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OMISSÃO DE PRONÚNCIA
HABITAÇÃO SOCIAL
COMUNHÃO CONJUNGAL
BEM PRÓPRIO
Sumário
I – Não é nulo por omissão de pronúncia [cf. art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC] o saneador-sentença em que o Tribunal a quo apreciou os pedidos formulados pela Autora e a respetiva causa de pedir, bem como a defesa deduzida pelo Réu, julgando a ação improcedente; uma (eventual) desconsideração de factos substantivamente relevantes pelo Tribunal recorrido não configuraria uma omissão de pronúncia, mas um erro de julgamento, não indicando a Apelante nenhuma verdadeira questão sobre a qual tivesse sido omitida pronúncia. II – Não é de considerar bem próprio do Réu, nos termos do art. 1722.º, n.º 1, al. c), do CC, ou seja, como tendo sido adquirido “por virtude de direito próprio anterior”, o imóvel - onde vivia com a então sua mulher, ora Autora - pertencente ao Município de Lisboa que, em 25-06-2003, aquele comprou, em conformidade com o Regulamento para Alienação de Fogos Municipais, publicado em 06-11-1992, dispondo de “título de ocupação” anterior ao casamento (celebrado em ...-...-1994, no regime de comunhão de adquiridos). III – Mostrando-se necessária, atento o estado dos autos e tendo em vista a aplicabilidade dos artigos 1724.º e 1726.º do CC, a produção de mais provas a respeito das alegações de facto que as partes fizeram quanto à proveniência do dinheiro utilizado para pagamento da maior parte do preço, impõe-se relegar para final o conhecimento do mérito da causa, a fim de apurar se tal dinheiro foi doado à Autora (ou ao Réu, como este também alega, numa linha de defesa subsidiária) ou se foi emprestado ao casal pelo pai da Autora.
Texto Integral
Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados
I - RELATÓRIO
AA interpôs o presente recurso de apelação do Saneador-sentença que julgou totalmente improcedente a ação declarativa que, sob a forma de processo comum, intentou contra BB.
Os autos tiveram início em 31-10-2023, com a apresentação de Petição Inicial, em cujo proémio a Autora indicou que propunha “ação declarativa de simples apreciação com processo comum”, peticionando, a final, que fosse: a) reconhecido o direito de propriedade da Autora, como bem próprio, relativamente à totalidade do prédio urbano em propriedade total sem andares nem divisões suscetíveis de utilização independente, sito na ..., concelho de Lisboa, descrito na ... sob o n.º 2958, freguesia de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º 2440, fixando-se o valor da compensação a ser paga ao Réu nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 1726.º do Código Civil; b) oficiado à Conservatória do Registo Predial de Lisboa, comunicando a decisão correspondente, determinando a correspondência do registo predial exclusivamente em nome da Autora; c) condenado o Réu a entregar o imóvel, desocupado, devendo pagar sanção pecuniária compulsória de 50,00 € diários por cada dia em que permanecer no imóvel até efetiva desocupação do mesmo.
Alegou, para tanto e em síntese, que:
- A Autora e o Réu casaram em ...-...-1994, tendo o seu casamento sido dissolvido por divórcio (por sentença transitada em julgado em 30-06-2023);
- Em 25-06-2003, o prédio urbano acima indicado foi adquirido à Câmara Municipal de Lisboa pela quantia de 32.063,25 €, mediante escritura pública (que apenas o Réu outorgou na qualidade de comprador);
- Sucede que 90% do preço de aquisição foi pago com dinheiro próprio da Autora, no montante de 28.650 €, que o seu pai lhe doou, sendo o valor remanescente de 3.413,25 € dinheiro de ambas as partes;
- Atendendo à proveniência da maior parte do dinheiro empregue na aquisição do imóvel – doação à Autora –, logo, dinheiro próprio desta, o referido imóvel deve ser reconhecido como um bem próprio seu, sem prejuízo da compensação que caiba ao Réu nos termos do disposto no n.º 2 do art. 1726.º do Código Civil.
O Réu apresentou Contestação, em que se defendeu por exceção e por impugnação motivada, de facto e de direito, alegando, em síntese, que:
- Uma vez que os autos são de simples apreciação, o Tribunal não poderá conhecer dos pedidos formulados nas alíneas b) e c);
- O prédio urbano em apreço foi atribuído pela Câmara Municipal de Lisboa à mãe do Réu, sendo uma das restrições quanto ao uso e habitação do fogo municipal a de que apenas poderiam ser coabitantes, com a titular, o marido e os filhos;
- Por força do falecimento da sua mãe, o Réu passou a ser o único titular da ocupação do referido prédio urbano;
- Em 1992, foi publicado o regulamento que permitia a venda dos fogos municipais aos titulares da ocupação;
- Em 15-04-2003, o Réu foi informado da intenção da CML de proceder à alienação do imóvel que ocupava, tendo o Réu comunicado a sua intenção de aquisição junto da LISPATRIM - Gestão de Patrimónios Imobiliários, S.A.;
- A compra outorgada com a CML foi-o ao abrigo do Regulamento para Alienação de Fogos Municipais aprovado em 02-11-1992;
- A referida quantia de 28.650 € entregue pelo pai da Autora para financiar o pagamento do preço não se tratou de doação à Autora, mas de um empréstimo concedido ao casal, empréstimo que foi pago pelo casal;
- Logo, o imóvel em causa é um bem próprio do Réu, nos termos do art. 1722.º, n.º 1, al. c), do Código Civil.
No seguimento de despacho que a convidou a pronunciar-se por escrito sobre o que foi considerada matéria de exceção, a Autora apresentou articulado em que alegou, em síntese, que:
- Deve ser corrigida a qualificação da ação como de simples apreciação, pois trata-se de ação declarativa de condenação, mantendo-se a forma de processo comum que foi indicada;
- Inexiste fundamento para aplicação do disposto no art. 1722.º, n.º 1, al. c), do CC, já que apenas em 2003 se negociou a aquisição do imóvel pelo Réu;
- O facto de a Autora ter indicado a conta bancária da titularidade do Réu para depósito do valor que foi doado pelo pai a pedido da Autora não significa qualquer doação ao Réu.
Realizou-se audiência prévia, em que foi tentada, sem sucesso, a conciliação das partes.
Foi proferida em 27-04-2024, a decisão recorrida (Saneador-sentença) - em que se começou por determinar a retificação do proémio da Petição Inicial (deferindo-se a retificação do erro de escrita, nos exatos termos requeridos pela Autora, em conformidade com o preceituado no art. 146.º do CPC), e fixar o valor da causa em de 32.063,25 € -, cujo segmento decisório tem o seguinte teor: “Em face de todo o exposto, julgo a presente ação totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolvo o Réu BB de todos os pedidos formulados contra si pela Autora. Custas a cargo da Autora Registe e notifique.”
É com esta decisão que a Autora não se conforma, tendo interposto o presente recurso de apelação, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões: a. A douta sentença recorrida omitiu a conclusão e apreciação de factos essenciais à boa decisão da causa e que foram invocados pela Recorrente, consistindo na base do seu pedido de reconhecimento do direito de propriedade exclusivo sobre o imóvel que habita sito na .... b. Inexistindo elenco de factos não provados na douta sentença, o elenco de factos considerados provados surge omisso e bastante incompleto em face dos factos alegados pela Recorrente, causa de pedir e pedidos inerentes. c. O facto provado 1 surge incompleto, e deveria ter sido dado como provado que a “Autora e Réu casaram no dia ... de ... de 1994, sem convenção antenupcial no regime de comunhão de bens adquiridos, o qual foi dissolvido a ........2023 por decisão judicial”, faltando a menção ao regime de bens inerente ao casamento, o que assume importância para a decisão final, sendo tal facto provado por documento 1 junto aos autos com articulado petição inicial. d. Deve ser acrescentado ao elenco de factos provados o facto 14 com a seguinte redação: “O pai da A., Sr. CC doou apenas a sua filha, a A., em 23 de Junho de 2003, a quantia de € 28.650,00 a pedido desta, de forma a permitir que a mesma adquirisse o imóvel sito na ..., atendendo a que nem ela nem o R. possuíam capacidade financeira para suportar tal aquisição.” e. Nos termos do disposto no artigo 1722.º N.º 1 b) do Código Civil, serão próprios os bens que advierem depois do casamento por sucessão ou doação. f. O dinheiro doado à Recorrente pelo seu pai é pois, e sem margem para dúvidas, um bem próprio da Recorrente, sendo de o afastar da comunhão de bens. g. Tal facto surge alegado pela Recorrente na sua petição inicial e foi provado por documento 2 junto aos autos com aquele articulado. h. Se se entender que o documento 2 não é suficiente para prova do facto em questão, sempre se deveria ter admitido a prova testemunhal requerida, o que o Digníssimo Tribunal entendeu dispensar de forma indevida. i. Deve ser acrescentado ao elenco de factos provados o facto 15 com a seguinte redação: “No dia ... de ... de 2003, o prédio urbano mencionado foi adquirido à Câmara Municipal de Lisboa pela quantia de € 32.063,25, sendo que 94,67% do valor do imóvel foi pago com o dinheiro da Autora e o remanescente, € 3.413,25, foi pago pela A. e pelo R., que corresponde a dinheiro de ambos.” j. Tal facto surge alegado pela Recorrente na sua petição inicial sendo parte da causa de pedir da mesma, pois que assenta o pedido de reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o imóvel em causa no facto de ter sido usado o dinheiro resultante da doação que seu pai lhe fez para pagar a quase totalidade do preço que custou. k. Tal facto surge provado quer pelos documentos 2, 6 e 9 juntos com o articulado PI e extrato bancário não numerado, do Recorrido, junto com a sua contestação, verificando-se o preço pago no ato de aquisição, o valor que doado à Recorrida, foi usado para a aquisição e por simples cálculo aritmético, o valor remanescente pago que corresponderá a bem comum. l. A douta sentença omitiu pronúncia sobre os factos acima elencados consistindo em questões concretas colocadas pela Recorrente e que são base estrutural da sua petição, causa de pedir e pedidos inerentes a ver reconhecido o seu direito de propriedade sobre o imóvel em causa. m. A omissão de pronúncia sobre factos e questões que devia ter apreciado e decidido conduz à nulidade da sentença, que expressamente se invoca, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 615.º n.º 1 alínea d) do CPC. n. Por seu turno, a douta sentença fez uma incorreta interpretação e aplicação do direito aos factos considerados provados e aos que deveria ter remetido à matéria de facto, no termos expedidos, violando o disposto no artigo 1726.º do Código Civil. o. A Recorrente pedia ao Digníssimo Tribunal o seguinte: “seja reconhecido o direito de propriedade da Autora, como bem próprio, relativamente à totalidade do prédio urbano em propriedade total sem andares nem divisões suscetíveis de utilização independente, sito na ..., concelho de Lisboa, descrito na ... sob o n.º ..., freguesia de ..., inscrito da matriz predial urbana sob o artigo n.º ..., fixando-se valor de compensação a ser paga ao R. nos termos do disposto n.º 2 do artigo 1726.º do Código Civil” p. Fundamentou o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel sito na ..., precisamente no disposto no artigo 1726.º que traduz uma norma especial em relação ao disposto no artigo 1722.º, ambos do Código Civil. q. De acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 1726.º do Código Civil, os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações. r. Ao contrário do referido na douta sentença, a Recorrente não baseou o seu pedido no disposto na alínea c) do artigo 1723.º do Código Civil nunca tendo alegado tal na sua petição inicial. s. O pedido da Recorrente de reconhecimento de que o imóvel sito na ... é um bem próprio seu assenta no facto do mesmo ter sido adquirido quase na totalidade (94,67%) com recurso a dinheiro que lhe foi doado exclusivamente por seu pai para esse efeito e desígnio. t. Ou seja, a Recorrente, dona exclusiva de praticamente a totalidade dos meios financeiros usados na aquisição do bem imóvel, entende que o mesmo deverá ter a natureza de bem próprio seu, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 1726.º do Código Civil, tendo adquirido o direito de propriedade exclusivo como seu direito próprio. u. O Recorrido nunca chegou, em bom rigor a ser proprietário do bem, pois ao ter sido usado dinheiro da Recorrente para concretização da aquisição, de imediato tal situação determina o chamamento à colação do disposto no artigo 1726.º do Código Civil que prevê um regime especial em relação a outras normas, assente na noção de que quem mais contribui para a aquisição do bem com bens próprios deverá ser titular do bem tal como o era dos bens usados para a aquisição. v. O Supremo Tribunal de Justiça veio debruçar-se sobre esta questão no âmbito do Processo n.º 899/10.2TVLSB.L2.S1, 6.ª Secção, datado de 02/07/2015, e por acórdão uniformizador de jurisprudência fixar o seguinte: “Estando em causa apenas os interesses dos cônjuges, que não os de terceiros, a omissão no título aquisitivo das menções constantes do art. 1723.º c) do Código Civil, não impede o cônjuge, dono exclusivo dos meios utilizados na aquisição de outros bens na constância do casamento no regime supletivo da comunhão de adquiridos, e ainda que não tenha intervindo no documento aquisitivo, prove por qualquer meio, que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou seus bens próprios; feita essa prova, o bem adquirido é próprio, não integrando a comunhão conjugal.” w. Veio também tal aresto a concluir e fixar o seguinte: “V – Tendo-se demonstrado que a casa foi comprada maioritariamente com dinheiro exclusivo da autora, a mesma, ainda que não haja tido intervenção na escritura, adquiriu por direito próprio, o prédio comprado, nos termos do art. 1726.º do Código Civil.” x. No caso concreto, não poderia deixar-se de trazer á colação o regime legal patente do citado artigo 1726.º do Código Civil, confirmando-se de acordo com a jurisprudência uniformizada que: (i) De forma a valer o seu direito e a ter proteção jurídica o cônjuge que seja titular dos meios aquisitivos não tem de intervir no título aquisitivo, mormente, escritura pública ou documento particular destinado a tanto; (ii) Pode fazer prova da titularidade exclusiva do dinheiro usado nessa aquisição com recurso a qualquer meio probatório, seja documental seja testemunhal; (iii) Se a mais valiosa das prestações / contribuições tiver sido efectuada por um dos cônjuges, com recurso a dinheiro próprio, o bem adquirirá essa mesma natureza, passando a ser um bem próprio. y. A Recorrente não teve intervenção na escritura pública de compra e venda nem era obrigada a ter, o que em bom rigor apenas seria eventualmente necessário caso estivesse em causa a necessidade de acautelar direitos de terceiros ao casal e não apenas as relações patrimoniais entre os cônjuges. z. A Recorrente fez prova bastante e cabal da titularidade do dinheiro usado para a aquisição da casa onde vive, que derivou precisamente de uma doação de seu pai para precisamente lhe permitir a ela a aquisição desse imóvel. aa. Pelo que, ainda que o Recorrido tivesse um eventual direito à aquisição, só a poderia concluir se tivesse capacidade financeira e pagasse o respectivo preço, o que não fez com recurso a bens comuns ou exclusivos à sua pessoa mas sim com dinheiro que era propriedade exclusiva da Recorrente. bb. Permitir outro entendimento seria permitir o enriquecimento injustificado do Recorrido, resultado que se entende não ter cobertura legal, sendo aliás censurável. cc. Acresce que a lei determina uma solução específica para determinar a natureza de um determinado bem, pugnando por lhe atribuir a mesma natureza dos bens / dinheiro usado na sua aquisição não determinando ou forçando o cônjuge a buscar ressarcimento em função de enriquecimento sem causa ou outra qualquer compensação. dd. Aliás, no n.º 2 do artigo 1726.º do Código Civil, lei manda compensar o outro cônjuge em função dos valores que o mesmo tenha contribuído assim equilibrando devidamente as posições de ambos nas suas relações patrimoniais internas.
Terminou a Apelante defendendo que deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença e substituindo-a por outra “em acordo com a lei, com as legais e necessárias consequências”.
Foi apresentada alegação de resposta, em que o Apelado pugnou para que se mantenha a decisão recorrida, concluindo designadamente que: A. O facto provado relacionado sob o n.º 1 na mui douta sentença ora em recurso não padece de qualquer omissão de pronúncia, nem carece de qualquer correcção: basta-lhe o teor do art.º 1717.º do Código Civil, segundo o qual “(…)”. B. O prédio urbano em causa nos presentes autos - o descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob a ficha n.º 2958/20021204 da freguesia de ... e inscrito na matriz urbana da freguesia de S. Domingos de ... sob o art.º 2440 e a titularidade de BB - foi adquirido por este à Câmara Municipal de Lisboa em virtude de direito próprio anterior à data do seu casamento, como resulta do disposto no art.º 1722.º, n.º 1, al. c) Com efeito, (…) K. A compra outorgada com a CML em 25/06/2003 foi-o ao abrigo do Regulamento para Alienação de Fogos Municipais aprovado pela Assembleia Municipal de Lisboa em 02/11/1992. L. Tal Regulamento determina no seu art.º 2.º que "[...] cada fracção ou prédio individual será alienada ao respectivo titular da ocupação, podendo a seu pedido expresso transmitir essa possibilidade ao cônjuge [...]", faculdade que o R. não exerceu, antes reservando para si esse direito, que se constituiu antes de A. e R. se terem casado, pelo que se trata de direito próprio anterior ao casamento. (…) N. Acresce que, para acentuar o carácter de direito anterior que assiste ao recorrente, o art.º 8.º do citado Regulamento estipula que se o titular da ocupação não estivesse interessado na aquisição do fogo, poderia a CML acordar com ele a desocupação do mesmo mediante o pagamento de uma quantia igual ao preço de venda calculado nos termos ali estipulados e que, em 2003, era de 32.063,25 EUR. O. Ou seja, se o R tivesse optado por não adquirir a casa aqui em causa, teria recebido os 32.063,25 EUR, que seriam bem próprio nos termos do disposto no art.º 1722.º/1/c) do Cód. Civil. P. Não o fazendo, mas antes adquirindo a casa em virtude de ser o titular efectivo da ocupação da mesma, ela tornou-se bem próprio do R. nos termos do mencionado art.º 1722.º/1/c) do Cód. Civil. Q. E, como bem salientou a M. Juiz a quo, tratando-se de um bem próprio do Réu, aqui recorrido, nunca poderia o mesmo perder essa natureza para passar a ser reconhecido como bem próprio da Autora, ora recorrente, mesmo que se viesse a demonstrar que foi adquirido com dinheiro que era maioritariamente bem próprio da Autora. R. Face a esta factualidade amplamente demonstrada pelos autos a M. Juiz a quo proferiu decisão de mérito no despacho saneador (art.º 595.º/1/b) do Cód. Civil), sem necessidade de mais provas, que considerou irrelevantes para a decisão a proferir. (…) T. É falso que a pai da aqui recorrente tenha doado a esta a quantia de € 28.6500 para aquisição da casa, tal como é falsa a declaração que produziu e fez autenticar passados vinte anos sobre a data de aquisição. Na verdade, tal doação, invocada no processo de divórcio do casal, cuja sentença a A. juntou à sua p.i., foi julgada como “não provada”. U. Dispõe o art.º 947.º/2 que a doação de coisas móveis não depende de formalidade alguma externa quando acompanhada de tradição da coisa doada; não sendo acompanhada de tradição. V. Ora, a transferência de 28.650,00 EUR efectuada por CC foi creditada na conta bancária de que o R. era o único titular e só em relação a ele se poderia dizer que teria aceite a doação (art.º 945.º/1 do Cód. Civil): seria ele, ora recorrido, o donatário, nos termos do art.º 945.º/2 do Cód. Civil. W. Mas não se tratou de doação: tratou-se de um empréstimo que o pai da ora recorrente resolveu conceder ao casal e este foi pagando ao longo de, pelo menos, oito anos. X. Não há, assim, lugar ao aditamento dos factos 14 e 15 apresentados pela recorrente à lista de factos que a M. Juiz a quo julgou provados. Y. A sentença recorrida, proferida nos melhores termos de direito, justa que é, não merece qualquer censura.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
Identificamos as seguintes questões a decidir:
1.ª) Se a decisão recorrida é nula por omissão de pronúncia sobre factos / questões que devia ter apreciado e decidido, ao abrigo do disposto no art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC;
2.ª) Se deve ser aditada ao elenco dos factos provados a matéria indicada pela Apelante;
3.ª) Se o prédio em apreço deve ser considerado bem próprio da Autora, pelo facto de a maior parte do seu preço ter sido paga com dinheiro próprio desta, ao abrigo do art. 1726.º do CC, ou, caso assim não se entenda, se os autos deverão prosseguir a fim de ser produzida prova a respeito da factualidade controvertida e relevante para a decisão da causa. Factos provados
Foram considerados provados os seguintes factos (acrescentámos o que consta entre parenteses retos, para melhor compreensão):
1. Autora e Réu casaram no dia ... de ... de 1994, sem convenção antenupcial, o qual [isto é, o casamento] foi dissolvido a ...-...-2023 por decisão judicial.
2. O prédio urbano sito na ..., no denominado “...”, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa, sob o artigo n.º ... e inscrito na matriz predial urbana, sob o artigo n.º ....
3. Pela Ap. 8 de ...0.../09, foi inscrita a aquisição desse prédio ao Município de Lisboa por DD Casado/a com AA no regime de Comunhão de adquiridos.
4. O Réu é filho de EE.
5. O prédio urbano foi atribuído [a título precário – cf. doc. 1 junto com a Contestação] pela CML a EE, a 26-11-1964 [e depois, a “título definitivo”, em 24 de julho de 1986 – cf. doc. 5].
6. Nesse prédio só estavam autorizados a ali coabitar com a mãe do Réu, o marido daquela e os filhos, de entre eles o aqui Réu.
7. A 14-10-1988, na sequência do falecimento de EE, [foi elaborado o ofício da CML comunicando que] o referido prédio foi atribuído ao Réu [por despacho do Diretor da Direção dos Serviços de Habitação da CML de 29-08-1988], que passou a ser o único titular da ocupação do mesmo e no qual já habitava.
8. Em 1992 foi publicado no Diário Municipal n.º 16497, de 06-11-1992, o Regulamento para Alienação de Fogos Municipais que passou a permitir a venda dos fogos municipais aos titulares da ocupação dos mesmos [mais precisamente foi publicado o Edital n.º 124/92 com o seguinte teor: “Para geral conhecimento faço saber que nos termos do artigo 51.º, n.º 3 alínea a) e artigo 39.º nº 2 alínea a) do Decreto-Lei n.º 100/84, de 29 de Março, foi aprovado pela Assembleia Municipal um novo Regulamento para Alienação de Fogos Municipais, que segue em anexo, Paços do Conselho de Lisboa, em 1992/11/02”, estabelecendo esse Regulamento critérios e regras para a venda de fogos de habitação, prevendo o art. 1.º desse Regulamento que: “1 – A alienação de fogos de habitação social que sejam propriedade do Município de Lisboa rege-se pelas normas do presente Regulamento. 2 – Excluem-se expressamente os prédios construídos ao abrigo de legislação especial”.].
9. Nos termos do artigo 2.º, n.º 1 desse Regulamento “A venda é feita em regime de propriedade horizontal ou singular e cada fração ou prédio individual será alienada ao respetivo titular de ocupação podendo a seu pedido expresso, transmitir essa possibilidade ao cônjuge, ou a quem com ele viva em situação de união de facto, ou aos descendentes que com eles coabitem sem situação legal há mais de um ano e confirmada pelo processo de fogo, mas mantendo sempre o respetivo usufruto”. [prevendo o n.º 2 do art. 2.º que a venda é feita a pronto pagamento, podendo ser autorizada a hipoteca do prédio para efeitos de recurso a financiamento; estabelecendo o art. 3.º, n.º 1, que “O preço de venda de fração ou prédio para os interessados que sejam ocupantes de fogos municipais há mais de 4 anos será determinado pela aplicação da seguinte fórmula (…)”; no art. 4.º está consagrado um ónus de inalienabilidade durante os 7 anos subsequentes à aquisição sujeito a registo, mais se prevendo que as frações ou prédios se destinam exclusivamente a residência permanente dos adquirentes e respetivos agregados familiares, sendo vedado o seu arrendamento; no art. 5.º prevê-se, além do mais, que antes de decorrido o prazo de 7 anos a Câmara poderá autorizar a venda a parente ou afins de linha reta descendente do comprador que com este coabite há mais de 1 ano e sempre com reserva de usufruto vitalício para si para o cônjuge; no art. 8.º prevê-se ainda que, caso o titular da ocupação não esteja interessado na aquisição do fogo, poderá a Câmara acordar com ele a desocupação do mesmo mediante o pagamento de uma quantia igual ao preço de venda calculado nos termos do Regulamento; no art. 9.º está previsto que o prazo fixado no art. 4.º, n.º 1, e bem assim o estabelecido no art. 5.º deste Regulamento é aplicável às alienações feitas ao abrigo do «Regulamento para Alienação de Fogos Municipais» publicado no Diário Municipal de 230 de julho de 1981.]
10. Em 15-04-2003 o Réu foi informado que o preço de venda do imóvel para aquele ano era de 32.063,25 €, assim como, que caso não estivesse interessado na aquisição do fogo ou em continuar a habitá-lo, poderia acordar com a Câmara a sua desocupação mediante o recebimento de uma quantia igual ao preço de venda [através de carta cujo teor é o seguinte: Exmo(a). Senhor(a) DD ... ... LISBOA 0433/03/LISP 15 ..., 2003 ASSUNTO: ALIENAÇÃO DE FOGO MUNICIPAL Exmo Sr. Há já alguns anos a Câmara Municipal de Lisboa aprovou um Regulamento para Alienação de Fogos Municipais que permite a venda do seu património habitacional, tendo em vista possibilitar o acesso das famílias à propriedade das suas habitações. Recentemente, a Câmara sentiu necessidade de dar maior impulso à alienação deste património promovendo a criação de uma Empresa que se disponibilizasse para o efeito. Assim, nasceu a "LISPATRIM - Gestão de Patrimónios Imobiliários, S.A.", Empresa do Grupo EPUL, que tem entre outras missões a promoção e venda do parque habitacional da Câmara aos titulares das ocupações ou a outros membros do agregado familiar abrangidos pelo citado Regulamento. Além da venda deste património, o Regulamento prevê ainda que o titular da ocupação que não esteja interessado na aquisição do fogo ou em continuar a habitá-lo, possa acordar com a Câmara a sua desocupação mediante o recebimento de uma quantia igual ao preço de venda calculado nos termos do mesmo Regulamento. Este preço, para o ano corrente é de 32.063,25 Euros. Independentemente dos esclarecimentos que poderá colher na Sede da Empresa, na Estrada de (…), em Lisboa, das 9,30 às 12,00 e das 14,30 às 17,00 horas (no prazo de 15 dias), junta-se um questionário/requerimento cuja devolução se agradece, depois de preenchido. · Deverá ser portador(a) do BI, Cartão de Contribuinte do(a) titular e cônjuge e último recibo da renda. Com os melhores cumprimentos Pela ADMINISTRAÇÃO]
11. Em 28-04-2003, o Réu manifestou [mediante o preenchimento de formulário próprio dirigido ao Presidente do Conselho de Administração da LISPATRIM – Gestão de Patrimónios Imobiliários, S.A.] a sua intenção de adquirir a habitação que ocupava, na qualidade de titular do mesmo, através do formulário que se encontra junto aos autos como documento n.º 9 junto com a contestação e cujo teor se deixa integralmente reproduzido [aí se referindo, além do mais, o seguinte: “Assunto: Compra ou desocupação de habitação (…) A. (Assinalar com X o pretendido) 1. Estou interessado(a) na aquisição do fogo supra pelo preço de venda” (assinalado com x), nos termos do Regulamento para Alienação de Fogos Municipais. 2. Não estou interessado(a) na aquisição do fogo supra. 3. Estou interessado(a) no estabelecimento de um acordo sobre a desocupação do fogo supra mediante o recebimento de (…) nos termos do Regulamento para Alienação de Fogos Municipais. 4. Não estou interessado(a) na desocupação do fogo. B. Qualidade em que pretende fazer a aquisição 1. Titular (nome em que figura o registo do fogo). 2. Cônjuge 3. Descendente 4. Nos termos da transmissão a que se refere o Artº 2º do Regulamento ficando (…) com o usufruto vitalício. 5. Outra. Qual? (…) Notas: (…) 3. Em todos os casos esta proposta de venda fica condicionada à análise e confirmação dos elementos indicados. 4. Poderão ser solicitadas informações complementares”].
12. Por escritura pública outorgada, no dia ... de ... de 2003, no vigésimo segundo Cartório Notarial de Lisboa, o Município de Lisboa e a Câmara Municipal de Lisboa, que intervieram como primeiro outorgante, declararam vender ao aqui Réu, que interveio como segundo outorgante, o prédio urbano supra identificado destinado à habitação sito na ..., em Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob a ficha n.º ..., pelo valor de 32.063,25 € e que a venda é feita de harmonia com o Regulamento para Alienação de Fogos Municipais, publicado no Diário da República n.º 16497 de 06-11-1992 e ainda com o despacho de 21-03-2003 do Vice Presidente FF exarado na informação 1128/DAPI da ....
13. Através dessa escritura pública, o aqui Réu declarou aceitar a compra nos termos exarados e que destina o referido prédio adquirido a sua residência permanente, obrigando-se a registar o ónus de inalienabilidade [registo que foi efetuado mediante ap. 8 de ...0.../09]. Da nulidade da decisão recorrida
A Apelante sustenta, em síntese, que o Tribunal recorrido omitiu apreciar alguns “factos” que aquela alegou e considera deveriam ter sido vertidos nos pontos 1, 14 e 15 do elenco dos factos provados, omitindo igualmente, a esse respeito, apreciar e considerar a prova documental produzida e a prova testemunhal expressamente requerida, o que conduz à nulidade da sentença, nos termos do disposto na alínea d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC.
Apreciando.
Preceitua a alínea d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. Trata-se de normativo legal que deve ser conjugado com o disposto no n.º 2 do art. 608.º do CPC, nos termos do qual “(O) juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
De salientar ser absolutamente pacífico que o conceito de “questões” que o juiz deve resolver na sentença, a que aludem aqueles normativos legais, se relaciona com a definição do âmbito do caso julgado, não abrangendo os meros raciocínios, argumentos, razões, considerações ou fundamentos (mormente alegações de factos e meios de prova) produzidos pelas partes em defesa das suas pretensões.
A este respeito, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, pág. 737, clarificam o conceito de questões empregado na alínea d) do n.º 1 do art. 615.º em apreço, referindo precisamente que: “Devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art. 608-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado (ver o n.º 2 da anotação ao art. 608). Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de exceções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes (art. 608-2), é nula a sentença em que o faça.”
Estes autores, na anotação ao art. 608.º, págs. 712-713, explicam também que, na sentença, o juiz deverá responder aos pedidos deduzidos pelo autor e pelo réu reconvinte, a todos devendo sucessivamente considerar, a menos que a apreciação de um esteja prejudicada; o mesmo fará relativamente às várias causas de pedir invocadas, bem como quanto às exceções perentórias que tenham sido deduzidas pelo réu ou pelo autor reconvindo (sem prejuízo da possível inutilidade), acrescentando que resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação “não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito, as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art. 5-3) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas.”
De referir ainda que a jurisprudência é unânime a este respeito, citando-se, a título exemplificativo, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, os acórdãos do STJ de 10-01-2012, proferido no proc. n.º 515/07.0TBAGD.C1.S1, e de 10-12-2020, proferido no proc. n.º 12131/18.6T8LSB.L1.S1, afirmando-se precisamente no sumário deste último que: “A nulidade por omissão de pronúncia, representando a sanção legal para a violação do estatuído naquele nº 2, do artigo 608.º, do CPC, apenas se verifica quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre as «questões» pelas partes submetidas ao seu escrutínio, ou de que deva conhecer oficiosamente, como tais se considerando as pretensões formuladas por aquelas, mas não os argumentos invocados, nem a mera qualificação jurídica oferecida pelos litigantes”.
Atentando na decisão recorrida, cuja fundamentação de direito adiante será reproduzida (e para aí ora remetemos), é manifesto que o Tribunal a quo apreciou os pedidos formulados pela Autora e a respetiva causa de pedir, bem como a defesa deduzida pelo Réu, não indicando a Apelante nenhuma verdadeira questão sobre a qual tivesse sido omitida pronúncia.
Uma (eventual) desconsideração de factos substantivamente relevantes pelo Tribunal recorrido não configuraria uma omissão de pronúncia, mas um erro de julgamento (que adiante será apreciado), na medida em que não teria sido acertado considerar, conforme consta da decisão recorrida, que “Analisados todos os elementos recolhidos nos autos, entendemos que o estado dos autos permite, sem necessidade de mais provas, apreciar do mérito da causa, ao abrigo do artigo 595.º, n.º 1, al. b), primeira parte do Código de Processo Civil, porquanto a factualidade controvertida não releva para a decisão a proferir.”
Pelo exposto, improcedem as conclusões da alegação de recurso atinentes à arguição de nulidade do saneador-sentença. Do aditamento de factos
Ponto 1
A Apelante pretende que a redação do ponto 1 passe a ser a seguinte: “Autora e Réu casaram no dia ... de ... de 1994, sem convenção antenupcial no regime de comunhão de bens adquiridos, o qual foi dissolvido a ........2023 por decisão judicial”.
O Apelado discorda, lembrando que o regime de bens resulta do disposto no art. 1717.º do CC.
É evidente a falta de razão da Autora a este respeito.
Com efeito, dispõe o art. 1717.º do CC em vigor à data em que o casamento foi celebrado, sob a epígrafe “Regime de bens supletivo”, que “Na falta de convenção antenupcial, ou no caso de caducidade, invalidade ou ineficácia da convenção, o casamento considera-se celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos.”
Tendo sido dado como provado que o casamento foi celebrado, na aludida data e sem convenção antenupcial, tanto basta para que se deva entender, no enquadramento jurídico dos factos, que o respetivo regime de bens é a comunhão de adquiridos, conforme, aliás, consta da fundamentação de direito do saneador-sentença, aí estando expressamente referido que “Nos termos previstos no artigo 1717.º do Código Civil, na falta de convenção antenupcial – como será o caso dos autos – o casamento considera-se celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos.”
Improcedem as conclusões da alegação de recurso a este respeito.
Pontos 14 e 15 a aditar
Pretende a Apelante, invocando os documentos 2, 6 e 9 juntos com a Petição Inicial e o extrato bancário não numerado junto pelo Réu com a sua Contestação, que sejam aditados ao elenco dos factos provados os seguintes pontos:
14. O pai da A., Sr. CC doou apenas a sua filha, a A., em 23 de Junho de 2003, a quantia de € 28.650,00 a pedido desta, de forma a permitir que a mesma adquirisse o imóvel sito na ..., atendendo a que nem ela nem o R. possuíam capacidade financeira para suportar tal aquisição.
15. No dia ... de ... de 2003, o prédio urbano mencionado foi adquirido à Câmara Municipal de Lisboa pela quantia de € 32.063,25, sendo que 94,67% do valor do imóvel foi pago com o dinheiro da Autora e o remanescente, € 3.413,25, foi pago pela A. e pelo R., que corresponde a dinheiro de ambos.
O Apelado discorda, reiterando que a quantia transferida pelo pai da Autora para a conta de que o Réu é titular não se tratou de nenhuma doação (pelo menos à Autora), mas de um empréstimo que o pai da Autora resolveu conceder ao casal e que a Autora e o Réu foram pagando ao longo de, pelo menos, oito anos.
Vejamos.
Os factos em questão foram alegados na Petição Inicial e impugnados pelo Réu na sua Contestação.
O documento 2 junto com a PI, intitulado “Declaração de Doação”, ainda que possa ter sido firmado pelo pai da Autora, não passa de um verdadeiro depoimento escrito, sem respeito pelo regime legal aplicável à prova testemunhal. Não faz prova plena dos factos em apreço.
O documento 6 é a escritura pública de compra e venda, que obviamente, apenas serve, no que ora importa, para prova de matéria de facto que já consta do elenco dos factos provados (12 e 13).
A Apelante refere-se ainda a um documento 9 junto com a Petição Inicial e a um extrato bancário não numerado, mas trata-se de lapso, uma vez que apenas juntou seis documentos com a PI, estando os documentos juntos com a Contestação numerados (no processo eletrónico). Terá em vista, parece-nos, o documento 9 junto com a Contestação. Ora, nem esse documento, nem o extrato bancário (no processo eletrónico numerado como doc. 14), se revestem de força probatória bastante para que tais factos possam ser considerados plenamente provados em sede de saneador-sentença.
No entanto, está plenamente provado, mediante o acordo e a confissão das partes nos articulados, e assim determina-se o aditamento ao elenco dos factos provados (como ponto 14) do seguinte facto:
14. Em junho de 2003, CC, pai da Autora, transferiu para conta bancária titulada pelo Réu a quantia de 28.650 €, a qual se destinava e foi utilizada pelo Réu para pagamento de parte do preço da compra e venda referida em 12. Do direito de propriedade sobre o prédio
Resta, agora, apreciar se o estado do processo não permitia o conhecimento imediato do mérito da causa, tendo (ou não) o Tribunal a quo errado no juízo que fez a esse respeito [cf. art. 595.º, n.º 1, al. b), do CPC], caso em que será determinado o prosseguimento dos autos para produção de prova testemunhal, conforme também defende a Apelante.
Para tanto, atentemos na fundamentação de direito da decisão recorrida (sublinhado nosso): «A Autora pretende através da presente ação que seja reconhecido que o imóvel aqui em causa é um bem próprio seu, em virtude de ter sido adquirido na constância do matrimónio com o Réu, sujeito ao regime de comunhão de adquiridos, cujo preço foi pago, maioritariamente, com dinheiro próprio seu, doado pelo seu pai. O Réu contra-argumenta que a aquisição do imóvel ocorreu por virtude de direito próprio seu anterior ao casamento. Nos termos previstos no artigo 1717.º do Código Civil, na falta de convenção antenupcial – como será o caso dos autos – o casamento considera-se celebrado sob o regime da comunhão de adquiridos. Do referido regime de bens resulta que se torna comum “aquilo que exprime a colaboração de ambos os cônjuges no esforço patrimonial do casamento” (in Código Civil Anotado, Livro IV, Direito da Família, Sottomayor, Clara, Almedina, 2020, p. 393). Assim, estabelece o artigo 1724.º do Código Civil que fazem parte da comunhão conjugal, o produto do trabalho dos cônjuges e os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio que não sejam excetuados por lei. (…) Com efeito, justifica-se que a comunhão de vida em que se consubstancia a relação matrimonial se estenda à comunhão nos bens, que sejam adquiridos na constância do matrimónio, com a colaboração, a cooperação, e o esforço de ambos os cônjuges. Todavia, o legislador consagrou exceções a esta regra nos artigos 1722.º, 1723.º, 1726.º, 1727.º, 1728.º e 1729.º a contrario, todos do Código Civil. De facto, no artigo 1722.º, n.º 1 do Código Civil exclui-se da comunhão conjugal os bens que cada um dos cônjuges tiver ao tempo da celebração do casamento, os que advierem depois do casamento por sucessão ou doação e os adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior. Nas quatro alíneas do n.º 2 do artigo 1722.º do Código Civil, o legislador elenca de forma exemplificativa casos em que os bens são adquiridos por virtude de direito próprio anterior. A alínea a) prevê os bens adquiridos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos partilhados depois dele, sendo disso exemplo, a herança aberta antes do casamento, mas partilhada depois do casamento. A alínea b) refere-se aos bens adquiridos por usucapião fundada em posse que tenha o seu início antes do casamento. Neste caso, ainda que os requisitos da usucapião só se completem na constância do casamento, cumpre ter em atenção que, por força do disposto nos artigos 1288.º e 1317.º, al. c) ambos do Código Civil, os efeitos dos atos de posse que conduzem à aquisição da propriedade por usucapião retroagem à data do início da posse, portanto, a uma época em que não existia ainda casamento. A alínea c) respeita aos bens comprados antes do casamento com reserva de propriedade, ou seja, o direito de propriedade sobre a coisa fica sujeito a condição suspensiva. Todavia, os seus efeitos também retroagem, como dispõe o artigo 276.º do Código Civil, à data da conclusão do negócio. A alínea d) prevê as situações em que o bem é adquirido no exercício de direito de preferência fundado em situação já existente à data do casamento. Nas palavras de Agostinho Cardoso Guedes, “O direito de preferência nasce em momento posterior à constituição da relação de preferência, apenas no momento em que se verificam um conjunto de pressupostos previstos na lei ou no pacto, sendo condicionado apenas no sentido em que o seu nascimento não é certo e imediato, mas apenas eventual e futuro, não existindo sequer uma expectativa jurídica nesse sentido.”, in Exercício do Direito de Preferência, pág. 341, Porto/2006. Em suma, no caso da alínea a), direito sobre patrimónios ilíquidos, os direitos estão formados antes do casamento, mas só são materializados em bens concretos depois do casamento. Nos casos previstos nas alíneas b) e c), posse e reserva de propriedade, estamos perante situações em que os direitos se vão formando por etapas, progressivamente, culminando essa formação na constância do casamento, mas os efeitos retroagem, por força da lei, à data da primeira etapa. E no caso da alínea d), direito de preferência, a situação base factual e jurídica de onde emerge, mais tarde, o direito já existe antes do casamento, mas o direito, poderá só ter nascido antes ou durante o casamento. O que é certo é que, em todos as situações elencadas no n.º 2 do artigo 1722.º do Código Civil, a situação de facto fundamental geradora do direito próprio do cônjuge já se encontra constituída antes do casamento e não é fruto do esforço conjunto do casal. Outra exceção à comunhão conjugal é precisamente aquela que a Autora convoca e que se encontra prevista no artigo 1723.º, c) do Código Civil, onde se estabelece que conservam a qualidade de bens próprios “Os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges.” Neste segmento, torna-se imperioso salientar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2015, publicado no Diário da República n.º 200/2015, Série I de 2015-10-13, que determinou que “Estando em causa apenas os interesses dos cônjuges, que não os de terceiros, a omissão no título aquisitivo das menções constantes do art. 1723.º, c) do Código Civil, não impede que o cônjuge, dono exclusivo dos meios utilizados na aquisição de outros bens na constância do casamento no regime supletivo da comunhão de adquiridos, e ainda que não tenha intervindo no documento aquisitivo, prove por qualquer meio, que o bem adquirido o foi apenas com dinheiro ou seus bens próprios; feita essa prova, o bem adquirido é próprio, não integrando a comunhão conjugal”. Torna-se, ainda, relevante trazer à colação o disposto no artigo 1726.º, n.º 1 do Código Civil que prescreve que “os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações”, sem prejuízo da compensação devida pelo património comum aos patrimónios próprios dos cônjuges, ou por estes àquele, no momento da dissolução e partilha da comunhão, em conformidade com o n.º 2 deste preceito. Por sua vez, preceitua o artigo 1722.º, n.º 1, al. b) que são bens próprios aqueles que foram adquiridos após o casamento por via de doação. Uma vez aqui chegados, é imperioso concluir que ainda que a Autora não tenha intervindo na outorga do contrato de compra e venda e que do respetivo título aquisitivo do imóvel não conste a proveniência do dinheiro utilizado no pagamento do preço, seria admissível a prova através de outros meios probatórios que a maioria do dinheiro utilizado na compra é bem próprio da Autora. Assim, a questão decidenda centra-se em apreciar se o imóvel em causa é um bem próprio da Autora, por se verificar a situação prevista no artigo 1723.º, c) do Código Civil, conforme brandido pela Autora ou se, ao invés, se verifica a situação prevista no artigo 1722.º, n.º 1, c) do Código Civil, conforme excecionado pelo Réu e se, por essa via, fica afastada a pretensão da Autora. Revertendo, então, para o caso em apreço, examinada a malha factual apurada, inexistem quaisquer dúvidas que o prédio urbano objeto dos autos foi adquirido pelo Réu, único cônjuge que outorgou o contrato de compra e venda. Com efeito, da escritura pública outorgada não consta a intervenção da aqui Autora. Contudo, essa aquisição ocorreu na constância do matrimónio da Autora e Réu, pelo que, atendendo ao regime matrimonial de bens em vigor, à data da celebração desse contrato, o imóvel adquirido poderia integrar o património conjugal, caso não se verificasse nenhuma das exceções à comunhão conjugal previstas nos citados normativos. Avançando na análise dos factos assentes por acordo das partes, extrai-se dos mesmos que o prédio urbano objeto dos presentes autos foi atribuído à mãe do Réu, a título de habitação em fogo municipal, em 1964 e que, por força do óbito da sua mãe, o referido prédio foi atribuído ao Réu, em 1988, data em que este passou a ser o único titular da ocupação do prédio, no qual já habitava. Mais resultou assente que, em 1992, foi publicado no Diário Municipal n.º 16497, de 06/11/1992, o Regulamento para Alienação de Fogos Municipais que passou a permitir a venda dos fogos municipais aos titulares da ocupação dos mesmos. Em face do exposto, forçoso se torna, pois, concluir que o direito de adquirir o prédio aqui em causa nasceu na esfera jurídica do Réu, no ano de 1992, por força da entrada em vigor do citado Regulamento. Estamos, pois, claramente perante uma situação em que o direito do Autor adquirir o fogo municipal se formou ainda antes do casamento, ainda que só tenha sido exercido posteriormente. Na verdade, à semelhança dos casos exemplificados no n.º 2 do artigo 1722.º do Código Civil, a situação base factual e jurídica de onde emerge o direito do Réu verificou-se antes do casamento com a Autora, sendo inquestionável que esse direito nasceu aquando da entrada em vigor do Regulamento para Atribuição de Fogos Municipais, direito que, nessa data, já era certo e definido, como aliás se extrai das normas desse Regulamento. Ademais, dos factos já recolhidos nos autos também se extrai que o Réu manifestou vontade de adquirir sozinho o prédio, porquanto apesar de existir a possibilidade de transmitir esse direito ao cônjuge, não o fez. Com efeito, na situação em apreço, apenas o Réu interveio como adquirente na compra e venda, pelo que a Autora não beneficia do efeito translativo da propriedade decorrente do ato pelo qual se expressa a vontade de transmitir o direito, uma vez que a aquisição derivada de direitos reais se dá por mero efeito do contrato, conforme preceitua o artigo 408.º do Código Civil (entendimento que foi sufragado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19.12.2013, proc. n.º 20580/11.4T2SNT.L1-6, disponível em www.dgsi.pt,). Como tal, é sobejamente manifesto que o direito de aquisição do fogo municipal que estava atribuído ao Réu desde 1988, se concebeu na sua esfera jurídica em 1992, com a entrada em vigor do Regulamento, ou seja, em momento anterior à celebração do casamento, pelo que estamos perante um bem próprio do Réu, porquanto adquirido por virtude de direito próprio anterior, em conformidade com o disposto no artigo 1722.º, n.º 1, al. c) do Código Civil. E tratando-se de um bem próprio do Réu, nunca poderia o mesmo perder essa natureza para passar a ser reconhecido como bem próprio da Autora, conforme peticionado nesta ação, mesmo que se viesse a demonstrar que foi adquirido com dinheiro que era maioritariamente bem próprio da Autora. Razão pela qual, encontrando-se este Tribunal limitado aos pedidos formulados pela Autora, nos termos do disposto no artigo 609.º do CPC), se entendeu desnecessária a produção de prova relativamente a essa factualidade. Na verdade, o direito próprio do Réu anterior ao casamento é o facto jurídico que nasce em primeiro lugar na ordem jurídica e que não pode desvanecer só por causa da titularidade do dinheiro com que se adquiriu o bem (na sequência desse direito anterior) e sendo incompatível com a pretensão da Autora, só por si, obsta à procedência de todos os pedidos formulados pela Autora. Em face do exposto, terá de naufragar na totalidade a presente ação.»
A Apelante discorda deste entendimento, argumentando, em síntese, que: ao contrário do referido na sentença, a Apelante não baseou o seu pedido no disposto na alínea c) do artigo 1723.º do CC nunca o tendo invocado na sua Petição Inicial, antes fundamentou a sua pretensão no disposto no art. 1726.º, n.º 1, do CC, tendo sido feita uma incorreta interpretação e aplicação do direito aos factos considerados provados e aos que o Tribunal deveria ainda ter considerado.
O Apelado, ao invés, defende que inexiste erro de julgamento a este respeito.
Apreciando.
Além do já referido art. 1717.º do CC, importa lembrar os preceitos legais mais relevantes para a decisão da causa, aplicáveis por força do disposto no art. 1721.º do CC, nos termos do qual “Se o regime de bens adoptado pelos esposados, ou aplicado supletivamente, for o da comunhão de adquiridos, observar-se-á o disposto nos artigos seguintes.”
Assim, estabelece o art. 1724.º do CC que estão “integrados na comunhão” os seguintes bens: “a) O produto do trabalho dos cônjuges; b) Os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei.”
Em anotação a este art. 1724.º, explicavam Pires de Lima e Antunes Varela, no seu “Código Civil Anotado”, vol. IV, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 427, que, como regra geral, o património comum abrange todos os bens adquiridos com o produto dos rendimentos e com o produto do trabalho dos cônjuges, acrescentando, a propósito da alínea b), ser “assim, através de duas notas (uma positiva; outra negativa) que o artigo 1724.º fornece o diapasão jurídico para o apuramento dos bens comuns: por um lado, deve tratar-se de bens adquiridos (na constância do casamento); por outro, é necessário não se tratar de bens (adquiridos) que a lei considere como próprios. Entre os bens (adquiridos na constância do matrimónio) exceptuados por lei, contam-se os referidos nas alíneas b) e c) do artigo 1722.º, no artigo 1723.º e os considerados como próprios nos artigos 1726.º e seguintes.”
Com especial relevância para o caso em apreço, estabelece o art. 1722.º do CC, sob a epígrafe “Bens próprios”, que: “1. São considerados próprios dos cônjuges: a) Os bens que cada um deles tiver ao tempo da celebração do casamento; b) Os bens que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação; c) Os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior. 2. Consideram-se, entre outros, adquiridos por virtude de direito próprio anterior, sem prejuízo da compensação eventualmente devida ao património comum: a) Os bens adquiridos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos partilhados depois dele; b) Os bens adquiridos por usucapião fundada em posse que tenha o seu início antes do casamento; c) Os bens comprados antes do casamento com reserva de propriedade; d) Os bens adquiridos no exercício de direito de preferência fundado em situação já existente à data do casamento.”
Por outro lado, preceitua o art. 1723.º do CC [cuja alínea c) o Tribunal a quo considerou ser a norma de cuja aplicação a Autora pretendia beneficiar], sob a epígrafe “Bens sub-rogados no lugar de bens próprios”, que: “Conservam a qualidade de bens próprios: a) Os bens sub-rogados no lugar de bens próprios de um dos cônjuges por meio de troca directa; b) O preço dos bens próprios alienados; c) Os bens adquiridos ou as benfeitorias feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição, ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges.”
De referir, por último, o disposto no art. 1726.º do CC, com a epígrafe “Bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios e noutra parte com dinheiro ou bens comuns”, nos termos do qual: “1. Os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações. 2. Fica, porém, sempre salva a compensação devida pelo património comum aos patrimónios próprios dos cônjuges, ou por estes àquele, no momento da dissolução e partilha da comunhão.”
Tendo a Autora e o Réu estado casados no regime da comunhão de adquiridos (cf. art. 1717.º do CC) e o prédio em questão sido adquirido na pendência do casamento, poderíamos, à partida, considerar que se trata de um bem comum do casal, que faz parte da comunhão conjugal, por força do disposto no art. 1724.º, al. b), do CC.
Todavia, a Autora defende ser aplicável ao caso o disposto no art. 1726.º, n.º 1, do CC, e não o referido art. 1723.º, al. c), do CC.
Ora, desde já importa reconhecer que a Autora não alegou que o prédio tenha sido adquirido, única e exclusivamente, com dinheiro ou valores próprios seus, nem, aliás, a Apelante questiona a decisão recorrida quando afastou a aplicação deste preceito legal, apenas sublinhando não ser essa a norma de cuja aplicação se pretende prevalecer, mas antes o art. 1726.º, n.º 1, do CC.
Também é evidente que os factos que, nesta fase do processo, se encontram (plenamente) provados não permitem adiantar nenhum juízo a respeito da aplicabilidade desse específico preceito legal, sendo matéria de facto controvertida a da proveniência da maior parte do dinheiro (no montante de 28.650 €) utilizado no pagamento do preço da compra em apreço: se se trata de dinheiro doado à Autora pelo seu pai [sendo bem próprio – cf. art. 1722.º, n.º 1, al. b), do CC] ou antes de dinheiro emprestado ao casal entretanto restituído (portanto, passivo da comunhão que terá sido pago).
No entanto, isso não obsta a que se prossiga na análise do caso, apreciando se, ante os factos provados, e mesmo a provar-se a versão fáctica alegada pela Autora, o prédio (não) poderia ser considerado bem próprio desta. O Tribunal recorrido considerou que sendo aplicável a regra especial do art. 1722.º, n.º 1, al. c), ficava automaticamente afastada a aplicabilidade do art. 1726.º, n.º 1, do CC. Vejamos então, ante os factos plenamente provados, se é aplicável ao caso dos autos o disposto no art. 1722.º, n.º 1, al. c), do CC (como invocado pelo Réu), já que isso obstará à aplicação da aludida regra geral, prejudicando também a aplicação dos demais preceitos legais em tese aplicáveis.
Lembramos de novo as palavras de Pires de Lima e Antunes, na obra citada, pág. 423, agora em anotação ao art. 1722.º, afirmando ser exemplificativa a enumeração de situações prevista no n.º 2, tendo-se na alínea a) especialmente em vista o caso da herança indivisa, recebida antes do casamento, mas partilhada só depois deste, solução que se coaduna com a retroatividade da partilha (cf. art. 2119.º); acrescentam que a solução da alínea b) é consentânea com a doutrina geral enunciada no art. 1317.º, al. c), do CC, quanto ao momento da aquisição do direito de propriedade por usucapião; que na alínea c) estão previstos os bens comprados antes do casamento com reserva de propriedade, fazendo-se retroagir os efeitos da aquisição, para efeito da qualificação dos bens, à data da celebração do contrato; e que a alínea d) se refere a direitos adquiridos no exercício de direito de preferência (legal ou convencional) desde que a situação que serve de fundamento ao mesmo seja anterior à data do casamento; referindo, por último, que no círculo dos bens adquiridos por virtude de direito próprio anterior cabem ainda, “além de outros, os bens obtidos depois do casamento através de contrato aleatório realizado antes deste acto (bilhete de lotaria comprado antes e premiado depois do casamento) ou mediante contrato condicional, também efetuado antes do matrimónio”.
Ainda em busca de pistas na doutrina para a solução do caso dos autos, atentemos nos ensinamentos de Remédio Marques, in “Código Civil Anotado Livro IV Direito da Família”, Coord. Clara Sottomayor, Almedina, págs. 415-417, na anotação a este art. 1722.º, observando aquele autor que: “Os bens que ao abrigo desta al. c) são considerados próprios não resultam do esforço conjunto do casal, devendo, por conseguinte, escapar à massa comum, para pertencerem apenas ao cônjuge que os fez entrar para o casamento - COELHO, F. M. Pereira/OLIVEIRA, Guilherme (2016: 603). Vale dizer: a regra é a de que os bens que resultam do esforço conjunto dos cônjuges são comuns, pertencendo a ambos, não o sendo os que resultam do esforço, trabalho ou diligência apenas de um deles. Se um dos cônjuges - o cônjuge adquirente - adquirir sozinho um bem que resulta exclusivamente do seu esforço em virtude de um direito próprio, direito, esse, que já lhe cabia anteriormente ao casamento, dúvidas não existem de que se trata de um bem próprio desse cônjuge. O outro cônjuge (o cônjuge do adquirente ou cônjuge não adquirente, que, como tal, não outorga no contrato de aquisição, se de aquisição derivada se tratar, como ocorre na comum compra e venda) não terá contribuído, em regra, com qualquer esforço seu para a aquisição, limitando-se a ser o cônjuge de quem adquire. Pode suceder, porém, que a aquisição do bem se funde em direito próprio anterior, mas ambos os cônjuges figurem como compradores/adquirentes, conjuntos, do bem. Nestas eventualidades, por força dos princípios da causalidade e da consensualidade (art. 408º/1 CC), o direito de propriedade sobre o bem adquirido entra imediatamente na esfera dos bens comuns (exceto se a venda fosse feita com reserva de propriedade ou se se curasse de uma venda sujeita a condição suspensiva). Ocorre a eficácia real imediata da compra e venda, transferindo-se, por isso, o direito de propriedade sobre o bem para ambos os cônjuges, contanto que ambos outorguem na qualidade de adquirentes.”
Explica ainda este autor a razão de ser das situações exemplificativamente previstas nas alíneas a), b) e c), face ao regime aplicável às mesmas referindo designadamente que: “a ideia de que a partilha é uma mera concretização do quinhão hereditário, por isso mesmo que reveste natureza declarativa e desfruta de eficácia retroativa (art. 2119º CC) - tb., neste sentido, VARELA, J. de Matos Antunes (1996: 457). Os bens adquiridos por usucapião fundada no exercício de poderes de facto (posse) iniciado antes do casamento. Uma vez que a titularidade respeitante a esta aquisição originária de um direito real retroage à data do início da posse (art. 1317º, c, CC) - isto para evitar hiatos sempre indesejáveis no domínio das pessoas obre as coisas -, é perfeitamente adequado e coerente que o bem adquirido por este modo não ingresse na massa dos bens comuns. Com efeito, o cônjuge adquirente torna-se proprietário desde um período anterior à celebração do casamento.”
Acrescenta concordar com a solução segundo a qual a razão de ser da alínea d) do n.º 2 do art. 1722.º deve ser aplicada mesmo quando à “aquisição não subjaza o exercício formal de um direito de preferência, designadamente quando o cônjuge locatário compra o prédio ou fração autónoma ao locador, ainda que não tenha havido notificação para preferir provida dos respetivos requisitos formais - COELHO, F. M. Pereira/OLIVEIRA, Guilherme de (2016: 605). Quanto aos bens adquiridos na constância do casamento por causa do exercício de direito de preferência fundado em situação jurídica já existente à data da celebração do casamento, nem sempre esta aquisição para a massa dos bens próprios resulta de mecanismos e posições jurídicas negociais que alicerçam este direito potestativo do cônjuge (v.g., pacto de preferência, compropriedade, arrendamento para exercício do comércio, ou indústria, arrendamento para habitação, servidão de passagem, etc.); na verdade, esta entrada direta nos bens próprios do titular do direito de preferência (legal ou convencional) pode decorrer de situações em que não há um exercício formal do direito de preferência mas a situação aquisitiva só poderia dar-se (como se deu) por causa desse direito de preferência (e da situação de poder jurídico que poderia ser imposta pelo inquilino ao senhorio), designadamente quando este e aquele vendem e compram o prédio sem que o primeiro tenha notificado o inquilino para preferir. A aquisição não pode fundar-se em direito de preferência (anterior) quando a causa real da aquisição é um negócio jurídico em que intervenham como outorgantes, na qualidade de compradores, ambos os cônjuges. Nestas hipóteses, a causa real e efetiva da aquisição conjunta pelos cônjuges consiste na celebração de um contrato em que intervém como parte um sujeito (o outro cônjuge) totalmente estranho ao direito de preferência em causa - neste sentido, ac. STJ, de 3/07/2014.”
A este propósito, parece-nos oportuno lembrar precisamente este acórdão do STJ de 03-07-2014, proferido no proc. n.º 20580/11.4T2SNT.L1.S (disponível em www.dgsi.pt), cujo sumário tem o seguinte teor: “1. Não pode considerar-se adquirido no exercício de um direito de preferência, fundado em situação locatícia já existente à data do casamento, o bem cuja aquisição radica – não no exercício formal dos mecanismos da preferência legal – mas na celebração de negócio jurídico oneroso (compra e venda) em que intervieram voluntariamente ambos os cônjuges, assumindo ambos a posição de outorgantes e compradores do bem e destinatários dos efeitos jurídicos do contrato. 2. Não pode considerar-se adquirido, na sua maior parte, com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges o imóvel comprado mediante negócio em que intervieram, como compradores, ambos os cônjuges, essencialmente financiado através da concomitante celebração de mútuo bancário com hipoteca, cujas prestações foram, durante o período de vida em comum, suportadas por rendimentos comuns do casal. 3. A norma constante do nº1 do art. 1726º do CC tem em vista os casos em que o esforço patrimonial prevalecente na aquisição do bem haja recaído exclusivamente sobre um dos cônjuges – não traduzindo, porém, qualquer esforço patrimonial pessoal da A. a mera circunstância de, por via da existência do arrendamento vinculístico de que era titular, o valor venal do prédio estar degradado ou diminuído, reflectindo-se no preço convencionado para a venda em benefício do arrendatário.”
Continua ainda o referido autor, afirmando que: “Dado que a lista do nº 2 deste art. é meramente exemplificativa, é possível hipotizar muitas outras situações abrangidas pela previsão da norma, designadamente, os bens restituídos depois do casamento em consequência de anulação, declaração de nulidade ou resolução de negócios anteriores ao casamento; contratos condicionais anteriores ao casamento, mas em que a condição se tenha verificado depois dele; seguros celebrados antes do casamento, aí onde só na constância do casamento se tenha tornado exigível a respetiva importância; direitos adquiridos depois do casamento mas resultantes de contratos aleatórios celebrados antes dele (contanto que o boletim ou o bilhete tenha sido comprado antes do casamento e o sorteio seja posterior ao momento da sua celebração), que não envolvam o esforço, perícia ou quaisquer aptidões mentais de um ou dos dois cônjuges para obter o prémio. Quanto aos direitos de autor (nas dimensões moral e patrimonial) e demais direitos de propriedade intelectual, cfr., infra, anotação nº 2, al. d), ao art. 1722º. (…) Há dúvida sobre a questão de saber que categoria de direitos (anteriores ao casamento) pode alicerçar a pertença de um bem adquirido na constância do matrimónio. A questão é postulada em particular quanto à aquisição fundada em contrato-promessa celebrado antes do casamento. Alguma doutrina e jurisprudência sustentam que o bem adquirido mediante contrato promessa celebrado antes do casamento, cujo contrato prometido tenha sido formalizado na constância do casamento, somente será próprio do cônjuge promitente-comprador se tiver sido atribuída eficácia real ao contrato-promessa - ac. TRL, de 8/02/2001; ac. TRP, de 11/10/2004; ac. STJ, de 27/04/2005; XAVIER, Rita Lobo (2004: 5 ss.); concordando, aparentemente, com esta orientação, COELHO, F. M. Pereira/OLIVEIRA, Guilherme de (2016: 606) Não vejo razão para distinguir se o direito próprio é um direito real ou um direito meramente obrigacional, uma vez que não só a lei não distingue, como também sobreleva, nesta hipótese, a ausência de um esforço conjunto dos cônjuges na aquisição de tais bens. De resto, a al. d) deste mesmo preceito considera o direito de preferência como suscetível de fundar a titularidade exclusiva do cônjuge adquirente, sendo certo que o direito de preferência pode revestir eficácia real ou meramente obrigacional. Poderemos, desta maneira, imaginar (para além das situações referidas supra, no nº 2 desta anotação) muitas outras situações jurídicas em que os direitos adquiridos antes do casamento por um dos cônjuges fundam a titularidade exclusiva de outros bens ou direitos que lhe advenham na constância do matrimónio. É o caso dos direitos adquiridos depois do casamento mas resultantes de contratos aleatórios celebrados antes dele (v.g., prémios obtidos através de bilhetes do «Euromilhões», «raspadinha», «totobola», «totoloto», independentemente do meio pelo qual são jogados: em linha ou fora de linha, etc) - COELHO, F. M. Pereira/OLIVEIRA (2016: 605); LIMA, Pires de/VARELA, Antunes (1987: 423); PINHEIRO, Jorge Duarte (2008: 514); GONÇALVES, Luís da Cunha (1932: 515); dos bens adquiridos na constância do casamento por um dos cônjuges fundados em contratos a termo (suspensivo) ou condição (suspensiva) celebrados antes do casamento; dos bens adquiridos, na constância do casamento, pelo cônjuge mandante, no mandato sem representação estipulado antes do casamento, na sequência do exercício de ação de execução específica (creio que o art. 830º CC pode ser mobilizado, por analogia, a outras situações em que o devedor se recusa a transferir a propriedade da coisa adquirida para o credor da prestação.); dos bens adquiridos na constância do casamento na decorrência do exercício do direito potestativo de resolução atribuído ao vendedor na venda a retro celebrada pelo cônjuge antes da celebração do casamento.”
Também com interesse para a compreensão do regime, lembramos os ensinamentos de Rute Teixeira Pedro, in “Código Civil Anotado, 2017, VOLUME II (Artigos 1251.º a 2334.º)”, Coord. por Ana Prata, Almedina, págs. 626-629, quando afirma que, no âmbito da alínea a) do n.º 1 do art. 1722.º, o critério decisivo é um critério temporal - o da data da aquisição ser anterior à data da celebração do casamento; já na alínea b), que se refere a bens adquiridos na constância do casamento [pois os adquiridos anteriormente são subsumíveis à al. a)], o elemento de referência é o da gratuitidade da aquisição; referindo “finalmente, em terceiro lugar, aqueles bens que sejam adquiridos, na constância do matrimónio, ainda que onerosamente, por virtude de direito próprio anterior, que a lei exemplifica no n.º 2. (…) No n.º 2, a lei enuncia de forma não taxativa ("entre outros"), alguns exemplos de bens que devem subsumir-se à al. c) do n.º 1 por constituírem "bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior". Na al. a) do n.º 2, cabem os bens adquiridos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos cuja partilha ocorre depois dele. Pode apresentar-se como exemplo desta espécie o direito adquirido sobre uma quota de um património hereditário, cuja sucessão se abre antes da celebração do casamento (art. 2031.º), mas cuja concretização em espécie, através da partilha hereditária, só ocorre na constância do casamento. A solução que assim se aplica está em consonância com a eficácia retroativa atribuída à partilha, na medida em que, nos termos do art. 2119.º, uma vez feita a partilha, cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos, sem prejuízo do disposto quanto a frutos. À al. b) reconduzem-se os bens relativamente aos quais se verifica a prescrição aquisitiva de um direito real de gozo sobre um bem com base numa situação de posse prolongada por um certo lapso de tempo, nos termos dos arts. 1287.º e ss. Ora, nos termos do art. 1288.º, também a eficácia da usucapião é retroativa e, uma vez sendo invocada os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse: se esse início se deu antes da celebração do casamento, o bem adquirido será próprio do cônjuge possuidor. A al. c) reporta-se aos bens comprados antes do casamento com reserva de propriedade (art. 409.º). Também esta situação se caracteriza pela retroatividade dos efeitos aquisitivos à data da celebração do negócio, apesar de o efeito real se vir a produzir mais tarde, quando ocorra o facto, a cuja verificação se condicionou a transferência do direito real. Finalmente, a al. d) respeita aos bens adquiridos no exercício de direito de preferência fundado em situação já existente à data do casamento. Pensemos num bem adquirido com base no direito de preferência previsto no art. 1191.º, quando a relação locatícia que o funda se iniciou antes da celebração do casamento. Note-se que na al. d) não se verifica uma produção retroativa de efeitos aquisitivos: o direito real sobre o bem entra na esfera jurídica a partir da data da celebração do negócio que o titular da preferência celebra, em exercício dessa preferência em sentido técnico ou, segundo a doutrina (Pereira Coelho e Guilherme Oliveira, cit., p. 605.), no contexto da relação que fundamenta preferência, ainda que não haja um exercício formal da mesma. A propósito desta alínea discute-se se também será subsumível à al. c) do n.º 1 a aquisição de um bem, na constância do casamento, através de um contrato anteriormente prometido e cuja celebração ocorre em cumprimento de um contrato-promessa celebrado antes do casamento, em que o cônjuge assumiu a veste de promitente-adquirente. Há jurisprudência que faz depender a subsunção dessa hipótese ao art. 1722.º, n.º 1-c), à atribuição de eficácia real ao contrato-promessa (art. 413.º), o que importaria uma interpretação restritiva da al. d) do n.º 2, no sentido de que aí fossem integrados apenas as preferências legais e as preferências convencionais dotadas de eficácia real (art. 421.º). Contra tal entendimento manifestam-se Adriano Ramos de Paiva A comunhão de adquiridos cit., pp. 159 e 160, e Jorge Duarte Pinheiro, cit., p. 434, considerando que são bens próprios — por serem bens adquiridos em virtude de direito próprio adquirido antes do casamento —, sem prejuízo do direito de compensação ao património comum, os bens adquiridos, na constância do casamento, pelo cônjuge preferente ou pelo cônjuge-promitente, qualquer que seja a natureza da preferência (legal, ou convencional e, neste caso, quer esteja dotada de eficácia real, quer tenha eficácia meramente obrigacional) ou da promessa (tenha sido ou não revestida de eficácia real). Rita Lobo Xavier não chama à colação a norma do art. 1722.º,1-c), para qualificar o bem adquirido através de um contrato celebrado em cumprimento de um contrato-promessa, considerando decisiva, para esse efeito, a natureza própria ou comum dos bens utilizados no pagamento do preço, aplicando o regime dos arts. 1723.º e 1726.º ("Bem adquirido por cônjuge casado no regime de comunhão de adquiridos em cumprimento de contrato-promessa de compra e venda celebrado antes do casamento", in Lex Familiae: Revista Portuguesa de Direito da Família, Ano 1, n.º 2 (2005), pp. 5 e ss.). 3. Quando o bem seja considerado próprio por força da al. c) do n.º 1, nomeadamente com base numa das situações enunciadas no n.º 2, e forem utilizados bens comuns para o pagamento da quantia que constitua correspetivo da aquisição, haverá direito de compensação ao património comum.”
Antes de prosseguirmos com a análise do caso concreto, parece-nos útil lembrar a jurisprudência do citado acórdão do STJ de 03-07-2014, em face da qual não será de considerar que a solução da alínea d) do n.º 2 do art. 1722.º do CC (norma com natureza excecional, com alguma proximidade com a situação em apreço) abrange toda e qualquer situação em que à aquisição não subjaza o exercício formal de um direito de preferência, tanto mais que a letra da lei é muito clara (não prevê os bens adquiridos por quem fosse titular do direito de preferência), referindo expressamente “os bens adquiridos no exercício de direito de preferência” – ou seja, reporta-se a situações em que a aquisição se dá por via do exercício do direito de preferência, não parecendo bastar-se com a circunstância de ter sido feita por quem é, em abstrato, titular desse direito, por exemplo, arrendatário (cf. art. 1091.º do CC). É sabido que o reconhecimento judicial do direito de preferência tem efeito retroativo até ao momento da alienação, como se o contrato tivesse sido celebrado ab initio entre o alienante e o preferente, o qual substitui o adquirente que figurou no contrato [assim, a título de exemplo, cf. ac. do STJ de 17-11-202015, proc. n.º 480/11.9TBMCN.P1.S1]. Ademais, a razão de ser da alínea d) do n.º 2 do art. 1722.º estará, em sintonia com a da alínea c) do n.º 1 desse artigo, relacionada com o esforço posto pelo titular do direito de preferência (ou por aqueles a quem sucedeu) na aquisição da posição jurídica da qual emerge esse direito (uma vez que para isso, e consoante os casos, pagou um preço, rendas, impostos…). Daí que, no regime vigente, estando o carácter vinculístico do arrendamento consideravelmente mitigado, até seja questionável a aplicação da norma quando se verifica uma compra no quadro de uma normalíssima negociação entre comprador e senhorio, na perspetiva da cessação do contrato de arrendamento, tendo as partes considerado oportuna a realização da compra e venda - sendo o princípio geral o de que os bens que resultam do esforço conjunto dos cônjuges são comuns, pertencendo a ambos, o mais normal é que esse esforço comum exista na grande maioria das situações, fruto da vivência em comum e dos deveres dos cônjuges (cf. art. 1672.º do CC), podendo até acontecer que, embora um só dos cônjuges seja arrendatário, a renda esteja a ser paga com os rendimentos auferidos pelo outro.
No caso sub judice, o cerne da questão reside, a nosso ver, na natureza do “direito de ocupação”, havendo que decidir se pode ser assimilado ou considerado um “direito próprio anterior” nos termos e para os efeitos do disposto no art. 1722.º, n.º 1, al. c), do CC.
Ora, em face dos factos provados, não se descortina que a aquisição/manutenção dessa posição jurídica tenha envolvido para o Réu (ou para a sua mãe) um esforço, trabalho ou diligência individual, sendo antes evidente que ele se limitou a beneficiar, dada a sua situação familiar e económica, de um título de ocupação de um prédio municipal, por decisão administrativa, num quadro normativo orientado pelo interesse público de assegurar uma habitação digna a agregados familiares com rendimentos baixos, promovendo a inclusão social. Não se trata, muito menos o ulterior “direito de aquisição”, de um direito real, mas de uma licença de ocupação da respetiva habitação, com a inerente precariedade, no quadro do regime normativo aplicável.
É fora de dúvida que, na situação em apreço, esse “título de ocupação” determinou que o negócio de compra e venda tenha estado sujeito ao Regulamento para Alienação de Fogos Municipais, muito embora isso não signifique que o contrato em causa tenha natureza administrativa – neste sentido, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa de 01-02-1996, proferido no proc. n.º 1531/6/95, publicado na “Colectânea de Jurisprudência”, Tomo I/1996, de que citamos, pelo seu interesse, a seguinte passagem: “O facto de a venda estar subordinada ao regulamento camarário, não implica aquela qualificação. A situação é idêntica àquela e que uma fundação ou outra pessoa colectiva particular, de natureza ou finalidade beneficiente, como por exemplo uma misericórdia, decide vender fogos habitacionais de sua propriedade a cidadãos carecidos economicamente. Em regra a pessoa colectiva elabora um regulamento a que subordina a venda, quer para dar transparência à alienação em face dos associados ou o público em geral, quer para cumprir melhor o seu fim estatutário beneficente, no sentido de só ser contemplado quem mais carece da habitação. E neste caso ninguém dirá que esta subordinação da venda torna o contrato-promessa, que preceda eventualmente aquela venda, de natureza administrativa, ou altera a sua natureza clara de contrato de direito privado.”
Não estando em causa um direito real, nem tendo o contrato de compra e venda que foi celebrado pelo Réu natureza administrativa, tenderíamos a considerar, se o aludido “direito de aquisição” se tivesse constituído antes do casamento das partes, que o caso teria contornos mais próximos dos atinentes à celebração de contrato promessa de compra e venda antes do casamento, para cuja resolução se nos afigura preferível a posição defendida por Rita Lobo Xavier, acima citada e a jurisprudência nesse sentido, ilustrada pelos seguintes acórdãos:
- da Relação de Lisboa de 08-02-2001, no proc. n.º 0066612, em que foi rejeitada a aplicação do n.º 2 do art. 1722.º do CC num caso em que, antes da celebração do casamento, o cônjuge celebrou um contrato promessa de compra e venda tendo por objeto o apartamento, já que, tal contrato apenas gerou efeitos meramente obrigacionais, que, relativamente ao promitente comprador, consistem no direito a exigir do outro contraente a celebração do contrato prometido; deste modo, o facto de a aquisição do imóvel (que ocorreu na constância do matrimónio) ter sido precedida por um contrato promessa, não significa que tal aquisição ocorreu "por virtude de direito próprio anterior";
- do STJ de 27-04-2005, no proc. 838/05, publicado na “Colectânea de Jurisprudência”, n.º 184, Tomo II/2005, assim sumariado: “É de considerar bem comum o imóvel adquirido por um dos cônjuges na constância do casamento em regime de comunhão de adquiridos, ainda que o contrato-promessa de compra e venda tivesse sido celebrado antes do casamento”.
Não nos parece, todavia, que, no caso dos autos, a “pedra de toque” tenha a ver com o momento em que se constituiu o “direito de aquisição” do imóvel em apreço, muito menos que este seja de considerar constituído aquando da entrada em vigor do Regulamento para Alienação de Fogos Municipais, sendo certo que não vincula este Tribunal da Relação (cf. art. 5.º, n.º 3, do CPC) a interpretação que o Tribunal recorrido fez desse Regulamento, incluindo quanto ao vertido no elenco dos factos provados, quando aí se refere que o mesmo veio consagrar uma permissão de venda (em termos que, se bem se percebe, seriam equivalentes aos de uma espécie de promessa unilateral de venda) e ter-se constituído na esfera jurídica do Réu, por força da entrada em vigor do Regulamento, “o direito de adquirir o prédio aqui em causa”.
Na verdade, diversamente de uma lei que venha, por exemplo, consagrar um direito de preferência, o referido Regulamento publicado no Diário Municipal da CML de 06-11-1992 (conforme Edital n.º 124/92) limitou-se a regular alguns aspetos do regime para alienação de imóveis municipais, substituindo o anterior “Regulamento para Alienação de Fogos Municipais”, publicado no Diário Municipal de 30 de julho de 1981. Portanto, tratou-se de uma substituição de um diploma regulamentar por outro (o de 1992). Aliás, a inadequação deste, no âmbito procedimental e em matéria substantiva, determinou que viesse a ser substituído pelo Regulamento de Alienação de Imóveis Municipais, conforme se pode verificar pela leitura da versão republicada retificada deste último no 2.º Suplemento ao Boletim Municipal n.º 992, de 21-02-2013, entretanto revogado com a entrada em vigor do Regulamento do Património Imobiliário do Município de Lisboa, publicado no Diário da República n.º 126/2020, 1.º Suplemento, Série II de 2020-07-01 – cf. Aviso n.º 9897-A/2020, de 1 de julho de 2020. De modo algum resulta do Regulamento de 1992 que os ocupantes de fogos municipais se tivessem então, a 06-11-1992, tornado titulares do respetivo direito (potestativo) de aquisição.
Aliás, nem uma tal espécie de “auto vinculação”, por via de um mero regulamento municipal, seria compatível com os princípios subjacentes à gestão do património imobiliário do Município de Lisboa, conforme Regulamento de Património Municipal de 1968 sobre imóveis e património imobiliário (igualmente revogado com a entrada em vigor do referido Regulamento do Património Imobiliário do Município de Lisboa) e até com os princípios gerais da atividade administrativa, desde logo os princípios da legalidade, da prossecução do interesse público e da proporcionalidade. Veja-se, por exemplo, a Nota Justificativa deste último Regulamento, em que se dá conta de um conjunto de um conjunto de princípios norteadores da atuação do município, afirmando-se designadamente que: “A gestão imobiliária do Município de Lisboa subordina-se aos princípios do património imobiliário público, cumprindo destacar pela sua importância, os princípios da onerosidade e da equidade intergeracional, da concorrência, transparência, participação, controlo, responsabilidade e demais princípios estruturantes da atividade administrativa, nomeadamente, os princípios da legalidade e da prossecução do interesse público, proteção dos direitos e interesses dos cidadãos, da boa administração e da participação, entre outros que também regem o procedimento administrativo em sentido lato.”
Nesta linha de pensamento, se pronunciou o STJ no acórdão de 14-02-2008, proferido na Revista n.º 72/08 - 2.ª Secção (num caso a que adiante nos iremos referir com maior desenvolvimento, pela sua proximidade com o que nos ocupa), conforme se alcança do respetivo sumário, disponível em www.stj.pt: “I - O Regulamento para Alienação de Fogos Municipais, publicado no Diário Municipal (de Lisboa) de 06-11-1992, apenas estatui a quem cabe o direito de intervir, como comprador, na escritura de compra e venda dos fogos do bairro social do ..., determinando que esse direito cabe ao titular da ocupação, podendo, a seu pedido expresso, transmitir essa possibilidade ao cônjuge ou a quem com ele viva em união de facto ou aos descendentes que com ele coabitem em situação legal há mais de um ano e confirmada pelo processo de fogo, mas mantendo sempre o respectivo usufruto, sendo um dos requisitos da venda que esta seja feita a pronto pagamento, podendo ser autorizada a hipoteca do prédio ou fracção para efeitos de recurso a financiamento, destinando-se a venda à habitação permanente do adquirente e do seu agregado familiar e não sendo possível arrendar ou alienar o fogo durante sete anos. II - Com este Regulamento pretendeu-se apenas que a venda beneficiasse os ocupantes efectivos dos imóveis a alienar e nada mais. III - O mesmo Regulamento não conflitua (nem o poderia fazer) com o regime patrimonial dos cônjuges, o qual, embora revogável ou modificável antes da celebração do casamento, não é susceptível de alteração depois da celebração do casamento, fora os casos previstos na lei.”
Esta perspetiva é até evidenciada, no caso dos autos, pelo lapso de tempo decorrido entre a publicação do Regulamento municipal e a comunicação que veio a ser efetuada pela LISPATRIM, bem como o seu teor e o do formulário subscrito pelo Réu, tudo sugerindo que a venda de fogos municipais foi sendo implementada em função de iniciativas várias, mediante proposta dos próprios ocupantes, não dispensando nunca uma ponderação casuística das caraterísticas dos imóveis e dos agregados familiares que os ocupavam, sempre tendo em vista a prossecução do interesse público e o regime jurídico então aplicável.
De referir, aliás, que, à data em que o Regulamento foi publicado, o Réu nem sequer reunia todos os requisitos para ser candidato à aquisição, pois não era titular do direito de ocupação há mais de 4 anos. Portanto, a compra do prédio dos autos, propriedade do Município de Lisboa, era e continuou a ser para o Réu, durante anos, incluindo já depois do seu casamento, uma mera possibilidade ou expetativa, não resultando dos factos provados que o Município de Lisboa tenha passado a ficar, com a publicação daquele Regulamento, numa situação de vinculação em ordem a decidir no sentido da venda do imóvel em apreço ao Réu assim este a requeresse.
Volvidos anos após a publicação desse Regulamento, tendo o Réu, entretanto, constituído família, recebeu a aludida comunicação da LISPATRIM, datada de 15-04-2003, comunicação essa que tão pouco se nos afigura constituir uma verdadeira promessa de venda ou sequer uma proposta de venda, antes assumindo um pendor meramente informativo, lembrando ao Réu os mecanismos legais para, querendo, poder desencadear o procedimento administrativo tendente à venda ou desocupação do prédio, com base no preço indicado.
O Réu veio então proceder nessa conformidade, apresentando o requerimento que constituiu o doc. 9 junto com a Contestação, o qual, esse sim, constitui, conforme, aliás, expressamente indicado no mesmo, uma proposta, tendo sido essa proposta que deu início ao procedimento administrativo que culminou com o despacho de 21/03/2003 do Vice Presidente FF exarado na informação 1128/DAPI da ..., despacho esse expressamente mencionado na escritura pública, na qual outorgou, além do Réu, o Município de Lisboa e a Câmara Municipal de Lisboa.
Portanto, contrariamente ao que entendeu o Tribunal recorrido, inexiste um “direito de aquisição” constituído antes do casamento - com a publicação do aludido Regulamento Municipal - subsumível na previsão da al. c) do n.º 1 do art. 1722.º do CC. Resta apreciar se, tendo o imóvel sido comprado pelo Réu na constância do matrimónio, é de considerar, face ao aludido “direito de ocupação”, como adquirido por virtude de direito próprio anterior, ou seja, se o referido título de ocupação se reconduz à previsão do art. 1722.º, n.º 1, al. c), estando, assim, excetuado por lei [cf. a ressalva constante da parte final do art. 1724.º, al. b), do CC].
A questão reveste-se de alguma complexidade, até por convocar matérias de direito administrativo, estando em causa um direito de ocupação de imóvel habitacional que faz parte do património imobiliário do Município de Lisboa. Mas é bom não esquecer que o único direito a apreciar se trata, na verdade, de um mero título de ocupação de habitação municipal, um título de Direito Administrativo (e não de Direito Civil), no quadro da legislação então em vigor, designadamente o Regulamento do Património da Câmara Municipal de Lisboa aprovado em 1968 (revogado com a entrada em vigor do novo Regulamento do Património Imobiliário do Município de Lisboa – cf. Aviso n.º 9897-A/2020), título esse que não conferia ao ocupante um direito de aquisição, a qual apenas em 2003 se concretizou.
Parece-nos também importante não olvidar a natureza excecional da regra constante do art. 1722.º, n.º 1, al. c), do CC, em face do princípio geral de que os bens que resultam do esforço conjunto dos cônjuges são comuns, pertencendo a ambos.
Ora, no caso dos autos, mesmo a provarem-se os factos alegados pelo Réu, seria evidente o esforço conjunto do casal para a realização da compra. Por outro lado, a provarem-se os factos alegados pela Autora, adensa-se a controvérsia, mas tendemos a aceitar a aplicabilidade do disposto no art. 1726.º do CC, não se descortinando jurisprudência em contrário, mormente a do AUJ do STJ n.º 12/2015, de 13 de outubro, não obstante o regime de direito administrativo que foi aplicável à venda; na verdade, em tese, a Autora também poderia ter adquirido o prédio, por compra, para o que bastaria que o Réu tivesse dado a sua concordância, não se descortinando que existisse um obstáculo legal à confirmação de um eventual pedido do Réu pela entidade competente (considerando o “processo de fogo”), muito embora, nesse caso, o Réu, por ser o titular do direito de ocupação do fogo, tivesse mantido o respetivo usufruto (questão que o Réu nem suscitou, já que apenas concebe que o prédio seja considerado um bem próprio seu).
Em face destas considerações, já se antevê que terá sido prematuro o conhecimento do mérito da causa na fase do saneador, dada a natureza do “direito” de que o Réu era titular: um mero título de ocupação de habitação municipal, cuja aquisição, a título oneroso, foi negociada e concretizada na constância do casamento, mediante proposta daquele.
Efetivamente, a situação dos autos aproxima-se mais daquela que se verifica quando o ocupante de um prédio, a título de contrato de comodato (celebrado antes do casamento), negoceia (já na constância do matrimónio) com o seu proprietário a compra e venda do prédio, não sendo a circunstância de o preço acordado ser mais reduzido – por ex., em atenção à pessoa do comprador, ao prazo do comodato ou por se tratar de comodato vitalício (ainda que possa ser discutível a validade do mesmo) - critério relevante para que se possa considerar que o prédio foi adquirido por “direito próprio anterior”; a aquisição dá-se em virtude do contrato de compra e venda, não podendo, por exemplo, ser assimilada a uma aquisição por via do exercício do direito de preferência.
De certo modo, o caso dos autos também se aproxima do que foi apreciado no acórdão da Relação de Coimbra de 23-11-2010, proferido no proc. n.º 2347/08.9TJCBR.C1, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se refere que: “I - Apesar da diversidade das situações enumeradas no n.º 2 do artigo 1722.º do Código Civil, em todos os casos apontados a situação de facto fundamental geradora do direito próprio do cônjuge está constituída antes do casamento e não é fruto do esforço conjunto do casal. II - O grau de colaboração, cooperação ou esforço de ambos os cônjuges na aquisição do direito também é critério adjuvante para decidir quando estamos perante um «direito próprio anterior», para efeitos do disposto na al. c), do n.º 1, do artigo 1722.º do Código Civil. III - A inscrição do Autor numa cooperativa de habitação, cujos estatutos previam a realização posterior de um sorteio para atribuição das casas aos contemplados, altura em que seria também celebrado um contrato-promessa de compra e venda da casa, a vender apenas quando estivesse pago o seu custo, não converte a casa efectivamente adquirida mais tarde em bem próprio do cônjuge cooperante, «por virtude de direito próprio anterior», nos termos da al. c), do n.º 1, do artigo 1722.º do Código Civil, se o sorteio ocorre já na constância do casamento, assim como o pagamento da quase totalidade do seu preço através de empréstimo bancário contraído por ambos.”
A situação dos autos é idêntica a que foi apreciada pelo STJ no suprarreferido acórdão de 14-02-2008 (disponível para consulta por intermédio da Biblioteca do STJ) – tratava-se de uma ação em que o autor (ocupante de fogo municipal) demandava a ex-mulher, peticionando que se declarasse ser ele o único proprietário do prédio municipal; a ação foi julgada improcedente, o que foi confirmado por acórdão da Relação de Lisboa, tendo o STJ negado a revista; os factos provados nesse processo foram designadamente os seguintes: Autor e ré casaram entre si em ...-...-1989, no regime da comunhão de adquiridos; O casamento foi dissolvido por divórcio em ...-...-2001; O casal constituído por autor e ré viveu, na pendência do casamento, na ...), no bairro social do ..., em Lisboa; O prédio está descrito na (…) da freguesia da ... e inscrito na matriz predial da freguesia da ... no art. (…), constando inscrição de ...-...-1993 a favor do autor, casado no regime de comunhão de adquiridos com a ré, por compra; Em ...-...-1954, A. (…) foi admitida como ocupante do prédio, juntamente com o filho, C., mediante o pagamento de uma taxa, vindo M., mulher daquele, a ser admitida em ...-...-1954; O autor nasceu em ...-...-1955, sendo filho de C. e de M. e que com eles passou a residir no prédio; O fiscal comunicou o nascimento do autor à Câmara Municipal de Lisboa; A. faleceu em ...-...-1969, sucedendo-lhe C. enquanto ocupante; C. deixou de habitar o fogo em 1975, nele permanecendo o autor; O Município de Lisboa procedeu à venda dos fogos do bairro social do ... ao titular da ocupação, sendo um dos requisitos da venda que esta fosse feita a pronto pagamento, podendo ser autorizada a hipoteca do prédio ou fração para efeitos de recurso a financiamento, destinando-se a venda à habitação permanente do adquirente e do seu agregado familiar, ficando os adquirentes impedidos de arrendar e de alienar o fogo durante sete anos; Nos termos do n.º 2 do regulamento para alienação, publicado no Diário Municipal em 6-11-1992, a venda seria feita ao titular da ocupação, podendo, a seu pedido expresso, transmitir essa possibilidade ao cônjuge ou a quem com ele viva em união de facto ou aos descendentes que com eles coabitem em situação legal há mais de um ano e confirmada pelo processo de fogo, mas mantendo sempre o respetivo usufruto; O autor requereu à Câmara Municipal de Lisboa que lhe fosse vendido o prédio em causa; A Câmara Municipal de Lisboa emitiu informação de novembro de 1986, declarando não constar que o autor seja o titular da ocupação; A Câmara Municipal de Lisboa emitiu informação de Janeiro de 1990, declarando que “para comprar o fogo o requerente terá que proceder à mudança de titularidade. Assim, nesta situação, julga-se que o requerente não terá legitimidade para adquirir o fogo em causa. Propõe-se o indeferimento do respetivo processo”; Em 10-7-1987, C. declarou não estar interessado na aquisição do prédio; Em 28-7-1993, o autor outorgou na escritura de compra e venda do prédio, enquanto comprador, pelo preço de esc. 1.100.650$00; A quantia paga a título de preço pelo andar foi adiantada pela ré, fruto da venda de um andar da sua exclusiva propriedade; Em 8-4-1997, C. na conta bancária da C.G.D., balcão da ..., com o n.º (…); Essa conta era a conta conjunta do casal constituído pelo autor e ré, movimentada por ambos; Essa quantia foi entregue ao casal constituído pelo autor e ré para os ajudar.
Na fundamentação de direito desse acórdão, é feito o enquadramento jurídico do caso, lembrando o disposto nos artigos 1698.º, 1712.º, 1414.º, n.º 1, 1717.º, 1722.º, n.ºs 1 e 2, 1723.º, alíneas a) a c), 1727.º, 1728.º e 1733.º, n.º 1, als. a) a g), sendo ainda feitas as seguintes considerações: “Posto isto, cremos estarem reunidas as condições de dar a resposta à questão suscitada pelo recorrente e que consiste em saber, como se referiu, se o prédio, que está descrito na (…) C.R.Predial de Lisboa na ficha n.º (…) da freguesia da ... e inscrito na matriz predial da freguesia da ... no (…), constando inscrição de ...-...-1993 a favor do autor, casado no regime de comunhão de adquiridos com a ré, por compra, é um bem próprio do recorrente, por o ter adquirido, na constância do matrimónio, por virtude de direito próprio anterior (art. 1722º, nº1, al. c)), isto é, por ser ele o ocupante do imóvel, nos termos do art. 2º, nº1, do Regulamento para Alienação de Fogos Municipais. A resposta a esta questão não poderá deixar de ser negativa. O Regulamento para Alienação de Fogos Municipais, publicado no Diário Municipal, de 6 de Novembro de 1992, apenas estatui a quem cabe o direito de intervir, como comprador, na escritura de compra e venda, dos fogos do bairro social do ..., determinando que esse direito cabe ao titular da ocupação, podendo, a seu pedido expresso, transmitir essa possibilidade ao cônjuge ou a quem com ele viva em união de facto ou aos descendentes que com eles coabitem em situação legal há mais de um ano e confirmada pelo processo de fogo, mas mantendo sempre o respectivo usufruto, sendo um dos requisitos da venda que esta fosse feita a pronto pagamento, podendo ser autorizada a hipoteca do prédio ou fracção para efeitos de recurso a financiamento, destinando-se a venda à habitação permanente do adquirente e do seu agregado familiar, ficando os adquirentes impedidos de arrendar e de alienar o fogo durante sete anos. Teve-se, pois, em vista que a venda beneficiasse os ocupantes efectivos dos imóveis a alienar e nada mais que isso. Esse Regulamento não conflitua, nem o poderia fazer, com o regime matrimonial, o qual, como se disse, embora revogável ou modificável antes da celebração do casamento, não é susceptível de alteração, depois da celebração do casamento, fora dos casos previstos na lei. Por outro lado, porque o caso dos autos não cabe, manifestamente, na previsão das diversas disposições legais mencionadas e, designadamente, na invocada al. c) do nº 1 do art. 1722º (bens próprios de cada um dos cônjuges), então só resta concluir que o autor nunca poderia obter ganho de causa.”
Na esteira desta jurisprudência e pelas razões que já fomos adiantando, resta-nos concluir, que, em face da situação fáctica apurada, o Réu beneficiou, sem esforço próprio/exclusivo seu juridicamente relevante para efeitos do disposto no art. 1722.º, n.ºs 1, al. c), e 2, do CC, da atribuição de um “título de ocupação” de fogo municipal; posteriormente, já na constância do casamento, viu ser atendido o seu requerimento / proposta de compra (por um preço calculado nos termos do aludido Regulamento municipal), a qual foi apresentada, e até beneficiou (nisto as partes estão de acordo) do facto de o sogro lhe ter entregado a maior parte da verba necessária para pagamento do preço, sendo patente, na ótica do Réu, ao alegar que se tratou de um empréstimo feito ao casal (e pago pelo casal), que a aquisição resultou, pelo menos, do esforço conjunto dos cônjuges. Logo, a ser assim, quedaria afastada a aplicação daquele normativo, não se descortinando obstáculo legal (antes pelo contrário, face à jurisprudência firmada pelo AUJ do STJ n.º 12/2015 - Proc. 899/10.2TVLSB.L2.S1) para que a Autora não possa vir demonstrar a sua diferente versão dos factos a este respeito.
Ademais, contrariamente ao que entendeu o Tribunal a quo, não parece ser de enjeitar, à partida, a possibilidade de a ação vir a ser julgada parcialmente procedente, com o reconhecimento do direito de propriedade invocado pela Autora, embora não como bem próprio, mas tão somente como bem comum, a tanto não obstando o princípio do pedido, na vertente consagrada no art. 609.º, n.º 1, do CC, já que não se verificará uma infração dos limites da condenação (a determinar outra coisa ou coisa diversa - aliud), mas um minus relativamente ao que foi pedido. A este propósito, lembramos os ensinamentos de Miguel Mesquita, no comentário ao Acórdão da Relação do Porto de 8 de julho de 2010, “A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno Processo Civil”, publicado na Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 143.º Novembro-Dezembro de 2013, págs. 129-151, lembrando designadamente que: “que os juízes não devem ser extremamente formalistas na interpretação e aplicação dos princípios em que assenta o processo civil, sob pena de se perder a efectividade da justiça cível, algo essencial nos nossos dias. Um processo que não seja efectivo é um processo que nada resolve, que se perde em questiúnculas formais, adiando sistematicamente a resolução do litígio para as calendas gregas.”
Tudo ponderado, procedem, em parte, as conclusões da alegação de recurso, ao qual será concedido parcial provimento, com a revogação da decisão recorrida, reconhecendo-se, atento o estado dos autos e tendo em vista a aplicabilidade dos artigos 1724.º e 1726.º do CC, a necessidade de produção/apreciação de mais provas a respeito das alegações de facto que as partes fizeram quanto à proveniência do dinheiro (no montante de 28.650 €) utilizado para pagamento da maior parte do preço, pelo que se impõe relegar para final o conhecimento do mérito da causa, a fim de apurar se tal dinheiro foi doado à Autora (ou ao Réu, como este também alega, numa linha de defesa subsidiária) ou se foi emprestado ao casal pelo pai da Autora.
Ficam vencidas ambas as partes, sendo responsáveis pelo pagamento das custas do recurso, na proporção de metade (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).
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III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, decidindo-se, em substituição, determinar o prosseguimento dos autos, com a prolação de despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, seguindo-se a instrução, a fim de ser produzida prova sobre a matéria de facto controvertida acima identificada, atenta a sua relevância para a decisão da causa.
Mais se decide condenar Autora e Réu no pagamento das custas do recurso, na proporção de metade.
D.N.
Lisboa, 13-03-2025
Laurinda Gemas
João Paulo Raposo
António Moreira