos informação pormenorizada sobre a Convenção em https://www.ministeriopublico.pt/instrumento/convencao-sobre-o-reconhecimento-e-execucao-de-sentencas-arbitrais-estrangeiras-2, incluindo informações gerais, lista bibliográfica, links para os textos da Convenção em português, inglês e francês, para lista dos Estados signatários e aderentes, suas declarações, reservas e objeções, para o Guia UNCITRAL de 2016 e, ainda, para o site http://newyorkconvention1958.org/. Da bibliografia, destaca-se, em português, Maria Cristina Pimenta Coelho, «A Convenção de Nova Iorque de 10 de Junho de 1958 relativa ao reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras», Revista Jurídica, Nova série, n.20 (nov. 1996), pp. 37-71.
Portugal aderiu à Convenção sem emitir reservas ou outras declarações.
Releva em particular para o caso em apreço o disposto no artigo V da Convenção nos termos do qual o reconhecimento e a execução da sentença só serão recusados, a pedido da parte contra a qual for invocada, se esta parte fornecer à autoridade competente do país em que o reconhecimento e a execução forem pedidos a prova:
a) Da incapacidade das partes outorgantes da convenção referida no artigo II, nos termos da lei que lhes é aplicável, ou da invalidade da referida convenção ao abrigo da lei a que as partes a sujeitaram ou, no caso de omissão quanto à lei aplicável, ao abrigo da lei do país em que for proferida a sentença; ou
b) De que a parte contra a qual a sentença é invocada não foi devidamente informada quer da designação do árbitro quer do processo de arbitragem, ou de que lhe foi impossível, por outro motivo, deduzir a sua contestação; ou
c) De que a sentença diz respeito a um litígio que não foi objeto nem da convenção escrita nem da cláusula compromissória, ou que contém decisões que extravasam os termos da convenção escrita ou da cláusula compromissória; no entanto, se o conteúdo da sentença referente a questões submetidas à arbitragem puder ser destacado do referente a questões não submetidas à arbitragem, o primeiro poderá ser reconhecido e executado; ou
d) De que a constituição do tribunal arbitral ou o processo de arbitragem não estava em conformidade com a convenção das partes ou, na falta de tal convenção, de que não estava em conformidade com a lei do país onde teve lugar a arbitragem; ou
e) De que a sentença ainda não se tornou obrigatória para as partes, foi anulada ou suspensa por uma autoridade competente do país em que, ou segundo a lei do qual, a sentença foi proferida.
O n.º 2 do mesmo artigo acrescenta que podem igualmente ser recusados o reconhecimento e a execução de uma sentença arbitral se a autoridade competente do país em que o reconhecimento e a execução foram pedidos constatar:
a) Que, de acordo com a lei desse país, o objeto de litígio não é suscetível de ser resolvido por via arbitral; ou
b) Que o reconhecimento ou a execução da sentença são contrários à ordem pública desse país.
Com uma exceção a assinalar, o n.º 1 do artigo 56.º da LAV repete, sem diferenças de fundo, os conteúdos do artigo V da Convenção. A diferença encontra-se na comparação entre a última alínea transcrita (alínea b) do n.º 2 do artigo V da Convenção) com a subalínea ii) da alínea b) do n.º 1 do artigo 56.º da LAV: enquanto a Convenção permite a recusa de reconhecimento por contrariedade à ordem pública do país onde ele é pedido, a LAV apenas permite a recusa quando o reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado português, conceito mais restrito do que o de ordem pública interna. Voltaremos ao tema no ponto 3.
A parte que pretenda o reconhecimento de sentença arbitral estrangeira, nomeadamente para que esta venha a ser executada em Portugal, deve fornecer o original da sentença devidamente autenticado ou uma cópia devidamente certificada da mesma, bem como o original da convenção de arbitragem ou uma cópia devidamente autenticada da mesma; se a sentença ou a convenção não estiverem redigidas em português, a parte requerente fornece uma tradução devidamente certificada nesta língua (n.º 1 do artigo 57.º da LAV).
A requerente assim procedeu. A requerida opôs-se invocando vários fundamentos que, em seu entender, devem conduzir à improcedência da pretensão da requerente e que veremos em seguida.
2. Da inobservância dos princípios do contraditório e da igualdade das partes
Na sua oposição, a requerida alega que o processo arbitral decorreu sem respeito pelo contraditório e pela igualdade das partes e, invocando o disposto na alínea e) do artigo 980.º do CPC, conclui que a sentença não deve ser confirmada.
Nos termos da alínea e) do artigo 980.º do CPC, para que a sentença seja confirmada é necessário, ipsis verbis, que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes. Na letra da norma, a observância dos princípios do contraditório e da igualdade das partes é um requisito positivo da procedência da ação de revisão de sentença estrangeira.
Como vimos, o reconhecimento de sentença arbitral estrangeira rege-se pelas disposições da Convenção de Nova Iorque de 1958 e dos artigos 55.º a 58.º da LAV que não contrariem normas imperativas da Convenção. Em nenhum destes instrumentos existe uma norma idêntica à da alínea e) do artigo 980.º do CPC.
Há, no entanto, naqueles instrumentos uma norma com parcial correspondência com a do CPC em causa e que se encontra na subalínea ii) da alínea a) do n.º 1 do artigo 56.º da LAV e na alínea b) do n.º 1 do artigo V da Convenção; além disso, não pomos de parte a possibilidade de certas inobservâncias dos princípios do contraditório e da igualdade das partes se subsumirem num caso concreto a uma violação da ordem pública internacional do Estado português (assim foi reconhecido, por exemplo, no Ac. do STJ de 22/06/2023, proc. 991/20.5YRLSB.S1, ponto VIII do sumário). Sobre este último tema falaremos adiante, no ponto 3.
Vejamos, por ora, as disposições da LAV e da Convenção citadas na primeira parte do antecedente parágrafo. Da norma da LAV consta que o reconhecimento apenas será recusado se a parte requerida alegar e provar que não foi devidamente informada da designação de um árbitro ou do processo arbitral, ou que, por outro motivo, não lhe foi dada oportunidade de fazer valer os seus direitos. Na Convenção, lê-se que o reconhecimento só será recusado, se a parte requerida fornecer prova de que não foi devidamente informada quer da designação do árbitro quer do processo de arbitragem, ou de que lhe foi impossível, por outro motivo, deduzir a sua contestação. A norma da Convenção parece ser mais restritiva da possibilidade de recusa, mais permissiva no reconhecimento, pelo que a norma da LAV deve ser interpretada de modo conforme à da Convenção.
Repare-se que na norma na al. e) do artigo 980.º do CPC (não diretamente aplicável ao caso) se exige como requisito positivo da confirmação da sentença estrangeira que os princípios do contraditório e da igualdade tenham sido observados; nas visadas normas da Convenção e da LAV, determinadas situações reconduzíveis aos conceitos de inobservância do contraditório e da igualdade obstarão ao reconhecimento da sentença arbitral estrangeira, se provadas pela parte requerida.
Ora, a requerida não só não fez prova de factos subsumíveis às facti species da alínea b) do n.º 1 do artigo V da Convenção (ou da subalínea ii) da alínea a) do n.º 1 do artigo 56.º da LAV), como, da simples leitura do acórdão do tribunal arbitral, resulta evidente que a requerida participou ativamente em todo o processo arbitral, no qual deduziu contestação e apresentou prova, tendo os seus argumentos sido exaustivamente explicitados e analisados no mesmo acórdão. A requerida também não diz o contrário.
3. Da ordem pública internacional do Estado Português
O argumento subsequente da requerida com vista à improcedência da presente ação é o de que a decisão cujo reconhecimento se pede conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português. Invoca para tanto o disposto na alínea f) do artigo 980.º do CPC, segundo a qual, para que a sentença seja confirmada é necessário que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.
Neste caso existe uma norma semelhante na LAV, que consta da subalínea ii) da alínea b) do n.º 1 artigo 56.º, onde se lê que o reconhecimento de uma sentença arbitral proferida numa arbitragem localizada no estrangeiro pode ser recusado se o tribunal verificar que conduz a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado português. Ainda assim, as normas do CPC e da LAV revelam uma diferença entre elas: enquanto no CPC é requisito da confirmação que a sentença não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado português; na LAV, o reconhecimento pode ser recusado se conduzir a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública internacional do Estado português.
A norma paralela da Convenção de Nova Iorque de 1958 permite a recusa se se constatar que o reconhecimento é contrário à ordem pública do país do reconhecimento. Não é unânime a interpretação do conceito de ordem pública no texto do artigo V da convenção: ordem pública interna ou ordem pública internacional?
A «ordem pública» é um conceito indeterminado, cuja determinação se faz no confronto com casos concretos e à qual não são alheios o tempo, a sociedade, o ordenamento em que é feita. Como se lê no Dictionnaire juridique de Serge Braudo, «há poucos conceitos jurídicos tão difíceis de definir como o de “ordem pública”. Trata-se do conjunto das regras imperativas que se relacionam com a organização da Nação, a economia, a moralidade, a saúde, a segurança, a paz pública, os direitos e liberdades fundamentais de cada indivíduo» (https://www.dictionnaire-juridique.com/definition/ordre-public.php).
A expressão consta (talvez em primeira consagração legislativa) do artigo 6.º do Code civil onde se lê que «On ne peut déroger, par des conventions particulières, aux lois qui intéressent l'ordre public et les bonnes moeurs», ou seja, as leis que interessam à ordem pública e aos bons costumes não podem ser afastadas por acordos particulares.
No Código Civil português, as referências à ordem pública são variadas:
- A oposição aos princípios da ordem pública determina a nulidade de qualquer limitação voluntária ao exercício dos direitos de personalidade (artigo 81.º);
- As associações e as fundações extinguem-se quando a sua existência se torne contrária à ordem pública (artigos 182.º, n.º 2, alínea d) e 192.º, n.º 3, alínea b)), ou seja, a contrariedade superveniente à ordem pública é causa de extinção de associações e fundações;
- Os negócios jurídicos contrários à ordem pública ou sujeitos a condições contrárias à ordem pública são nulos (artigos 280.º e 271.º), assim como o são os negócios cujo fim visado por ambas as partes seja contrário à ordem pública (artigo 281.º);
- As convenções que excluam algum meio legal de prova ou admitam um meio de prova diverso dos legais são nulas se as determinações legais quanto à prova tiverem por fundamento razões de ordem pública (n.º 2 do artigo 345.º);
- A contrariedade da vontade do dono do negócio à ordem pública autoriza o gestor de negócios a não a respeitar (465.º, alínea a));
- A responsabilidade dos representantes legais e dos auxiliares por atos que representem a violação de deveres impostos por normas de ordem pública não pode ser convencionalmente excluída ou limitada (artigo 800.º, n.º 2);
- A utilização do prédio arrendado contrária à lei, aos bons costumes ou à ordem pública pode fundamentar a resolução do contrato de arrendamento (artigo 1083.º, n.º 2, al. b));
- A conformidade à ordem pública constitui também condição de validade ou de eficácia de doações e de disposições testamentárias (artigos 967.º, 2186.º, 2230.º e 2245.º).
Nas palavras de João Baptista Machado, a ordem pública corresponde ao conjunto das «normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos que formam os quadros fundamentais do sistema, sobre eles se alicerçando a ordem económico-social, pelo que são, como tais, inderrogáveis pela vontade dos indivíduos» (Lições de Direito Internacional Privado, 3.ª ed. atualizada, Almedina, 1982, p. 254).
Podemos dizer que todas as normas de ordem pública são imperativas, mas nem todas as normas imperativas são de ordem pública. Por outro lado, os princípios de ordem pública não têm de estar necessariamente positivados em forma de lei para serem atendidos e aplicados nos casos concretos.
No âmbito do Direito Internacional Privado surgiu um conceito especial de ordem pública, a chamada ordem pública internacional, como limite à aplicação da lei estrangeira designada competente pelas regras de conflitos, e ao reconhecimento de decisões estrangeiras (a primeira situação tem assento no artigo 22.º do CC, e a segunda no artigo 980.º, alínea f), do CPC, no que respeita a sentenças e decisões análogas, em geral, e no artigo 56.º, n.º 1, alínea b) ii) da LAV, no tocante a sentenças de tribunais arbitrais estrangeiros). Sobre o tema, João Baptista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, 3.ª ed. Almedina, 1982, p. 257, passim, António Pedro Pinto Monteiro, «Da ordem pública no processo arbitral», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, II, Coimbra Editora, 2013, pp. 589-673 (606, passim).
A incompatibilidade com princípios de ordem pública internacional do Estado português impede, ainda, a prática de outros atos conexos com ordenamentos estrangeiros, como, por exemplo, o registo em Portugal de casamentos celebrados no estrangeiro e entre estrangeiros que ofendam os ditos (artigo 1651.º, n.º 2, do CC), ou o cumprimento de cartas rogatórias (artigo 180.º, alínea b), do CPC).
Entende-se geralmente que a ordem pública internacional é mais restrita, tem menos normas e/ou princípios, do que a ordem pública interna; se as representarmos com círculos, o da ordem pública internacional é menor e totalmente incluído no da ordem pública interna. A explicação que se avança é que, estando em causa a aplicação de lei estrangeira ou o reconhecimento de decisões estrangeiras tem de existir uma maior tolerância para com as regras do sistema jurídico estrangeiro (João Baptista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, 3ª ed., Almedina, 1982, p. 254, António Pedro Pinto Monteiro, «Da ordem pública no processo arbitral», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, II, Coimbra Editora, 2013, pp. 589-673 (603-604)).
A ordem pública internacional, tão indeterminada no seu conceito como a interna, é mais excecional e limitada, atuando como travão do direito, de decisões, de ordens e de atos estrangeiros apenas quando a sua aplicação ou validação conduziria a uma situação intolerável à luz de princípios jurídicos fundamentais do Estado que os iria aplicar ou validar (João Baptista Machado, cit., pp. 262-266, António Pedro Pinto Monteiro, cit., pp. 616-617).
Na jurisprudência, a título exemplificativo: «O conceito de ordem pública internacional é vago, fluído e impreciso mas, numa aproximação com escopo meramente operativo, podemos (…) designá-la como uma amálgama de valores basilares e conceções dominantes de índole social, ética, política e económica expressos em princípios e regras que o aplicador deve, em cada momento histórico, interpretar e reconhecer a fim de apreciar se os mesmos se podem ter como afrontados pelo resultado a que se chegou na sentença arbitral revidenda»; «[a] contrariedade à ordem pública internacional do Estado Português avalia-se em função do efeito jurídico a que a decisão arbitral conduz, irrelevando os fundamentos em que ela se ateve» - parágrafos II e III do sumário do Ac. do STJ de 23/10/2014, proc. 1036/12.4YRLSB.S1 (Cons. Granja da Fonseca).
De acrescentar que, a «atuação positiva [da ordem pública internacional] sobre o resultado obtido pela decisão arbitral estrangeira – recusando o seu reconhecimento – não comporta qualquer juízo sobre a adequação da aplicação nela feita do direito tido por aplicável, nem, muito menos, de desvalor sobre o ordenamento jurídico estrangeiro: a ação preclusiva da ordem pública internacional incide unicamente sobre os efeitos jurídicos que, para o caso, defluem da lei estrangeira e não sobre a lei em si» – Ac. do STJ de 14/03/2017, proc. 103/13.1YRLSB.S1 (Cons. Alexandre Reis).
Regressando à norma do artigo V, n.º 2, alínea b) da Convenção, como interpretar a “ordem pública” do Estado do reconhecimento aí referida?
No caso português a questão tem parca relevância, pois, se entendermos que na norma da Convenção está em causa a ordem pública interna do Estado do reconhecimento e na LAV a ordem pública internacional do mesmo Estado (quanto à LAV, não há dúvidas), a Convenção permitirá a recusa em mais casos do que aqueles que podem ser recusados segundo a LAV, pois o universo das normas da ordem pública interna de um Estado contém o universo das normas de ordem pública internacional desse mesmo Estado, e outras ainda, sendo mais extenso do que este último. Se a norma da Convenção se reportar à ordem pública não apenas internacional, a LAV (que apenas afasta o reconhecimento por razões de ordem pública internacional) é mais permissiva do reconhecimento do que a norma da Convenção e, como tal, prevalece.
No sentido de que a ordem pública referida na citada norma da Convenção é também e apenas a ordem pública internacional, o Ac. do STJ de 09/10/2003, proc. 03B1604 (Cons. Pires da Rosa), em cujo ponto II do sumário se lê: «Do que se fala quando aqui [artigo V da Convenção] se fala em “ordem pública” é da chamada “ordem pública internacional”, ou seja, dos princípios fundamentais estruturantes da presença de Portugal no concerto das nações». Na mesma direção, o Ac. STJ de 14/03/2017, proc. 103/13.1YRLSB.S1 (Cons. Alexandre Reis), ponto II do sumário.
Este entendimento, porém, não é unânime, como se pode exemplificar com o Ac. do STJ de 22/06/2023, proc. 991/20.5YRLSB.S1 (Cons. Fernando Baptista), de cujo sumário extratamos: «IX- No que respeita ao fundamento de recusa de reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras consubstanciado na contrariedade com a ordem pública internacional, a nossa lei interna (art. 56.º, n.º 1, b), ii), da LAV) prevê um regime mais favorável a esse reconhecimento do que aquele que é previsto na CNI (alínea b) do n.º 2 do artigo V); donde, no que respeita a este específico fundamento de recusa de reconhecimento e execução de sentenças arbitrais estrangeiras, de acordo com o art. 7.º, n.º 1, desta Convenção, ser aplicável a nossa lei interna».
Para a interpretação da «ordem pública» incluída no artigo V, n.º 2, alínea b) da Convenção é da maior utilidade o Guide on the Convention on the Recognition and Enforcement of Foreign Arbitral Awards, da INCITRAL, United Nations, New York, 2016, disponível em https://newyorkconvention1958.org/pdf/guide/2016_Guide_on_the_NY_Convention.pdf. Aí lemos, entre muito mais, que «embora diferentes jurisdições definam a ordem pública de forma diferente, a jurisprudência tende a referir-se à ordem pública para recusar o reconhecimento e a execução de uma sentença nos termos do artigo V (2)(b) da Convenção de Nova Iorque quando os valores fundamentais de um sistema jurídico são afetados. Invocar a exceção de ordem pública é uma válvula de segurança a ser usada naquelas circunstâncias excecionais em que seria impossível para um sistema jurídico reconhecer uma sentença e aplicá-la sem abandonar os próprios fundamentos em que se baseia. Nas palavras de acórdão frequentemente citado do Tribunal de Apelações dos Estados Unidos em Parsons, “[a] execução de sentenças arbitrais estrangeiras pode ser negada [com base na ordem pública] apenas quando a execução violar as mais básicas noções de moralidade e justiça do estado o foro» (p. 240). Três parágrafos adiante, «Os tribunais franceses têm idêntica abordagem. Por exemplo, o Tribunal de Apelação de Paris define ordem pública internacional como “o corpo de normas e valores cuja violação o ordenamento jurídico francês não pode tolerar, mesmo em situações de caráter internacional”» (p. 241). Lendo mais à frente: «É amplamente aceite que a ordem pública, na aceção do artigo V (2) (b) da Convenção de Nova Iorque refere-se à ordem pública do Estado do foro. Na verdade, o artigo V (2)(b) refere-se explicitamente à “ordem pública desse país”, reportando-se ao país onde o reconhecimento e a execução são solicitados. No entanto, em relação à avaliação do carácter internacional ou doméstico da ordem pública, a maioria das jurisdições reconhece que uma mera violação de lei nacional dificilmente constituirá um motivo para recusar o reconhecimento ou a execução com base de ordem pública» (p. 243). Tendemos a concluir que, na Convenção, a ordem pública referida é também e apenas a ordem pública internacional. De todo o modo, como já expressámos, independentemente da interpretação que se faça da Convenção, os tribunais portugueses apenas poderão não reconhecer sentenças estrangeiras com base em violação de ordem pública internacional (não com base na violação de normas ordem pública meramente interna).
Mesmo a invalidação de decisões arbitrais nacionais tem por base a violação de normas de ordem pública internacional, não se bastando com a violação de outras normas de ordem pública. Assim o impõe o artigo 46.º, n.º 3, alínea b) ii) da LAV, apesar da discussão que gerou e continua a gerar a alusão aos princípios da ordem pública internacional do Estado português nessa sede puramente interna – sobre o tema, a título exemplificativo, António Pedro Pinto Monteiro, cit., António Menezes Cordeiro, «A Ordem Pública nas Arbitragens: as Últimas Tendências», in VII Congresso do Centro de Arbitragem Comercial, Almedina, 2014, pp. 73 e ss., Manuel Pereira Barrocas, «A Ordem Pública na Arbitragem», Revista da Ordem dos Advogados, ano 74, I, jan./mar. 2014, pp. 35 e ss., António Sampaio Caramelo, «A Sentença Arbitral Contrária à Ordem Pública perante a Nova LAV», in Estudos em Homenagem a Miguel Galvão Teles, Almedina, II, pp. 51 e ss. e Rui Manuel Moura Ramos, «Reconhecimento de sentença arbitral estrangeira e ordem pública internacional: Acórdão de 14 de Março de 2017, Supremo Tribunal de Justiça (1ª Secção) Anotação», Revista de Legislação e de Jurisprudência, a. 146, n.º 4003, março-abril de 2017, pp. 267-306 (284 e ss.).
No nosso caso, a questão acabada de mencionar não se coloca; nos presentes autos está em causa o reconhecimento de uma sentença estrangeira (de tribunal arbitral estrangeiro), pelo que não há dúvidas de que só estrito conceito de ordem pública internacional do Estado português pode travar o reconhecimento, quando este ou a execução da sentença conduza a um resultado manifestamente incompatível com a dita ordem pública internacional do Estado português.
Aqui chegados, relembremos o caso.
Requerente e requerida entraram em negociações com vista à aquisição pela primeira à segunda de 8100 toneladas de açúcar, tendo acordado no preço de 600 USD por tonelada.
A negociação ficou fechada em 24 de março de 2023, tendo sido enviado à requerente um escrito com os termos do contrato (vulgo, o contrato) e a fatura pró-forma.
Em 28 de março de 2023, foi perguntado à requerente se o contrato podia ser devolvido assinado nessa semana.
A requerente devolveu o contrato assinado dias depois, na noite de sexta-feira, 31 de março de 2023.
Constava do contrato cláusula compromissória nos termos da qual todos os litígios decorrentes do contrato seriam submetidos à apreciação da Refined Sugar Association de Londres, para a resolução em conformidade com as regras de arbitragem da associação.
Do contrato que a requerente assinou e devolveu à requerida constava que:
- o açúcar (8100 toneladas ao preço de 600 USD por tonelada) seria expedido em maio-junho de 2023;
- o preço seria pago da seguinte forma: 5% antecipadamente, 5% contra carregamento e 90% com o documento contra aceitação 7 dias;
- no caso de o comprador não efetuar qualquer pagamento, o vendedor teria o direito de livremente, por sua exclusiva iniciativa, entre outros remédios ali indicados, pôr fim ao contrato com efeitos imediatos e vender a carga a outra contraparte à sua escolha;
- constava, ainda, expresso no texto assinado que, em caso de não receção do montante acordado, a vendedora invalidaria o contrato e manteria a posse da carga, utilizando qualquer adiantamento/depósito recebido para cobrir o custo da revenda da carga e quaisquer outras perdas possíveis.
A receção do pagamento do adiantamento de 5% deu-se a 5 ou 6 de abril, tendo nesta data, após a receção do pagamento, a requerida dito à requerente que o contrato era considerado nulo, que só o executaria "sob novo preço e condições" e que iria devolver o adiantamento de 5 %, o que fez.
Entre 24 de março e 6 de abril, o preço do açúcar subiu quase 10%.
O tribunal arbitral considerou que foi celebrado um acordo vinculativo e que o contrato passou a existir quando as partes acordaram os termos a 24 de março de 2023 e foi enviado à requerente o texto do contrato e a fatura pró-forma.
Mais considerou e justificou detidamente – com minuciosa análise de todas as provas disponíveis, incluindo as trocas de mensagens entre as partes (ou representantes das partes), o contrato e a fatura pró-forma –, que não havia um prazo para o pagamento dos 5%.
Repetimos, para que não haja dúvidas, parte da argumentação:
«67. Analisámos atentamente os termos do Contrato e a disposição para o pagamento de 5 % «antecipadamente" com mais «5 % contra carregamento" e o saldo de 90 % "contra aceitação 7 dias". Constatámos que, embora as partes tivessem previsto um prazo para o pagamento do saldo de 90 % contra documentos de expedição, essa disposição não existia em relação ao primeiro adiantamento de 5 %. (…)
68. Também analisámos cuidadosamente as várias trocas de mensagens WhatsApp e de e-mail entre as partes. Neste contexto, verificámos que estes não eram coerentes com a afirmação da EP de que existia um prazo firme (e muito menos um prazo de um dia útil) para efetuar o adiantamento. Se tivesse sido acordado um prazo de um dia para o pagamento do adiantamento de 5 %, seria de esperar que o Sr. “C” fizesse referência a esse prazo aquando do envio do contrato por WhatsApp a 24 de março de 2023 e por e-mail a 25 de março de 2023. Mas não mencionou qualquer prazo para o pagamento do adiantamento de 5 %.
69. Se o prazo para a LPG devolver o Contrato assinado e efetuar o pagamento do adiantamento de 5 % tivesse sido um dia útil a contar da data em que o Contrato e a Fatura Pró-Forma foram enviados pela EP para a LPG, então o prazo teria expirado a 27 de março de 2023. No entanto, nessa data, não houve qualquer menção em qualquer troca de mensagens WhatsApp sobre esse prazo ou sobre a sua validade. Além disso, numa troca de mensagens a 28 de março de 2023 (já depois do prazo de um dia), o Sr. “C” pediu à Sr.a “D” que o informasse sobre o pré-pagamento dos 300 contentores. No entanto, o que o Sr. “C” não disse, nomeadamente, foi que o prazo para efetuar esse pré-pagamento já tinha expirado ou que estava prestes a expirar. Em resposta à indicação da Sr.a “D”, a 28 de março de 2023, de que a LPG tentaria remeter os 5 % para a EP nessa semana, o Sr. “C” respondeu "Não se preocupe, querida" Não mencionou qualquer problema com o facto de a Sr.a “D” tentar efetuar o pagamento antecipado nessa semana (ou seja, por volta do final de março ou início de abril de 2023). Ele não levantou qualquer objeção ao que ela propôs.
70. Além disso, no seu e-mail de 31 de março de 2023, a Sr.a “D” indicou que a LPG iria "... tentar enviar o adiantamento de 5 % na próxima semana". Mais uma vez, o Sr. “C” não levantou qualquer objeção quanto ao facto de a LPG se ter atrasado no pagamento ou não ter cumprido qualquer prazo para pagar o adiantamento de 5 %. Na verdade, não fez qualquer objeção.
71. (…) Só depois de a LPG ter efetuado o pagamento antecipado, a 6 de abril de 2023, é que a EP enviou um e-mail à LPG declarando: "Foi acordado um pagamento antecipado no âmbito da negociação, mas o pagamento efetivo foi recebido a 06/04, com um atraso de doze dias". (…)
75. Verificámos que a Fatura Pró-Forma resumia as condições do Contrato no que diz respeito ao Produto de base a expedir, Quantidade, Embalagem, Porto de Carregamento, Porto de Destino, Período de Expedição e Incoterm. A Fatura Pró-Forma repetia então exatamente a primeira linha da cláusula de pagamento, a saber "5 % antecipadamente, 5% contra carregamento, 90 % Documento DA"
76. Verificámos que a parte principal da Fatura Pró-Forma que continha disposições relevantes para além das condições do Contrato era a parte que continha as instruções de pagamento (referindo-se a uma conta do Citibank de Nova Iorque), o pedido para que o número da fatura fosse mencionado no campo "Referência do Beneficiário" e o cálculo dos dois primeiros pagamentos de 5 % (243 000,00 USD cada) e o montante total devido (4 860 000 USD). Verificámos que o objetivo da Fatura Pró-Forma era fornecer um número de referência e os dados da conta a utilizar pela LPG ao realizar um pagamento via Swift (como a LPG fez a 6 de abril de 2023). Constatámos igualmente que a Fatura Pró-Forma não se referia apenas ao primeiro adiantamento de 5 %.
77. Analisámos cuidadosamente as provas que nos foram apresentadas e as alegações das partes quanto ao significado e ao efeito das palavras "Validade: 1 dias", que constavam por baixo do resumo das condições de pagamento e por cima do cálculo dos dois pagamentos de 5 %. Neste contexto, não pudemos aceitar o argumento da EP de que se tratava de uma disposição que exigia que a LPG efetuasse o pagamento do adiantamento de 5 % no prazo de um dia.
78. Analisámos com muita atenção a redação "Validade” da Fatura Pró-Forma, mas não ficámos convencidos de que tivesse o efeito que a EP nos pediu que constatássemos que tinha. Já verificámos que, se as partes quisessem prever um prazo de pagamento para o primeiro adiantamento de 5 % deste tipo, poderiam facilmente tê-lo feito. Essa cláusula poderia, por exemplo, estabelecer que a LPG era obrigada a efetuar o pagamento antecipado de 5 % no prazo de (ou no máximo até um determinado número de dias a contar de um ponto de partida claramente definido, quer se tratasse da data do acordo sobre as condições ou de qualquer outro momento.
79. No entanto, na nossa opinião, do ponto de vista semântico, é difícil perceber que uma disposição que indica "Validade: 1 dias" na Fatura Pró-Forma se destinasse a constituir um prazo de pagamento contratual. Esta opinião foi reforçada pelo facto de a redação "Validade: 1 dias" surgir imediatamente a seguir à cláusula "Condições de pagamento" (que mencionava três tranches separadas: 5 %, 5 % e 90 %) e imediatamente antes da secção de cálculo, utilizando o preço unitário CFR de 600,00 USD e definindo valores para o "Montante Antecipado", "Montante Contra Carregamento" e "Montante Total Devido", concluiu que não havia nada que sugerisse que a cláusula "Validade: 1 dias" se aplicava a apenas uma das três tranches de pagamento resumidas na frase acima (ou seja, ao adiantamento de 5 %), ou mesmo qualquer boa razão para concluir que se aplicava a qualquer pagamento. Por conseguinte, considerámos que não constituía um prazo de pagamento. (Também considerámos que os argumentos relacionados com o alegado erro tipográfico na disposição "Validade" não tinham qualquer relevância).
80. Na nossa opinião, do ponto de vista do bom senso comercial, era muito mais provável que a disposição "Validades" se referisse ao período de validade da proposta apresentada pela EP à LPG a 24 de março de 2023. Para chegar a esta conclusão, baseámo-nos no facto de a validade de outras ofertas feitas aproximadamente na mesma altura pela EP à LPG (incluindo a oferta do Sr. “C” ao Sr. CC a 23 de março de 2023) ser de 1 dia. Verificámos também que uma disposição de validade deste tipo não era invulgar num mercado de produtos de base flutuante como o do açúcar. Isto também era consistente com o comportamento das partes na altura. A Sr.a “D” respondeu muito rapidamente e, seguramente, no prazo de um dia, à oferta do Sr. “C” feita a 24 de março de 2023.
81. Para chegar a esta conclusão, tomámos igualmente em consideração o facto de a Fatura Pró-Forma da EP enviada à LPG relativamente ao carregamento de 15 FCL de abril de 2023 conter uma disposição idêntica "Validade: 1 dias", apesar de não ter sido efetuado qualquer adiantamento de 5 % (ou outra percentagem) relativamente a esse carregamento, uma vez que as condições de pagamento foram acordadas em 100 % CAD. Neste contexto, a menção "Validade: 1 dias" não significava claramente a data-limite para o pagamento de um adiantamento pela LPG, uma vez que este não fora efetuado.»
Na sequência, o tribunal concluiu que existia um contrato vinculativo a 24 de março de 2023 e que não existia um prazo para a requerente devolver o contrato assinado e pagar os primeiros 5%, não tendo havido incumprimento da sua parte.
Pelo contrário, incumprimento houve, e definitivo, da requerida, ao pôr termo ao contrato de forma unilateral e discricionária (sem justa causa), em 6 de abril, quando recebeu o primeiro pagamento.
O tribunal arbitral fez uma análise plausível da prova e fundamentou de forma lógica e exaustiva os factos de que se convenceu. Esses factos estão fora de questão.
Para compensar os danos, o tribunal arbitral condenou a requerida a pagar à requerente a diferença entre o preço do açúcar na data do incumprimento definitivo da requerida, 6 de abril (661,51 USD/t) e o preço acordado para a venda (600 USD/t) e multiplicou pela quantidade objeto do contrato (8100 t), condenando a requerida a pagar à requerente 498.231 USD, acrescidos de juros de mora.
Defende a requerida que esta indemnização consiste num verdadeiro e grotesco enriquecimento sem causa da requerente, intolerável para o nosso ordenamento. Sem razão.
A indemnização arbitrada é adequada aos pressupostos de facto processualmente adquiridos: em 23 de março foi contratada a venda de 8100 t de açúcar por 600 USD/t; a requerente iria receber 8100 t de açúcar desembolsando 4.869.000 USD; 14 dias depois, data em que a mesma quantidade (8100 t) de açúcar da mesma qualidade estava a ser transacionada por 661,51 USD/t, a requerida incumpre definitivamente o contrato, devolvendo à requerente a entrada paga e dizendo-lhe que apenas venderia por outro valor. Com o seu comportamento, a requerida enriqueceu-se na data do incumprimento, ilegitimamente, pelo valor resultante da diferença entre o preço que iria receber se cumprisse o contrato e o preço ao qual podia ou pôde vender na mesma data. A requerente, por seu turno, na data do incumprimento da requerida empobreceu-se na mesma medida, deixou de poder ser titular de 8100 t de açúcar que na data do incumprimento valiam 5.358.231 USD e pelas quais iria pagar apenas o preço contratado de 4.869.000 USD. Na data do incumprimento, a requerente perdeu 498.231 USD e a requerida ganhou 498.231 USD.
A indemnização arbitrada está longe de beliscar qualquer princípio considerado como essencial pela ordem jurídica portuguesa, antes pelo contrário.
4. Do privilégio da nacionalidade
Finalmente, a requerida invocou o privilégio da nacionalidade consagrado no artigo 983.º, n.º 2, do CPC. Dispõe-se ali, para o que ora releva, que, se a sentença tiver sido proferida contra pessoa coletiva de nacionalidade portuguesa, a impugnação de um pedido de revisão de sentença estrangeira pode fundar-se em que o resultado da ação lhe teria sido mais favorável se o tribunal estrangeiro tivesse aplicado o direito material português, quando por este devesse ser resolvida a questão segundo as normas de conflitos da lei portuguesa.
Duas circunstâncias impedem que a requerida se prevaleça desta norma.
Em primeiro lugar ela não é aplicável ao reconhecimento de sentenças arbitrais estrangeiras que, como vimos, tem regime especial na Convenção de Nova Iorque de 1958 e, subsidiariamente, na LAV.
Em segundo lugar, de acordo com a norma de conflitos portuguesa, as obrigações provenientes de negócio jurídico, assim como a própria substância dele, são reguladas pela lei que os respetivos sujeitos tiverem designado ou houverem tido em vista (artigo 41.º, n.º 1, do CC). Ora, quando as partes se submeteram à arbitragem da Refined Sugar Association, adotaram a suas normas procedimentais, conforme documento junto pela requerida. Do ponto 8 desse documento consta que todas as disputas serão resolvidas de acordo com a lei inglesa independentemente do domicílio, residência ou local em que as partes exercem a sua atividade.
Improcede, portanto, também a defesa da requerida fundada em privilégio da nacionalidade.

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a ação, reconhecendo e confirmando a sentença arbitral n.º 2369 de 19/12/2023, proferida em Londres, pelo painel de árbitros da Refined Sugar Association.
Valor da causa: € 463.578 (conversão de USD 498.231 em 02/07/2024, data da propositura da ação – artigo 299.º, n.º 1, do CPC – https://www.exchange-rates.org/pt/historico/usd-eur-2024-07-02).
Custas pela requerida, que se opôs e decaiu, dispensando-se a taxa de justiça correspondente à parte do valor da ação que excede € 275.000, dada a natureza da apreciação formal inerente ao presente processo (artigo 6.º, n.º 7, do RCP) e o disposto na segunda parte do artigo III da Convenção, nos termos do qual, para o reconhecimento das sentenças arbitrais às quais a Convenção se aplica, «não serão aplicadas quaisquer condições sensivelmente mais rigorosas, nem custas sensivelmente mais elevadas, do que aquelas que são aplicadas para o reconhecimento ou a execução das sentenças arbitrais nacionais» (em Portugal, as sentenças arbitrais nacionais não carecem de revisão, são diretamente exequíveis, sem que as partes tenham de pagar qualquer taxa para aceder à exequibilidade).
Registe e notifique.

Lisboa, 27/02/2025
Higina Castelo
Inês Moura
Pedro Martins