Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
APELAÇÃO
QUESTÃO NOVA
RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA
CONSENTIMENTO
LEGES ARTIS
Sumário
I. O recurso de apelação destina-se a reapreciar a decisão recorrida, não a conhecer questões novas, salvo quanto às que sejam de conhecimento oficioso. II. Enquanto causa da responsabilidade civil médica, a falta de consentimento medicamente informado não pode ser trazida à lide tão-só em sede recursiva. III. No domínio da responsabilidade médica, a ilicitude representa a desconformidade da conduta médica com as leges artis, considerando nestas o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina no domínio em causa. IV. A prova da desconformidade da conduta médica com as legis artis constitui um ónus do lesado.
Texto Integral
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I. RELATÓRIO.
A A., AA, instaurou processo comum de declaração contra os RR., GESSA - CLÍNICA MÉDICA DAS FONTAÍNHAS, LDA., (GESSA, LDA), BB e CC, pedindo que estes sejam condenados a pagar-lhe, a título de danos morais, a quantia de €60.000,00, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, e a título de danos patrimoniais, as quantias que se vierem a liquidar em execução de sentença.
Como fundamento do seu pedido, a A. alegou, em suma, que contratou com a R. Gessa duas cirurgias, uma ao abdómem e outra às mamas, as quais foram efetuados pelos dois outros RR., em dezembro de 2017 e janeiro de 2018, nas instalações da R. Gessa, sendo que em tais cirurgias não foram seguidas regras básicas e o acompanhamento médico pós-operatório foi quase inexistente, tendo havido negligência médica grosseira, o que tudo acarretou a perda de mamilos, assimetria dos seios e cicatrizes profundas, encontrando-se a A. com uma profunda depressão e impedida de trabalhar, sem alegria de viver, incapaz de se ver ao espelho, com oscilações de humor e apatia, em choro quase permanentemente, com dores, dificuldades em dormir e de relacionamento sexual.
Referiu também desconhecer os tratamentos que tem de efetuar futuramente para corrigir a situação em que se encontra.
Os RR. contestaram.
O R. BB alegou que a petição inicial é inepta, por dela não constarem os factos que fundamentam o pedido da A., e impugnou, no essencial, o alegado pela A., referindo que realizou em 18.12.2017 uma abdominoplastia à A., a qual decorreu como devia decorrer, com os resultados pretendidos, e interveio como médico auxiliar na mastopexia realizada em 18.01.2018 na pessoa da A., sendo que em 17.04.2018 a mesma encontrava-se praticamente cicatrizada da mastopexia.
Nestes termos, concluiu pedindo a sua absolvição da instância e, subsidiariamente, a sua absolvição do pedido.
A R. Gessa referiu que não teve qualquer intervenção nas cirurgias referidas pela A. e cedeu aos dois outros RR. os espaços onde decorreram tais cirurgias, bem como deu apoio logístico na realização das mesmas, inexistindo qualquer contrato de trabalho ou de prestação de serviços entre a R. Gessa e os dois outros RR., bem como desconhecendo, no essencial, o demais alegado pela A., termos em que pediu a sua absolvição do pedido.
O R. CC alegou, em resumo, que a sua intervenção limitou-se a auxiliar o R. BB na mastopexia, a qual decorreu nas instalações da R. Gessa, com observância das leges artis, não tendo a A. contratado ou pago qualquer serviço ao R. CC.
Referiu também que a A. não aceitou qualquer possibilidade de nova intervenção sugerida pelos RR. BB e CC.
Concluiu pedindo a sua absolvição do pedido.
Invocando contratos de seguro profissionais, os RR. BB e CC requereram a intervenção principal provocada e, subsidiariamente, a intervenção acessória provocada da Ageas Portugal, Companhia de Seguros, SA.
Também invocando a celebração de um seguro, a R. Gessa requereu a intervenção principal provocada e, subsidiariamente, a intervenção acessória provocada da Victoria - Seguro, SA.
Foi admitida a intervenção principal provocada da AGEAS PORTUGAL, COMPANHIA DE SEGUROS, SA., e da VITORIA – SEGUROS, SA.
A Chamada Ageas, apresentou contestação, na qual, em resumo, confirmou a vigência dos alegados contrato de seguros e impugnou a factualidade alegada pela A., bem como fez suas as contestações apresentadas pelos RR. BB e CC.
A Chamada Vitória apresentou também contestação, na qual referiu que o contrato de seguro celebrado com a A. Gessa não cobre a responsabilidade contratual invocada pela A., nem cirurgias estéticas, sendo que os RR. BB e CC operaram a A. numa das clínicas da R. Gessa, mas não ao serviço desta e muito menos sob as suas ordens e responsabilidade, termos em que pediu a sua absolvição do pedido.
Notificada para o efeito, a A. pronunciou-se quanto à arguida ineptidão da petição inicial, concluindo que a mesma deve ser julgada improcedente.
Foi proferido despacho de aperfeiçoamento, na sequência do qual a A. veio explicitar que os danos invocados decorreram da operação realizada em 18.01.2018, na qual os AA. BB e CC estiveram presentes.
As partes juntaram diversos documentos.
Realizou-se a audiência prévia, na qual, além do mais, foi proferido despacho saneador, onde se julgou improcedente a invocada ineptidão da petição inicial, foi identificado o objeto do litígio e foram enunciados os temas da prova.
Foram realizadas perícias médico-legais à pessoa da A., tendo o Gabinete Médico-Legal da Grande Lisboa Noroeste, Serviço de Clínica e Patologia Forenses, elaborado relatório final em 23.12.2023, relativamente a perícia de avaliação do dano corporal em direito cível.
Procedeu-se a julgamento, com sessão em 06.06, 18.06, 25.06 e 27.06.2024
Em 24.09.2024 o Juízo Central Cível de Sintra proferiu sentença que julgou a ação improcedente por não provada, absolvendo «os RR. e as Intervenientes dos pedidos contra eles formulados».
Inconformada com tal decisão, dela recorreu a A., apresentando as seguintes conclusões:
«A Como resulta dos autos e no documento assinado pela recorrente, esta não foi informada dos riscos concretos em relação às consequências que resultaram da operação a que a mesma foi sujeita, como impõe a lei de bases da saúde, (Base xiv), da lei 48/90 de 21 de agosto.
B Consequências estas que acontecem com alguma frequência, como foi declarado por testemunhas médicas e no tipo de operação em causa, (necrose dos mamilos), e como foi expresso na sentença, razão para que devesse constar do aludido documento de consentimento esclarecido.
C Assim, salvo melhor opinião, não resulta dos autos que a recorrente tivesse o conhecimento esclarecido das consequências que podiam decorrer da cirurgia a que foi sujeita.
D Conhecimento este que deveria ter sido transmitido pelos recorridos, e que na sua falta não afasta a ilicitude dos actos praticados;
E Ao considerar na douta sentença a existência do consentimento informado pela recorrida, a mesma viola o previsto na base XIV, nº1, alínea e). da lei 48/90 de 21 de agosto
F No caso em análise nos autos estamos perante uma relação contratual entre médicos e doente.
G Resulta do artigo 799º do código civil que incumbe ao devedor da obrigação provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não percebe culpa sua.
H Ao ser fundamentado na outra sentença para a decisão da absolvição dos réus que a autora não logrou provar que as consequências resultantes da intervenção cirúrgica resultaram da falta da de cumprimento da “legis artis”, foi violado o artigo 799º do código civil, uma vez que não foi atendido, a inversão do ónus da prova, a cargo dos recorridos.
I Demonstração esta que os mesmos recorridos não lograram fazer prova;
J Ainda que a decisão do Conselho da ordem dos médicos e o inquérito que correu termos no Ministério Público tenham acabado com os arquivamentos dos respetivos processos, uma vez que nestes a aplicação do princípio da inversão do ónus da prova não se coloca no caso concreto, devido à presunção de inocência e que não se aplica ao incumprimento ou cumprimento defeituoso das obrigações contratuais, a ser afastada pelos obrigados na respectiva prestação.
L Resultando provado que das sequelas da intervenção cirúrgica em causa uma agudização a sintomatologia depressiva, e todas as outras que resultam da matéria de facto provada, salvo melhor opinião, dúvidas não existem que os recorridos devem indemnizar a recorrente por tais anos, conforme peticionado pela autora, atenta a gravidade de tais de danos.
M Considera-se assim, que estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil, incluindo o nexo causal entre o facto e o dano, e a imputação do facto ao agente, questões que não se levantam no caso concreto.
Termos em que sempre com o douto suprimento de V.Exª, deve o presente recurso ser considerado procedente, e, em consequência, revogada a douta sentença, substituindo-se por douta decisão que condene os recorridos no peticionado pela recorrente».
Os RR. e a Chamada AGEAS contra-alegaram, sustentando a manutenção da sentença recorrida.
Colhidos os vistos, cumpre ora apreciar a decidir. II. OBJETO DO RECURSO.
Atento o disposto nos artigos 663.º, n.º 2, 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPCivil, as conclusões do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de questões que devam oficiosamente ser apreciadas e decididas por este Tribunal da Relação de Lisboa.
Nestes termos, atentas as conclusões deduzidas pela A., não havendo questões de conhecimento oficioso a dilucidar, cumpre no presente recurso apreciar e decidir tão-só da responsabilidade civil das RR. e Chamadas.
Assim. III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
O Tribunal recorrido deu como verificados os seguintes factos, os quais não foram impugnados pelas partes, designadamente pela A./Recorrente, conforme artigo 640.º do CPCivil, pelo que se têm aqui por provados:
a) A A. efetuou duas cirurgias designadas por abdmominoplastia e mastopexia, esta última por aconselhamento médico;
b) As cirurgias foram efetuadas, respetivamente, em dezembro de 2017 e janeiro de 2018;
c) As cirurgias foram realizadas nas instalações da R. Gessa;
d) A abdmonioplastia foi realizada pelo R. BB no dia 18 de dezembro de 2017, sem intercorrências, não resultando da mesma quaisquer consequências para a saúde da A.;
e) Inicialmente a mastopexia e a abdmonioplastia eram para serem efetuadas na mesma altura;
f) Na mastopexia realizada no dia 18 de janeiro de 2018 estiveram presentes os RR. BB e CC;
g) A A. foi seguida pelo R. BB;
h) Com a mastopexia a A. pretendia uma redução mamária, devido ao excesso de peso que já afetava a sua coluna;
i) Na sequência da mastopexia a A. apresenta as seguintes sequelas:
• Assimetria das mamas, apresentando-se a direita acima do nível da esquerda;
• Cicatriz periaureolar bilateralmente;
• Cicatriz inferior ao mamilo, bilateralmente, vertical, com 7 cm de comprimento;
• Cicatriz inframamilar, bilateral, horizontal, desde o esterno à linha axilar média, com 26 cm de comprimento cada;
• Ausência de mamilo direito.
j) Em consequência das sequelas resultantes da mastopexia verificou-se uma agudização da sintomatologia depressiva apresentada pela A., sem adesão da A. aos tratamentos propostos, o que contribuiu muito substancialmente para a manutenção desse mesmo quadro clínico;
k) A A. está a ser acompanhada pelas especialidades de psicologia e psiquiatria;
l) Após a mastopexia a A. evita olhar-se ao espelho quando se encontra a cuidar da sua higiene;
m) Após a mastopexia a A. não teve qualquer tipo de relação, não se sentindo com vontade de ter qualquer relacionamento sexual;
n) A A. tinha 57 anos à data das operações;
o) Era uma mulher feliz com muita vivacidade e alegria de viver;
p) Tinha inúmeros amigos com quem convivia diariamente;
q) Após a mastopexia a A. perdeu a alegria, tem apatia, choro fácil, não saindo de casa exceto para resolver qualquer assunto que tenha que resolver pessoalmente;
r) Em 22 de Outubro de 2018 foi remetida pela A. à ordem dos médicos uma participação contra os RR. BB e CC, a qual deu lugar a processo de averiguação, no âmbito do qual foi proferido em 7 de junho de 2022 decisão de arquivamento, confirmada por Acórdão proferido em 15 de março de 20241 no Processo nº ...-...23 do Conselho Superior da Ordem dos Médicos;
s) Em 7 de Junho de 2019 foi apresentada uma queixa-crime pela A., a qual deu lugar à instauração do Inquérito nº ..., pendente nos serviços do ..., no âmbito do qual foi proferido em 5 de maio de 2023 despacho de arquivamento;
t) O R. BB celebrou com a Interveniente AGEAS PORTUGAL, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., o contrato de seguro de responsabilidade civil geral e profissional, titulado pela Apólice número ........0477, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, encontrando-se o mesmo em vigor à data de 18 de janeiro de 2018, mediante o qual transferiu para a mesma a responsabilidade decorrente do exercício da sua atividade médica como cirurgião plástico;
u) O R. BB tomou contacto com a A. pela primeira vez no dia 29 de maio de 2017, na sequência da realização de uma consulta médica solicitada pela mesma e realizada nas instalações da R. Gessa;
v) No âmbito da referida consulta, a A., queixou-se da face descaída e envelhecida, de excesso de pele abdominal associada à gordura localizada nos flancos e abdómen e relatou igualmente sentir-se incomodada pelas mamas descaídas e pesadas;
w) Atendendo ao número e complexidade de procedimentos convocados pelas intervenções nas diversas zonas de que se queixou a A., o R. BB recomendou-lhe que as cirurgias fossem realizadas por etapas, recomendação esta que mereceu a anuência da A.;
x) Durante o procedimento referido em d), o R. BB, tomou a decisão de não avançar naquele momento com a mastopexia;
y) A A. acordou normalmente da abdominoplastia e, ainda no recobro, foi informada pelo R. BB de que este tinha decidido não realizar a mastopexia por precaução para a saúde da A.;
z) Em 28 de dezembro de 2017, a A. compareceu nas instalações da R. Gessa para proceder à retirada de pontos decorrentes da cirurgia referida em d) e manifestou prontamente ao R. BB a sua vontade em realizar a mastopexia o mais depressa possível;
aa) Na mastopexia realizada em 18 de janeiro de 2018, o R. BB entregou o bisturi ao R. CC para que este iniciasse os procedimentos cirúrgicos, o que o mesmo fez;
bb) Antes de ser realizada a mastopexia, o R. BB agendou uma consulta com a A. nas instalações da R. Gessa, na qual esteve presente o R. CC e que teve lugar no dia 17 de janeiro de 2018;
cc) Na sequência da consulta supra referida, a A. manifestou vontade de avançar com a mastopexia com a intervenção do R. CC;
dd) Foi o R. CC quem realizou a descrição cirúrgica, detalhando os procedimentos realizados;
ee) Antes da realização da mastopexia a A. era portadora de gigantismo mamário e ptose acentuada da mama, apresentando as mamas uma ligeira assimetria;
ff) Uma vez realizada a mastopexia, a A. foi seguida em consultas de pós-operatório, pelo R. BB e pelo R. CC, em ocasiões diferentes;
gg) O R. BB foi sempre acompanhando o estado clínico da A., quer através de consultas presenciais, quer de contactos telefónicos com envio de fotografias detalhando a evolução do estado de saúde da A. após a mastopexia;
hh) Em 22 de janeiro de 2018, a A. compareceu a uma consulta médica com o R. BB, que documentou a evolução do seu estado;
ii) Em 24 de janeiro de 2018, a A. compareceu a nova consulta médica com o R. BB, que novamente documentou a evolução do seu estado;
jj) Em 26 de janeiro de 2018, o R. BB conversou por telefone com a A., que lhe enviou fotografias das mamas;
kk) Em 31 de janeiro de 2018, a A. enviou novas fotografias das mamas ao R. BB;
ll) Em 2 de fevereiro de 2018, a A. compareceu a nova consulta médica com o R. BB, que novamente documentou a evolução do seu estado;
mm) Em 8 de fevereiro de 2018, a A. enviou novas fotografias das mamas ao R. BB;
nn) Em 12 de fevereiro de 2018, a A. compareceu a nova consulta médica com o R. BB;
oo) Em 22 de fevereiro de 2018, a A. compareceu a nova consulta médica com o R. BB, que novamente documentou a evolução do seu estado, tendo constatado que a A. estava praticamente cicatrizada;
pp) Em 8 de março de 2018, a A. compareceu a nova consulta médica com o R. BB, que mais uma vez documentou a evolução do seu estado;
qq) Em 20 de março de 2018, a A. enviou novas fotografias das mamas ao R. BB;
rr) Em 17 de abril de 2018, a A. enviou novas fotografias das mamas ao R. BB, data em que se encontrava praticamente cicatrizada da mastopexia;
ss) Em 26 de abril de 2017, a A. compareceu a consulta médica de revisão, na qual foi agendada cirurgia para marcação da aréola direita, retirar pele ao redor da mesma bem como um pouco na vertical, e fazer um retalho “C-V” para criar o mamilo e colocar um implante maior desse lado; relativamente à mama esquerda, foi agendada mastopexia e retirada de volume de tecido e mais pele e colocação de implante menor;
tt) A R. Gessa desenvolve a sua atuação na área da saúde;
uu) Os RR. BB e CC são médicos cirurgiões, que exercem a sua atividade como profissionais liberas que contratam com os utentes a quem diretamente prestam os seus serviços profissionais, não tendo qualquer vínculo laboral com a R. Gessa;
vv) Os RR. BB e CC apenas utilizam as instalações da R. Gessa para realizar as cirurgias que executam a título profissional, autónomo e independente aos seus utentes;
ww) Os RR. BB e CC não são prestadores de serviços da R. Gessa;
xx) Os RR. BB e CC apenas utilizam as instalações, nomeadamente, os blocos operatórios, os equipamentos e o pessoal da R. Gessa, para, de forma autónoma e independente, operarem os seus pacientes, tendo sido nesse contexto que a A. foi ali operada;
yy) A A. contratou os serviços do R. BB para realizar uma cirurgia tripla, abdominoplastia, lipoaspiração e mastopexia;
zz) Para efeitos da realização da cirurgia de mastopexia, o R. BB celebrou com a R. Gessa um contrato de locação/utilização da unidade cirúrgica e de prestação de serviços logísticos conexos, ou seja, de bloco operatório, sala de recobro e de equipagem de enfermagem para fazer o acompanhamento pós-operatório;
aaa) A R. Gessa limitou-se a ceder aos RR. BB e CC o bloco operatório e a equipa de apoio logístico da sua unidade de cirurgia para eles prestarem à A. os serviços cirúrgicos que esta contratara ao R. BB;
bbb) Relativamente à intervenção cirúrgica da mastopexia não houve qualquer tipo de pagamento da A. à R. Clínica;
ccc) Quem pagou a utilização do espaço/bloco operatório, recobro e consumíveis complementares à R. Gessa relativos à mastopexia foi a sociedade ...;
ddd) A 17 de fevereiro de 2016 foi celebrado entre a R. Gessa e a Interveniente VICTORIA – Seguro, S.A., um contrato de seguro de responsabilidade civil, titulado pela apólice n.º 11064331, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, encontrando-se o mesmo em vigor à data de 18 de janeiro de 2018;
eee) O R. CC celebrou com a Interveniente AGEAS PORTUGAL, COMPANHIA DE SEGUROS SA, um contrato de seguro de responsabilidade civil geral e profissional, com o n.º de apólice ...2019, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, encontrando-se o mesmo em vigor à data de 18 de janeiro de 2018, mediante o qual transferiu para a mesma a responsabilidade decorrente do exercício da sua atividade médica como cirurgião plástico;
fff) O R. CC é médico-cirurgião plástico exercendo a sua atividade em diversos locais do país e no Brasil;
ggg) Um dos locais onde o R. CC exercia a sua atividade e efetuava as suas cirurgias era, à data dos factos, a R. Gessa, utilizando o espaço, sem ter com a mesma qualquer vínculo;
hhh) A A. não era paciente do R. CC;
iii) Por mensagem de 23 de dezembro de 2017, o R. BB pediu ajuda ao R. CC, para que este o auxiliasse na realização da mastopexia à A., ao que o R. CC anuiu;
jjj) Na consulta referida em bb), onde o R. CC viu a A. pela primeira vez, a A. foi devidamente informada da existência de limitações à cirurgia devido à grande “queda” da mama e dos mamilos se encontrarem em posição muito inferior;
kkk) Ciente das limitações à cirurgia a A., que já tinha assinado o termo de consentimento informado, avançou para a mastopexia, tendo o procedimento cirúrgico sido agendado e marcado pelo R. BB, nas instalações da R. Gessa, com toda a sua equipa, anestesiologista e instrumentista, para o dia 18 de janeiro de 2018, às 8 h.;
lll) Na cirurgia, o R. BB entregou o bisturi ao R. CC para que este iniciasse os procedimentos cirúrgicos, com decisões conjuntas por parte destes dois RR.;
mmm) Durante a cirurgia o procedimento iniciou-se pela mama direita, reduzindo toda a parte inferior e confecionando um retalho de mama sem a pele, somente com a areola para ascender ao ponto superior, retirando toda a vascularização cutânea e só permanecendo a vascularização profunda que iria rodar para ascender ao ponto superior onde se queria o mamilo;
nnn) Na rotação, o complexo areolo mamilar da A. não apresentava vascularização, pelo que os RR. BB e CC, decidiram pela enxertia;
ooo) Na mama esquerda foi rigorosamente realizado o mesmo procedimento, ressecado o polo inferior da mama e realizado o retalho com a areola para ascender ao que se chama ponto “A.”;
ppp) Nesse momento foi montada a segunda mama e comparadas as possíveis diferenças e com a segurança de não desvascularizar a areola, retirado mais tecido e realizada a lipoaspiração das laterais da mama;
qqq) Após a cirurgia a A. foi conduzida ao recobro para recuperação pós anestésica;
rrr) O R. CC não foi pago pela A. por qualquer serviço;
sss) Em 24 de janeiro de 2018, aquando da consulta referida em ii), o R. CC estava também na clínica da R. Gessa, e examinou a A. em conjunto com o R. BB, tendo verificado que a mesma apresentava algumas equimoses difusas em ambas as mamas, enxerto de areola à direita ainda em processo de reintegração e pequenas áreas de epidermólise na areola esquerda sem significado clínico; não apresentava sinais de hematomas ou infeções e estava em processo de recuperação;
ttt) Após o dia 24 de janeiro de 2018, só em 19 de março de 2018, o R. CC recebeu um contato da A., através de uma mensagem na sua página profissional do Facebook, tendo esta enviado duas fotografias, por si tiradas e alegadamente correspondentes ao pós-operatório de dois2 meses, nas quais se evidenciava a completa cicatrização da mama esquerda e pequena área e epitelização na areola da mama direita correspondendo à localização do mamilo enxertado, não havendo qualquer referência a assimetria mamária;
uuu) Entre as datas referidas em sss) e ttt) a A. não entrou em contato com o R. CC ou com qualquer outro membro da sua equipa de trabalho, relativamente a qualquer insatisfação com o resultado ou referente a qualquer intercorrência decorrente da mastopexia;
vvv) Tendo a A. uma consulta agendada para o 26 de abril de 2018, com o R. BB, a mesma também foi avaliada nessa data pelo R. CC;
www) A A., nessa data não autorizou qualquer registo fotográfico das mamas para documentar a situação que lhe desagradava, a saber, a assimetria mamária e as cicatrizes extensas até à linha posterior axilar;
xxx) O R. CC explicou à A. que devido à sua mama ser extremamente flácida e ao excesso de pele, bem como ao facto da mama terminar na linha axilar posterior, a incisão necessitava de terminar nessa posição, caso contrário haveria um excesso de pele causando uma deformidade ao nível axilar por excesso de pele e tecido mamário;
yyy) Foi igualmente explicado à A. que em relação à assimetria a mesma ocorria porque devido à insuficiência vascular das areolas, os RR. CC e BB tinham optado durante a cirurgia por não retirar mais tecido mamário à esquerda, visto essa assimetria não ser tão evidente podendo ser corrigida num período posterior;
zzz) A A. foi igualmente esclarecida que a solução passaria pela redução da mama esquerda, procedimento menos agressivo e com resultado eficaz, evitando colocar implantes mamários que além de serem um peso maior à mama, necessitariam de substituição futura;
aaaa) A A. mostrou-se extremamente agressiva com a situação, não aceitando qualquer possibilidade de nova intervenção para simetrização das mamas, deixando o consultório, expondo o peito na receção à frente de outros pacientes da clínica aos gritos a falar mal dos médicos que a tinham operado;
bbbb) Relativamente à mastopexia, realizada em 18 de janeiro de 2018, a R. Gessa não faturou o que quer que fosse à A.;
cccc) Para cumprir a obrigação assumida perante a A., sua paciente, o R. BB solicitou à R. Gessa que lhe cedesse o espaço, nomeadamente o bloco operatório e a sala de recobro, os equipamentos e os recursos humanos necessários à execução do programa cirúrgico que acordara com a A.
*
O Tribunal recorrido deu como não provados os seguintes factos, os quais não foram impugnados pelas partes, conforme artigo 640.º do CPCivil, e, por isso, se têm por assente como tal3:
i - Não se provou que a A. contratou com a clínica da ..., sita na ... ..., a execução de duas cirurgias, uma ao abdómen e outra às mamas;
ii - Não se provou que os RR. BB e CC, ambos trabalhavam na clínica da 1ª R.;
iii - Não se provou que a A. e a 1ª R. celebraram um contrato de serviços médicos de redução mamária;
iv - Não se provou que a A. foi seguida, relativamente à intervenção cirúrgica nas mamas, pelo R. CC;
v - Não se provou que na mastopexia não foram seguidos os procedimentos protocolados e os mais correctos neste tipo de cirurgia;
vi - Não se provou que na mastopexia foram violadas regras científicas e técnicas e princípios profissionais que os RR. BB e CC tivessem a obrigação de conhecer e utilizar tendo em conta o estado da ciência e o estado concreto da A.;
vii - Não se provou que as situações referidas em i) foram consequência da violação na mastopexia de regras científicas e técnicas e princípios profissionais que os RR. BB e CC tivessem a obrigação de conhecer e utilizar tendo em conta o estado da ciência e o estado concreto da A.;
viii - Não se provou que a A. se encontra atualmente no estado em que se encontrava em 26 de janeiro de 2018;
ix - Não se se provou que da mastopexia resultou a perda de ambos os mamilos;
x - Não se provou que o acompanhamento pós-operatório da A. foi quase inexistente;
xi - Não se provou que a A. tenha tomado a medicação que lhe foi prescrita, nomeadamente, paroxetina, vortioxetina e alprazolam;
xii - Não se provou que a medicação prescrita, não fosse suscetível de melhorar sensivelmente o estado clínico da A. se tomada por esta;
xiii - Não se provou que foi em consequência da mastopexia e em razão da agudização da sintomatologia depressiva apresentada que a A. não voltou a trabalhar;
xiv - Não se provou que em consequência da mastopexia a A. se encontre com uma depressão profunda, impedindo-a de trabalhar;
xv - Não se provou que atualmente a A. vive uma enorme angústia, sem saber se a situação de saúde em que se encontra tem solução;
xvi - Não se provou após a mastopexia a A. tem grandes dificuldades em dormir;
xvii - Não se provou que após a mastopexia a A. vive com dores e dificuldades em movimentar os braços;
xviii - Não se provou que não foi proposta à A. qualquer solução para resolver o seu estado físico;
xix - Não se provou que o R. BB, durante o procedimento referido em d) dos factos provados, tomou a decisão de não avançar naquele momento com a mastopexia pelo facto de ter considerado que a realização da mastopexia imediatamente a seguir à abdominoplastia importaria riscos para a saúde da A.;
xx - Não se provou que o R. BB não foi o cirurgião da mastopexia realizada nas instalações da 1.ª R. em 18 de janeiro de 2018, nela apenas tendo intervindo enquanto médico auxiliar;
xxi - Não se provou que em 28 de dezembro de 2017, o R. BB explicou à A. que, caso assim o desejasse, poderia recomendar-lhe um colega para realizar a mastopexia;
xxii - Não se provou que a A. aceitou a recomendação do R. BB, tendo logo então ficado ciente de que quem a iria operar seria o R. CC, e não o R. BB;
xxiii - Não se provou que o R. BB remeteu prontamente o processo clínico da A. ao R. CC, que, depois de o analisar, transmitiu ao R. BB que estaria em condições de operar a A.;
xxiv - Não se provou que foi na sequência da aceitação do R. CC, que estaria em condições de operar a A., que o R. BB agendou a consulta médica referida em bb);
xxv - Não se provou que na sequência da consulta referida em bb), a A. manifestou vontade de avançar com a mastopexia com o R. CC enquanto cirurgião, intervindo o R. BB apenas na qualidade de médico auxiliar;
xxvi - Não se provou que o R. BB não tirou as medidas, não fez o planeamento da cirurgia, nem decidiu qual a técnica que iria ser usada, nem que tudo isto foi decidido, como lhe competia, pelo R. CC;
xxvii - Não se provou que a consulta referida em bb) foi realizada entre a A. e o R. CC;
xxviii - Não se provou que na consulta referida em bb) foi explicado à A. que, devido ao elevado grau da ptose mamária, o risco de sofrimento das areolas era enorme, uma vez que na redução do volume mamário e na ascensão do Complexo areolo mamilar (CAM) estes podem ter insuficiência da vascularização e haver necrose (morte tecidual) dos mesmos, podendo haver a necessidade de serem enxertados, tirados da vascularização própria da mama, e serem colocados num novo local, para adquirirem uma nova vascularização, mas o resultado deste enxerto não é certo, pois os mamilos podem, inclusivamente sofrer e “morrer”, caso em que terá de haver lugar a uma reconstrução;
xxix - Não se provou que após a mastopexia a A., por decisão do seu irmão, optou por ter alta da clínica, por sua iniciativa e sem orientação específicas por qualquer membro médico da equipa;
xxx - Não se provou que por decisão do R. BB, o mesmo delegou no R. CC, a realização da redução mamária;
xxxi - Não se provou que o R. BB comunicou à A. que não realizaria a mastopexia e recomendou-lhe o R. CC recomendação esta que a A. aceitou;
xxxii - Não se provou que a A. se encontrava deprimida há algum tempo anterior às cirurgias em consequência de um processo de divórcio que tinha atravessado. IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Com o presente recurso está em causa a responsabilidade civil por danos causados no exercício da medicina.
A Recorrente funda a sua pretensão recursiva
- Quer na falta de consentimento informado «dos riscos concretos em relação às consequências que resultaram da operação a que foi sujeita», o que, na sua perspetiva, «não afasta a ilicitude dos actos praticados»,
- Quer na responsabilidade civil, por considerar «que estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil, incluindo o nexo causal entre o facto e o dano e a imputação do facto ao agente», sendo que o «artigo 799.º do Código Civil» confere uma «inversão do ónus da prova, a cargo dos recorridos».
Analisemos. 1. Da falta de consentimento informado.
(Conclusões A a E das alegações de recurso).
Na sua petição inicial a A., aqui Recorrente, funda a sua pretensão recursiva exclusivamente na responsabilidade civil das RR., aqui Recorridas, em razão de terem «sido violada[s] a “legis artes”», com «negligência médica grosseira», assim como ter havido um «acompanhamento pós-operatório (…) quase inexistente», do que resultaram «danos não patrimoniais», com «dano estético», bem como «danos patrimoniais».
Em momento algum da sua petição inicial a A. refere a falta de consentimento informado.
O mesmo se diga quanto à petição aperfeiçoada de 03.12.2021.
Nestes termos, a referência em sede recursiva à falta de consentimento informado e a fundamentação nela da pretensão indemnizatória da Recorrente consubstancia uma alteração da causa de pedir legalmente interdita, conforme artigo 265.º, n.º 1, do CPCivil, conferindo à lide, ora na fase recursiva, uma questão inteiramente nova, a qual, por isso, necessariamente escapa ao objeto do recurso de apelação, pois este destina-se a reapreciar a decisão recorrida, não a conhecer questões novas, salvo quanto às que sejam de conhecimento oficioso, o que indubitavelmente não é o caso.
Naquela última vertente, como refere Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, edição de 2018, página 31, «[n]a fase de recurso, as partes e o Tribunal Superior devem partir do pressuposto de que a questão já foi objeto de decisão, tratando-se apenas de apreciar a sua manutenção, alteração ou revogação. Por outro lado, a demanda do Tribunal Superior está circunscrita às questões já submetidas ao tribunal de categoria inferior, sem prejuízo da possibilidade de se suscitarem ou serem apreciadas questões de conhecimento oficioso (…)».
No mesmo sentido, refere Francisco Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, volume II, edição de 2019, página 463, que “[r]ecursos, «em sentido técnico-jurídico, são meios específicos de impugnação de decisões judiciais, através dos quais se obtém o reexame da matéria apreciada pela decisão recorrida»4. Meios que visam modificar as decisões recorridas, que não criam decisões sobre matéria nova, não podendo assim neles ser versadas questões que não hajam sido suscitadas perante o tribunal recorrido (isto salvas as questões de natureza adjetivo-processuais e substantivo-material que sejam de conhecimento oficioso)”.
Em suma, sendo a invocada falta de consentimento informado uma questão nova insuscetível de conhecimento oficioso por este Tribunal da Relação de Lisboa, carece de fundamento a pretensão da Recorrente na matéria, pelo que improcede o recurso nessa sede. 2. Da responsabilidade civil das RR.
(Conclusões F a M das alegações de recurso).
A responsabilidade civil, quer contratual, quer extracontratual, pressupõe, além do mais, uma conduta, ativa ou omissiva, ilícita, desconforme ao direito.
No caso da responsabilidade contratual, tal ilicitude expressa-se no incumprimento da obrigação ou no cumprimento defeituoso desta.
Em particular, no domínio da responsabilidade médica, a ilicitude representa a desconformidade da conduta médica com as leges artis, considerando nestas o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina no domínio em causa.
Diversos normativos refletem a necessidade de uma atuação médica conforme aos conhecimentos e técnicas da medicina que o caso exige.
Designadamente.
Segundo o artigo 4.º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 1/2001, de 03.01, «[q]ualquer intervenção na área da saúde, incluindo a investigação, deve ser efetuada na observância das normas e obrigações profissionais, bem como das regras de conduta aplicáveis ao caso concreto».
Nos termos da base 28, n.º 4, da Lei de Bases da Saúde, aprovada pela Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro, «[o]s profissionais de saúde têm o direito e o dever de, inseridos em carreiras profissionais, exercer a sua atividade de acordo com a leges artis e com as regras deontológicas, devendo respeitar os direitos da pessoa a quem prestam cuidados, mas podendo exercer a objeção de consciência, nos termos da lei».
Conforme artigo 135.º, n.º 1, do Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 282/77, de 05.07, com as alterações da Lei n.º 117/2015, de 31 .08, «o médico deve exercer a sua profissão de acordo com a leges artis com o maior respeito pelo direito à saúde das pessoas e da comunidade».
Ao abrigo dos artigos 5.º e 10.º, n.º 1, do Regulamento de Deontologia Médica da Ordem dos Médicos, publicado no Diário da República, 2.ª série, de 21.07.2016, «o médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo sempre com correção e delicadeza, no intuito de promover ou restituir a saúde, conservar a vida e a sua qualidade, suavizar os sofrimentos, nomeadamente nos doentes sem esperança de cura ou em fase terminal, no pleno respeito pela dignidade do ser humano», devendo «abster-se de praticar atos que não estejam de acordo com as leges artis».
Com a epígrafe «[i]ntervenções e tratamentos médico-cirúrgicos», o artigo 150.º, n.º 1, do Código Penal prescreve que “[a]s intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física”.
Por constitutivo do respetivo direito indemnizatório, a prova da desconformidade da conduta médica com as legis artis constitui um ónus do lesado, conforme artigo 342.º, n.º 1, do CCivil.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.03.2024, processo n.º 20769/18.5TBPRT.P1.S1, «neste tipo de responsabilidade, tem de ser provado pelo paciente que certo tratamento ou intervenção foram omitidos ou que os meios utilizados foram deficientes ou errados – determinação dos actos que deviam ter sido praticados e não foram, do conteúdo do dever de prestar (…)».
«O mesmo é dizer que, quando se invoque tratamento defeituoso para efeito de obrigação de indemnizar fundada em responsabilidade contratual é necessário provar “a desconformidade (objectiva) entre os actos praticados e as leges artes, (…)”».
«Feita essa prova, então sim, funciona a presunção de culpa, a impor ao R., como condição de libertação da responsabilidade, que prove que a desconformidade (com os meios que deveriam ter sido usados) não se deveu a culpa sua (por ter utilizado as técnicas e regras de arte adequadas ou por não ter podido empregar os meios adequados), mas já não, por exemplo, que o evento danoso se produziu por causa estranha à sua actuação e/ou qual tenha sido essa causa».
«Em suma: presume-se a culpa do cumprimento defeituoso, mas não o cumprimento defeituoso, ele mesmo».
No mesmo sentido, numa consideração mais abrangente quanto ao ónus da prova relativo à responsabilidade civil por conduta médica, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.01.2025, processo n.º 1476/17.2T8LSB.L1.S1, refere que (…) [a]o credor cabe o ónus de provar: i) a obrigação a que o devedor estava vinculado; ii) a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso dessa obrigação, isto é, os factos que traduzem a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso; iii) os danos; iv) o nexo de causalidade entre a falta de cumprimento e/ou o cumprimento defeituoso e os danos». In casu.
Conforme se referiu, a pretensão indemnizatória da A., aqui Recorrente fundou-se na violação das leges artis, quer na mastopexia, quer no respetivo pós-operatório.
Ora, tal não resultou provado.
Com efeito, não se provou que os RR. não tenham seguido os procedimentos protocolados e adequados à mastopexia em causa, conforme factos não provados v e vi.
Sabe-se, aliás, que a mastopexia apresentava «limitações» em função da morfologia mamária da A. e que esta mesmo assim aceitou realizá-la, conforme factos provados v), z), cc), jjj) e kkk).
Por outro lado, quanto ao pós-operatório, apurou-se que a A. foi seguida pelos RR. BB e CC em consultas pós-operatório, quer presenciais, quer por contactos telefónicos, sendo que em 26.04.2018 abandonou o consultório daqueles RR., recusando a intervenção ulterior dos mesmos na situação, conforme factos provados ff) a ss), qqq) e sss) a aaaa).
Não se provou, pois, o cometimento, por ação ou por omissão, de qualquer violação das leges artis, termos em que as RR. devem ser absolvidas do pedido, conforme decisão recorrida.
A responsabilidade civil das RR. pressupunha, além do mais, uma conduta ilícita das mesmas, na perspetiva da sua responsabilidade extracontratual, ou um incumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação, do ponto de vista da responsabilidade contratual, aferidas, em todo o caso, designadamente, pela violação das leges artis, quer na mastopexia, quer no respetivo pós-operatório, pelo que não se tendo provado a ilicitude da conduta/incumprimento ou incumprimento defeituoso da obrigação, não podem as RR. responder civilmente, mostrando-se prejudicada a apreciação quanto aos demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual/contratual e a caracterização adequada do caso em apreço em função de tais parâmetros, conforme artigos 663.º, n.º 2, e 608.º, n.º 2, do CPCivil.
A absolvição dos RR. do pedido justifica igual desfecho quanto às Chamadas, pois estas respondem desde logo nos termos daqueles.
Improcede, pois, o recurso, havendo que manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.
*
Quanto às custas da ação e do recurso.
Segundo o disposto nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil e 1.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais, «[a] decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa», entendendo-se «que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção que o for».
Ora, in casu improcede o recurso, pelo que as respetivas custas devem ser integralmente suportadas pela A./Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
V. DECISÃO.
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
As custas do recurso serão suportadas pela A./Recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido.
Lisboa, 13 de março de 2025
Paulo Fernandes da Silva
António Moreira
Susana Gonçalves
_______________________________________________________
1. Por lapso de escrita consta da decisão recorrida «20124» que ora se corrige.
2. Por lapso de escrita consta da decisão recorrida «duas», o que ora se corrige.
3. Na decisão recorrida os factos não provados não se encontram antecedidos por numeração romana, a qual agora se inclui para simplificação ulterior da exposição.
4. Cfr. J. RODRIGUES BASTOS, Notas, vol. III cit., p. 211, apud ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, vol. V cit., p. 211 e demais AUTORES nesse lugar citados.