DECLARAÇÕES DE PARTE
VALOR PROBATÓRIO
CONTRATO DE FORMAÇÃO
RESOLUÇÃO
JUSTA CAUSA
ABUSO DE DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
Sumário

I – Na apreciação da valoração do meio probatório declarações de parte, compulsados os
argumentos aduzidos pelas três teses doutrinária e jurisprudencialmente acolhidas, propendemos, de forma clara, em acolher a tese ou posição que considera que aquele meio de prova, possuindo específicas e ponderáveis particularidades, pode, por si só, com autónomo valor probatório, fundar a convicção do juiz de forma autossuficiente ;
II – com efeito, inexiste qualquer impedimento legal a que as declarações de parte possam funcionar como o único ou singular sustento probatório para a consideração de um determinado facto como provado, sendo para tanto suficiente e bastante que aquelas, na sua livre apreciação ou valoração, logrem alcançar aquele estádio ou amplitude de convencimento exigível ao concreto litígio em apreciação ;
III - a resolução por justa causa não é reconduzível à resolução por incumprimento definitivo, enunciada no nº. 1, do artº. 801º, do Cód. Civil, tendo diferenciados âmbito de aplicação, fundamentos e efeitos associados ;
IV – no âmbito de contrato de formação, relativo a curso integrado de Piloto de Linha Aérea de Avião, para que se configure a justa causa resolutiva e opere o critério de inexigibilidade que a enforma, é mister que se verifique uma justificada perda de confiança do Autor na capacidade da Ré formadora no cumprimento exacto do programa contratual de formação em falta, ou seja, que o provado incumprimento da Ré, violador do programa contratual outorgado, dificulte, torne inexigível ou insuportável que o Autor se deva manter vinculado à relação contratual ;
V – assim, é mister que decorra da factualidade provada que o Autor contratante tenha
perdido a confiança na Ré no cumprimento futuro do contrato outorgado, que tenha ocorrido uma justificada perda de interesse da sua parte na continuidade da relação contratual, ou seja, que decorra da mesma factualidade um perigar da finalidade contratual pretendida ou almejada, num quadro de concreta e nítida afectação do dever de correcção, de lealdade e de fiabilidade entre as partes outorgantes ;
VI - Efectivamente, estando-se perante um contrato de prestação de serviços dotado de uma natureza específica e singular, em cujo cumprimento ou execução impera nitidamente uma diligência qualificada, uma necessidade de integrar níveis de conhecimento teóricos com uma consequente componente prática, num período temporal devidamente delimitado, e sujeito a posterior aferição em exames a realizar perante terceira entidade devidamente habilitada e reconhecida, resulta evidente que ocorrências que maculem o nível relacional entre entidade formadora (Ré) e formando (Autor), colocando em causa o desiderato contratual formativo, podem justificar um juízo resolutivo com justa causa ;
VII - a provada insuficiência de aeronaves e instrutores para a execução da vertente prática de instrução de voo do curso formativo, as interrupções prolongadas entre os concretos voos realizados, o que é afectador da efectiva apreensão de conhecimentos e consolidada aquisição de habilitações em tal prática, não contribuindo para um adquirir de confiança do Autor naquela execução, antes causando-lhe sentimentos de desconforto, instabilidade emocional e insegurança, bem como a ocorrência de um acidente com uma das aeronaves da Ré, fruto da sua deficiente manutenção, o que não terá deixado de afectar a confiança do Autor na fiabilidade técnica da Ré na prossecução da vertente prática do curso, configura-se como quadro factício próprio e pertinente a justificar que não fosse exigível ao Autor a manutenção/perduração do contrato de formação em execução, mas antes traduzindo efectiva justa causa à operada resolução contratual ;
VIII - a retroactividade da resolução só faz sentido em relação ao que foi prestado sem
contrapartida, pois o sinalagma e o equilíbrio jurídico do contrato impõem que o valor da
utilidade que adveio da execução do mesmo deverá ser pago ;
IX – todavia, nada sendo aproveitável, por parte do Autor, da formação prestada pela Ré,
para uma eventual futura formação em curso de idêntica natureza, a medida da responsabilidade indemnizatória desta deve ter correspondência ao tempo e recursos financeiros despendidos pelo Autor, sem que destes decorresse qualquer retorno ;
X – a excepção peremptória de abuso de direito pode verificar-se por referência à existência de um comportamento que se possa afirmar como vinculante, relativamente a um determinado comportamento futuro, que possa ter criado, de alguma forma, na esfera jurídica da Ré, uma confiança quanto ao não exercício do direito de resolução ;
XI - não merece acolhimento o juízo que considera ter ocorrido um desequilíbrio no
exercitar do direito resolutivo por parte do Autor, ao impor uma qualquer inútil obrigação
restitutiva à Ré, ou ao provocar uma inadmissível desproporção entre a vantagem que adquire com o acolhimento das consequências decorrentes da resolução contratual e o sacrifício ou oneração causada à Ré ;
XII – donde, não se considera ter o Autor agido em violação das regras da boa fé e em clara situação de abuso de direito, nomeadamente na invocada modalidade de venire contra factum proprium, ou através de um exercitar desequilibrador do direito em equação, de molde a provocar inaceitável e inadmissível desproporção entre o ganho aquisitivo daí decorrente e o ónus ou sacrifício imposto.

Texto Integral

ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte 1:

I - RELATÓRIO
1 – AA, residente na ..., intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra AWA – AERONAUTICAL, WEB ACADEMY, LDA., com sede na Rua 1º de maio, nº. 8, Quinta do Figo Maduro, Prior Velho, deduzindo o seguinte petitório:
a) Ser declarada a resolução do contrato de formação com justa causa por parte do A. ;
b) Ser a R. condenada no pagamento/restituição ao A. da quantia de € 27.900,00 (vinte e sete mil e novecentos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a propositura da acção até integral e efectivo pagamento;
ou, em alternativa
Ser a R. condenada no pagamento/restituição ao A. da quantia de € 24.940,00 (vinte e quatro mil, novecentos e quarenta euros), acrescida de juros de mora à taxa legal desde a propositura da acção até integral e efectivo pagamento.
Alegou, em súmula, o seguinte:
- ocorreu incumprimento do contrato de formação que outorgou com a Ré, em 24/09/2018, com vista á aquisição do curso de Piloto de Linha Aérea (Aviões) ATPL(A) ;
- designadamente, apenas realizou voos doze vezes, apesar de ter apresentado disponibilidade de 146 dias completos, entre agosto de 2019 e fevereiro de 2020 ;
- ocorreu um acidente com uma aeronave da Ré em 6 de agosto de 2020, o que ainda prejudicou mais a disponibilidade de voos que faziam parte do contrato de formação ;
- existindo, assim, falta de aeronaves e consequente incumprimento no agendamento dos voos ;
- tendo, ainda, ocorrido um erro administrativo da Ré que o impossibilitou de se preparar para os exames de novembro de 2020 :
Subsidiariamente, a Ré tem sempre de restituir-lhe a quantia de € 24.940,00 correspondente à formação não prestada por conta do mencionado contrato e à formação dada, mas não aproveitável.
2 – Devidamente citada, veio a Ré apresentar contestação, na qual deduziu reconvenção, alegando, em resumo, que:
• O Autor não tem direito à restituição do valor que pagou no âmbito do Contrato de Formação celebrado ;
• O que ocorre, desde logo, pelo facto da Ré ter incorrido em prejuízos com a cessação do mesmo ;
• E, ademais, tendo tal contrato de formação a natureza de contrato de execução continuada, a resolução não abrange as prestações já efectuadas, pois as prestações pecuniárias a restituir têm como contraponto o gozo consumado de contraprestação já realizada ;
• Reconvencionalmente, deve ser o Autor condenado a pagar-lhe a quantia de € 29.000,00 (vinte e nove mil euros), a título de indemnização pela denúncia do contrato de formação, sem justa causa, acrescida dos juros de mora, desde a data de notificação da reconvenção, até efetivo e integral pagamento.
Conclui, no sentido da “presente acção ser julgada totalmente improcedente, por não provada, absolvendo-se a Ré dos pedidos formulados, e, bem assim, ser julgado totalmente procedente, por provado, o pedido reconvencional formulado pela Ré e, consequentemente, ser o Autor condenado a pagar-lhe o montante de € 29.000,00, acrescido dos juros à taxa legal que se venham a vencer desde a data da citação e até integral e efectivo pagamento”.
3 – O Autor apresentou réplica, negando que a Ré tenha qualquer crédito sobre si, pelo que conclui pela total improcedência do pedido reconvencional.
4 – No âmbito do saneamento do processo, por despacho de 28/09/2022:
• Foi admitida a réplica ;
• Foi dispensada a realização de audiência prévia ;
• Admitiu-se a reconvenção ;
• Fixou-se o valor da acção ;
• Fixou-se o objecto do litígio, nos seguintes termos:
a. o direito de o autor ver ser declarada a resolução do contrato celebrado com a ré em 24.09.2018, nos termos do qual esta se obrigou a ministrar àquele o curso integrado de piloto de linha área de avião, pelo preço total de € 56.900,00, com justa causa, e a ré condenada a restituir-lhe a totalidade da quantia paga pelo autor, no montante de € 27.900,00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a propositura da acção até integral e efectivo pagamento ou, em alternativa, ver a ré ser condenada a pagar-lhe/restituir-lhe a quantia de € 24.940,00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a propositura da acção até integral e efectivo pagamento, correspondente aos serviços pagos e não prestados (formação prática) e a serviços pagos e não aproveitáveis (formação teórica) e
b. o direito de a ré ver o autor condenado a pagar-lhe a quantia de € 29.000,00 (vinte e nove mil euros), acrescida dos juros à taxa legal que se venham a vencer desde a data de notificação da reconvenção até efectivo e integral pagamento, correspondente ao montante que o autor não pagou, do curso contratado entre as partes ;
• Enunciaram-se os seguintes temas da prova:
a. termos e condições do contrato supra identificado, no que respeita ao seu período de duração e estrutura da componente teórica e prática;
b. incumprimento do mencionado contrato pela ré;
c. prejuízos/danos sofridos pelo autor em consequência do incumprimento daquele contrato por parte da ré e respectivo quantum;
d. incumprimento do mencionado contrato pelo autor e
e. prejuízos/danos sofridos pela ré em consequência deste incumprimento, e respectivo quantum
• Apreciaram-se os requerimentos probatórios ;
• Designou-se data para a realização da audiência final.
5 – Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, respeitando os formalismos legais, como resulta das actas de 12/12/2022, 10/03/2023 e 20/11/2023.
6 – Posteriormente, em 31/12/2023, foi proferida sentença, traduzindo-se o Dispositivo nos seguintes termos:
III – DECISÃO
Pelo exposto,
I. julga-se a presente ação procedente, por provada e, em consequência, declara-se resolvido o contrato de formação outorgado entre o autor AA e a ré “AWA – Aeronautical Web Academy, L.da” em 24 de setembro de 2018, e condena-se a ré a restituir ao autor a quantia de € 27.900,00 (vinte e sete mil e novecentos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal civil, desde a data de citação da ré até efetivo e integral pagamento e
II. julga-se a reconvenção improcedente, por não provada e, em consequência, absolve-se o autor do pedido formulado pela ré.
Custas da ação e da reconvenção pela ré – artigo 527.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Notifique e registe”.
7 – Inconformada com o decidido, a Ré interpôs recurso de apelação, em 19/02/2024, por referência à sentença prolatada.
Apresentou, em conformidade, a Recorrente as seguintes CONCLUSÕES:
1. “O presente recurso vem interposto da sentença proferida no dia 04 de Janeiro de 2024, que declarou resolvido o contrato de formação outorgado entre o Autor e a Ré em 24 de Setembro de 2018, condenando a Ré a restituir a quantia de € 27.900,00 (vinte sete mil e novecentos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal civil, desde a data de citação da Ré até efectivo e integral pagamento, e absolveu o Autor do pedido reconvencional, doravante designada por «decisão recorrida».
2. Nos termos do disposto nos artigos 7.º, n.º 1, 130.º, 596.º, n.º1 e 607.º, n.ºs 3e 4, do Código de Processo Civil, apenas pode ser considerada como assente, a matéria de facto relevante para a decisão da causa.
3. O objecto dos presentes autos consiste em verificar a existência de incumprimento do contrato de formação celebrado e se esse verificar se o Recorrido ou a Recorrente sofreram prejuízos em consequência de um suposto incumprimento, pelo que se tem de considerar que o facto provado 22. não constitui matéria de facto relevante para a decisão da causa, devendo o mesmo ser eliminado da matéria de facto.
4. Ao considerar como provado o facto provado 22., que não constitui matéria de facto relevante para a decisão da causa, porque o objecto dos presentes autos consiste em verificar a existência de incumprimento do contrato de formação celebrado e se esse incumprimento é imputável à Recorrente ou ao Recorrido, bem como verificar se o Recorrido ou a Recorrente sofreram prejuízos em consequência de um suposto incumprimento, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 7.º, n.º 1, 130.º, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil.
5. Os factos provados 13., 15., 18., 19. e 26., têm natureza conclusiva, por serem claramente opinativos e valorativos, ou por isso mesmo, e são, por isso, conclusões, ou um conjunto de conclusões que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituindo factos em si mesmos.
6. Os factos provados 13., 15., 18., 19. e 26., têm natureza conclusiva, por serem claramente opinativos e valorativos, ou por isso mesmo, e são, por isso, conclusões, ou um conjunto de conclusões que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituindo factos em si mesmos, nem existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possam assentar as conclusões constantes dos mesmos, pelo que se devem ter por não escritos, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil.
7. O facto provado 13., na parte em que refere que « O autor deu disponibilidade de voo a partir do dia 26 de agosto de 2019 e nos meses seguintes.», tem natureza conclusiva, por ser claramente opinativo e valorativo, ou por isso mesmo, sendo, por isso, uma conclusão, ou um conjunto de conclusões que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituindo um facto em si mesmo, e não existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possa assentar a conclusão constante do facto provado 13., deve o mesmo ter-se por não escrito, na referida parte, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil, devendo o facto provado 13. passar a ter a redacção seguinte: «13. Em data não concretamente apurada após obter aprovação nos testes teóricos, o A. pretendia a sua integração nas escalas para os voos de formação (componente prática).».
8. O facto provado 15., na parte em que refere «mas o autor não foi notificado para comparecer, apesar de ter dado disponibilidade para tal» tem natureza conclusiva, por ser claramente opinativo e valorativo, ou por isso mesmo, e sendo, por isso, uma conclusão, ou um conjunto de conclusões que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituindo um facto em si mesmo, e não existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possa assentar a conclusão constante do 15., deve o mesmo ter-se por não escrito, na referida parte, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil, devendo o facto provado 15. passar a ter a redacção seguinte: «15. O último voo antes do primeiro confinamento, em consequência da pandemia causada pelo “Covid-19”, ocorreu em meados de março de 2020».
9. O facto provado 18. natureza conclusiva, por ser claramente opinativo e valorativo, ou por isso mesmo, e sendo, por isso, uma conclusão, ou um conjunto de conclusões que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituindo um facto em si mesmo, e não existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possa assentar a conclusão constante do facto provado 18., deve o mesmo ter-se por não escrito, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil.
10. O facto provado 19. natureza conclusiva, por ser claramente opinativo e valorativo, ou por isso mesmo, e sendo, por isso, uma conclusão, ou um conjunto de conclusões que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituindo um facto em si mesmo, e não existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possa assentar a conclusão constante do facto provado 19., deve o mesmo ter-se por não escrito, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil.
11. O facto provado 26. tem natureza conclusiva, por ser claramente opinativo e valorativo, ou por isso mesmo, e sendo, por isso, uma um conjunto de factos, não constituindo um facto em si mesmo, e não existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possa assentar a conclusão constante do facto provado 26., deve o mesmo ter-se por não escrito, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil.
12. Ao considerar como provados os factos provados 13., na parte em que refere que «O autor deu disponibilidade de voo a partir do dia 26 de agosto de 2019 e nos meses seguintes» 15., na parte em que refere que «mas o autor não foi notificado para comparecer, apesar de ter dado disponibilidade para tal», 18., 19. e 26., que têm natureza conclusiva, por serem claramente opinativos e valorativos, ou por isso mesmo, e que são, por isso, conclusões, ou um conjunto de conclusões que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituindo factos em si mesmos, nem existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possa assentar o conjunto de conclusões constante dos mesmos, a decisão recorrida violou o disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil.
13. O facto provado 30. deve ser anulado, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil, por se encontrar claramente em contradição com o facto provado 21., pois o Tribunal a quo considerou como provado que o Recorrido estava a preparar-se para os exames da ANAC ao mesmo tempo que considerou igualmente como provado que o Recorrido não se preparou para a referida época de exame.
14. Nos termos do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a Relação deve (verdadeiro poder-dever) alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
15. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in «Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Artigos 1.º, a 702.º, 2.ª edição», Almedina, pág. 823, referem, a esse propósito, que a decisão da matéria de facto pode ser impugnada pelo recorrente «[…] quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente […]».
16. Uma vez que quer o ofício da ANAC junto a fls. dos autos, quer o depoimento da testemunha BB são meios de prova que desrespeitam o dever de sigilo profissional [artigo 28.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 40/2015, de 16 de Março] (pois foram obtidos e valorados sem que fosse [como devia] invocada recusa por parte da ANAC ou da testemunha BB, nos termos do artigo 417.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Civil e sem que fosse, posteriormente, requerida a abertura de incidente para levantamento do sigilo profissional junto do Tribunal da Relação), e uma vez que a consequência jurídica da utilização daqueles ditos meios de prova é a inidoneidade dos mesmos para demonstração dos factos, a Relação deve (verdadeiro poder-dever) alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, devendo o juízo sobre os factos provados 24. e 25 ser formulado como se o depoimento da testemunha BB não tivesse sido prestado e como se o Ofício ANAC n.º 387/DJU/PCA/2021 nunca tivesse sido apresentado em juízo, alterando os mesmos para Não Provados
17. Nos termos do disposto no artigo 640.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, a Recorrente considera incorrectamente julgados os pontos da matéria de facto correspondente ao facto provado 30. e os pontos da matéria de facto correspondentes aos factos não provados 32.º, 34.º e 92.º (alegados em sede de contestação).
18. Nos termos do disposto no artigo 640.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, são o depoimento gravado (em sede de declarações de parte) do legal representante da Recorrente, CC; e o depoimento gravado da testemunha DD.
19. A Recorrente considera incorrectamente julgado o ponto da matéria de facto correspondente ao facto provado 30., porque o mesmo foi dado como provado única e exclusivamente com base nas declarações de parte do Recorrido, o qual não deveria ter merecido do Tribunal a quo a mínima credibilidade.
20. As testemunhas EE e FF, intentaram acções nos Tribunais com objecto idêntico ao dos presentes autos, nas quais alegaram factos exactamente iguais aos que foram alegados pelo Recorrido nos presentes autos, e a testemunha DD, também intentou contra a Recorrente uma acção no Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, Juízo do Trabalho de Portalegre, pedindo a condenação da Recorrente no pagamento de indemnização por alegado despedimento ilícito.
21. Estas testemunhas formaram, então, um «clube» ou «irmandade» de ex-alunos (os «lesados da AWA») inimigos da Recorrente, que intentaram, individualmente, nos Juízos Cíveis territorialmente competentes, (i) acções com objecto idêntico ao dos presentes autos, (ii) nas quais alegaram factos exactamente iguais aos que foram alegados pelo Recorrido nos presentes autos, (iii) e nas quais indicaram os restantes membros deste «clube» ou «irmandade» como suas testemunhas.
22. A testemunha EE intentou a acção n.º ..., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Central Cível de Loures – Juiz ..., com um objecto idêntico ao dos presentes autos, na qual alegou factos exactamente iguais aos que foram alegados pelo Recorrido nos presentes autos, tendo sido precisamente sobre alguns desses factos que prestou o seu depoimento nos presentes autos, pelo que, apesar de ter prestado o seu depoimento, nos presentes autos, formalmente, na qualidade de testemunha, é por demais evidente que a testemunha EE, que é um membro activo do «clube» ou «irmandade» de ex-agentes comissionistas inimigos da Recorrente, acabou por prestar, substancialmente, um «depoimento de parte», embora numa acção diversa daquela que intentou contra a Recorrente.
23. A testemunha EE, para além de ter intentado, contra a Recorrente, a acção n.º ..., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Central Cível de Loures – Juiz ..., e para além de ter sido indicado como testemunha do Recorrido nos presentes autos, foi ainda indicado como testemunha na acção intentada pelo ex-aluno FF (acção n.º ... que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Central Cível de Loures – Juiz ...), pelo que estamos perante uma verdadeira testemunha «profissional».
24. A testemunha FF intentou a acção n.º ... que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Central Cível de Loures – Juiz ...), com um objecto idêntico ao dos presentes autos, na qual alegou factos exactamente iguais aos que foram alegados pelo Recorrido nos presentes autos, tendo sido precisamente sobre alguns desses factos que prestou o seu depoimento nos presentes autos, pelo que, apesar de ter prestado o seu depoimento, nos presentes autos, formalmente, na qualidade de testemunha, é por demais evidente que a testemunha AA, que é um membro activo do «clube» ou «irmandade» de ex-agentes comissionistas inimigos da Recorrente, acabou por prestar, substancialmente, um «depoimento de parte», embora numa acção diversa daquela que intentou contra a Recorrente.
25. A testemunha FF, para além de ter intentado, contra a Recorrente, a ... que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Central Cível de Loures – Juiz ... e para além de ter sido indicado como testemunha do Recorrido nos presentes autos, foi ainda indicado como testemunha na acção intentada pelo ex-aluno EE (acção n.º ..., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Central Cível de Loures – Juiz ...), pelo que estamos perante uma verdadeira testemunha «profissional».
26. Estas circunstâncias retiram, naturalmente, qualquer credibilidade ao depoimento prestado pela testemunha FF.
27. A testemunha DD intentou contra a Recorrente uma acção no Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, Juízo do Trabalho de Portalegre, que correu termos sob o número de processo ..., cujo objecto consistia na condenação da Recorrente no pagamento de indemnização por alegado despedimento ilícito, e a testemunha DD foi ainda indicada pelo Recorrido, pelo ex-aluno EE (acção n.º ..., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Central Cível de Loures – Juiz ...) e pelo ex-aluno FF (acção n.º ... que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Central Cível de Loures – Juiz ..., como testemunha naqueles mencionados processos.
28. Estas circunstâncias retiram, naturalmente, qualquer credibilidade ao depoimento prestado pela testemunha DD.
29. Considerando que Tribunal a quo fundamentou a sua decisão sobre o facto provado 30., com base, exclusivamente, nas declarações de parte do Recorrido, e uma vez que, como acima se referiu, o mesmo não passa de uma testemunha «profissional», então importa ter bem presente que, nos termos do disposto no artigo 466º, nº. 3, do Código de Processo Civil, o Tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão, sendo certo que essa livre apreciação impõe, nos presente autos, deveres acrescidos de cuidado, fundamentação e valoração (não bastando valorar ou formar convicção, como fez o Tribunal a quosob os pontos n.ºs 30 e 33, as declarações de parte do autor.»] por referência às declarações de parte do Recorrido).
30. É entendimento quase maioritário na jurisprudência, que para prova dos factos alegados pela parte, o Juiz não pode bastar-se com as declarações prestadas pela própria, por serem parciais e interessadas, sendo necessário que as declarações sejam corroboradas por outras provas, pelo que o Tribunal a quo não poderia ter fundamentado a sua decisão sobre o facto provado 30., exclusivamente nas declarações de parte do Recorrido, quando as mesmas não foram corroboradas por quaisquer outras provas idóneas, pelo que a prova que (não) produzida foi manifestamente insuficiente para que o Tribunal a quo tivesse dado como provado os factos provados 30., devendo a resposta ao mesmo ser alterada para Não provado.
31. A Recorrente considera incorrectamente julgado os pontos de facto correspondentes aos factos não provados 32.º, 34.º e 92.º (alegados em sede de contestação), porque o Tribunal a quo desconsiderou as declarações de parte prestadas pelo legal representante da Recorrente. As quais, porque claras, credíveis e espontâneas, impunham decisão diversa sobre estes pontos da matéria de facto diversa da recorrida.
32. Atentas as declarações de parte prestadas pelo legal representante da Recorrente, Senhor GG (depoimento gravado na aplicação informática "H@bilus Média Studio", entre 00:16:53 e 00:29:36, e entre 00:33:43 e 00:37:25 da sessão da Audiência de Julgamento realizada no dia 12 de Dezembro de 2022), os factos não provados 32.º, 34.º e 92.º (alegados em sede de contestação) devem ser considerados como provados.
33. Os factos que ficarão provados e os factos que não ficarão provados, sendo julgada totalmente procedente a alteração da matéria de facto, serão manifestamente suficientes para concluir pela inexistência de qualquer incumprimento por parte da Recorrente na sua prestação contratual, e os factos que ficarão provados e os factos que não ficarão provados, sendo julgada totalmente procedente a alteração da matéria de facto, serão manifestamente insuficientes para condenar a Recorrente no pagamento ao Recorrido de uma quantia de € 27.900,00 (vinte e sete mil e novecentos euros).
34. O Recorrido, ao enviar à Recorrente a carta datada de 30 de Novembro de 2020, não fez mais do que informar e declarar, expressamente, junto da Recorrente, a sua vontade de desistir do curso de formação de piloto de linha aérea, o que constitui, sim, uma verdadeira denúncia tácita do contrato de formação celebrado entre Recorrente e Recorrido, podendo concluir-se, que o Recorrente procedeu, na verdade, à denúncia unilateral e tácita do contrato, não existindo qualquer resolução contratual (ilícita) por parte da Recorrente.
35. Caso o Tribunal ad quem não conclua que a cessação do contrato de formação celebrado entre a Recorrente e o Recorrido ocorreu por revogação unilateral do Recorrido, então ter-se-á de considerar que dos autos decorre a vontade de ambos (Recorrente e Recorrido) porem termo ao contrato e o terem comunicado reciprocamente, ocorrendo cessação do contrato de formação celebrado entre a Recorrente e o Recorrido por revogação bilateral, e não por resolução contratual (ilícita) por parte da Recorrente, tendo o Tribunal a quo incorrido em erro de julgamento na matéria de direito por violação do artigo 434.º, do Código Civil.
36. Nos termos do disposto no artigo 334.º, do Código Civil, é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
37. Os sujeitos de determinada relação jurídica devem actuar como pessoas de bem, com correcção e probidade, de modo a contribuir, de acordo com o critério normativo do comportamento, para a realização dos interesses legítimos que se pretendam atingir com a mesma relação jurídica.
38. Os direitos devem ser exercidos de acordo com o fim social e económico para que a lei os concebeu, pelo que, se forem exercidos para fins diferentes daqueles para que a lei os consagrou, ainda que tal exercício seja útil ao seu autor, haverá abuso do direito, se tal exercício ofender claramente a consciência social dominante.
39. Existirá abuso do direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, apodicticamente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente com intenção de prejudicar ou de comprometer o gozo do direito de outrem ou de criar uma desproporção objectiva entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado.
40. Como figura integradora de comportamento típico de abuso do direito poderá mencionar-se, entre outras, a figura do «venire contra factum proprium». Na sua estrutura, o «venire» pressupõe duas condutas da mesma pessoa. Ambas lícitas, mas assumidas em momentos distintos e distanciadas no tempo, em que a primeira (o «factum proprium») é contraditada pela segunda (o «venire»), de modo que essa relação de oposição entre as duas justifique a invocação do princípio do abuso do direito.
41. Encontra-se provado nos autos que não houve época de exames em Março, Maio e Junho de 2020, e não houve voos nos meses de Maio e Junho de 2020, devido à situação provocada pela pandemia de «Covid-19» e que, por esse motivo, houve lugar à prorrogação do curso frequentado pelo Recorrido, que terminaria a 08 de Junho de 2022 (factos provados 17. e 23.), bem como que o Recorrido, após o levantamento do confinamento provocado pela pandemia de «Covid-19», não deu disponibilidade para voar, por não se sentir capaz, confiante e disponível para tal (factos 20. e 21.), e, ainda, que o Recorrido enviou uma carta à Recorrente «resolvendo» o contrato celebrado com fundamento em alegado incumprimento na realização e agendamento de voos por parte da Recorrente (facto provado 34.)
42. O Recorrido, que viu o seu curso ser prorrogado até 08 de Junho de 2022 em virtude dos constrangimentos causados pela pandemia de «Covid-19», DECIDIU, por livre e esclarecida vontade sua, não dar disponibilidade para voar, por não se sentir capaz, confiante e disponível para tal, pelo que a Recorrente, neste enquadramento, ficou no aceitável convencimento de que o Recorrido nunca iria remeter carta à Recorrente invocando resolução contratual do contrato celebrado com fundamento em alegado incumprimento na realização e agendamento de voos do Recorrido por parte da Recorrente.
43. O Recorrido, ao propor a presente acção, actuou com abuso de direito, nos termos previstos no artigo 334.º, do Código Civil, porque sendo embora detentor do direito de propor a presente acção, exercita-o, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, claramente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente por criar uma desproporção objectiva entre a utilidade que pretende alcançar e as consequências a suportar pela Recorrente contra a qual é invocado, pelo que inexiste a obrigação da Recorrente restituir ao Recorrido a quantia de € 27.900,00 (vinte sete mil e novecentos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal civil, desde a data de citação da Ré até efectivo e integral pagamento.
44. A decisão recorrida, ao não ter considerado que o Recorrido, ao propor a presente acção, actuou com abuso do direito, que é uma excepção peremptória imprópria de conhecimento oficioso, nos termos previstos no artigo 579.º, do Código de Processo Civil, e ao condenar a Recorrente no pagamento da quantia de € 27.900,00 (vinte sete mil e novecentos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal civil, desde a data de citação da Ré até efectivo e integral pagamento, violou o disposto no artigo 334.º, do Código Civil.
45. A decisão recorrida, ao condenar a Recorrente no pagamento ao Recorrido do montante de € 27.900,00 (vinte e sete mil e novecentos euros), ignorou o facto de o Recorrido ter frequentado as aulas teóricas junto da Recorrente durante o mês de Setembro de 2019; e o facto de o Recorrido ter frequentado em Agosto de 2019 aulas específicas para voar e que voou 12 vezes, sendo o primeiro voo em 13 de Setembro de 2019 e o último em 22 de Fevereiro de 2020, tendo a Recorrente prestado ao Recorrido um total de 265 aulas teóricas, cada uma com a duração de 3 horas, num total de 795 horas, e um total de 17h50m de voo.
46. A retroactividade da resolução só faz sentido em relação ao que foi prestado sem contrapartida, pois o sinalagma e o equilíbrio jurídico do contrato impõem que o valor da utilidade que adveio da execução do mesmo deverá ser pago, razão pela qual, caso o Tribunal ad quem não julgue procedentes os fundamentos aduzidos supra quanto à reapreciação da matéria de facto, quanto à qualificação jurídica a dar à cessação do contrato e quanto ao abuso de direito, então deve ser proferido acórdão que relegue para incidente de liquidação de sentença o concreto montante pecuniário a devolver pela Recorrente ao Recorrido.
47. Tendo o Tribunal a quo dado como provado (facto provado 3.) que em 24 de Setembro de 2018, o Recorrido, na qualidade de segundo outorgante, e a Recorrente, na qualidade de primeira outorgante, assinaram um escrito particular denominado «contrato de formação»; o curso tinha uma duração total de 1.052 horas, sendo 832 horas de instrução teórica e 220 de instrução de voo (facto provado 4.); e o curso tinha um custo total de € 56.900,00 (facto provado 7.), e estando a quantia constante do pedido reconvencional vencida desde Fevereiro de 2020 (18 meses contados desde o início do contrato – artigo 7.º, alínea a), do contrato de formação), então resulta por demais evidente que a Recorrente tem direito a receber as quantias de que é credora uma vez que a denúncia unilateral do contrato pelo Recorrido só opera ex nunc, razão pela qual a decisão recorrida, ao absolver o Recorrido de pagar à Recorrente a quantia por esta reclamada em sede de pedido reconvencional, violou o disposto nos artigos 1171.º, n.º 1, e 1172.º, do Código Civil”.
Conclui, no sentido de ser concedido provimento integral ao recurso, “revogando-se a decisão recorrida na parte em que que declarou resolvido o contrato de formação outorgado entre o Recorrido e a Recorrente em 24 de Setembro de 2018, condenando a Recorrente a restituir a quantia de € 27.900,00 (vinte sete mil e novecentos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal civil, desde a data de citação da Recorrente até efectivo e integral pagamento, e absolveu o Recorrido do pedido reconvencional, ou, subsidiariamente, concluindo-se que o Recorrido, ao propor a presente acção, actuou com abuso de direito, nos termos previstos no artigo 334.º, do Código Civil, inexistindo a obrigação de a Recorrente pagar as quantias reclamadas e condene o Recorrido no pagamento à Recorrente da quantia peticionada em sede de pedido reconvencional; finalmente, e sem prejuízo, relegar-se a fixação de quantum indemnizatório para liquidação de sentença”.
8 – O Recorrido/Apelado não apresentou contra-alegações.
9 – Tal recurso foi admitido por despacho datado de 22/04/2024, como apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
10 – Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.
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II – ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
Prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
1 – o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 – Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas ;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas ;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do artº. 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação da recorrente Apelante que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Pelo que, no sopesar das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede determina o conhecimento das seguintes questões:
1. DA EVENTUAL PERTINÊNCIA DA MODIFICABILIDADE DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE A MATÉRIA DE FACTO, nos quadros do artº. 662º, do Cód. de Processo Civil, o que determina a aferição:
I. Da matéria de facto não relevante para a decisão =)
• Da pretensão de eliminação do facto provado 22. ;
II. Da matéria conclusiva =) da natureza conclusiva dos factos provados 13, 15, 18, 19 e 26
• Da pretendida alteração de redacção dos factos provados 13 e 15 ;
• Da pretensão que se devam ter como não escritos os factos provados 18, 19 e 26 ;
III. Da contradição da decisão sobre a matéria de facto =)
• Da contradição entre os factos provados 30 e 21 e da pretendida anulação do facto provado 30, ao abrigo do disposto no artº. 662º, nº. 2, alín. c), do Cód. de Processo Civil ;
IV. Da alteração da decisão sobre a matéria de facto =)
• Dos factos provados 24 e 25 e da pretensão que passem a figurar como não provados – da ponderação de meios de prova – ofício da ANAC e depoimento da testemunha BB – que desrespeitam o dever de sigilo profissional ;
V. Da concreta impugnação da matéria de facto =)
• Do facto provado 30 e da pretensão que passe a figurar como não provado ;
• Dos factos não provados correspondentes aos artigos 32º, 34º e 92º da contestação e da pretensão que passem a figurar como provados,
o que implica a REAPRECIAÇÃO DA PROVA produzida ;
2. Seguidamente, aferir acerca da eventual ocorrência de alteração de JULGAMENTO na SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS (fruto das alterações infra em apreciação), o que implica apreciação do ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA CAUSA.
Nesta sede, conhecer-se-á, no essencial, acerca:
2.1 da ausência de incumprimento por parte da Ré na sua prestação contratual ;
2.2 da denúncia tácita do contrato de formação por parte do Autor ;
ou, caso assim não se entenda:
2.3 da cessação do contrato de formação celebrado entre Autor e Ré por revogação bilateral (e não por resolução por justa causa) ;
2.4 dos efeitos jurídicos da alegada resolução contratual – da necessidade de relegar para incidente de liquidação de sentença o concreto montante pecuniário a devolver pela Ré ao Autor ;
2.5 da actuação do Autor em abuso de direito ;
2.6 da necessária procedência do pedido reconvencional (os artigos 1171º, nº. 1 e 1172º, ambos do Cód. Civil).
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III - FUNDAMENTAÇÃO
A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na sentença recorrida/apelada, foi considerado como PROVADO o seguinte (estão identificados com * os factos objecto de impugnação ; adita-se, a negrito, o facto objecto de aditamento, conforme decidido infra) :
1. Em 12 de março de 2018, e após ter manifestado interesse junto da ré sobre o Curso de Piloto de Linha Aérea (Aviões) ATPL(A), o autor recebeu desta informação referente ao referido curso, juntamente com uma brochura com o programa do curso.
2. Em 21 de agosto de 2018, o autor inscreveu-se no curso integrado de Piloto de Linha Aérea de Avião (ATPL-A), pagando a respetiva taxa de inscrição.
3. Em 24 de setembro de 2018, o autor, na qualidade de segundo outorgante, e a ré, na qualidade de primeiro outorgante, assinaram um escrito particular denominado “Contrato de Formação” com as seguintes cláusulas:

4. O curso tinha uma duração total de 1.052 horas, sendo 832 horas de instrução teórica e 220 de instrução de voo.
5. O curso integrado ATPL (A) conta com catorze disciplinas, às quais os alunos têm que obter aproveitamento em exames a realizar na Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC) e previamente em teste a realizar na escola, para além da assiduidade nas aulas e, em ambos os casos, os alunos têm que ter aproveitamento com uma nota igual ou superior a 75%, sob pena de exclusão.
6. Sob a mesma cominação, os alunos podem inscrever-se para prestar provas na ANAC, no máximo seis épocas, mas a inscrição está limitada a quatro épocas por disciplina.
7. O curso tinha um custo total de € 56.900,00.
8. O autor procedeu ao pagamento da quantia de € 27.900,00 (vinte e sete mil e novecentos euros) do seguinte modo: no ato de inscrição pagou a quantia de € 1.900,00 (mil e novecentos euros), em 26 de novembro de 2018 pagou a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), em 29 de janeiro de 2019 pagou a quantia de € 6.000,00 (seis mil euros) e em 25 de fevereiro de 2020 pagou a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros).
9. O curso integrado ATPL (A) é um curso intensivo que combina treino teórico em terra com treino prático de voo de uma forma estruturada, e tem um limite de prazo para conclusão de 36 meses, podendo ser mais curto ou ser prorrogado, no caso de haver lugar a treino adicional ou em situações excecionais, como ocorreu no caso da pandemia causada pelo “Covid-19”.
10. Para que os alunos do curso possam começar a dar disponibilidade para marcação de voos de instrução, é necessário primeiro que recebam formação em “Teoria Específica do Avião”.
11. No mail informativo recebido pelo autor em 12 de março de 2018 a ré refere, entre o mais, que «a componente prática é ministrada no aeródromo de Cascais em Tires, da seguinte forma: inicia-se após 5 (cinco) meses do início da teoria; voos marcados mediante disponibilidade do aluno, de segunda-feira a domingo; horas de voo reais – 205 (duzentos e cinco); horas de voo em simulador – 15 (quinze) (Curso Multi Crew Coordination (MCC)) (…)».
12. O autor iniciou as aulas teóricas durante o mês de setembro de 2018, mas só em agosto de 2019 é que, com os restantes colegas, começou a frequentar aulas específicas para começar a voar.
13. O autor deu disponibilidade de voo a partir do dia 26 de agosto de 2019 e nos meses seguintes, com algumas interrupções, num total de 146 dias completos de disponibilidade de voo. No entanto, *
14. O autor apenas voou por 12 vezes: o primeiro voo teve lugar em 13 de setembro de 2019, e o último em 22 de fevereiro de 2020.
15. O último voo antes do primeiro confinamento, em consequência da pandemia causada pelo “Covid-19”, ocorreu em meados de março de 2020, mas o autor não foi notificado para comparecer, apesar de ter dado disponibilidade para tal. *
16. A quantia de € 10.000,00, descrita em 8. foi paga pelo autor em fevereiro de 2020, após ter sido informado, por mensagem eletrónica que, sem tal pagamento, não se poderia inscrever nos exames da ANAC.
17. Por causa do primeiro confinamento, em consequência da pandemia causada pelo “Covid-19”, não houve época de exames em março, maio e junho de 2020, e não houve voos nos meses de maio e junho de 2020.
18. Em virtude dos sucessivos adiamentos da época de exames, o autor ficou em constante sobressalto, sem saber quando a mesma teria lugar. *
19. Sobressalto que lhe causou instabilidade emocional e psicológica e uma grande ansiedade, com reflexos negativos na sua vida familiar e profissional. *
20. Depois do mencionado confinamento o autor não voltou a dar disponibilidade para voar, por não se sentir capaz e confiante para o fazer. Designadamente,
21. Quando foi reaberta a disponibilidade para voar, o autor estava a preparar-se para os exames da ANAC (parte teórica), que se realizaram em agosto de 2020, não se sentindo disponível para voos de instrução. E,
22. Em 6 de agosto de 2020 ocorreu um acidente com uma das aeronaves da ré, tendo sido elaborado um relatório pelo “Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários” (GPIAAF) do qual consta, entre o mais, o seguinte, no que à manutenção da aeronave diz respeito: «(…) Nas várias fases dos trabalhos, o novo operador realizou testes e/ou voos de aceitação da aeronave. Num desses voos/ensaios, a 1 de junho de 2020, a aeronave terá apresentado falhas de operação do motor, tendo como causa identificada, após o respetivo processo de pesquisa de anomalia, a presença de água nos tanques de combustível. Os registos de manutenção, apesar de incoerentes nas datas, mostram que foi realizada a remoção do combustível contaminado, sem, no entanto, especificar o método de limpeza dos tanques. Pelo histórico recente de problemas de contaminação do combustível da aeronave e que levou à falha do motor, pela condição dos vedante das tampas dos tanques e, por alegada falta de material para a sua substituição, o prestador de serviços de manutenção, com o acordo do novo proprietário e aceitação do piloto, improvisou um procedimento não autorizado no manual, aplicando fita adesiva sobre os bocais para evitar a entrada de água nos tanques. (…) Conforme demonstrado na condição dos vedantes dos bocais dos tanques de combustível com fissuras e sinais de tinta (detalhe B da figura 5 acima) é legítimo afirmar que a instrução de manutenção EASA acima referida, não foi devidamente cumprida com implicações na falta de estanquicidade do tanque, permitindo a entrada de água.» concluindo-se que «(…) As práticas de manutenção nas diversas intervenções realizadas demonstram desvios relevantes à regulamentação ao serem assinados documentos sem o devido cumprimento, como é o caso da EASA SIN2008-08. Atalhos nos trabalhos realizados no sistema de combustível como a drenagem da cuba do carburador e limpeza dos tanques contribuíram para o desfecho do evento e devem ser devidamente analisados pelo prestador de serviços.». *
23. A situação de Pandemia obrigou, por um lado, à prorrogação do curso frequentado pelo autor primeiro para quarenta meses de duração, com terminus previsto em fevereiro de 2022, depois prorrogado até 8 de junho de 2022 e, por outro, à alteração do calendário de exames pela “Autoridade Nacional de Aviação Civil” (ANAC).
24. A ANAC detetou, em inspeções realizadas à ré em outubro de 2018, fevereiro de 2019, janeiro de 2020 e julho de 2021 as seguintes desconformidades em relação aos cursos integrados ATPL(A) que pela ré estavam a ser ministrados nestas datas: incumprimento da sequência das lições e das fases de voo, incumprimento do cronograma do curso, por interrupções prolongadas nos voos (v. g. superiores a 15 dias), atrasos na formação, insuficiência de instrutores para o número de alunos inscritos e insuficiência de aeronaves bimotor em condições adequadas para operarem. *
25. Através de Ofício ANAC n.º 387/DJU/PCA/2021, em 6 de agosto de 2021 a ANAC comunicou à ré a aplicação de medida cautelar que consistiu na limitação de aceitação de novos alunos pelo facto de não ter implementado medidas adequadas para obstar às desconformidades de insuficiência de instrutores e incumprimento do cronograma do curso, por interrupções prolongadas nos voos. *
25-A. durante os anos de 2018 e 2019, vários pilotos instrutores que prestavam funções na Ré deixaram-no do fazer, passando a desempenhar funções para companhias aéreas.
26. A insuficiência de aeronaves e de instrutores da ré, e as interrupções prolongadas nos voos foram causando no autor sentimentos de desconforto, instabilidade emocional e insegurança. Apesar disto, *
27. Em 14 de outubro de 2020, o autor voltou a inscrever-se na secretaria da escola para a época de exames de novembro de 2020. Mas,
28. No dia 22 de outubro de 2020 foi surpreendido com um e-mail da ré, remetido pela sua funcionária HH, informando-o da sua exclusão da época de novembro de 2020, em virtude de pagamentos em atraso. Contudo,
29. No dia 9 de novembro de 2020, recebeu outro e-mail, da equipa de suporte da ré, a confirmar a sua inscrição na aludida época de exames, tendo verificado que o seu nome constava na lista de alunos inscritos para a aludida época de exames. Sucede que,
30. O autor não se preparou para a referida época de exame por causa do e-mail descrito em 28. *
31. No que respeita aos exames da ANAC, os alunos dispõem de dezoito meses para concluir as catorze disciplinas do curso, contados do momento que vão a primeira vez realizar exame na ANAC.
32. Devido à pandemia causada pelo “Covid-19”, este prazo foi prorrogado por mais quatro meses após o primeiro confinamento (ocorrido em finais de março de 2020) e por mais dois meses, após o segundo confinamento (ocorrido em início de 2021).
33. O autor tinha realizado exames na ANAC em maio de 2019, pelo que podia concluir as catorze disciplinas até maio de 2021.
34. Atento o descrito em 12. a 15., 22., 24., 26. e 28. a 30., e através de carta registada com aviso de receção enviada à ré, que a recebeu, datada de 30 de novembro de 2020, o autor rescindiu o contrato de formação que o unia à ré desde 24 de setembro de 2018, invocando ter apenas realizado voos 12 vezes (apesar de ter apresentado disponibilidade de 146 dias completos, entre agosto de 2019 e fevereiro de 2020), a ocorrência de um acidente com uma aeronave da ré em 6 de agosto de 2020, a falta de aeronaves e consequente incumprimento no agendamento dos voos e um erro administrativo da ré que o impossibilitou de se preparar para os exames de novembro de 2020, concluindo por solicitar a transferência para a sua conta bancária da quantia de € 15.565,00 a título de quantia paga sem qualquer correspondência à componente teórica ou prática do curso.
35. A ré respondeu a esta missiva através de carta datada de 9 de dezembro de 2020, declinando qualquer tipo de responsabilidade, negando a existência de fundamento para a rescisão com justa causa, recusando a devolução de qualquer quantia paga e solicitando o pagamento do remanescente do preço do curso, no montante de € 29.000,00.
36. Em 30 de dezembro de 2020 o autor recebeu um e-mail da ré, solicitando o pagamento do montante referente à época de exames de novembro de 2020. E,
37. Em 26 de janeiro de 2021, o autor recebeu uma comunicação da ANAC, com um aviso de cobrança coerciva do montante correspondente.
38. Caso o autor pretenda fazer o curso integrado de Piloto de Linha Aérea de Avião (ATPL-A) noutra escola, terá que repetir o mesmo percurso teórico legalmente exigido para a sua conclusão, o que implica a frequência de mais de 800 horas de formação teórica, os testes de aferição de conhecimentos a realizar na escola, e os respetivos testes na ANAC nas catorze disciplinas.
39. O custo da aula de voo na autora era de valor não inferior a € 230,00 no ano de 2020.
40. O autor frequentou, no âmbito do curso de piloto profissional descrito em 3., um total de 265 aulas teóricas do curso de piloto profissional, cada uma com a duração de 3 horas, num total de 795 horas, e um total de 17:50 horas de voo.
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E foi considerado como NÃO PROVADO que (estão identificados com * os factos objecto de impugnação):
Dos que se entendem relevantes, consideram-se não provadas as alegações do autor constantes dos seguintes artigos:
• 7º, 19º e 28º da p. i. ;
• 29º a 33º e 35º a 37º, para além do que consta provado sob os nºs. 13 a 15 e 24
• 38º da p. i.
• 62º a 65º da p. i., para além do que consta provado sob os nºs. 24 e 25 ;
• 66º da p. i. e
• 69º da p. i., para além do que consta provado sob o nº. 28
Dos que se entendem relevantes, consideram-se não provadas as alegações da ré constantes dos artigos 32.º *, 34.º * (no segmento em “que o descrito em 25-A tenha ocorrido em elevado número, através de denúncias contratuais”, conforme infra decidido) e 35º. a 39.º, 60.º e 92.º * da contestação.
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B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
I. da REAPRECIAÇÃO da PROVA em resultado da IMPUGNAÇÃO da MATÉRIA de FACTO
Prevendo acerca da modificabilidade da decisão de facto, consagra o artigo 662º do Cód. de Processo Civil os poderes vinculados da Relação, estatuindo que:
“1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
2. - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a. Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b. Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c. Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d. Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.
Para que tal conhecimento se consuma, deve previamente o recorrente/apelante, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o ónus a seu cargo, plasmado no artigo 640º do mesmo diploma, o qual dispõe que:
“1 -Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a. Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b. Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c. A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
1. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b. Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
No caso sub judice, a prova produzida em audiência foi gravada, tendo a Apelante dado cumprimento ao preceituado no supra referido artigo 640º, nº. 2, alín. a), do Cód. de Processo Civil, indicando com exactidão as passagens da gravação em que funda o recurso interposto, tendo, ainda, inclusive, procedido à transcrição dos excertos considerados relevantes.
Pelo que, tendo, adrede, a Apelante indicado os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, bem como a decisão que sobre tais pontos factuais deveria passar a constar, mostram-se preenchidos todos os requisitos ou pressupostos conducentes ao conhecimento da apresentada impugnação da matéria de facto.
Deste modo, procedeu-se à devida consideração das declarações enunciadas, fundamentalmente no que concerne às passagens da gravação indicadas e depoimentos transcritos.
Invoca, ainda, a Recorrente como concreto meio probatório a ponderar o resultante de prova documental, pelo que o Tribunal ponderará a sua potencialidade probatória, e adequação à matéria de facto considerada provada, nomeadamente na aferição se o mesmo impunha, por referência aos concretos pontos de facto impugnados, diferenciada decisão.
Não se desconhece que “para negar a admissibilidade da modificação da decisão da matéria de facto, designadamente quando esta seja sustentada em meios de prova gravados, não pode servir de justificação o mero facto de existirem elementos não verbalizados (gestos, hesitações, posturas no depoimento, etc.) insusceptíveis de serem recolhidos pela gravação áudio ou vídeo. Também não encontra justificação a invocação, como factor impeditivo da reapreciação da prova oralmente produzida e da eventual modificação da decisão da matéria de facto, da necessidade de respeitar o princípio da livre apreciação pelo qual o tribunal de 1ª instância se guiou ou sequer as dificuldades de reapreciação de provas gravadas em face da falta de imediação”.
Pelo que, poderá e deverá a Relação “modificar a decisão da matéria de facto se e quando puder extrair dos meios de prova, com ponderação de todas as circunstâncias e sem ocultar também a livre apreciação da prova, um resultado diferente que seja racionalmente sustentado” 2.
Reconhece-se que o registo dos depoimentos, seja áudio ou vídeo, “nem sempre consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal a quo. Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que porventura influenciaram o juiz da 1ª instância.
Na verdade, existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador”.
Efectivamente, e esta é uma fragilidade que urge assumir e reconhecer, “o sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1ª instância a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo aos tribunais retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”.
Todavia, tais dificuldades não devem justificar, por si só, a recusa da actividade judicativa conducente à reapreciação dos meios de prova, ainda que tais circunstâncias ou fragilidades devam ser necessariamente “ponderadas na ocasião em que a Relação procede à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados3 (sublinhado nosso).
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DA MATÉRIA de FACTO NÃO RELEVANTE PARA a DECISÃO
Referencia a Ré Impugnante que nos termos do disposto nos artigos 7.º, n.º 1, 130.º, 596.º, n.º1 e 607.º, n.ºs 3e 4, do Código de Processo Civil, apenas pode ser considerada como assente, a matéria de facto relevante para a decisão da causa.
Pelo que, consistindo o objecto dos presentes autos em verificar a existência de incumprimento do contrato de formação celebrado e, na afirmativa, verificar se o Autor ou a Ré sofreram prejuízos em consequência de um suposto incumprimento, tem de considerar-se que o facto provado 22 não constitui matéria de facto relevante para a decisão da causa, devendo o mesmo ser eliminado da matéria de facto.
Desta forma, ao considerar-se tal facto como provado, sem que o mesmo constitua matéria de facto relevante para a decisão da causa, em virtude do objecto dos presentes autos consistir em verificar a existência de incumprimento do contrato de formação celebrado e se esse incumprimento é imputável à Ré ou ao Autor, bem como verificar qual terá sofrido prejuízos em consequência de um suposto incumprimento, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 7.º, n.º 1, 130.º, 596.º, n.º 1 e 607.º, n.ºs 3 e 4, todos do Código de Processo Civil.
Decidindo:
O facto provado 22 possui a seguinte redacção:
“22. Em 6 de agosto de 2020 ocorreu um acidente com uma das aeronaves da ré, tendo sido elaborado um relatório pelo “Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários” (GPIAAF) do qual consta, entre o mais, o seguinte, no que à manutenção da aeronave diz respeito: «(…) Nas várias fases dos trabalhos, o novo operador realizou testes e/ou voos de aceitação da aeronave. Num desses voos/ensaios, a 1 de junho de 2020, a aeronave terá apresentado falhas de operação do motor, tendo como causa identificada, após o respetivo processo de pesquisa de anomalia, a presença de água nos tanques de combustível. Os registos de manutenção, apesar de incoerentes nas datas, mostram que foi realizada a remoção do combustível contaminado, sem, no entanto, especificar o método de limpeza dos tanques. Pelo histórico recente de problemas de contaminação do combustível da aeronave e que levou à falha do motor, pela condição dos vedante das tampas dos tanques e, por alegada falta de material para a sua substituição, o prestador de serviços de manutenção, com o acordo do novo proprietário e aceitação do piloto, improvisou um procedimento não autorizado no manual, aplicando fita adesiva sobre os bocais para evitar a entrada de água nos tanques. (…) Conforme demonstrado na condição dos vedantes dos bocais dos tanques de combustível com fissuras e sinais de tinta (detalhe B da figura 5 acima) é legítimo afirmar que a instrução de manutenção EASA acima referida, não foi devidamente cumprida com implicações na falta de estanquicidade do tanque, permitindo a entrada de água.» concluindo-se que «(…) As práticas de manutenção nas diversas intervenções realizadas demonstram desvios relevantes à regulamentação ao serem assinados documentos sem o devido cumprimento, como é o caso da EASA SIN2008-08. Atalhos nos trabalhos realizados no sistema de combustível como a drenagem da cuba do carburador e limpeza dos tanques contribuíram para o desfecho do evento e devem ser devidamente analisados pelo prestador de serviços.»”.
Compulsados os autos, verifica-se que o incumprimento imputado pelo Autor à Ré, na execução do outorgado contrato de formação, traduz-se, numa das suas vertentes, na existência de um problema de falta de prontidão das aeronaves, com reflexo na elaboração da escala de voos, bem como na falta de segurança das aeronaves da Ré por deficiente manutenção das mesmas – cf., artigos 88º a 90º da petição inicial -, o que legitima, no entendimento do Autor, juízo de suspeição sobre o estado das aeronaves e justificado receio em embarcar nas mesmas em voos de instrução – cf., artigo 56º da petição inicial.
Desta forma, a ocorrência de um acidente com uma das aeronaves da Ré, bem como a aferição das suas causas, para mais durante o período de execução do contrato de formação, não se revela, claramente, como matéria irrelevante para a decisão da causa, mas antes, e ao invés, como concreta matéria factual pertinente e assertiva à apreciação e aferição do alegado juízo de incumprimento obrigacional, e às consequências jurídicas daí decorrentes.
Donde, sem necessidade de acrescida fundamentação, improcede, neste segmento, a impugnação apresentada, mantendo-se o facto 22 na elencagem da factualidade provada.
DA MATÉRIA CONCLUSIVA
Defende a Ré Impugnante que os factos provados 13., 15., 18., 19. e 26., têm natureza conclusiva, por serem claramente opinativos e valorativos, ou por isso mesmo, e são, por isso, conclusões, ou um conjunto de conclusões que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituindo factos em si mesmos. Acrescenta inexistirem, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possam assentar as conclusões que figuram naqueles, pelo que se devem ter por não escritos, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil.
Concretizando, aduz que o facto provado 13, na parte em que refere que « O autor deu disponibilidade de voo a partir do dia 26 de agosto de 2019 e nos meses seguintes.», tem natureza conclusiva, por ser claramente opinativo e valorativo, ou por isso mesmo, sendo, por isso, uma conclusão, ou um conjunto de conclusões que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituindo um facto em si mesmo, e não existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possa assentar a conclusão constante do facto provado 13.. Assim, deve o mesmo ter-se por não escrito, na referida parte, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil, devendo o facto provado 13. passar a ter a redacção seguinte:
«13. Em data não concretamente apurada após obter aprovação nos testes teóricos, o A. pretendia a sua integração nas escalas para os voos de formação (componente prática).».
Por sua vez, o facto provado 15, na parte em que refere «mas o autor não foi notificado para comparecer, apesar de ter dado disponibilidade para tal» tem igualmente natureza conclusiva, por ser claramente opinativo e valorativo, ou por isso mesmo, e sendo, por isso, uma conclusão, ou um conjunto de conclusões que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituindo um facto em si mesmo, e não existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possa assentar a conclusão constante do 15. Deste modo, deve o mesmo igualmente ter-se por não escrito, na referida parte, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil, devendo o facto provado 15. passar a ter a seguinte redacção:
«15. O último voo antes do primeiro confinamento, em consequência da pandemia causada pelo “Covid-19”, ocorreu em meados de março de 2020».
No que concerne aos factos provados 18, 19 e 26, aduz terem os mesmos igual natureza conclusiva, em virtude de serem claramente opinativos e valorativos, ou, por isso mesmo, sendo uma conclusão, ou um conjunto de conclusões, que envolvem um juízo sobre um conjunto de factos, não constituem um facto em si mesmo e, não existindo, sequer, nos autos, quaisquer factos provados sobre os quais possa assentar a conclusão nos mesmos aposta, devem ter-se por não escritos, por aplicação do disposto no artigo 607.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Civil.
Apreciando:
Os factos em equação possuem a seguinte redacção:
“13. O autor deu disponibilidade de voo a partir do dia 26 de agosto de 2019 e nos meses seguintes, com algumas interrupções, num total de 146 dias completos de disponibilidade de voo”.
“15. O último voo antes do primeiro confinamento, em consequência da pandemia causada pelo “Covid-19”, ocorreu em meados de março de 2020, mas o autor não foi notificado para comparecer, apesar de ter dado disponibilidade para tal”.
“18. Em virtude dos sucessivos adiamentos da época de exames, o autor ficou em constante sobressalto, sem saber quando a mesma teria lugar”.
“19. Sobressalto que lhe causou instabilidade emocional e psicológica e uma grande ansiedade, com reflexos negativos na sua vida familiar e profissional”.
“26. A insuficiência de aeronaves e de instrutores da ré, e as interrupções prolongadas nos voos foram causando no autor sentimentos de desconforto, instabilidade emocional e insegurança”.
Reconhece-se que alguma da factualidade equacionada não traduz um modelo de consignação factual dos pedaços da realidade pertinentes ao conhecimento da pretensão acional do Autor. Pelo que, sempre se poderiam decompor em substracto factual mais impressivo e “cru”, o que não sucedeu, desde logo, com o alegado em sede de petição inicial.
Todavia, pretender rotular o referenciado como matéria conclusiva, em virtude de ser opinativa e valorativa, ou seja, tradutora de juízos de valor, afigura-se-nos como solução inadequada e juridicamente impertinente.
Com efeito, se é certo que os factos conclusivos não devem figurar na matéria factual fixada, sobre a qual incidirá o competente enquadramento jurídico, em virtude de, por estarem tão próximos com a questão controvertida, acabam por confundir-se com esta e, formulando um juízo valorativo, ditam ou determinam a solução jurídica do caso concreto, não logramos reconhecer na factualidade ora impugnada tal natureza.
Efectivamente, os pontos factuais sob sindicância, ainda que alguns deles não se revelem como tecnicamente imaculados, possuem evidente lastro ou base factual, traduzem ou evidenciam percepções duma realidade concreta e apreensível, e não quaisquer juízos valorativos ou conclusivos, susceptíveis de determinarem um juízo de direito ou de determinação jurídica da questão sob controvérsia.
Assim, e exemplificativamente, consignar que o Autor deu disponibilidade de voo a partir de determinada data, se o Autor foi ou não notificado para o último voo realizado em concreta data, e se deu ou não disponibilidade para o mesmo, se o Autor ficou ou não em constante sobressalto em virtude dos sucessivos adiamentos da época de exames, e se tal lhe causou ansiedade e instabilidade emocional e psicológica, com reflexos negativos na sua vida familiar e profissional, bem como quais os sentimentos vivenciados pelo mesmo Autor decorrente da insuficiência de aeronaves e instrutores da Ré, bem como das prolongadas interrupções dos voos, ainda se configura como matéria factual, de concreta apreensão e percepção perante a realidade quotidiana e vivencial, e não um qualquer juízo de valor ou conclusivo.
O que determina, igualmente nesta vertente, juízo de improcedência da impugnação apresentada.
DA CONTRADIÇÃO da DECISÃO SOBRE a MATÉRIA de FACTO
Prosseguindo o seu excurso de impugnação da matéria de facto, pugna a Ré pela anulação do facto provado 30, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Civil, por se encontrar claramente em contradição com o facto provado 21. Concretiza, referenciando que o Tribunal a quo considerou como provado que o Recorrido estava a preparar-se para os exames da ANAC ao mesmo tempo que considerou igualmente como provado que o Recorrido não se preparou para a referida época de exame.
Entende, assim, que uma das respostas é contrária à outra, e que o conteúdo de ambas é logicamente incompatível, o que deve determinar a aludida anulação do facto provado 30.
Apreciando:
Os pontos factuais em equação possuem a seguinte redacção:
“21. Quando foi reaberta a disponibilidade para voar, o autor estava a preparar-se para os exames da ANAC (parte teórica), que se realizaram em agosto de 2020, não se sentindo disponível para voos de instrução” ;
“30. O autor não se preparou para a referida época de exame por causa do e-mail descrito em 28.”.
Liminarmente, não entendemos a argumentação da Impugnante relativamente á aludida contradição entre os identificados factos provados, a qual não vislumbramos minimamente.
Efectivamente, enuncia-se no facto provado 21 que quando foi reaberta a disponibilidade para voar, após o primeiro confinamento, em consequência da pandemia causada pelo Covid 19 (não tendo existido voos nos meses de Maio e Junho de 2020), o Autor estava a preparar-se para os exames da ANAC (parte teórica), que se realizaram em Agosto de 2020.
Por sua vez, a referência efectuada no facto provado 30 de que o Autor não se preparou para a época de exame, na decorrência de um e-mail que lhe foi enviado por uma funcionária da Ré, reporta-se aos exames de Novembro de 2020, conforme decorre do facto provado 27 e da sua articulação com a factualidade subsequente.
Ou seja, a alegada contradição é totalmente inexistente, pois a consignada preparação e não preparação para os exames da ANAC reportam-se a diferenciadas épocas de exame (e, eventualmente, a diferenciadas disciplinas), sem que daí decorra qualquer antinomia ou contradição.
O que, sem ulteriores delongas, determina, igualmente quanto à presente vertente impugnatória, juízo de total improcedência.
DA ALTERAÇÃO da DECISÃO SOBRE a MATÉRIA de FACTO
Adrede, pugna, ainda, a Apelante Ré, no sentido de que quer o ofício da ANAC junto aos autos, quer o depoimento da testemunha BB, serem meios de prova que desrespeitam o dever de sigilo profissional [artigo 28.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 40/2015, de 16 de Março] (pois foram obtidos e valorados sem que fosse [como devia] invocada recusa por parte da ANAC ou da testemunha BB, nos termos do artigo 417.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Civil e sem que fosse, posteriormente, requerida a abertura de incidente para levantamento do sigilo profissional junto do Tribunal da Relação).
Assim, acrescenta, a consequência jurídica da utilização daqueles ditos meios de prova é a inidoneidade dos mesmos para demonstração dos factos, pelo que deve a Relação (verdadeiro poder-dever) alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, devendo o juízo sobre os factos provados 24 e 25 ser formulado como se o depoimento da testemunha BB não tivesse sido prestado e como se o Ofício ANAC n.º 387/DJU/PCA/2021 nunca tivesse sido apresentado em juízo, alterando os mesmos para não provados.
Efectivamente, conforme decorre daquele normativo, possui a Relação o poder-dever de alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, podendo a impugnação acerca da decisão da matéria de facto abranger as situações em que tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente.
Apreciando:
Prevendo acerca do dever de cooperação para a descoberta da verdade, dispõe o nº 1 do artº. 417º, do Cód. de Processo Civil, que “todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados”.
Sancionando a falta do cumprimento de tal dever, aduz o nº. 2, do mesmo normativo, que “aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil”.
Todavia, o nº. 3 reassalva que a recusa é legítima “se a obediência importar:
a) Violação da integridade física ou moral das pessoas;
b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações;
c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4” (sublinhado nosso).
Por fim, acrescenta o nº. 4, ainda do mesmo normativo, que “deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado”.
Tal normativo encontra-se em íntima conexão com o princípio da cooperação vertido no artº. 7º do mesmo diploma, o qual prescreve que:
“1 - Na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio.
2 - O juiz pode, em qualquer altura do processo, ouvir as partes, seus representantes ou mandatários judiciais, convidando-os a fornecer os esclarecimentos sobre a matéria de facto ou de direito que se afigurem pertinentes e dando-se conhecimento à outra parte dos resultados da diligência.
3 - As pessoas referidas no número anterior são obrigadas a comparecer sempre que para isso forem notificadas e a prestar os esclarecimentos que lhes forem pedidos, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 417.º.
4 - Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo”.
Refere José Lebre de Freitas 4 que o nº. 1 do artº. 417º, e o dever de cooperação em equação (cooperação em sentido material), “colocado em sede de instrução do processo, faz recair sobre as partes – e também sobre terceiros, para tanto solicitados pelo tribunal – o dever de prestarem a sua colaboração para a descoberta da verdade, facultando objectos que constituam meios de prova (documentos ou monumentos: arts. 428 a 431 e 416 (…)”, existindo apenas dois limites a considerar: “o respeito pelos direitos fundamentais (nomeadamente, o direito à integridade pessoal, o direito à reserva da vida privada e familiar e o direito à inviolabilidade do domicílio, da correspondência e dos outros meios de comunicação privada: arts. 25-1, 26-1 e 34-1 da Constituição da República) e o respeito pelo direito ou dever de sigilo (sigilo profissional ou dos funcionários públicos, ou segredo de Estado)”.
Assim, enquanto o transcrito artº. 7º consagra um dever geral de cooperação, o artº. 417º traduz a sua emanação no campo da instrução da causa, sendo que tal “dever de colaboração na descoberta da verdade não atinge somente as partes, embora a elas se dirija em primeira linha ; estende-se também a terceiros, atento o interesse público da boa administração da justiça, que necessita da exacta reconstituição da situação de facto a julgar” 5.
A propósito do artº. 519º do Cód. de Processo Civil de 1961, reproduzido no actual artº. 417º, refere Lopes do Rego 6 prever o nº. 2 de tal normativo a regulação dos efeitos ou sanções “decorrentes de recusa de colaboração devida, prevendo sucessivamente a condenação em multa, a realização por via coactiva da diligência, a inversão do ónus probatório e a livre apreciação do valor, em termos probatórios, da recusa – sendo evidente que estes dois últimos efeitos pressupõem necessariamente que o recusante seja parte”.
Todavia, devendo os meios coercitivos que forem possíveis conciliar-se com os direitos e garantias fundamentais, “em certos casos, a execução específica e coactiva do comportamento devido pela parte ou por terceiro poderá revelar-se incompatível com aqueles direitos fundamentais, pelo que não poderá ter lugar a realização pela força da diligência instrutória pretendida”.
Tal não traduz, contudo, “que a parte ou o terceiro não estivesse efectivamente obrigado a cooperar com o tribunal, nos termos que lhe foram legitimamente determinados: o que se não configura como possível ou exigível é, perante a recusa em acatar espontaneamente o comportamento determinado, ocorrer realização coerciva da diligência instrutória tida por necessária – incorrendo consequentemente a parte nas outras sanções previstas na lei: multa (eventualmente por litigância de má-fé, se o comportamento da parte reveste suficiente gravidade), inversão do ónus da prova, se o meio probatório em causa for absolutamente essencial, de modo a que a recusa da parte tenha acabado por tornar impossível a prova à contraparte, livre apreciação da recusa pelo tribunal, nos restantes casos”.
Acrescenta-se, ainda, no que concerne aos limites ao dever de cooperação inscritos nas alíneas do nº. 3 do artº. 519º (actualmente, artº. 417º), dever adoptar-se uma posição de cautela e ponderação “na densificação e concretização das cláusulas gerais constantes desta norma”. Cita, então, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº. 263/97 (DR, II, 01/07/1997, pág. 2567), onde se exarou que “o direito a proteger, pois que relacionado com a dignidade da pessoa humana, tem ele mesmo de ser exercido com dignidade, pois todas as liberdades, todos os direitos, sofrem as restrições impostas pelo respeito da liberdade e dos direitos dos outros. Ou, se se preferir, a autonomia dos direitos fundamentais é limitada na medida dos deveres de solidariedade para com os outros homens e para com a sociedade pois o seu titular vive em comunidade e, como tal, obriga-se a suportar as restrições e as compressões indispensáveis à acomodação dos direitos comunitários, ordenados ao bem comum de todos”.
Pelo que, nestes termos, impõe-se “uma apreciação ponderada dos interesses em causa, no pressuposto de que a protecção concedida aos direitos em questão não pode limitar intoleravelmente outros direitos: a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos há-de obedecer ao princípio da proporcionalidade em sentido amplo, proibindo o excesso, devendo, por isso, as restrições serem necessárias, adequadas, e proporcionais (cfr. art. 18º da Constituição, segunda parte do seu nº. 2)” 7.
Prevendo acerca do sigilo profissional, prescreve o nº. 1, do artº. 28º, do DL nº. 40/2015, de 16/02 - aprova os estatutos da Autoridade Nacional da Aviação Civil, anteriormente designado Instituto Nacional de Aviação Civil, I. P., em conformidade com o regime estabelecido na Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto, que aprova a lei-quadro das entidades administrativas independentes -, que “sem prejuízo do cumprimento do dever de reserva previsto no artigo 18.º da lei-quadro das entidades reguladoras, os membros dos órgãos da ANAC, os seus trabalhadores, bem como as pessoas ou entidades, públicas ou privadas, que lhe prestem, a título permanente ou ocasional, quaisquer serviços, ficam sujeitos, nos termos da legislação penal e dos presentes estatutos, a sigilo profissional sobre os factos cujo conhecimento lhes advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos serviços referidos e, seja qual for a finalidade, não podem divulgar, nem utilizar, em proveito próprio ou alheio, diretamente ou por interposta pessoa, o conhecimento que tenham desses factos”.
Por sua vez, estatuindo acerca do dever de reserva, referencia o citado artº. 18º, da Lei nº. 67/2013, de 28/08 – Lei-Quadro das Entidades Reguladoras -, que:
“1 - Os membros do conselho de administração não podem fazer declarações ou comentários sobre processos em curso ou questões concretas relativas a entidades sobre os quais atua a respetiva entidade reguladora, salvo para defesa da honra ou para a realização de outro interesse legítimo.
2 - Não são abrangidas pelo dever de reserva as declarações relativas a processos já concluídos, bem como a prestação de informações que visem a realização de direitos ou interesses legítimos, nomeadamente o do acesso à informação”.
Referenciemos, ainda, o disposto no artº. 6º, nºs. 1 a 6, da Lei nº. 26/2016, de 22/08 - aprova o regime de acesso à informação administrativa e ambiental e de reutilização dos documentos administrativos, transpondo a Diretiva 2003/4/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de janeiro, e a Diretiva 2003/98/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 17 de novembro -, sob a epígrafe restrições ao direito de acesso, no qual se enuncia que:
1 - Os documentos que contenham informações cujo conhecimento seja avaliado como podendo pôr em risco interesses fundamentais do Estado ficam sujeitos a interdição de acesso ou a acesso sob autorização, durante o tempo estritamente necessário, através de classificação operada através do regime do segredo de Estado ou por outros regimes legais relativos à informação classificada.
2 - Os documentos protegidos por direitos de autor ou direitos conexos, designadamente os que se encontrem na posse de museus, bibliotecas e arquivos, bem como os documentos que revelem segredo relativo à propriedade literária, artística, industrial ou científica, são acessíveis, sem prejuízo da aplicabilidade das restrições resultantes do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos e do Código da Propriedade Industrial e demais legislação aplicável à proteção da propriedade intelectual.
3 - O acesso aos documentos administrativos preparatórios de uma decisão ou constantes de processos não concluídos pode ser diferido até à tomada de decisão, ao arquivamento do processo ou ao decurso de um ano após a sua elaboração, consoante o evento que ocorra em primeiro lugar.
4 - O acesso ao conteúdo de auditorias, inspeções, inquéritos, sindicâncias ou averiguações pode ser diferido até ao decurso do prazo para instauração de procedimento disciplinar.
5 - Um terceiro só tem direito de acesso a documentos nominativos:
a) Se estiver munido de autorização escrita do titular dos dados que seja explícita e específica quanto à sua finalidade e quanto ao tipo de dados a que quer aceder;
b) Se demonstrar fundamentadamente ser titular de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante, após ponderação, no quadro do princípio da proporcionalidade, de todos os direitos fundamentais em presença e do princípio da administração aberta, que justifique o acesso à informação.
6 - Um terceiro só tem direito de acesso a documentos administrativos que contenham segredos comerciais, industriais ou sobre a vida interna de uma empresa se estiver munido de autorização escrita desta ou demonstrar fundamentadamente ser titular de um interesse direto, pessoal, legítimo e constitucionalmente protegido suficientemente relevante após ponderação, no quadro do princípio da proporcionalidade, de todos os direitos fundamentais em presença e do princípio da administração aberta, que justifique o acesso à informação”.
Ora, estarão os enunciados factos cobertos pelo dever de sigilo profissional, tal como este vem regulado no transcrito nº. 1, do artº. 28º, do DL nº. 40/2015, de 16/03 ?
Concretizando, quer o ofício da ANAC, quer o depoimento da testemunha BB, constituem meios probatórios desrespeitadores do dever de sigilo profissional, em virtude de terem sido obtidos e valorados sem que fosse invocada recusa por parte da ANAC ou daquela testemunha, nos termos da transcrita alínea c), do nº. 3, do artº. 417º, do Cód. de Processo Civil, de forma a justificar posterior requerimento de abertura de incidente para levantamento do sigilo profissional junto do Tribunal da Relação ?
Na afirmativa, tal determinará a inidoneidade de tais meios probatórios para a demostração de tais factos, conducente a que os mesmos devam passar a figurar como não provados ?
Os factos sob ponderação têm o seguinte conteúdo:
“24. A ANAC detetou, em inspeções realizadas à ré em outubro de 2018, fevereiro de 2019, janeiro de 2020 e julho de 2021 as seguintes desconformidades em relação aos cursos integrados ATPL(A) que pela ré estavam a ser ministrados nestas datas: incumprimento da sequência das lições e das fases de voo, incumprimento do cronograma do curso, por interrupções prolongadas nos voos (v. g. superiores a 15 dias), atrasos na formação, insuficiência de instrutores para o número de alunos inscritos e insuficiência de aeronaves bimotor em condições adequadas para operarem”.
“25. Através de Ofício ANAC n.º 387/DJU/PCA/2021, em 6 de agosto de 2021 a ANAC comunicou à ré a aplicação de medida cautelar que consistiu na limitação de aceitação de novos alunos pelo facto de não ter implementado medidas adequadas para obstar às desconformidades de insuficiência de instrutores e incumprimento do cronograma do curso, por interrupções prolongadas nos voos”.
Na fundamentação/motivação feita constar, no que concerne ao julgamento de facto, na sentença apelada, consignou-se que, relativamente aos factos provados 24 e 25, o Tribunal tomou em consideração “o teor do ofício da ANAC, junto aos autos em 31.05.2023 e, ainda as declarações de parte do autor e da ré (que admitiu insuficiência de instrutores) e os depoimentos das testemunhas BB, II e JJ, todos coincidentes entre si nesta matéria”.
Ora, antes de mais, vejamos de que forma se produziram nos autos os meios probatórios questionados pela Ré Apelante, nomeadamente no que concerne a eventual salvaguarda ou tutela da “violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos”.
Compulsados os autos, verifica-se que:
- aquando da inquirição da testemunha arrolada pelo Autor, BB, na 2ª sessão de julgamento, datada de 12/12/2022, esta, aos costumes, referenciou que “foi piloto de aviões comerciais, actualmente é inspectora da ANAC desde Janeiro de 2017 e que supervisiona a R..”.
Seguidamente, a Sra. Juíza a quo questionou-a “sobre se está sujeita a algum dever de sigilo, tendo sido esclarecido pelos Ilustres Mandatários do A. que pretendiam inquirir a testemunha em relação a auditorias levadas a cabo pela ANAC à R., designadamente ao teor dos respectivos relatórios”.
Consta da mesma acta de tal audiência de julgamento ter “sido solicitado pela testemunha possibilidade de contactar telefonicamente os serviços jurídicos da ANAC”, o que foi deferido pelo Tribunal, tendo a audiência sido interrompida por cinco minutos. Seguidamente, pela testemunha foi dito “que só perante as perguntas concretas, que sejam feitas pelos Ilustres Mandatários, é que é possível apreciar se as mesmas estão protegidas pelo dever de sigilo”.
Consignou-se, ainda, na mesma acta que, perante tal resposta, “e com o acordo dos Ilustres Mandatários, foi pela M.ma Juiz decidido interromper a inquirição da testemunha, possibilitando aos Ilustres Mandatários do A. o prazo de 10 dias para apresentarem requerimento aos autos com o teor das informações que pretendem que sejam solicitadas à ANAC e os esclarecimentos que eventualmente necessitem de fazer a quem a represente. Mais foi concedido ulterior prazo de 10 dias para o Ilustre Mandatário da R., querendo, exercer o princípio do contraditório” ;
- na sequência do consignado, em 02/01/2023, veio o Autor apresentar requerimento nos autos com o teor das informações que pretendia que fossem solicitadas à ANAC (Associação Nacional de Aviação Civil), bem como os esclarecimentos a obter junto de quem represente tal entidade. Foi, ainda, requerido pelo Autor que a ANAC juntasse aos autos relatório contendo a resposta às questões apresentadas ;
- em 16/01/2023, veio a Ré responder a tal pretensão, referenciando ser ilegal o solicitado, justificando-o pelo facto da ANAC ser a autoridade nacional em matéria de aviação civil – pessoa colectiva de direito público, com a natureza de entidade administrativa independente -, sendo que os factos sobre os quais era pretendida informação “estão cobertos pelo dever de sigilo profissional, tal como o mesmo vem regulado pelo artigo 28º, nº. 1, do Decreto-Lei nº. 40/2015, de 16 de Março”.
Pelo que, consequentemente, conclui no sentido de indeferimento do requerido ;
- por despacho de 19/01/2023, após referenciar-se que as respostas às questões suscitadas pelo Autor podem revelar-se pertinentes para a boa decisão da causa, acrescentou-se incumbir à ANAC, “se for o caso, invocar o sigilo a que está obrigada, se entender não responder à totalidade ou a parte das questões apresentadas pelo Autor”.
Pelo que, determinou-se no sentido de se oficiar à ANAC nos termos requeridos pelo Autor, fixando-se prazo para a emissão de relatório, bem como a identificação de pessoa que pudesse vir ao Tribunal prestar esclarecimentos sobre o relatório a emitir ;
- em 03/03/2023, veio a ANAC juntar aos autos resposta ao pedido de informação, nomeadamente “às questões colocadas, o que faz em envelope fechado classificado como «Confidencial» que se encontra em anexo (…)”, solicitando a sua submissão à Sra, Juiz de Direito, e sendo tal ofício assinado pelo Director da Direção Jurídica ;
- em 07/03/2023, a Sra. Juiz a quo lavrou despacho manuscrito no rosto do próprio ofício, com o seguinte teor: “o presente ofício consubstancia matéria de natureza confidencial que extravasa o âmbito dos presentes autos e faz referência a pessoas que não são parte nos autos.
Por esta razão, e por ora, coloque este ofício em envelope fechado, lacrado, no cofre do Tribunal, ficando o seu acesso dependente de despacho judicial.
(…)” ;
- por despacho da mesma data, designou-se data para a continuação da audiência final, consignando-se importar “proporcionar, com a devida reserva, o exercício do contraditório aos Ilustres Mandatários, sobre qual o procedimento a seguir em relação ao mesmo ofício” ;
- consta da acta de 10/03/2023 o seguinte:
De seguida, Pela M.ma Juiz foi explicado aos Ilustres Mandatários que o ofício enviado pela ANAC faz referência a uma série de situações e pessoas que nada têm a ver com o objecto dos presentes autos, tendo feito uma súmula das respostas dadas pela ANAC, às questões que lhe foram colocadas e, após, deu a palavra aos Ilustres mandatários para os mesmos se pronunciarem sobre, por um lado, a possibilidade de se conciliarem e, por outro, como entendem que o Tribunal deve tratar o teor do referido ofício, se do mesmo deve dar conhecimento às partes, e em que condições, ou se se deve solicitar à ANAC o envio de novo ofício, sem referência a pessoas e circunstâncias sem ligação ao objecto dos presentes autos.
Pelos Ilustres mandatários foram adiantadas algumas possibilidades, entre elas a de uma conciliação, tendo sido fixado pela M.ma Juiz, com o acordo dos Ilustres mandatários, um prazo de 15 (quinze) dias para tentarem chegar a um acordo e, caso não o alcancem, um subsequente prazo de 10 (dez) dias para formalizarem por escrito as sugestões que entenderem mais adequadas para terem conhecimento das respostas dadas pela ANAC, sem violação do artigo 6º, nº. 5 e 6, da Lei nº. 26/2016, de 22 de agosto” ;
- mediante requerimento de 11/04/2023, veio o Autor informar que a Ré não apresentou qualquer proposta de acordo, vindo propor, para que as partes possam ter conhecimento das respostas dadas pela ANAC, sem violação da legislação de protecção de dados sensíveis, que se solicitasse à ANAC o envio do mesmo ofício, mas substituindo-se o nome das pessoas que nada têm a ver com o objecto dos presentes autos por letras, mantendo-se o demais conteúdo ;
- por despacho de 08/05/2023, no deferimento do requerido pelo Autor, determinou-se:
• Que o ofício da ANAC, que se encontrava no Cofre do Tribunal, fosse devolvido, no estado lacrado em que se encontrava ;
• Que fosse solicitado à mesma entidade o envio de novo ofício, “com as mesmas respostas, mas substituindo os nomes das pessoas singulares e/ou colectivas (que no mesmo se encontram mencionadas) por letras (por exemplo, cidadão/sociedade/entidade «A», «B», «C», etc), de forma a evitar-se a violação do disposto no artigo 6º, nºs. 5 e 6, da Lei nº. 26/2016, de 22 de agosto” ;
- em 31/05/2023, veio a ANAC juntar aos autos a resposta solicitada, mediante ofício assinado pelo Presidente do Conselho de Administração ;
- mediante requerimento de 26/06/2023, veio o Autor pronunciar-se acerca do teor do relatório junto pela ANAC ;
- por despacho de 11/09/2023, foi designada data para a continuação da audiência final, determinando-se a notificação de Comandante BB para se apresentar como testemunha ;
- tal audiência veio a realizar-se em 20/11/2023, no âmbito da qual a testemunha BB prestou depoimento, sem que conste da acta a suscitação de qualquer questão relativa a eventual violação do sigilo profissional por parte da mesma.
Resulta da resenha processual efectuada que a produção dos identificados meios probatórios revelou-se de especial cuidado, quer no que concerne ao acesso à informação administrativa em equação, atentas as restrições ao direito de acesso legalmente previstas, quer no que se reporta ao cumprimento do dever de sigilo profissional ou de funcionário público por parte da testemunha inspectora da ANAC, enquanto supervisora da Ré.
Assim, o acesso à informação contida no relatório da ANAC, após uma primeira versão que não observaria as restrições do direito de acesso a tal informação administrativa, veio a ser concretizado através de uma nova versão, com salvaguarda do anonimato das pessoas singulares ou colectivas mencionadas.
E, relativamente a tal relatório, mencionou-se expressamente em despacho judicial que sempre incumbiria à ANAC invocar o sigilo a que estava obrigada, caso entendesse não responder á totalidade ou a parte das questões suscitadas pelo Autor.
Ora, a entidade ANAC nada invocou ou referenciou relativamente àquele enunciado sigilo, prestando nos autos as informações que entendeu estar legalmente habilitada a dispor, pelo que não haveria razão para as não considerar ou valorar por parte do Tribunal, pois, inexistindo qualquer escusa legítima na prestação de tais informações, inexistia legal razão para recorrer-se ao mecanismo inscrito no citado nº. 4, do artº. 417º, do Cód. de Processo Civil.
No que se reporta ao depoimento da testemunha BB, constata-se que logo na primeira data em que ocorreu a prestação do seu depoimento – 12/12/2022 -, e após ser confrontada se se encontrava sujeita a algum dever de sigilo, respondeu que só perante as perguntas concretas que lhe fossem efectuadas é que poderia apreciar se as mesmas estavam ou não protegidas pelo dever de sigilo, o que evidencia nítido escrutínio relativamente ao dever que a onerava, susceptível de repercutir-se no legítimo exercício de recusa de depoimento caso a matéria sob a inquirição fosse potencialmente afectadora daquele dever de resguarda do sigilo profissional.
Ora, não consta que a mesma tenha invocado em concreto tal dever de sigilo, recusando-se á prestação do depoimento solicitado, pelo que, também relativamente a este meio probatório não se configurou situação conducente a eventual pedido de dispensa do dever de sigilo invocado, a enquadra nos termos do transcrito nº. 4, do artº. 417º, do Cód. de Processo Civil.
Em acrescento, urge ainda considerar uma outra circunstância ou argumento, conducente a que a impugnação suscitada não possa merecer atendibilidade.
Conforme constatámos, os pontos factuais ora em equação – 24 e 25 – mereceram juízo de positividade probatória não só sustentada nos dois meios probatórios ora questionados, ou seja, o ofício da ANAC e o depoimento da testemunha BB, mas também nas declarações de parte do Autor e Ré, bem como nos depoimentos das testemunhas II e JJ.
Ora, não questionando a Impugnante, relativamente a esta matéria, o teor e idoneidade destas declarações e depoimentos, que serviram igualmente de sustentáculo ao juízo de positividade probatória da 1ª instância, o pretendido juízo de considerar tal factualidade como não provada parece de difícil ou impossível realização.
O que igualmente sucederia caso se concluísse pelo afastamento daqueles meio probatórios alegadamente maculados, pois, restando os demais, que nenhum juízo de censura mereceram, e cuja apreciação em singelo não foi mencionada como insuficiente ou insubsistente, de forma a demandarem qualquer juízo sindicante, sempre seria de subsistir o juízo de prova logrado consignar.
Donde, igualmente no que concerne ao presente segmento impugnante, decai a pretensão recursória suscitada.
DA CONCRETA IMPUGNAÇÃO da MATÉRIA de FACTO
Por fim, referencia, ainda, a Ré Impugnante terem sido incorrectamente julgados os pontos da matéria de facto correspondente ao facto provado 30 (que deverá passar a figurar como não provado), e os factos não provados correspondentes aos artigos 32º, 34º e 92º da contestação (que devem passar a figurar como provados).
Concretizando, aduz ter sido incorrectamente julgado o ponto factual 30 provado, em virtude deste ter sido “dado como provado única e exclusivamente com base nas declarações de parte do Recorrido, o qual não deveria ter merecido do Tribunal a quo a mínima credibilidade”.
Acrescenta que as “testemunhas EE e FF, intentaram acções nos Tribunais com objecto idêntico ao dos presentes autos, nas quais alegaram factos exactamente iguais aos que foram alegados pelo Recorrido nos presentes autos, e a testemunha DD, também intentou contra a Recorrente uma acção no Tribunal Judicial da Comarca de Portalegre, Juízo do Trabalho de Portalegre, pedindo a condenação da Recorrente no pagamento de indemnização por alegado despedimento ilícito”.
Assim tais testemunhas “formaram, então, um «clube» ou «irmandade» de ex-alunos (os «lesados da AWA») inimigos da Recorrente, que intentaram, individualmente, nos Juízos Cíveis territorialmente competentes, (i) acções com objecto idêntico ao dos presentes autos, (ii) nas quais alegaram factos exactamente iguais aos que foram alegados pelo Recorrido nos presentes autos, (iii) e nas quais indicaram os restantes membros deste «clube» ou «irmandade» como suas testemunhas”, retirando tais circunstâncias, naturalmente, qualquer credibilidade aos depoimentos prestados pelas testemunhas DD e FF.
Desta forma, tendo o Tribunal a quo fundamentado a sua decisão sobre o facto provado 30, com base, exclusivamente, nas declarações de parte do Recorrido, que, nos termos referenciados, não passa de uma testemunha «profissional», importa ter bem presente que, nos termos do disposto no artigo 466º, nº. 3, do Código de Processo Civil, “o Tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão, sendo certo que essa livre apreciação impõe, nos presente autos, deveres acrescidos de cuidado, fundamentação e valoração (não bastando valorar ou formar convicção, como fez o Tribunal a quo [«sob os pontos n.ºs 30 e 33, as declarações de parte do autor.»] por referência às declarações de parte do Recorrido)”.
Com efeito, argumenta, conforme entendimento jurisprudencialmente quase maioritário, “para prova dos factos alegados pela parte, o Juiz não pode bastar-se com as declarações prestadas pela própria, por serem parciais e interessadas, sendo necessário que as declarações sejam corroboradas por outras provas, pelo que o Tribunal a quo não poderia ter fundamentado a sua decisão sobre o facto provado 30., exclusivamente nas declarações de parte do Recorrido, quando as mesmas não foram corroboradas por quaisquer outras provas idóneas”. O que determina que a prova produzida configura-se como manifestamente insuficiente para que o Tribunal a quo tivesse dado como provado tal facto 30 como provado, o que deve determinar a sua alteração para facto não provado.
Por outro lado, relativamente á factualidade constante dos artigos 32º, 34º e 92º da contestação, que foi considerada como não provada, “o Tribunal a quo desconsiderou as declarações de parte prestadas pelo legal representante da Recorrente”, que se configuraram como “claras, credíveis e espontâneas”, impondo decisão diversa sobre estes pontos da matéria de facto.
Efectivamente, atentas as declarações de parte prestadas pelo legal representante da Ré, tais factos, dados como não provados, devem passar a figurar como provados.
Apreciando:
Os pontos factuais em equação são os seguintes:
Facto Provado =» “30. O autor não se preparou para a referida época de exame por causa do e-mail descrito em 28” =» pretensão que passe a figurar como não provado ;
Factos não provados =»
A Ré tem uma frota orgânica de cerca de 20 aeronaves que operam a partir dos aeródromos de Cascais e de Évora” ;
Durante os anos de 2018 e 2019 verificou-se um elevado número de denúncias contratuais por parte de pilotos instrutores” ;
Assim, para conseguir garantir a formação dos alunos do curso de piloto de linha aérea profissional, a Ré tem, entre outras, as seguintes despesas fixas:
i. Instalações (sede na vizinhança do Aeroporto de Lisboa e instalações de apoio às operações de voo nos Aeródromos de Cascais e de Évora)
ii. Pessoal da secretaria (04 elementos)
iii. Director de instrução teórica (CTKI)
iv. Director de instrução (piloto Chefe) (HT)
v. Responsável pela segurança de voo/operacional (SM)
vi. Responsável pela gestão de conformidades (CMM)
vii. Chefe de pilotos (CFI)
viii. Pilotos instrutores (27 elementos)
ix. Professores teóricos avençados (42 elementos)
x. Operadores da sala de operações em LPCS (2 colaboradores)
xi. Manuais técnicos
xii. Manuais de instrução
xiii. Material de voo (calculador de navegação, prancheta, plotter, carts de navegação, entre outros)
xiv. Avenças com apoio e-learning e plataforma de treino de estudo remoto
xv. Licenças com software (mais de 50 licenças)
xvi. Parqueamento/hangaragem dos aviões que a Ré disponibiliza aos aulos;
xvii. Seguro dos aviões que a Ré disponibiliza aos alunos
xviii. Taxas de sobrevoo e aterragem
xix. Taxas aeroportuárias devidas pela Ré
xx. Licenças de estação rádio dos aviões
xxi. Avenças com empresas de manutenção dos aviões
xxii. Desgaste do motor e hélice, os quais, mesmo que não voem, têm uma limitação temporal após a qual têm que ser reparados ou substituídos por imposição legal
xxiii. Custo com a manutenção dos aviões que a Ré disponibiliza aos alunos, que é feita por hora de voo ou tempo de calendário, mesmo que os mesmos não voem
xxiv. Custo de combustível”.
=» pretensão que passem a figurar como provados.
Na fundamentação/motivação da matéria de facto, relativamente ao facto provado 30, a sentença sob recurso fundou-o nas “declarações de parte do autor”.
Na presente sede, a Impugnante Ré questiona o decidido, invocando dois fundamentos:
- da impossibilidade legal de tal facto provado fundar-se exclusivamente no teor das declarações de parte do Autor ;
- da ausência de credibilidade das declarações de parte produzidas pelo Autor.
Analisemos cada um dos fundamentos.
- do meio probatório declarações de parte e da sua valoração
Prescreve o artº. 466º, do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca das declarações de parte, que:
“1 - As partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto.
2 - Às declarações das partes aplica-se o disposto no artigo 417.º e ainda, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior.
3 - O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão”.
Referem Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro 8que a “prova por declarações de parte constitui um verdadeiro meio de prova – instituto de direito probatório material, portanto – não previsto no Código Civil (…)”, sendo que, no que concerne ao seu campo de aplicação, “a consideração do depoimento sobre factos favoráveis ao depoente, enquanto meio de prova, está fortemente associada á inexistência de melhores meios de demonstração de tais factos – isto é, de meios mais fiáveis. A necessidade sentida pela parte de oferecer o depoimento próprio como meio de prova pode resultar, quer da inexistência, quer do fracasso da produção de outros meios”.
O presente meio probatório, introduzido pela reforma de 2013, “possui valor meramente informatório, não se confundindo, qua tale, nem em termos de natureza jurídica nem em termos de eficácia probatória, com a prova por confissão em depoimento de parte”, aplicando-se ao mesmo o dever de cooperação para a descoberta da verdade, enunciado no artº. 417º. do Cód. de Processo Civil e, com as necessárias adaptações, conforme expressa remissão efectuada no nº. 2 do transcrito artº. 466º, “as disposições relativas à prova por confissão em depoimento de parte9.
Através do presente normativo consagrou então o legislador “a faculdade de intervenção oral espontânea para depoimento, a que chama Prova por declaração de parte.
Esta é, por conseguinte, uma solução que não tinha expressão e autonomia suficientes, apesar de, como se disse, os depoimentos de parte já admitirem que a parte produzisse tanto declarações favoráveis, como desfavoráveis. Mas agora admite-se a audição processual de intervenientes que não podiam no quadro legal anterior ser ouvidos senão como testemunhas, como por ex.: administrador de sociedade, lesado em acidente de viação ou executado que não participe da oposição à execução”.
Pelo que “a inovação reside em expressamente se admitir legitimidade para a parte requerer a prestação de declarações por si mesma, algo negado pela letra – mas, não tanto por uma interpretação atualista – dos artigos 452º, nº. 2 e 453º, nº. 3” 10.
Ora, esta característica dota a prova por declarações de parte de um “carácter voluntário, na medida em que é a própria parte que se oferece para depor, requerendo a prestação de declarações (art. 466º 1). Depois, estas declarações apenas podem recair sobre factos em que a parte tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo (art. 466º 1)” 11 12.
No que concerne à livre valoração das declarações de parte, referenciam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa – Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2019, Reimpressão, pág. 532 – que a doutrina e jurisprudência vêm “assumindo três posições essenciais: tese do carácter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos, tese do princípio de prova e tese da autossuficiência ou do valor autónomo das declarações de parte”.
Assim, de acordo com a primeira posição, “as declarações de parte têm uma natureza essencialmente supletiva, sendo insuficientes para fundamentar, por si só, um juízo de prova, salvo nos casos de prova única, em que inexiste outra prova”.
Relativamente à segunda posição – tese do princípio de prova -, entende-se que as “declarações de parte não são suficientes, por si só, para estabelecer qualquer juízo de aceitabilidade final, sendo apenas coadjuvantes da prova de um facto desde que em conjugação com outros meios de prova, ou seja, as declarações de parte terão que ser corroboradas por outros meios de prova (…)”.
Por fim, para a terceira tese ou posição, “as declarações de parte, pese embora a sua especificidade, podem estribar a convicção do juiz de forma autossuficiente, assumindo um valor probatório autónomo”.
Entendendo ser esta última tese a ajustada, enunciam como argumentos em seu abono os seguintes:
“a) Paridade face a outros meios de prova de livre apreciação com base nos quais pode ser considerado provado o facto (art. 607º, nº. 5), e necessidade de o juiz expor os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção (nº. 4 do mesmo artigo) ;
b) O interesse da parte na sorte do litígio não é uma realidade substancialmente distinta da testemunha interessada, sendo a diferença apenas de grau ;
c) A parte é quem, em regra, tem melhor razão de ciência ; o nº. 3 do art. 466º não degrada o valor probatório das declarações de parte ;
d) Simetricamente, no processo penal, as declarações do assistente e das partes civis podem, por si só, sustentar a convicção do tribunal ;
e) Há que valorar em primeiro lugar as declarações de parte e só depois a pessoa do depoente, porquanto o contrário (valorar primeiro a pessoa e depois a declaração) implica prejulgar as declarações de parte e incorrer no viés confirmatório”.
De forma mais detalhada, aduz Luís Filipe Pires de Sousa – Direito Probatório Material Comentado, 2020, Almedina, pág. 277 a 288 ; cf., ainda, do mesmo Autor, As Declarações de Parte. Uma síntese., Estudos do Tribunal da Relação de Lisboa, Abril de 2017, in https://trl.mj.pt – que “no âmbito da primeira tese, insere-se LEBRE DE FREITAS para quem «A apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, máxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas.» Ou seja, para este autor as declarações de parte têm uma função eminentemente integrativa e subsidiária. PAULO PIMENTA afirma que «Face ao sistema probatório instituído, o mais provável é que a prova por declarações de parte tenha uma natureza essencialmente supletiva (…)». A Conselheira MARIA DOS PRAZERES BELEZA afirma, por sua vez, que «(…) esta proveniência [da parte] implicará que, como regra, as declarações de parte não sejam aptas, por si só, a fundamentar um juízo de prova – salvo eventualmente nos casos em a natureza dos factos a provar torne inviável outra prova»”.
Esta tese estriba-se ou funda-se, numa primeira linha, na “razão de ser do surgimento desta figura processual (cf. supra, designadamente alicerçada nas assimetrias probatórias no exercício do direito à prova e nos casos de prova única)”, bem como “no facto de as declarações poderem ser requeridas até ao início das alegações orais, o que inculca que se visa colmatar falhas ao nível da produção da prova designadamente testemunhal”.
E, na sua defesa, “enfatiza-se a maior fragilidade deste meio de prova na demonstração dos factos, imputando-se às declarações de parte um valor autónomo e suficiente apenas quanto a factualidade essencial que, segundo os articulados, apenas teve lugar entre as partes, sem a presença de terceiros intervenientes”.
Para a segunda tese – tese do princípio de prova – “as declarações de parte não são suficientes para estabelecer, por si só, qualquer juízo de aceitabilidade final, podendo apenas coadjuvar a prova de um facto desde que em conjugação com outros elementos de prova”.
Após efectuar citações doutrinária e jurisprudenciais, indicando que esta tese “tem sido – provavelmente – a que tem sido mais publicitada”, referenciou que no Acórdão do STJ de 16/06/2019 – Relator: Nuno Pinto Oliveira, Processo nº. 3577/17 – entendeu-se que, “ainda que se considere que, como regra, as declarações de parte não são, só por si, suficientes para suportar uma decisão sobre um facto, sempre deverá ressalvar-se uma exceção para os casos em que a natureza dos factos a provar torne inviável outra prova”.
E, num juízo crítico a tal posição que atribui às declarações de parte o mero valor de princípio de prova, cita Teixeira de Sousa - Texto de 20.1.2017, acessível em https://blogippc.blogspot.pt/2017/01/jurisprudencia 536.html#links -, entendendo este que “assim, em vez de atribuir às declarações de parte o valor de princípio de prova, melhor solução parece ser o de atribuir a estas declarações o grau normal dos meios de prova, que é o de prova stricto sensu ou, nas providências cautelares, o de mera justificação. Isto significa que, de acordo com o critério da livre apreciação da prova, o tribunal tem de formar uma prudente convicção sobre a verdade ou a plausibilidade do facto probando (cf. art. 607.º, n.º 5 1.ª parte, CPC).
Abaixo desta relevância probatória e da convicção sobre a verdade ou a plausibilidade do facto, as declarações de parte não devem ter nenhuma relevância probatória, nem mesmo para corroborarem outros meios de prova. Esta é, aliás, a melhor forma de combater a natural tendência das partes para só deporem sobre factos que lhes são favoráveis”.
No que concerne á denominada terceira tese, ainda que se reconhecendo as especificidades das declarações de parte, podem as mesmas “estribar a convicção do juiz de forma autossuficiente, assumindo um valor probatório autónomo”.
Citando doutrinariamente Catarina Gomes Pedra - A Prova por Declarações das Partes no Novo Código de Processo Civil. Em Busca da Verdade Material no Processo, Escola de Direito, Universidade do Minho, 2014, pág. 145 -, aduz que:
“«Não se duvida que, atento o manifesto interesse que a parte tem no desfecho da lide e a forte tradição da máxima nemo debet esse testis in propria causa, a valoração das suas declarações deva revestir-se de especiais cautelas, num juízo dirigido, em concreto, à sua credibilidade. Ademais, a subsistência do regime consagrado no artigo 361º do Código Civil e a não previsão da valoração da pro se declaratio obtida na prova por declarações de parte são suscetíveis de gerar a convicção de que se trata, afinal, de um meio de prova complementar. Porém, não pode esquecer-se que a limitação do valor probatório das declarações das partes, como, de resto, a sua compreensão no contexto de um meio de prova subsidiário, pode consubstanciar, em determinadas situações, uma violação do princípio da igualdade de armas previsto no artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Digno de referência é ainda o que se propõe sobre a questão nos Princípios de Processo Civil Transnacional desenvolvidos pelo ALI e o UNIDROIT. O Ponto 16.6 dos referidos Princípios estabelece que “[T] the court should make free evaluation of the evidence and attach no unjustified significance to evidence according to its type or source”, o que significa que não deve ser atribuído um valor legal especial, negativo ou positivo, às provas relevantes, como são, por exemplo, as declarações daqueles com interesse na decisão da causa, mormente as partes.»”.
Bem como, ainda, o defendido por Mariana Fidalgo - A Prova por Declarações de Parte, FDUL, 2015, pág. 80 -, a qual, no sentido de maior protagonismo de tal meio probatório, aduz que:
“«(…) ponto, para nós, assente é que este meio de prova não deve ser previamente desprezado nem objeto de um estigma precoce, sob pena de perversão do intuito da lei e do princípio da livre apreciação da prova. Não olvidando o carácter aparentemente subsidiário das declarações de parte, certo é que foram legalmente consagradas como um meio de prova a ser livremente valorado, e não como passíveis de estabelecer um mero princípio de prova ou indício probatório, a necessitar forçosamente de ser complementado por outros. Assim sendo, e ainda que tal possa naturalmente suceder com pouca frequência na prática, defendemos que será admissível a concorrência única e exclusiva deste meio de prova para a formação da convicção do juiz em determinado caso concreto, sem recurso a outros meios de prova.»” (sublinhado nosso).
Acrescenta perfilhar o entendimento exposto na terceira tese, denominando-a como “mais ampla e permissiva sobre a potencialidade e centralidade das declarações de parte na formação da convicção do juiz”, repudiando “o pré-juízo de desconfiança e de desvalorização das declarações de parte, sendo infundada e incorrecta a postura que degrada – prematuramente – o valor probatório das declarações de parte”.
Seguidamente, após enunciar, de forma mais completa e detalhada, os cinco argumentos já expostos em benefício de tal posição (na obra partilhada com Abrantes Geraldes e Paulo Pimenta), aduz existirem “outros parâmetros, normalmente aplicáveis à prova testemunhal, que podem desempenhar um papel essencial na valoração das declarações da parte. Reportamo-nos designadamente à produção inestruturada, à quantidade de detalhes, à descrição de cadeias de interações, à reprodução de conversações, às correções espontâneas, à segurança/assertividade e fundamentação, à vividez e espontaneidade das declarações, à reação da parte perante perguntas inesperadas, à autenticidade do testemunho. São também aqui pertinentes os sistemas de deteção da mentira pela linguagem não verbal e a avaliação dos indicadores paraverbais da mentira”.
Assim, inexiste “qualquer hierarquia apriorística entre as declarações das partes e a prova testemunhal, devendo cada uma delas ser individualmente analisada e valorada segundo os parâmetros explicitados. Em caso de colisão, o julgador deve recorrer a tais critérios sopesando a valia relativa de cada meio de prova, determinando no seu prudente critério qual o que deverá prevalecer e por que razões deve ocorrer tal primazia.
Num sistema processual civil cuja bússola é a procura da verdade material dos enunciados fáticos trazidos a juízo, a aferição de uma prova sujeita a livre apreciação não pode estar condicionada a máximas abstratas pré-assumidas quanto à sua (pouca ou muita) credibilidade mesmo que se trate das declarações de parte. Se alguma pré assunção há a fazer é a de que as declarações de parte estão, ab initio, no mesmo nível que os demais meios de prova livremente valoráveis. A aferição da credibilidade final de cada meio de prova é única, irrepetível, e deve ser construída pelo juiz segundo as particularidades de cada caso segundo critérios de racionalidade”.
Donde, num juízo de síntese, conclui que: “(i) a degradação antecipada do valor probatório das declarações de parte não tem fundamento legal bastante, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos de prova legal; (ii) os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros de valoração da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente”.
O que, em última instância, determina nada obstar “a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação” (sublinhado nosso).
Jurisprudencialmente, perfilhando a terceira tese enunciada – as declarações de parte possuem valor probatório próprio e mesmo eventualmente autossuficiente -, referenciemos, de forma meramente exemplificativa (e cronologicamente), os seguintes doutos arestos – com ressalva de um deles, devidamente identificado, todos in www.dgsi.pt :
- do STJ de 07/02/2019 – Relatora: Rosa Ribeiro Coelho, Processo nº. 2200/08.6TBFAF-A.G1.S1 -, no qual se exarou que “a lei apenas consagra o princípio da livre apreciação, sendo que a exigência de corroboração das declarações de parte por algum outro meio de prova – tal como a prevalência tendencial de juízos de apreciação caraterizados pela imediação proporcionada pela oralidade – não é mais do que um critério de avaliação da prova que o juiz poderá seguir, mas que a lei não impõe (…)”.
Donde, ter-se sumariado que “sendo as declarações de parte de livre apreciação pelo tribunal, podem determinar, por si sós, a convicção do julgador, sem necessidade de corroboração por outros meios de prova” (sublinhado nosso) ;
- do STJ de 11/07/2019 – Relator: Bernardo Domingos, Processo nº. 6518/16.6T8VIS.C1.S3 -, sumariando-se que “as declarações de parte, quando não constituam confissão, são livremente apreciadas pelo Tribunal.
II – Desde que a lei não imponha prova tarifada para a demonstração de certo facto, nem seja apresentado meio de prova com força probatória plena ou reforçada, não está vedado às instâncias, no julgamento da matéria de facto, dar como provado esse facto, apenas com base nas declarações de parte, que são livremente apreciadas e valoradas pelo Tribunal” (sublinhado nosso) ;
- ainda do STJ de 05/12/2019 – Relatora: Rosa Tching, Processo nº. 13951/16.1T8LSB.L2.L1.S2 -, no qual, perante a adopção, por parte das instâncias, de duas das diferenciadas teses quanto à valoração das declarações de parte, consignou não se vislumbrar “que a exigência de corroboração das declarações de parte por algum outro meio de prova constitua violação ao preceituado no art. 466º, nº 3 do CPC, pois, se é certo não impor a lei uma tal exigência, certo é também, como se afirma no Acórdão do STJ, de 07.022019 (processo nº 2200/08.6TBFAF-A.G1.S1)[7], que a mesma « não é mais do que um critério de avaliação da prova que o juiz poderá seguir », « o que exclui a possibilidade de formulação, por parte do STJ, de quaisquer juízos de valor acerca da livre convicção formada sobre os factos em causa »” (sublinhado nosso).
Tendo-se, então, sumariado que “inscrevendo-se a atividade de valoração das declarações de parte no âmbito da livre apreciação da prova, a exigência, por parte do Tribunal da Relação, de corroboração destas declarações por algum outro meio de prova não constitui violação ao preceituado no artigo 466º, nº 3 do Código Civil, pois a mesma mais não é do que um critério de avaliação da prova que o juiz poderá seguir” ;
- do STJ de 28/01/2020 – Relator: Pinto de Almeida, Processo nº. 287/11.3TYVNG.G.P1.S1, in ECLI:PT:STJ:2020:287.11.3TYVNG.G.P1.S1 -, referenciando-se que “questão diferente é a da suficiência de tais declarações não confessórias. De entre as teses que têm sido defendidas a este respeito, propende-se para a que admite a auto-suficiência dessas declarações, ou seja, elas podem servir de apoio autónomo e auto-suficiente para a convicção do juiz; a exigência de que tais declarações sejam corroboradas por outros meios de prova (como se entendeu na decisão da 1ª instância) é critério que pode ser seguido no âmbito da referida livre apreciação, mas que a lei não impõe”.
Consequentemente, sumariou-se ser de admitir a auto-suficiência das declarações de parte, “ou seja, elas podem servir de apoio autónomo e auto-suficiente para a convicção do juiz; a exigência de que tais declarações sejam corroboradas por outros meios de prova é critério que pode ser seguido no âmbito da referida livre apreciação, mas que a lei não impõe” ;
- do STJ de 17/11/2020 – Relator: Fernando Samões, Processo nº. 866/18.8ALM.L1.S1 -, no qual se referenciou ser “pacífico que as declarações de parte, porque submetidas ao indicado princípio da liberdade de julgamento, podem e devem ser atendidas como meio de prova complementar em relação a outros produzidos nos autos.
Não se ignora que, no que tange à livre valoração das declarações de parte, a doutrina e a jurisprudência não são unívocas, assumindo três posições essenciais, a saber: “tese do carácter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos, tese do princípio de prova e tese da autossuficiência ou valor autónomo das declarações de parte”.
Ainda que se aderisse a esta tese, por ser a solução mais ajustada, entendendo que as declarações de parte podem estribar a convicção do juiz de forma autossuficiente, assumindo um valor probatório autónomo, não poderíamos considerar aqui tais declarações pela simples razão de que, não fazendo prova plena, é da competência exclusiva das instâncias a sua apreciação, estando-nos vedada a sua reapreciação” (sublinhado nosso) ;
- desta RL de 23/03/2023 – Relator: Adeodato Brotas, Processo nº. 2191/19.8T8CSC.L1-6 -, no qual, após se elencar as três diferenciadas teses, consignou-se que “se o próprio legislador manda que o tribunal aprecie livremente a prova por declarações de parte (artº 466º nº 3 do CPC), à semelhança do que sucede com a prova pericial (artº 389º do CC), com a prova testemunhal (artº 396º do CC) e com a prova por inspecção (artº 391º do CC), não faz sentido que se inferiorize a prova por declarações de parte comparativamente com aqueles outros meios de prova a que a lei atribui a mesma força probatória.
Concordamos assim, com a posição de Luís Filipe Sousa (Direito Probatório Material…cit., pág. 299) quando sintetiza:
“(i) a degradação antecipada do valor probatório das declarações de parte não tem fundamento legal bastante, evidenciando um retrocesso para raciocínios típicos e obsoletos de prova legal; (ii) os critérios de valoração das declarações de parte coincidem essencialmente com os parâmetros da prova testemunhal, havendo apenas que hierarquizá-los diversamente. Em última instância, nada obsta a que as declarações de parte constituam o único arrimo para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação.”” ;
- por fim, desta Relação e Secção de 21/03/2024 – Relatora: Rute Sobral, Processo nº. 13272/22.0T8LSB.L1-2 -, onde se sumariou nada obstar “a que as declarações de parte constituam um meio de prova autossuficiente para dar certo facto como provado desde que as mesmas logrem alcançar o standard de prova exigível para o concreto litígio em apreciação, dado estarem sujeitas ao princípio da livre apreciação pelo julgador” (sublinhado nosso).
Ora, compulsados os argumentos aduzidos por cada uma das enunciadas teses, propendemos, de forma clara, em acolher a terceira tese ou posição exposta, ou seja, considerando que o meio probatório declarações de parte, possuindo específicas e ponderáveis particularidades, pode, por si só, com autónomo valor probatório, fundar a convicção do juiz de forma autossuficiente.
Concretizando, inexiste qualquer impedimento legal a que as declarações de parte possam funcionar como o único ou singular sustento probatório para a consideração de um determinado facto como provado, sendo para tanto suficiente e bastante que aquelas, na sua livre apreciação ou valoração, logrem alcançar aquele estádio ou amplitude de convencimento exigível ao concreto litígio em apreciação.
Donde, sem necessidade de ulterior argumentação, decai, nesta vertente, a pretensão recursória apresentada.
Para além da aludida impossibilidade do facto 30 poder-se fundar, apenas, nas declarações de parte prestadas pelo próprio Autor, a Impugnante Ré também questiona a fiabilidade destas, aludindo à sua parcialidade e falta de espontaneidade, bem como o facto de traduzirem um alegado testemunho “profissional”.
Para tanto, alega a existência de um clube ou irmandade de ex-alunos, a que se juntou um ex-trabalhador da Ré em litígio judicial com esta, que figuraram como testemunhas nos autos, o que menciona afectar a credibilidade do declarado, extensível ao teor das declarações de parte produzidas pelo próprio Autor.
Todavia, não logra a Impugnante identificar quais as passagens ou excertos das declarações que entende maculadas, ainda que, estando apenas em equação o facto 30 provado, tem necessariamente que entender-se ser concretamente questionada a matéria factual aí descrita, ou seja, se o Autor não se preparou para a época de exame de Novembro de 2020, em virtude, e por causa, do e-mail que lhe foi enviado por uma funcionária da Ré em 22/10/2020, informando-o da sua exclusão de tal época de exame, em virtude de pagamentos em atraso.
Ora, tendo-se procedido à audição do teor das declarações de parte produzidas pelo Autor, constata-se que aproximadamente do minuto 22.00 ao minuto 24.00, o mesmo declarou ter-se inscrito em Outubro de 2020 para a época de exames de Novembro do mesmo ano, que aceitaram a sua inscrição, mas que decorridas duas semanas comunicaram-lhe que afinal não podia inscrever-se por falta de pagamento, apesar de ter pago 10.000,00 € em Março do mesmo ano.
Acrescentou que, decorrida uma ou duas semanas, comunicaram-lhe que afinal estava inscrito, mas que, entretanto, tinha deixado de estudar, atenta a impossibilidade que anteriormente lhe havia sido comunicada, pelo que não se sentiu preparado e não foi aos exames da época de Novembro.
As declarações prestadas, tal como a globalidade do depoimento prestado, evidenciou espontaneidade e convicção, bem como a procura de objetividade no declarado (que foi sempre acompanhado de forma muito presente e incisiva pela Sra. Juíza a quo), e não a imputada parcialidade capaz de inquinar o teor do declarado, de que é exemplo o reconhecimento de que as aulas teóricas foram sempre dadas normalmente e que correram globalmente bem, em contraponto com as aulas práticas ou de voo.
Assim, inexiste qualquer fundamentada razão para divergir do juízo sufragado pelo Tribunal a quo na consideração do facto 30 como provado. Juízo que ora se reitera, determinando-se, nesta vertente, improcedência da impugnação factual apresentada.
No que concerne á factualidade constante dos artigos 32º, 34º e 92º da contestação, que foi considerada como não provada, advoga a Impugnante Ré ter o Tribunal a quo desconsiderado as declarações de parte prestadas pelo seu legal representante, as quais rotula como claras, credíveis e espontâneas, impondo que tais factos devam passar a figurar como provados.
A pretensão da Recorrente Ré não deixa, num primeiro momento, de poder ser considerada como contraditória ou antinómica, pois, defende, por um lado, na adopção da tese do princípio de prova, que as declarações de parte não são suficientes ou bastantes para fundarem a prova de um facto (conforme alegou relativamente ao facto 30 provado), mas, por outro lado, relativamente à matéria factual ora em equação, considerada como não provada, pretende que passe a figurar como provada, assente nas declarações de parte do seu legal representante, as quais apelida de “claras, credíveis e espontâneas”.
Porém, apesar de tal evidente contradição, dificilmente explicável de forma racional, no entendimento que adoptámos tais declarações, na sua livre apreciação, poderão efectivamente justificar a prova de tal factualidade, caso as mesmas revelem uma idoneidade evidente e marcante, longe de qualquer equívoco ou suspeita, ou seja, caso as mesmas almejem alcançar aquele standard de prova exigível in casu.
No corpo alegacional, a Impugnante identificou devidamente os trechos relevantes em equação, os quais inclusive transcreveu, tendo este Tribunal procedido à devida audição do declarado.
Consta da motivação/fundamentação do julgamento de facto operado na sentença recorrida que os factos não provados – entre os quais figuram os ora questionados - resultam da “prova produzida não ter sido suficiente para convencer o Tribunal.
De facto, as testemunhas inquiridas nada revelaram saber a este respeito e não foram juntos documentos comprovativos do alegado”.
Vejamos.
Relativamente à matéria factual constante do artº. 32º da contestação - a Ré tem uma frota orgânica de cerca de 20 aeronaves que operam a partir dos aeródromos de Cascais e de Évora -, a menção do legal representante da Ré circunscreveu-se a referir que em 2018 e 2019 tinham, tal como sucedia à data da prestação das declarações – 12/12/2022 -, grosso modo, 25 aviões.
Ora, o que releva para a controvérsia equacionada nos presentes autos não é o número de aviões que a Ré pudesse ou não ter, mas antes quais os aviões da sua aludida frota que estavam normalmente em condições operacionais e concretamente afectos ao exercício das suas funções.
Ou seja, o que é efectivamente relevante seria o apurar do número de aeronaves em “condições adequadas para operarem”, tal como referenciado no facto provado 24, e não um alegado ou putativo número de aeronaves que compusessem a alegada frota orgânica da Ré.
Com efeito, tal como referenciado no relatório da ANAC junto aos autos (resposta ao ponto 11), “conforme detalhado nas Não Conformidades constantes da resposta ao ponto 2, foi constatado que a sociedade A não tinha aeronaves bimotor (aeronaves de classe MEP – Multi Engine Piston), em condições adequadas para ser utilizadas (operativas), em número suficiente para realizar o número de horas programado para os alunos. Seja porque algumas delas estavam longos períodos em manutenção, seja porque algumas estavam afetas a mais do que uma organização, não estando disponíveis quando a sociedade A necessitava”.
Donde, a prova produzida, entre a qual a suscitada na impugnação, não determina no sentido da efectiva prova de tal facto, que, assim, deverá manter-se como não provado.
Por sua vez, a matéria factual constante do artº. 92º da contestação reporta-se a alegadas despesas fixas da Ré, de forma a lograr garantir a formação dos alunos do curso de piloto de linha aérea profissional.
Do teor das declarações de parte invocadas resulta a existência de necessárias despesas efectuadas de forma a garantir a formação dos alunos, muitas delas apriorísticas relativamente ao próprio início dos cursos de formação, sem que tivessem sido devidamente escalpelizadas ou detalhadas.
Nesta sede, não se discute que algumas das enunciadas despesas têm natureza de facto notório, por que necessariamente imanentes à natureza da Ré e dos cursos de formação que ministra.
Todavia, o que surge como controvertido é a verdadeira e real importância de tal facto, ou seja, de que forma é que a existência de tais despesas, a provarem-se, influencia ou não a existência do imputado incumprimento da Ré no ministrar do curso ao Autor, ou o seu direito ao percepcionar do restante valor acordado e não pago pelo Autor, caso se deva concluir pelo efectivo incumprimento por parte deste.
Assim, e para além da circunstância do mesmo não se poder considerar como provado com base nas indicadas declarações de parte da Ré, afigura-se-nos não possuir relevância bastante no enformar da causa de pedir acional ou na causa de pedir reconvencional, bem como no conhecimento do petitório daí adveniente.
O que determina, consequentemente, juízo de indeferimento na sua figuração como provado, antes se devendo manter na elencagem da factualidade não provada.
No respeitante à matéria factual inserta no artº. 34º da contestação - durante os anos de 2018 e 2019 verificou-se um elevado número de denúncias contratuais por parte de pilotos instrutores -, o teor do declarado confirma o escassear dos instrutores de voo, a partir de 2018/19, os quais foram trabalhar para companhias aéreas, conducente a que fossem realizadas diligências junto da ANAC para tentar resolver tal problema.
Aliás, tal insuficiência de instrutores a desempenhar funções na Ré, por referência ao número de alunos inscritos, é situação reiteradamente apresentada como desconformidade no relatório junto aos autos pela ANAC, e devidamente espelhada nos factos provados 24 e 25.
Todavia, não se apurou devidamente se tal falta de pilotos instrutores adveio ou não de denúncias contratuais pelos mesmos operadas, sabendo-se, apenas, que tal escassez de pilotos ocorreu efectivamente.
Donde, tal facto não pode transitar para a factualidade provada nos termos em que se encontra redigido, antes se impondo o seguinte:
- aditar à factualidade provada um novo ponto, a figurar como 25-A, com a seguinte redacção:
“25-A durante os anos de 2018 e 2019, vários pilotos instrutores que prestavam funções na Ré deixaram-no do fazer, passando a desempenhar funções para companhias aéreas” ;
- passando a constar da matéria factual não provada, relativo à matéria factual aduzida no artº. 34º da contestação, o seguinte:
“que o descrito em 25-A tenha ocorrido em elevado número, através de denúncias contratuais”.
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II. DA ALTERAÇÃO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS
A sentença apelada começou por configurar os petitórios acional e reconvencional formulados, nos seguintes termos:
- no que concerne ao pedido do Autor:
1. Que seja declarada a resolução do contrato de formação, com justa causa ;
2. Que a Ré seja condenada a pagar-lhe ou restituir-lhe a quantia de 27.900,00 €, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, desde a propositura da acção, até integral e efectivo pagamento
ou, em alternativa,
3. Que a Ré seja condenada a pagar-lhe ou restituir-lhe a quantia de 24.940,00 €, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, desde a propositura da acção, até integral e efectivo pagamento.
- no que concerne ao pedido reconvencional da Ré:
1. Que o Autor/Reconvindo seja condenado a pagar-lhe a quantia de 29.000,00 €, a título de indemnização por denúncia do contrato de formação, sem justa causa (valor do custo do contrato de formação não pago), acrescida dos juros moratórios, desde a data de notificação da reconvenção, até efectivo e integral pagamento.
Seguidamente, fixou as seguintes questões decidendas:
i. Saber se o Autor procedeu à resolução, por incumprimento por parte da Ré, do contrato de formação com esta celebrado ;
ii. Na afirmativa, se a Ré deve restituir os pagamentos efectuados pelo Autor ;
iii. Ainda na afirmativa, apurar-se o respectivo quantum ;
ou, ao invés,
iv. Se a impossibilidade de conclusão do contrato de formação é imputável ao Autor ;
v. Na afirmativa, se existem valores em dívida por parte do Autor/Reconvindo à Ré/Reconvinte.
No demais, a mesma sentença raciocinou, em súmula, nos seguintes termos:
- Autor e Ré celebraram um contrato de formação que, atento o seu conteúdo, configura um contrato de prestação de serviços – o artº. 1154º, do Cód. Civil -, correspondente a um curso de formação profissional aeronáutica ;
- na falta de regulamentação específica, são aplicáveis a tal contrato, com a necessárias adaptações:
• As regras do mandato (o artº. 1156º, do Cód. Civil) ;
• O regime do Regulamento (EU) nº. 1178/2011, da Comissão, de 03/11/2011 ;
- estamos perante contrato que versa sobre actividade formativa, que a Ré se obrigou a prestar ao Autor, com vista a que este obtivesse a licença de piloto de linha aérea de avião ;
- contrato com evidente componente de obrigação de meios (a Ré compromete-se a desenvolver certa actividade para a obtenção de um determinado efeito), mas também com clara componente de obrigação de resultado (ainda que sem se assegurar que o mesmo se produza) – cf., o artº. 11º, alín. b), do contrato de formação ;
- a resolução operada nos termos do artº 432º, nº. 1, do Cód. Civil, é admissível quando um dos contraentes alega e prova um dos fundamentos que justifica a destruição unilateral do contrato, produzindo os seus efeitos no momento em que a declaração:
• Chega ao poder da parte inadimplente ;
• Ou é dela conhecida, conforme o disposto no artº. 224º, nº. 1, do Cód. Civil ;
- pelo que, a intervenção judicial que venha a ocorrer posteriormente, apenas terá a natureza de sentença de simples apreciação, no âmbito da qual o juiz verifica os pressupostos e declara a existência de uma resolução, nos termos da lei ;
- decorre dos artigos 2º a 5º do contrato outorgado entre Autor e Ré, que esta encontra-se sujeita, no cumprimento da sua obrigação, a uma diligência qualificada:
• No que respeita à actividade formativa ;
• No que concerne ao nível dos conhecimentos teóricos adquiridos, de forma a poder recomendar o Autor a exame ;
• No que respeita ao tempo/prazo em que pode ministrar a formação em causa ;
- resulta dos factos provados nºs. 4, 12 a 15, 22, 24 a 26 e 28 a 30 que a Ré não cumpriu, com a diligência que lhe era devida, as suas obrigações ;
- efectivamente:
• A insuficiência de aeronaves e instrutores ;
• As interrupções prolongadas nos voos ;
• E a deficiente manutenção de, pelo menos, uma aeronave,
causaram no Autor sentimentos de desconforto, instabilidade emocional e insegurança ;
- revelando, de forma objectiva, uma grave falta de capacidade de meios da Ré para cumprir o contrato de formação outorgado com o Autor ;
- pelo que, consubstanciando tais factos um comportamento grave por parte da Ré, colocando em crise a continuidade do contrato, a resolução deste por parte do Autor foi feita com justa causa ;
- resolvido o contrato com justa causa, o Autor tem o direito de exigir à Ré indemnização que cubra o seu prejuízo ;
- in casu, tal corresponde a todo o montante que pagou à Ré – cf., o facto provado 38 -, nos termos do disposto nos artigos 1170º e 1172º, ambos do Cód. Civil, por referência ao artº. 798º, do mesmo diploma ;
- pois, não podendo aproveitar a formação que a Ré lhe deu, a medida de tal responsabilidade corresponde ao tempo e recursos (financeiros) que o Autor despendeu sem ter o retorno esperado ;
- acresce que, ainda que se entendesse que a natureza do presente contrato de formação era de execução continuada, sempre seria aplicável a excepção prevista na 2ª parte, do nº. 2, do artº. 434º, do Cód. Civil ;
- pois, o objectivo do contrato dos autos não se alcançaria sem a obtenção da licença de piloto de linha aérea de avião e, este objectivo não se iria certamente alcançar, atenta a factualidade apurada a respeito do incumprimento da Ré ;
- donde, declara-se resolvido o contrato de formação, que uniu o Autor à Ré, com justa causa ;
- condenando a Ré a devolver ao Autor as quantias por este pagas, no valor total de 27.900,00 €, acrescido de juros moratórios, à taxa civil legal, computados a contar da data de citação da Ré e até efectivo e integral pagamento ;
- assim, tendo-se concluído no sentido do Autor ter resolvido o contrato com justa causa, julga-se improcedente o pedido reconvencional.
- da ausência de incumprimento por parte da Ré na sua prestação contratual, da denúncia tácita do contrato de formação por parte do Autor e, caso assim não se entenda, da cessação do contrato de formação celebrado entre Autor e Ré por revogação bilateral
Defende a Recorrente Ré que a factualidade provada, na pressuposição do deferimento da pretendida alteração da matéria factual, “serão manifestamente suficientes para concluir pela inexistência de qualquer incumprimento por parte da Recorrente na sua prestação contratual”, bem como igualmente insuficientes para a determinada condenação da Ré no pagamento ao Autor da quantia de € 27.900,00 (vinte e sete mil e novecentos euros).
Acrescenta que o Autor, mediante a carta que lhe enviou em 30/11/2020, declarou expressamente perante si “a sua vontade de desistir do curso de formação de piloto de linha aérea, o que constitui, sim, uma verdadeira denúncia tácita do contrato de formação celebrado”, podendo-se, assim, concluir ter o Autor procedido “à denúncia unilateral e tácita do contrato”.
Aduz, ainda, que caso não se entenda ter ocorrido uma verdadeira revogação unilateral do contrato por parte do Autor, então ter-se-á que concluir decorrer dos autos a vontade de ambos (Ré e Autor) em “porem termo ao contrato e o terem comunicado reciprocamente, ocorrendo cessação do contrato de formação celebrado entre a Recorrente e o Recorrido por revogação bilateral, e não por resolução contratual (ilícita) por parte da Recorrente, tendo o Tribunal a quo incorrido em erro de julgamento na matéria de direito por violação do artigo 434.º, do Código Civil”.
Ora, indaga-se:
- traduz a factualidade provada concreta ausência de incumprimento por parte da Ré (ora Recorrente) ?
- por outro lado, procedeu o Autor, junto da Ré, à denúncia tácita do contrato de formação ?
- ou, ocorreu antes cessação do mesmo contrato de formação por revogação bilateral entre Autor e Ré ?
- a mesma factualidade não traduz a ocorrência de resolução contratual por justa causa operada pelo Autor junto da Ré ?
Vejamos.
Procedendo ao confronto entre a invalidade e outras formas de cessação dos efeitos negociais, referencia Carlos Alberto da Mota Pinto – Teoria Geral do Direito Civil, 3ª Edição Actualizada, Coimbra Editora, 1986, pág. 618 a 623 – que a resolução contratual, fundada na lei ou na convenção entre as partes, “tem lugar em situações de variada natureza, resultando, não dum vício da formação do contrato, mas dum facto posterior à sua celebração, normalmente um facto que vem iludir a legítima expectativa duma parte contratante, seja um facto da contraparte (inadimplemento de uma obrigação), seja um facto natural ou social («alteração anormal das circunstâncias…»)”.
Assim, a resolução pode fazer-se “mediante declaração à outra parte (art. 436º)”, e tem, em princípio, “efeito retroactivo entre as partes, mas tal efeito não se verifica, se contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução, bem como, em princípio, nos contratos de execução continuada ou periódica”.
Noutras situações, a lei autoriza que um dos sujeitos do negócio jurídico proceda à revogação do contrato, a qual tem como consequência “extinguir os efeitos do negócio para o futuro («ex nunc») ; não opera, portanto, retroactivamente”.
Acrescenta que “pode ter lugar igualmente uma revogação dos contratos por comum acordo, eventualmente com eficácia retroactiva «inter partes». É o chamado contrato extintivo ou abolitivo ou «contrarius consensus» (cfr. art. 406º, nº. 1). Com este «contrarius consensus» as partes, por mútuo consentimento, extinguem a relação contratual existente entre eles. Esta eliminação de efeitos jurídicos do primeiro contrato terá uma eficácia «ex tunc» ou «ex nunc», conforme a vontade das partes, expressa ou deduzida das circunstâncias do caso concreto. Se o efeito extintivo é querido com eficácia retroactiva, o contrato extintivo ou abolitivo implica mais uma resolução do que uma revogação”.
Como mais uma das formas de colocar termo à eficácia de um negócio jurídico, a denúncia é caracterizada “por ser a faculdade existente na titularidade de um contratante de, mediante mera declaração, fazer cessar uma relação contratual ou obrigacional em sentido amplo, a que está vinculado, emergente de um contrato bilateral ou plurilateral”.
Assim, “deve reconhecer-se, nos contratos de duração ou por tempo indeterminado, a existência de um poder de denúncia sem uma específica causa justificativa”, sendo fundamento desta denunciabilidade «ad nutum» “a tutela da liberdade dos sujeitos que seria comprometida por um vínculo demasiadamente duradouro. Por isso, tal poder de denúncia existe mesmo na falta de norma jurídica ou cláusula contratual explícita”.
Ainda a propósito da revogação, aduz António Menezes Cordeiro – Tratado de Direito Civil, Vol. IX, Direito das Obrigações, 3ª Edição, Almedina, pág. 950 e 951 – ser a mesma configurável como “a supressão de um ato por um novo ato, a tanto destinado”.
Adita que, contrariamente à resolução, “a revogação é discricionária: não depende de um incumprimento ou de outra ocorrência que a justifique”, “opera ex nunc, isto é, sem eficácia retroativa” e “depende de quem tenha competência para praticar o ato a suprimir”.
Por outro lado, adianta “uma ideia de retratação ou de arrependimento: o sujeito toma uma posição mas, depois, decide alterá-la”, sendo que as aduzidas características “são tendenciais: temos situações de revogação dependentes de uma justificação e, designadamente, de justa causa ; assim sucede, por exemplo, com o mandato conferido, também, no interesse do mandatário (1170.º/2)”.
Como princípio geral de responsabilidade obrigacional subjectiva do devedor, estatui o artº. 798º, do Cód. Civil, que “o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”.
Por sua vez, prescrevendo acerca da impossibilidade culposa do cumprimento, aduz o artº. 801º, do mesmo diploma, que:
1. Tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor, é este responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação.
2.Tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro”.
Referencia Ana Prata – Código Civil Anotado, Vol. I, 2017, Almedina, Ana Prata (Coord), pág. 1002 – conter este nº. 2, do artº. 801º, uma “regra própria do sinalagma funcional”.
Assim, nos casos em “que uma das obrigações sinalagmáticas é definitiva e culposamente não cumprida, confere-se ao credor dessa obrigação o direito de resolver o contrato. A razão de ser da regra está em que, extinta por incumprimento, uma das obrigações sinalagmáticas, o modo de o seu credor extinguir a que lhe cabe – que deixou de ter razão de ser – é a extinção do contrato por resolução” (sublinhado nosso).
Acrescenta, ainda, que Baptista Machado – Pressupostos da Resolução por incumprimento, in Obra Dispersa, Vol. I, Braga, Scientia Ivridica, 1991, pá. 132 a 135, 138 a 142 e 146 – “chama justificadamente a atenção para a gravidade do incumprimento que fundamenta a resolução, salientando as possíveis especialidades dos contratos de execução duradoura, das daqueles em que tenha de haver e de se manter uma relação de confiança (e em que um «incumprimento sintomático», mesmo pouco grave, se considerado em si mesmo, pode pôr em causa essa confiança e fazer soçobrar toda a relação contratual) e ainda das dos que têm no seu cerne um «vínculo associativo», como o de sociedade”.
No caso concreto, estando-se perante a outorga de um contrato de formação entre Autor e Ré, ao qual, enquanto contrato de prestação de serviço, são-lhe aplicáveis as disposições legais relativas ao mandato – cf., o artº. 1156º, do Cód. Civil -, urge ainda ponderar acerca do estatuído, nomeadamente, nos artigos 1170º e 1172º, do Cód. Civil.
O primeiro dos normativos, sob a epígrafe revogabilidade do mandato, estatui que:
“1. O mandato é livremente revogável por qualquer das partes, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação.
2. Se, porém, o mandato tiver sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro, não pode ser revogado pelo mandante sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa”.
Referem Pires de Lima e Antunes Varela – Código Civil Anotado, Vol. II, 3ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra Editora, pág. 729 a 731 – estarmos perante um caso excepcional de revogação unilateral de um contrato, assim legalmente qualificados no artº. 406º, do Cód. Civil, conferindo a lei “o direito de revogação a qualquer dos contraentes – mandante ou mandatário – o que não deixa também de ser um caso excepcional dentro da excepção da livre revogabilidade, normalmente conferida apenas a um dos contraentes”.
Com natureza imperativa, pois não permite convenção em contrário, acrescentam que “a figura da revogação não corresponde à da resolução do contrato”, sendo inaplicável à revogação, designadamente, “a disposição do artigo 433º, que equipara, quanto aos seus efeitos, a resolução à nulidade do negócio jurídico. A revogação, neste caso, limita-se a fazer cessar o mandato, com eficácia ex nunc, aproximando-se bastante, nesse aspecto, da denúncia (que é, em princípio, uma não renovação do contrato que tenderia a renovar-se ou a prolongar-se no tempo)”, sendo, assim, “inatacáveis os actos já celebrados pelo mandatário” (sublinhado nosso) – assim, e salvo o mui devido respeito, não logramos corroborar o entendimento pugnado em douto Acórdão desta Relação de 25/02/2014 – Relator: Luís Espírito Santo, Processo nº. 7251/10.8TBCSC,L1-7, in www.dgsi.pt, citado nas alegações -, o qual, igualmente acerca de curso de formação aeronáutica, alude ao artº. 1170º, do Cód. Civil como prevendo um livre exercitar dum direito de resolução, quando está efectivamente em causa diferenciada forma de cessação dos efeitos negociais, sem confundibilidade entre ambas.
Por sua vez, o nº. 2, deste mesmo normativo, estabelece “uma limitação à revogação por parte do mandante: se o mandato tiver sido conferido também no interesse do mandatário ou de terceiro, não pode ser revogado sem o acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa”, sendo que “o simples facto de o mandato ser oneroso, isto é, retribuído (…), não faz com que ele seja conferido também no interesse do mandatário, como o revelam claramente os artigos 1170º, nº. 2 e 1172º, alínea c)”, do Código Civil – assim, citando Vaz Serra, em anotação ao Ac. do STJ de 07/03/1969, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 103º, pág. 239.
Ressalva-se, assim, neste nº. 2, a existência de justa causa, a qual é definida por Baptista Machado – ob. cit., pág. 21 – como “qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual ; todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou de dificultar a obtenção desse fim……”.
Em anotação ao presente normativo, Maria Helena Brito e Maria de Lurdes Vargas - Código Civil Anotado, Vol. I, 2017, Almedina, Ana Prata (Coord), pág. 1447 a 1451 – mencionam que a figura da revogação é aqui usada “em sentido impróprio, visto que a revogação em sentido próprio corresponde à livre extinção de um acto jurídico pelo respectivo sujeito ou respectivos sujeitos. Assim, a revogação em sentido próprio de um contrato é necessariamente bilateral”.
Acrescentam prever o mesmo normativo duas diferenciadas categorias jurídicas. Assim, “se o mandato for duradouro e por tempo indeterminado, a livre extinção unilateral corresponde à figura da denúncia”, pois “os contratos celebrados por tempo indeterminado podem ser denunciados por qualquer das partes”, o que traduz “um princípio imperativo, uma manifestação do princípio da proibição de vinculação perpétua”.
Todavia, aduzem, “a livre revogabilidade unilateral instituída no art. 1170º, nº. 1, não se aplica apenas aos contratos celebrados por tempo indeterminado, aplica-se a todos os outros: mandatos duradouros, por tempo determinado, a mandatos de execução instantânea diferida. Nestes casos será uma revogação imprópria”, sendo que as duas figuras “abarcadas pelo dispositivo, denúncia e revogação imprópria, produzem efeitos ex nunc, salvaguardando-se os actos já praticados pelo mandatário”.
Relativamente ao mandato de interesse comum, previsto no nº. 2, do mesmo normativo, “afastadas as hipóteses de denúncia ou revogação imprópria, é admitida a revogação por justa causa”.
O que traduz “mais um exemplo de uso impróprio ou não técnico do termo revogação”, pois “a extinção de um contrato unilateral e motivada corresponde à figura da resolução” (sublinhado nosso).
Ora, a resolução por justa causa não é reconduzível à resolução por incumprimento definitivo, enunciada no nº. 1, do artº. 801º, do Cód. Civil, “dela se demarcando pelo âmbito de aplicação, pelos fundamentos em que se sustenta e pelos efeitos que produz”.
Assim, “a resolução por incumprimento definitivo aplica-se a todos os contratos, independentemente da sua duração ; a resolução por justa causa aplica-se a todos os contratos duradouros e, em princípio, só a estes.
A resolução por incumprimento definitivo tem um único fundamento ; a resolução por justa causa compreende um vasto leque de fundamentos, entre os quais a mora ou incumprimento do contrato, a alteração das circunstâncias ou uma modificação da situação pessoal de um dos contratantes”.
Relativamente ao conceito de justa causa, “concretiza-se com recurso ao critério da inexigibilidade”, pelo que constitui justa causa “qualquer circunstância, facto ou situação que, ponderando as características e finalidades da relação contratual e os interesses de ambos os contraentes, implique que não se possa exigir que o contraente afetado continue a executar o contrato pelo período remanescente de duração ou até decorrer o prazo de denúncia, conforme o caso”.
Pelo que, “atendendo aos fundamentos em que se suporta, em princípio, a resolução por justa causa produz efeitos imediatos. E, sendo uma figura própria dos contratos duradouros, produz efeitos ex nunc” (sublinhado nosso).
Assim, perante um mandato de interesse comum – para o qual concorrem igualmente o interesse do mandatário ou de terceiro -, é justificável que “não podendo o mandante extinguir livremente a relação contratual, também não se restrinja o seu poder de extinguir a relação a uma resolução por incumprimento, mas, antes, esse poder corresponda a uma resolução por justa causa – que abrange um leque mais vasto de fundamentos, de natureza subjectiva e objectiva”.
Relativamente ao conceito de justa causa, e ao critério de inexigibilidade que lhe subjaz, afiramos o douto entendimento jurisprudencial que vem sendo sustentado (todos os arestos, salvo menção expressa contrária, in www.dgsi.pt ):
- no Acórdão do STJ de 18/06/1996 – Relator: Herculano Lima, Recurso nº. 219/96, in CJSTJ, Ano IV, Tomo II, 1996, pág. 151 a 153 -, apreciou-se questão relativa a contrato de prestação de serviços que foi revogado, aceitando as partes estar-se perante contrato celebrado no interesse de ambos, ao qual era aplicável o nº. 2, do artº. 1170º, do Cód. Civil, e no qual se ponderava acerca do direito indemnizatório a atribuir ao mandatário, em consequência da revogação unilateral do contrato, caso esta tivesse sido operada sem justa causa.
Consignou-se que a doutrina e jurisprudência “vêm tentando definir o conceito de «justa causa», colocando o assento tónico quer nos elementos subjectivos, a relação de confiança e de lealdade que devem existir na vigência do contrato, quer nos elementos objectivos, a concretização do resultado visado pelo contrato”.
Citando Baptista Machado – ob. cit., pág. 361 -, enuncia que “a justa causa é um conceito indeterminado, sendo, como tal, uma figura vaga, polissémica, que não comporta uma informação clara e imediata quanto ao seu conteúdo”.
Pelo que, “consiste em qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual”, ou seja, “todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou de dificultar a obtenção desse fim, qualquer conduta que possa fazer desaparecer pressupostos, pessoais ou reais, essenciais ao desenvolvimento da relação, designadamente qualquer conduta contrária ao dever de correcção e lealdade (ou ao dever de fidelidade na relação associativa)”.
Donde, sintetizando, conclui tal aresto constituir justa causa “todo o facto, subjectivo ou objectivo, que ponha em crise a continuação do vínculo contratual ou, usando outra terminologia, que torne inexigível a um dos contraentes a sua permanência na relação contratual” ;
- do STJ de 13/11/2001 – Relator: Fernandes Magalhães, Processo nº. 01A1123 -, no qual se referenciou que “os factos provados mostram um motivo de resolução por justa causa de tal contrato duradouro, já que é de todo evidente a existência de uma justificada perda de confiança por parte da Autora na capacidade da Ré para um exacto cumprimento futuro do programa contratual (cfr. Baptista Machado. Rev. Leg. Jur., ano 118, pág. 276, que também refere em Obra Dispersa, Vol I, Associação Jurídica de Braga, pág. 132, que naqueles casos em que o inadimplimento em si mesmo que terá relevância, não será tanto a gravidade do seu mas o seu significado no que respeita à confiança que poderá merecer ao credor o futuro cumprimento exacto por parte do devedor”.
Acrescenta-se que “tal violação contratual positiva grave implica a existência num contrato duradouro de uma "justa causa de resolução".
A "justa causa" representará, em regra, uma violação dos deveres contratuais (e, portanto, um "incumprimento"): será aquela violação contratual que dificulta, torna insuportável ou inexigível para a parte não inadimplente a continuação da relação contratual (v. Baptista Machado, Obra Dispersa, I, 143, 144, que destaca também que em tais casos o credor não precisaria, pois, de recorrer ao processo de interpelação admonitória do art.º 808º C. Civ. para confirmar a "infiabilidade" do devedor - RLJ 118º, (ano 1986), pág. 280, 317 e 318” (sublinhado nosso) ;
- do STJ de 09/01/2007 – Relator: Sebastião Póvoas, Processo nº. 06A4416 -, no qual se consignou que “a simples perda de confiança no cumprimento futuro do contrato pode, em tese justificar a resolução.
Se aqui há justa causa de resolução não há que lançar mão da interpelação admonitória do artigo 808º do CC.
Como refere o Prof. Baptista Machado (ob. cit. RLJ - 118-280) este preceito ajusta-se, apenas, a "negócios sobre transacções de bens", não se ajustando directamente às relações contratuais duradouras, para as quais o regime típico é o da resolução por justa causa. "Nas relações obrigacionais duradouras, o que está em causa não é a perda do interesse numa concreta prestação (pelo menos em regra) mas a justificada perda de interesse na continuação da relação contratual".
Acrescenta, citando Pinto Monteiro – Contrato de Agência, Tomo III -, “que certas causas ainda que pouco graves podem justificar, em determinadas situações, a resolução, sempre que ocorra "perda de confiança justificada (…)"
Exige-se um incumprimento de especial relevo, quer pela natureza da infracção em si e das suas circunstâncias, ou da perda de confiança que cria na contraparte, quer pela sua repetição, ou reiteração, em termos de não ser de exigir à outra parte a manutenção do vinculo contratual” (sublinhado nosso) ;
- por sua vez, no aresto do STJ de 15/11/2012 – Relator: Abrantes Geraldes, Processo nº. 1147/09.3TVLSB.L1.S1 – referenciou-se que “doutrina significativa a nível nacional vem defendendo a aplicação a contratos de execução duradoura de uma cláusula de não exigibilidade, fruto de uma ponderação dos interesses (Pinto de Oliveira, Estudos Sobre o não Cumprimento das Obrigações, 2.ª ed., pág. 69)
Trata-se de uma solução que também encontra sustentação no ensinamento de Menezes Cordeiro, que, sem questionar o recurso à aplicação analógica do regime do contrato de agência a outros contratos de distribuição, conclui que naquele diploma podem descobrir-se regras de índole geral que podem ser transpostas para os contratos que fixam obrigações duradouras (Tratado de Direito Civil, vol. VI, 2ª ed., pág. 566).
Solução que, afinal, já fora defendida por Batista Machado, admitindo que fosse invocada para a cessação do contrato uma situação de “justa causa”, entendida esta como “superveniência perturbadora do correcto implemento do programa negocial” que pode resultar nomeadamente de “contingências verificadas na esfera desse contraente que igualmente criam um condicionalismo incompatível com a exacta e correcta execução do contrato …” (RLJ, 118.º, pág. 281). Entendimento que o mesmo autor também expôs em Pressupostos da resolução por incumprimento, em Obra Dispersa, vol, I, pág. 143, onde refere que constituirá justa causa de resolução de uma relação contratual duradoura “qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual; todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou de dificultar a obtenção desse fim, qualquer conduta que possa fazer desaparecer pressupostos, pessoais ou reais, essenciais ao desenvolvimento da relação …” (pág. 143)” (sublinhado nosso) ;
- por fim, no Acórdão ainda do STJ de 16/01/2014 – Relator: Álvaro Rodrigues, Processo nº. 9242/06.4TBOER.L1.S1 -, citando-se Baptista Machado - Pressupostos da Resolução por Incumprimento, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, 2º- 361 -, mencionou-se que “o conceito de justa causa é um conceito indeterminado cuja aplicação exige necessariamente uma aplicação valorativa do caso concreto. Será uma «justa causa» ou um «fundamento importante» qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual; todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou de dificultar a obtenção desse fim, qualquer conduta que possa fazer desaparecer pressupostos, pessoais ou reais, essenciais ao desenvolvimento do dever de correcção e lealdade (ou ao dever de fidelidade na relação associativa). A «justa causa» representará, em regra uma violação dos deveres contratuais (e, portanto, um incumprimento): será aquela violação contratual que dificulta, torna insuportável ou inexigível para a parte não inadimplente a continuação da relação contratual»”.
Acrescentando-se, ainda, em continuidade da citação – ob. cit., pág. 359 -, poder dizer-se, “em síntese, que nos contratos de que decorre uma relação particularmente estreita de confiança mutua e de leal colaboração, tais como o contrato de sociedade, o contrato de trabalho ou certos contratos especiais de prestação de serviços (p. ex., de assistência técnica, de reestruturação da contabilidade de uma empresa, de prestações profissionais como as do médico e do advogado), todo o comportamento que afecte gravemente essa relação põe em perigo o próprio fim do contrato,: abala o fundamento deste, e pode justificar, por isso, a resolução»” (sublinhado nosso).
Relativamente ao segundo dos normativos – 1172º -, sob a epígrafe obrigação de indemnização, encontra-se legalmente prescrito que:
“A parte que revogar o contrato deve indemnizar a outra do prejuízo que esta sofrer:
a) Se assim tiver sido convencionado;
b) Se tiver sido estipulada a irrevogabilidade ou tiver havido renúncia ao direito de revogação;
c) Se a revogação proceder do mandante e versar sobre mandato oneroso, sempre que o mandato tenha sido conferido por certo tempo ou para determinado assunto, ou que o mandante o revogue sem a antecedência conveniente;
d) Se a revogação proceder do mandatário e não tiver sido realizada com a antecedência conveniente”.
Pires de Lima e Antunes Varela – ob. cit., pág. 734 e 735 -, referenciam que a obrigação de indemnização em equação não supõe “a prática de um acto ilícito ou o não cumprimento de uma obrigação contratual”, antes se estando perante uma legalmente estipulada “responsabilidade fundada na prática de factos lícitos”.
Assim, a obrigação de indemnizar aqui prevista “resulta da revogação unilateral do contrato, ou seja, do exercício do direito facultado no nº. 1 do artigo 1170º. Não existe, portanto, essa obrigação nos casos de revogação por mútuo consentimento dos contraentes, nem naqueles em que a lei confere a um deles, por causas especiais, mas em termos genéricos, o direito de resolver ou revogar o negócio”.
Por outro lado, a obrigação de indemnizar é afastada “sempre que haja justa causa para a revogação. Seria, de facto, intolerável que o contraente provocasse pela sua conduta a revogação e ainda por cima obtivesse a indemnização pelo prejuízo que alegue ter sofrido” (sublinhado nosso).
Em idêntico sentido, referenciam Maria Helena Brito e Maria de Lurdes Vargas – ob. cit., pág. 1453 e 1454 -, que a obrigação indemnizatória prevista neste normativo, decorrendo da prática de acto lícito, “aplica-se à denúncia e à revogação unilateral imprópria, admitida nos termos dos arts. 1170º, nº. 1, e 1171º. Não se aplica à revogação bilateral ou revogação em sentido próprio, nem à resolução por justa causa, prevista no art.1170º, nº. 2”.
Aqui chegados, é tempo de retorno ao caso concreto, aplicando-lhe os entendimentos jurídicos expostos.
Surge indiscutido nos autos que:
• Autor e Ré outorgaram um contrato de formação, relativamente a curso integrado de Piloto de Linha Aérea de Avião – ATPL (A), ao qual, enquanto contrato de prestação de serviços, são aplicáveis, com as respectivas adaptações, as regras do contrato de mandato – cf., artigos 1154º e 1156º, ambos do Cód. Civil ;
• Tal curso tem a natureza de curso integrado, a ministrar num prazo de até 36 meses, possuindo a duração total de 1052 horas, sendo 832 de instrução teórica e 220 de instrução de voo – factos provados 3 e 4 -, configurando-se como um curso intensivo, que combina treino teórico em terra com treino prático de voo de uma forma estruturada, podendo aquele prazo ser mais curto ou dilatado, no caso de haver treino adicional ou em situações excepcionais – facto provado 9;
• O mesmo curso é constituído por catorze disciplinas, às quais os alunos têm que obter aproveitamento em exames a realizar na Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC) e previamente em teste a realizar na escola, para além da assiduidade nas aulas e, em ambos os casos, os alunos têm que ter aproveitamento com uma nota igual ou superior a 75%, sob pena de exclusão – facto 5 provado ;
• Igualmente sob pena de exclusão, os alunos podem inscrever-se para prestar provas na ANAC, no máximo seis épocas, mas a inscrição está limitada a quatro épocas por disciplina, tendo aquele um custo total de € 56.900,00 – factos 6 e 7 provados.
Conforme facto 34, provou-se que “atento o descrito em 12. a 15., 22., 24., 26. e 28. a 30., e através de carta registada com aviso de receção enviada à ré, que a recebeu, datada de 30 de novembro de 2020, o autor rescindiu o contrato de formação que o unia à ré desde 24 de setembro de 2018, invocando ter apenas realizado voos 12 vezes (apesar de ter apresentado disponibilidade de 146 dias completos, entre agosto de 2019 e fevereiro de 2020), a ocorrência de um acidente com uma aeronave da ré em 6 de agosto de 2020, a falta de aeronaves e consequente incumprimento no agendamento dos voos e um erro administrativo da ré que o impossibilitou de se preparar para os exames de novembro de 2020, concluindo por solicitar a transferência para a sua conta bancária da quantia de € 15.565,00 a título de quantia paga sem qualquer correspondência à componente teórica ou prática do curso”.
Ora, de que forma é juridicamente configurável esta comunicação do Autor à Ré ?
Conforme enunciámos, entendeu a sentença apelada que a factualidade apurada revelava, de forma objectiva, uma grave falta de capacidade de meios da Ré para cumprir o contrato de formação outorgado com o Autor, pelo que consubstanciando aqueles factos um comportamento grave por parte da Ré, colocando em crise a continuidade do contrato, a resolução deste por parte do Autor foi feita com justa causa.
Ou seja, entendeu-se que o Autor, ao proceder à aludida comunicação, datada de 30/11/2020, procedeu à resolução do contrato de formação que havia outorgado com a Ré, invocando justa causa.
Bem como, no cálculo do montante indemnizatório devido, apelou-se ao disposto nos artigos 1170º e 1172º, ambos do Cód. Civil, por referência ao artº. 798º, do mesmo diploma.
Entende a Recorrente Ré ter antes ocorrido, por parte do Autor, uma denúncia tácita do contrato de formação e, caso assim não se entenda, tal contrato cessou por revogação bilateral, assim afastando a concreta ocorrência de resolução por justa causa.
Ora, analisando o teor da carta enviada pelo Autor á Ré, datada de 30/11/2020 (que constitui o documento nº. 17 junto com a p.i., e funda o facto provado 34), constata-se aludir o Autor, logo em epígrafe e na identificação do Assunto, a “rescisão de Contrato de Formação”, com “justa causa”.
E, no corpo da exposição/comunicação efectuada, para além de invocar o incumprimento contratual da Ré, consigna que as razões por si invocadas são “mais do que suficientes para se alegar justa causa, como se alega, para se resolver o presente Contrato de Formação”.
Decorre do exposto que a pretensão exercida pelo Autor foi a de efectivar a resolução do contrato de formação outorgado com a Ré, o que fundou e motivou em concretas circunstâncias factícias as quais, no seu entendimento, seriam susceptíveis de traduzir justa causa na resolução operada.
Assim, não decorre daquela comunicação ter o Autor procedido á revogação do contrato de formação, nos termos incondicionados e livres em que esta se revela no nº. 1, do artº. 1170º, do Cód. Civil.
Com efeito, por um lado, não se estando perante um contrato outorgado por tempo indeterminado, mas antes perante um contrato duradouro, por tempo determinado, a livre extinção unilateral não poderia corresponder á figura da denúncia e, por outro, procedendo-se á interpretação daquela declaração, de acordo com os cânones interpretativos inscritos nos artigos 236º e 237º, ambos do Cód. Civil, não descortinamos na mesma qualquer revogação, própria ou imprópria.
Efectivamente, não é minimamente descortinável da factualidade provada a ocorrência de uma qualquer revogação bilateral ou própria, fruto do denominado contrarius consensus, ou seja, que Autor e Ré tenham procedido à revogação do contrato de formação por comum acordo, na decorrência de um mútuo consentimento. Nem, por outro lado, resulta ter ocorrido uma revogação unilateral operada pelo Autor, no âmbito da liberdade conferida pelo transcrito nº. 1, do artº. 1170º, com natureza de revogação imprópria, a qual não tem que ser minimamente justificada ou fundada.
O que implica e traduz a total inaplicabilidade, ao presente caso, do teor do disposto naquele normativo.
Por outro lado, também se nos afigura ser de arredar a aplicabilidade, in casu, do teor do prescrito no nº. 2, do mesmo artº. 1170º.
Com efeito, ainda que se considere que o termo revogação (aqui por justa causa), nesta situação, é utilizado de forma imprópria ou não técnica, pois a extinção de um contrato, unilateral e motivada, corresponde á figura da resolução, não estamos perante um contrato de formação que se possa rotular de interesse comum. Na realidade, conforme vimos, não bastando para preencher tal interesse comum a mera onerosidade do contrato (antes devendo traduzir-se na satisfação de um direito emergente de um outro negócio jurídico), é certo não se vislumbrar, nem resultar da factualidade assente, qual o interesse susceptível de aditar ao do Autor, seja da Ré, seja de terceiro, capaz de preencher aquele conceito de interesse comum legalmente exigível.
O que afasta, inelutavelmente, a aplicabilidade ao contrato de formação em equação, das regras da revogação inscritas no citado artº. 1170º.
Ora, assim sendo, também não é aplicável ao caso concreto o critério indemnizatório enunciado no citado artº. 1172º, do Cód. Civil, pois, conforme constatámos, este é apenas aplicável à denúncia e à revogação unilateral imprópria, previstas no nº. 1, do artº. 1170º, e não à resolução fundada em justa causa.
Pelo que, não se afigura minimamente pertinente a referência efectuada na sentença sob sindicância a estes normativos, que surgem assim arredados de um adequado e correcto enquadramento jurídico.
Aqui chegados, indaga-se: mostra-se legalmente fundada a resolução contratual, por justa causa, operada pelo Autor junto da Ré ?
Vejamos os factos provados.
Apesar de ter sido comunicado ao Autor, em 12/03/2018, que a componente prática do curso de formação iniciar-se-ia 5 meses após o início da parte teórica, tendo o Autor iniciado as aulas teóricas no mês de Setembro de 2018, só em Agosto de 2019, é que, com os restantes colegas de curso, começou a frequentar aulas específicas para começar a voar – factos 11 e 12.
O autor deu disponibilidade de voo a partir do dia 26 de agosto de 2019 e nos meses seguintes, com algumas interrupções, num total de 146 dias completos de disponibilidade de voo. No entanto, apenas voou por 12 vezes: o primeiro voo teve lugar em 13 de setembro de 2019, e o último em 22 de fevereiro de 2020, sendo que o último voo antes do primeiro confinamento, em consequência da pandemia causada pelo “Covid-19”, ocorreu em meados de março de 2020, mas o autor não foi notificado para comparecer, apesar de ter dado disponibilidade para tal – factos 13 a 15.
No dia 06/08/2020, ocorreu um acidente com uma das aeronaves da Ré, tendo sido elaborado um relatório pelo “Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves e de Acidentes Ferroviários” (GPIAAF) do qual consta, no que à manutenção da aeronave concerne, a existência de desvios relevantes à regulamentação, instrução de manutenção não devidamente cumprida e atalhos nos trabalhos realizados no sistema de combustível – facto 22.
A ANAC detetou, em inspeções realizadas à Ré em outubro de 2018, fevereiro de 2019, janeiro de 2020 e julho de 2021 as seguintes desconformidades em relação aos cursos integrados ATPL(A) que pela Ré estavam a ser ministrados nestas datas: incumprimento da sequência das lições e das fases de voo, incumprimento do cronograma do curso, por interrupções prolongadas nos voos (v. g. superiores a 15 dias), atrasos na formação, insuficiência de instrutores para o número de alunos inscritos e insuficiência de aeronaves bimotor em condições adequadas para operarem – facto 24.
A insuficiência de aeronaves e de instrutores da Ré, e as interrupções prolongadas nos voos foram causando no Autor sentimentos de desconforto, instabilidade emocional e insegurança – facto 26.
Todavia, apesar disto, em 14 de outubro de 2020, o Autor voltou a inscrever-se na secretaria da escola para a época de exames de novembro de 2020, tendo sido surpreendido, no dia 22/10/2020, com um e-mail da Ré, remetido pela sua funcionária HH, informando-o da sua exclusão da época de novembro de 2020, em virtude de pagamentos em atraso.
Contudo, no dia 9 de novembro de 2020, recebeu outro e-mail, da equipa de suporte da Ré, a confirmar a sua inscrição na aludida época de exames, tendo verificado que o seu nome constava na lista de alunos inscritos para a aludida época de exames, não se tendo, todavia, o Autor preparado para a referida época de exame por causa do referenciado e-mail datado de 22/10/2020 – factos 27 a 30.
A resolução contratual, enquanto forma de cessação dos efeitos negociais, pode fundar-se na lei ou na convenção outorgada entre as partes – o nº. 1, do artº. 432º, do Cód. Civil – e possuir diversos fundamentos.
Exemplificativamente, a resolução pode fundar-se no incumprimento definitivo e na impossibilidade culposa da prestação – o nº. 1, do artº. 801º, do mesmo diploma.
Ora, não traduz a factualidade apurada a existência de um qualquer incumprimento definitivo culposo por parte da Ré, capaz de justificar o juízo resolutivo, nem é vislumbrável uma qualquer situação de mora no cumprimento da sua obrigação formativa que tenha sido convertida em verdadeiro incumprimento definitivo – o nº. 1, do artº. 808º, ainda do Cód. Civil.
Por outro lado, também não resulta evidenciada a existência de um qualquer facto social justificativo do juízo resolutivo, nomeadamente e in casu, uma qualquer alteração anormal das circunstâncias – o artº. 437º, do Cód. Civil. Com efeito, a prova de que durante os anos de 2018 e 2019, vários pilotos instrutores que prestavam funções na Ré deixaram-no do fazer, passando a desempenhar funções para companhias aéreas – o facto 25-A -, poderia, num putativo raciocínio, enformar um pedido de resolução contratual por parte da Ré, o que não está em apreciação nos presentes autos.
E, em acréscimo, também não resulta do contrato de formação outorgado entre as partes a previsão de um qualquer fundamento de resolução.
Resta, então, apreciar se aquele manancial factício justifica ou fundamenta a sustentada resolução por justa causa, ou seja, se se configurou uma situação de inexigibilidade do Autor manter em execução o duradouro contrato de formação, assim legitimando o juízo de resolução operado.
Ou seja, e concretizando, impõe-se aferir se, perante as provadas e expostas vicissitudes contratuais, ainda seria de exigir ao Autor, enquanto contraente afectado, que continuasse a executar o contrato de formação outorgado, pelo seu período de duração remanescente.
Ou se, ao invés, aquela mesma factualidade, enquanto maculadora e inquinadora da relação contratual, configura ou traduz efectiva e real justa causa do juízo resolutivo operado.
Ora, conforme enunciámos, para que se configure a justa causa resolutiva e opere o citado critério de inexigibilidade, é mister que se verifique uma justificada perda de confiança do Autor na capacidade da Ré formadora no cumprimento exacto do programa contratual de formação em falta, ou seja, que o provado incumprimento da Ré, violador do programa contratual outorgado, dificulte, torne inexigível ou insuportável que o Autor se deva manter vinculado à relação contratual.
Concretizando, é mister que decorra da factualidade provada que o Autor contratante tenha perdido a confiança na Ré no cumprimento futuro do contrato outorgado, que tenha ocorrido uma justificada perda de interesse da sua parte na continuidade da relação contratual, ou seja, que decorra da mesma factualidade um perigar da finalidade contratual pretendida ou almejada, num quadro de concreta e nítida afectação do dever de correcção, de lealdade e de fiabilidade entre as partes outorgantes.
Efectivamente, estando-se perante um contrato de prestação de serviços dotado de uma natureza específica e singular, em cujo cumprimento ou execução impera nitidamente uma diligência qualificada (nos termos reconhecidos na sentença recorrida), uma necessidade de integrar níveis de conhecimento teóricos com uma consequente componente prática, num período temporal devidamente delimitado, e sujeito a posterior aferição em exames a realizar perante terceira entidade devidamente habilitada e reconhecida, resulta evidente que ocorrências que maculem o nível relacional entre entidade formadora (Ré) e formando (Autor), colocando em causa o desiderato contratual formativo, podem justificar um juízo resolutivo com justa causa.
Ora, o quadro factual provado parece, efectivamente, confirmar tal juízo de justa causa, concretizada através do aludido critério de inexigibilidade.
Com efeito, a provada insuficiência de aeronaves e instrutores para a execução da vertente prática de instrução de voo do curso formativo, as interrupções prolongadas entre os concretos voos realizados, o que é afectador da efectiva apreensão de conhecimentos e consolidada aquisição de habilitações em tal prática, não contribuindo para um adquirir de confiança do Autor naquela execução, antes causando-lhe sentimentos de desconforto, instabilidade emocional e insegurança, bem como a ocorrência de um acidente com uma das aeronaves da Ré, fruto da sua deficiente manutenção, o que não terá deixado de afectar a confiança do Autor na fiabilidade técnica da Ré na prossecução da vertente prática do curso, configura-se como quadro factício próprio e pertinente a justificar que não fosse exigível ao Autor a manutenção/perduração do contrato de formação em execução, mas antes traduzindo efectiva justa causa à operada resolução contratual.
Em aditamento a tal panóplia fáctica, e configurando-se igualmente como episódio necessariamente afectador da confiança do Autor na capacidade e fiabilidade da Ré, não deverá ainda olvidar-se o lapso administrativo desta descrito nos factos 27 a 30.
Por fim, refira-se, ainda, que a circunstância de ter-se provado que durante os anos de 2018 e 2019, vários pilotos instrutores que prestavam funções na Ré deixaram-no do fazer, passando a desempenhar funções para companhias aéreas – facto 25-A -, não constitui, por si só, razão ou fundamento suficiente a minorar ou dirimir aquele quadro de justa causa resolutiva. Com efeito, sempre incumbiria á Ré encontrar soluções para ultrapassar tal vicissitude, caso entendesse que tal poderia afectar a sua capacidade formativa prática, nomeadamente através do recrutamento de outros recursos humanos ou, na impossibilidade, no redimensionamento do número de formandos nos cursos lecionados. Ou mesmo, no limite, caso assim o entendesse, proceder á resolução do contrato nos quadros do artº. 437º, do Cód. Civil, fundada numa alteração anormal das circunstâncias em que contratou. O que não fez.
O que implica, nesta vertente recursória (cuja apreciação já vai longa), juízo de total improcedência.
- dos efeitos jurídicos da alegada resolução contratual
Referencia a Recorrente Ré que a decisão recorrida, ao condená-la no pagamento ao Autor do montante de € 27.900,00 (vinte e sete mil e novecentos euros), ignorou o facto deste ter frequentado as aulas teóricas junto da Ré durante o mês de Setembro de 2019; e o facto de o Recorrido ter frequentado em Agosto de 2019 aulas específicas para voar e que voou 12 vezes, sendo o primeiro voo em 13 de Setembro de 2019 e o último em 22 de Fevereiro de 2020, tendo a Recorrente prestado ao Recorrido um total de 265 aulas teóricas, cada uma com a duração de 3 horas, num total de 795 horas, e um total de 17h50m de voo.
Acrescenta que a retroactividade da resolução só faz sentido em relação ao que foi prestado sem contrapartida, pois o sinalagma e o equilíbrio jurídico do contrato impõem que o valor da utilidade que adveio da execução do mesmo deverá ser pago, razão pela qual deve ser proferido acórdão que relegue para incidente de liquidação de sentença o concreto montante pecuniário a devolver pela Recorrente Ré ao Recorrido Autor.
Conforme consignado, a sentença apelada entendeu que a indemnização, devendo cobrir o prejuízo do Autor, deve corresponder a todo o montante que pagou à Ré - cf., o facto provado 38 -, nos termos do disposto nos artigos 1170º e 1172º, ambos do Cód. Civil, por referência ao artº. 798º, do mesmo diploma, pois, não podendo aproveitar a formação que a Ré lhe deu, a medida de tal responsabilidade corresponde ao tempo e recursos (financeiros) que o Autor despendeu sem ter o retorno esperado.
E, acrescentou que, ainda que se entendesse que a natureza do presente contrato de formação era de execução continuada, sempre seria aplicável a excepção prevista na 2ª parte, do nº. 2, do artº. 434º, do Cód. Civil, pois, o objectivo do contrato dos autos não se alcançaria sem a obtenção da licença de piloto de linha aérea de avião e, este objectivo não se iria certamente alcançar, atenta a factualidade apurada a respeito do incumprimento da Ré.
Não se desconhece, relativamente aos efeitos entre as partes, o juízo de equiparação da resolução à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico – cf., artº.s 433º e 289º, do Cód. Civil.
O que traduz o seu efeito tendencialmente retroactivo, ressalvando o nº. 2, do artº. 434º, do mesmo diploma, que “nos contratos de execução continuada ou periódica, a resolução não abrange as prestações já efectuadas, excepto se entre estas e a causa da resolução existir um vínculo que legitime a resolução de todas elas”.
Conforme resulta dos factos provados 12, 14 e 40, o Autor iniciou as aulas teóricas durante o mês de setembro de 2018, mas só em agosto de 2019 é que, com os restantes colegas, começou a frequentar aulas específicas para começar a voar, tendo apenas voado por 12 vezes: o primeiro voo teve lugar em 13 de setembro de 2019, e o último em 22 de fevereiro de 2020.
Assim, o Autor frequentou, no âmbito do curso de piloto profissional, um total de 265 aulas teóricas, cada uma com a duração de 3 horas, num total de 795 horas, e um total de 17:50 horas de voo.
Conforme certeiramente defende a Apelante, a retroactividade da resolução só faz sentido em relação ao que foi prestado sem contrapartida, pois o sinalagma e o equilíbrio jurídico do contrato impõem que o valor da utilidade que adveio da execução do mesmo deverá ser pago.
Todavia, a mesma Apelante olvida ter-se provado, conforme facto 38, que “caso o autor pretenda fazer o curso integrado de Piloto de Linha Aérea de Avião (ATPL-A) noutra escola, terá que repetir o mesmo percurso teórico legalmente exigido para a sua conclusão, o que implica a frequência de mais de 800 horas de formação teórica, os testes de aferição de conhecimentos a realizar na escola, e os respetivos testes na ANAC nas catorze disciplinas” – lastro factual que, desde logo, mesmo que outras razões não existissem, afasta o entendimento adoptado no douto Acórdão desta Relação de 25/02/2014, já supra identificado, citado pela Apelante.
O que, logicamente, atenta a natureza e especificidade do curso formativo, não deixará de ser necessariamente extensível às horas de instrução de voo, donde resulta uma total inaproveitabilidade, por parte do Autor, quer das horas de instrução teórica, quer das horas de instrução de voo, tal como acertadamente consignou a sentença apelada (ainda que com inadequado enquadramento jurídico).
Deste modo, nada sendo aproveitável, por parte do Autor, da formação prestada pela Ré, para uma eventual futura formação em curso de idêntica natureza, a medida da responsabilidade indemnizatória desta deve ter correspondência ao tempo e recursos financeiros despendidos pelo Autor, sem que destes decorresse qualquer retorno.
Pelo que, tendo-se provado ter o Autor despendido a quantia de 27.900,00 € - o facto provado 8 -, e nada havendo a deduzir relativamente aos serviços prestados pela Autora, atenta a sua total inaproveitabilidade, é este valor que deve ser ressarcido pela Ré ao Autor, tal como devidamente fixado na sentença, inexistindo, assim, lugar ou necessidade em relegar para sede de liquidação de sentença o concreto montante pecuniário a devolver pela Ré.
O que implica, nesta sede e vertente, total improcedência das conclusões recursórias.
- da actuação do Autor em abuso de direito
No seu excurso recursório, referencia a Recorrente encontrar-se provado nos autos que “não houve época de exames em Março, Maio e Junho de 2020, e não houve voos nos meses de Maio e Junho de 2020, devido à situação provocada pela pandemia de «Covid-19» e que, por esse motivo, houve lugar à prorrogação do curso frequentado pelo Recorrido, que terminaria a 08 de Junho de 2022 (factos provados 17. e 23.), bem como que o Recorrido, após o levantamento do confinamento provocado pela pandemia de «Covid-19», não deu disponibilidade para voar, por não se sentir capaz, confiante e disponível para tal (factos 20. e 21.), e, ainda, que o Recorrido enviou uma carta à Recorrente «resolvendo» o contrato celebrado com fundamento em alegado incumprimento na realização e agendamento de voos por parte da Recorrente (facto provado 34.)”.
Acrescenta que o Autor, que “viu o seu curso ser prorrogado até 08 de Junho de 2022 em virtude dos constrangimentos causados pela pandemia de «Covid-19», DECIDIU, por livre e esclarecida vontade sua, não dar disponibilidade para voar, por não se sentir capaz, confiante e disponível para tal, pelo que a Recorrente, neste enquadramento, ficou no aceitável convencimento de que o Recorrido nunca iria remeter carta à Recorrente invocando resolução contratual do contrato celebrado com fundamento em alegado incumprimento na realização e agendamento de voos do Recorrido por parte da Recorrente”.
Donde, entende que o Autor, ao interpor a presente acção, “actuou com abuso de direito, nos termos previstos no artigo 334.º, do Código Civil, porque sendo embora detentor do direito de propor a presente acção, exercita-o, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos, claramente, ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, designadamente por criar uma desproporção objectiva entre a utilidade que pretende alcançar e as consequências a suportar pela Recorrente contra a qual é invocado, pelo que inexiste a obrigação da Recorrente restituir ao Recorrido a quantia de € 27.900,00 (vinte sete mil e novecentos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal civil, desde a data de citação da Ré até efectivo e integral pagamento”.
Pelo que, a decisão recorrida, ao não ter entendido que o Autor actuou com abuso de direito, configurável como excepção peremptória imprópria de conhecimento oficioso, violou o disposto no artigo 334.º, do Código Civil.
Analisemos.
A cláusula geral da boa fé ou do abuso de direito encontra-se estatuída no art.º 334º, do Cód. Civil, o qual dispõe ser “ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Traduz, assim, o abuso de direito a “fórmula mais geral de concretização do princípio da boa fé”, de acordo com a afirmação de que “o direito cessa onde começa o abuso”, sendo configurado como “um excelente remédio para garantir a supremacia do sistema jurídico e da Ciência do Direito sobre os infortúnios do legislador e sobre as habilidades das partes” 13.
Parafraseando os ensinamentos de Antunes Varela 14, refere-se que a fórmula legal de excesso manifesto dos limites impostos pela boa fé, abrange, de uma forma especial, as situações que a doutrina e jurisprudência reconhecem como de venire contra factum proprium. São, nomeadamente, “aqueles casos em que a pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou um negócio, invocando, por exemplo, determinada causa de nulidade, anulação, resolução ou denúncia de um contrato, estabelecida no interesse do contraente, depois de fazer crer á contraparte que não lançaria mão de tal direito, ou depois de ter dado causa ao facto invocado como fundamento da extinção da relação ou do contrato”.
Assim, a noção de venire contra factum proprium postula dois comportamentos da mesma pessoa, “lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo”. E, citando Meneses Cordeiro 15, acrescenta-se existir venire contra factum proprium numa de duas situações: “quando uma pessoa, em termos que, especificamente, não a vinculem, manifesta a intenção de não ir praticar determinado acto e, depois, o pratique e quando uma pessoa, de modo, também, a não ficar especificamente adstrita, declare pretender avançar com certa actuação e, depois, se negue”.
Traduz, assim, esta locução - venire contra factum proprium – que “a ninguém é permitido agir contra o seu próprio acto. À partida, ela exprime a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assuma comportamentos contraditórios”. Abarca a “hipótese de, independentemente de ter sido accionada qualquer previsão normativa comum de tipo contratual, o agente ficar adstrito a não contradizer o que primeiro fez e disse” 16.
Ora, a proibição do venire contra factum proprium radicada na boa fé tem como alvo preferencial o quadro em que “uma situação de aparência jurídica é criada, em termos tais que suscita a confiança das pessoas”.
Pelo que, para além das situações em que o Direito estrito permite uma solução mais rápida e eficaz, “permanece uma zona na qual alguém, por acção, dá azo a uma situação de confiança sem que, dogmaticamente, seja possível recorrer à teoria dos negócios. Não se trata tanto de conseguir uma protecção: antes prevalece a necessidade de definir os termos e o âmbito duma tutela razoável. Aí, o apelo à boa fé e aos meandros da tutela da confiança, acima apontados, constituirá uma solução excelente” 17.
Nas palavras de Baptista Machado 18 , o venire contra factum proprium, enquanto modalidade do abuso de direito, é traduzida por “uma conduta de alguém que de facto possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada posição futura”.
O investimento nessa confiança reporta-se aos casos em que “haja sido feito apenas com base nessa confiança”.
E, por referência à boa fé do contraente que confiou, “só merecerá protecção jurídica quando este esteja de boa fé e tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico”.
Acresce, recorrendo-se aos ensinamentos de Manuel de Andrade, que este Ilustre Professor inclinava-se, ainda que de forma não categórica, para a solução de improcedência de arguição da nulidade, quando esta arguição revista as características de um abuso de direito. Com efeito, conforme expressamente referenciado por aquele, “tal consideração não exige, porém, que as regras da forma devam ser consideradas um «jus strictum», indefectivelmente aplicado, sem qualquer subordinação a um princípio supremo do direito, verdadeira exigência fundamental do «jurídico», como é o do artigo 334º (abuso do direito).
O intérprete, desde que lealmente aceite como boa e valiosa para o comum dos casos a norma que prescreve a nulidade dos negócios feridos de vício de forma, está legitimado para, nos casos excepcionalíssimos do art. 334º, afastar a sua aplicação, tratando a hipótese como se ao acto estivesse formalizado.
Fora destes casos excepcionalíssimos, se uma das partes actuou com má fé nas negociações, o negócio é nulo, mas surgirá uma indemnização por força do artigo 227º (......).
De qualquer modo a segurança da vida jurídica e a certeza do direito, sendo valores de importância fundamental na ordenação da vida social e compreendendo-se o seu acatamento mesmo que para isso se pague o tributo de alguma injustiça, não podem ser afirmados com sacrifício das elementares exigências do «justo»” 19.
Exposto tal entendimento, que se nos afigura imaculado e pertinente, a questão a decidir e clarificar é a seguinte: o que é que se deve entender por abuso de direito ?
No nosso sistema legal, a concepção de abuso de direito adoptada “é a objectiva: - não é necessário a consciência de se atingir, com o seu exercício, a boa fé, os bons costumes ou o fim social ou económico do direito conferido: basta que os atinja” 20. E, relativamente ao conceito de boa fé, esta não está presente “quando se pretende alcançar resultados opostos aos que uma consciência razoável poderia tolerar”, devendo então credor e devedor comportarem-se reciprocamente “como o fariam pessoas sérias e equânimes, não se atendo à letra dos contratos, mas sobretudo ao espírito deles, e fazendo o que for razoável para evitar o prejuízo dos interesses legítimos da parte contrária”. Pelo que, a obrigação não deve ser assumida “farisaicamente, nos seus aspectos exteriores e formais, mas no seu verdadeiro espírito, segundo as exigências profundas da natureza das coisas, da justiça, da liberdade”, não sendo a boa fé “um produto da indução lógica, nem objecto de conhecimento científico, mas matéria de experiência e de razão prática” 21.
Relativamente á conceptualização dos bons costumes, devem estes ser entendidos como “o conjunto de regras éticas aceites pelas pessoas honestas, correctas, de boa fé, num dado ambiente e num certo momento”, pelo que “não há que atender á moral que se pratica («mores») mas à moral que se entende dever ser observada («boni mores»), não à moral subjectiva do juiz, mas à moral objectiva, isto é, ao sentido ético preponderante na comunidade social ; não se trata ainda da moral transcendente, religiosa ou filosófica, mas da moral positiva” 22.
Por outro lado, o excesso de exercício do direito há-de ser manifesto, ou seja, “indiscutível, franco e claro, clamoroso, em termos clamorosamente ofensivos da justiça, verdadeiramente escandalosos”, pretendendo desta forma o legislador “prevenir uma excessiva intervenção do tribunal na vida de certas relações” 23.
Novamente nas palavras de Menezes Cordeiro 24, o abuso do direito é um instituto multifacetado. Encontramo-lo, hoje, no dia-a-dia dos nossos tribunais, para resolver questões deste tipo: (…)
II. Os exemplos alinhados documentam, sucessivamente, cinco subinstitutos, ausentes dos nossos manuais até há bem pouco tempo: venire contra factum proprium, inalegabilidade formal, suppressio, tu quoque e desequilíbrio no exercício. Todos eles traduzem concretizações de uma ideia tradicional: a da proibição do abuso do direito. Finalmente: todos apelam ao adensamento de um princípio clássico: a boa fé.
(…) I. A suppressio (supressão) abrange manifestações típicas de “abuso do direito” nas quais uma posição jurídica que não tenha sido exercida, em certas circunstâncias e por certo lapso de tempo, não mais possa sê-lo por, de outro modo, se contrariar a boa fé.
Propusemos o termo suppressio para exprimir o alemão Verwirkung. Recorremos ao latim, dentro das tradições nacionais, para evitar o deselegante recurso ao alemão e na impossibilidade de adaptar locuções portuguesas. De facto e entre nós, já foram propostas as locuções “caducidade”, “exercício inadmissível do direito”, “decadência”, “inibição”, “paralisação”, “preclusão” e “perda”. São todas reconhecidamente inadequadas, seja por assumirem outros significados técnicos que, aqui, não ocorrem, seja por traduzirem efeitos e não causas.
Ora suppressio contracena com a surrectio (surgimento), num universo onde ocorrem a exceptio doli, o venire, o tu quoque e o dolo agit: a expressão latina fica bem integrada, desde que se admitam novidades (já com vinte anos).
Não nos parece nada vantajoso, para o progresso da nossa Ciência, que cada Autor interessado no tema comece logo por alterar toda a terminologia e isso, para mais, para reproduzir candidamente expressões há décadas rejeitadas pelos nossos clássicos. Com isso, só se prejudica a nossa Ciência do Direito.
II. A suppressio teve a sua origem na prática da jurisprudência comercial alemã dos finais do século XIX (104), tendo-se intensificado com a guerra de 1914-18 e com o subsequente período de grande inflação. No cerne do problema, verificou-se que o exercício retardado de certos direitos, em conjunturas de instabilidade, podia dar azo a graves injustiças. Na base da jurisprudência alemã, foram-se elaborando diversas proposições que dariam corpo ao seu regime. São elas:
— todos os direitos e posições similares lhe estariam sujeitos;
— exige-se um decurso do tempo sem exercício, decurso esse que varia com as circunstâncias;
— requerem-se, ainda, indícios objectivos de que a posição em causa não irá ser exercida.
III. Estas proposições são demasiado vagas. Qual a efectiva sustentação dogmática da suppressio? Duas hipóteses:
— ela visa o comportamento do agente, cuja inacção deveria ser penalizada;
— ela visa proteger o beneficiário, na sua confiança de que não haverá exercício.
Na primeira hipótese, a suppressio deveria ser normalizada e os seus prazos nivelados. Só sendo cognoscíveis de antemão, eles surtiriam algum efeito. Na segunda, teríamos de indagar, junto do beneficiário, os pressupostos da tutela da confiança.
Equacionado desta forma, o problema tem solução fácil. Se a suppressio visasse a conduta omissiva do agente, ela aproximar-se-ia dos pressupostos histórico-culturais da prescrição. Mas para eles, temos já, justamente, a prescrição: nenhuma vantagem existiria em duplicar esta através de um instituto que, apesar de tudo, sempre pecaria por falta de clareza.
Fica a segunda hipótese: a suppressio é uma forma de tutela do beneficiário, confiante na inacção do agente. Teríamos, no fundo, uma espécie de venire, em que o factum proprium seria constituído por uma simples inacção. Esta, porém, nunca poderá ser tão clara e óbvia como um comum factum proprium. Por isso, o correspondente modelo de decisão será um pouco mais complexo do que o da habitual tutela da confiança:
— um não-exercício prolongado;
— uma situação de confiança, daí derivada;
— uma justificação para essa confiança;
— um investimento de confiança;
— a imputação da confiança ao não-exercente.
O quantum do não-exercício será determinado pelas circunstâncias do caso: o necessário para convencer um homem normal, colocado na posição do real, de que não mais haveria exercício.
A justificação será reforçada por todas as demais circunstâncias ambientais capazes de conformar essa convicção, legitimando-a.
Quer isto dizer que, no fundo, o confiante ex bona fide, vê surgir, na sua esfera, uma nova posição jurídica: será a surrectio (surgimento), contraponto da suppressio.
IV. Resta acrescentar que a suppressio está perfeitamente radicada no nosso Direito. Assim, referindo apenas arestos publicados a partir de 2000:
(…) I. No Direito português, a base jurídico-positiva do abuso do direito reside no artigo 334.º e, dentro deste, na boa fé. Para além de todo o desenvolvimento histórico e dogmático do instituto que aponta nesse sentido, chamamos ainda a atenção para a inatendibilidade, em termos de abuso, dos bons costumes e da função económica e social dos direitos.
Os bons costumes remetem para regras de comportamento sexual e familiar que, por tradição, não são explicitadas pelo Direito civil, mas que este reconhece como próprias. E eles remetem, também, para certos códigos deontológicos reconhecidos pelo Direito. Nestes termos, os bons costumes traduzem regras que, tal como muitas outras, delimitam o exercício dos direitos e que são perfeitamente capazes de uma formulação genérica. Não há, aqui, qualquer especificidade.
Quanto ao fim económico e social dos direitos: a sua ponderação obriga, simplesmente, a melhor interpretar as normas instituidoras dos direitos, para verificar em que termos e em que contexto se deve proceder ao exercício. Também aqui falta um instituto autónomo, já que tal interpretação é sempre necessária.
(…) II. A boa fé, em homenagem a uma tradição bimilenária, exprime os valores fundamentais do sistema. Trata-se de uma visão que, aplicada ao abuso do direito, dá precisamente a imagem propugnada. Dizer que, no exercício dos direitos, se deve respeitar a boa fé, equivale a exprimir a ideia de que, nesse exercício, se devem observar os vectores fundamentais do próprio sistema que atribui os direitos em causa.
III. Aparentemente vago, este postulado obtém uma concretização fecunda através dos vectores próprios do manuseio da boa fé. Recordamos:
— a utilização dos princípios mediantes da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente;
— o enquadramento nos grupos típicos de actuações abusivas, com relevo para o venire, a suppressio, o tu quoque e o desequilíbrio no exercício.
Jurisprudencialmente, o presente instituto jurídico tem merecido a importância e realce que merece, através da abordagem de várias situações factícias capazes de traduzirem a abrangerem o mesmo.
Assim e procedendo á definição do abuso de direito, refere o sumário do douto Acórdão do STJ de 03/05/90 25, que o instituto mais claro daquele “é a conduta contraditória (venire contra factum proprium) em combinação com o princípio da tutela da confiança”, existindo, ainda, duas figuras próximas: a renúncia e a neutralização do direito. Para que esta se verifique, necessária se torna a combinação das seguintes circunstâncias: “o titular de um direito deixar passar longo tempo sem o exercer ; com base neste decurso do tempo e com base ainda numa particular conduta do dito titular, ou noutras circunstâncias, a contraparte chega à convicção justificada de que o direito já não será exercido ; movida por esta confiança, tomou medidas ou adoptou programas de acção com base naquela confiança, pelo que o exercício tardio e inesperado do direito em causa lhe acarretaria agora uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado”.
Em idêntico sentido, pronunciou-se o douto Acórdão do STJ de 20/06/2000 26, o qual, após reafirmar concepção objectiva do instituto, independentemente da consciência da existência de abuso de direito, reconhece ser necessário que “o excesso constituído seja manifesto, ou seja, que haja uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante”, traduzindo-se a manifestação mais clara desse abuso na “conduta contraditória do «venire contra factum proprium», em combinação com o princípio da tutela da confiança, isto é, a inadmissibilidade da pretensão de exercer um direito quando, com isso, o seu titular entra em contradição com a sua conduta anterior, e por ser uma exigência da lealdade” (sublinhado nosso). Pelo que, para que se verifique a neutralização do direito, é necessária a combinação de três distintas circunstâncias, nomeadamente a existência de “longo tempo sem exercício, de criação de convicção de confiança de confiança da contraparte de que já não será exercido, e de exercício tardio a acarretar uma desvantagem maior do que o exercício atempado” 27.
Na análise jurisprudencial, referencie-se, ainda, o aresto desta Relação e Secção de 18/06/2020 28, o qual referencia que vem sendo entendido que “para determinar quais os limites impostos pela boa fé ou pelos bons costumes o julgador deverá atender às conceções ético-jurídicas dominantes na coletividade, devendo para apurar do fim social ou económico do direito considerar os juízos de valor positivamente consagrados na lei (assim, Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, pág. 299).
A jurisprudência é, desde há largos anos, muito rica na identificação de situações em que se justifica lançar mão deste instituto. Lembramos a síntese exemplar feita no acórdão do STJ de 21-09-1993 in CJ III - 19 “a complexa figura do abuso do direito é uma cláusula geral, uma válvula de segurança, uma janela por onde podem circular lufadas de ar fresco, para obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social (...) em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido; existirá abuso do direito quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito, dito de outro modo, o abuso do direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo mas este poder formal é exercido em aberta contradição, seja com o fim (económico e social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé e bons costumes) que, em cada época histórica envolve o seu reconhecimento”.
Também a doutrina vem dando abundante contributo para a compreensão desta figura, elaborando, frequentemente com base na jurisprudência dos tribunais superiores, uma série de hipóteses típicas concretizadoras da cláusula geral da boa fé (aliás, isso mesmo é feito no citado Comentário ao acórdão do STJ de 28-09-2017).
Destaca-se a proibição de venire contra factum proprium, que visa impedir uma pretensão incompatível ou contraditória com a anterior conduta do pretendente; ocorre sempre que uma pessoa pretende destruir uma relação jurídica ou negócio invocando, por exemplo, uma determinada causa de resolução, denúncia, nulidade ou anulação, quando já tinha feito crer à contraparte que não lançaria mão de tal direito.
Uma outra situação, próxima do “venire”, é a “verwirkung”, que visa vetar o exercício de um direito subjetivo ou de uma pretensão quando o seu titular, por os não ter exercido durante muito tempo, criou na contraparte uma fundada expectativa de que já não seriam exercidos, assumindo o seu posterior exercício natureza desleal e intolerável. A “verwirkung” corresponde, assim, à figura da “neutralização do direito” de que já se falava no Acórdão do STJ de 28-06-1994, in CJ II - 157. Não há para a “verwirkung”, ao contrário do que sucede com a prescrição e a caducidade, limites fixos de tempo. O tempo necessário dependerá muito das circunstâncias que, combinadamente, contribuam para a formação do estado de confiança. A “verwirkung” distingue-se do venire por estar mais em causa, além do decurso do tempo associado a um “não agir”, o resultado a que o exercício tardio do direito conduziria e a questão de saber se ainda será exigível da contraparte conformar-se à pretensão do titular do direito a suportar esse resultado. De qualquer modo, a maioria das vezes, a inadmissibilidade de exercício do direito resultará também da proibição de venire contra factum proprium.
Menezes Cordeiro, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 1.º Vol. 1987/88, pág. 371 e ss. e 663 e ss. indica ainda como figura parcelar de comportamento inadmissível a suppressio, que se caracteriza por o exercente de um direito deixar passar um tal lapso de tempo sem exercer esse direito que, quando o faça, contraria a boa fé. Reconduz-se à figura da surrectio, em que, por força da boa fé, o exercente vê, contra ele ou em termos que ele deva respeitar, formar-se um direito que, de outro modo, não existiria.
Uma outra figura suscetível de configurar um abuso do direito é o exercício em desequilíbrio: verifica-se quando o exercente de um direito exerce uma atividade que causa danos a outrem inutilmente ou quando provoca uma desproporção inadmissível entre a vantagem própria e o sacrifício que impõe a outrem.
De referir, por fim, que as consequências do abuso do direito não podem deixar de ser ajustadas às especificidades de cada caso concreto. Assim, nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, págs. 299-300, “tem as consequências de todo o acto ilegítimo: pode dar lugar à obrigação de indemnizar, à nulidade, nos termos do artigo 294.º; à legitimidade de oposição; ao alongamento de um prazo de prescrição ou de caducidade.””.
Após esta breve resenha doutrinária e jurisprudencial, a questão a demandar clarificação elenca-se nos seguintes termos: poderá afirmar-se que a conduta do ora Apelado/Recorrido/Autor é imbuída de abuso de direito ao vir exercitar judicialmente a tutela da resolução do contrato celebrado com a Ré e reclamar o pagamento da quantia devida na sequência de tal resolução contratual com justa causa ?
Vejamos.
A factualidade provada induz-nos, claramente, no sentido da resposta dever ser necessariamente negativa, no sentido de não descortinarmos na conduta do Autor uma actuação que se possa traduzir em efectivo abuso de direito, em qualquer das suas manifestações típicas.
Nomeadamente a existência de um comportamento que se possa afirmar como vinculante, relativamente a um determinado comportamento futuro, que possa ter criado, de alguma forma, na esfera jurídica da Ré, uma confiança quanto ao não exercício de um eventual direito resolutivo.
Com efeito, não é pelo facto do Autor, num determinado momento temporal de frequência do curso formativo, logo após o confinamento pandémico, não ter voltado a dar disponibilidade para voar, por não se sentir capaz e confiante, sendo que, designadamente, quando foi reaberta a disponibilidade para voar, estava a preparar-se para os exames da ANAC (parte teórica), que se realizaram em agosto de 2020, não se sentindo disponível para voos de instrução, que se deve necessariamente concluir que a Ré ficou aceitavelmente convencida que aquele nunca invocaria a resolução contratual, em cujo fundamento, e para além de outros, figuraria alegado incumprimento na realização e agendamento de voos.
Ora, aquela indisponibilidade para a realização de voos por parte do Autor ocorre num período balizado, sustentada em concreta fundamentação, tendo não só em conta o reduzido número de voos que até então tinha realizado (apesar dos 146 dias completos de disponibilidade para voo que havia anteriormente apresentado), como ainda a interrupção ocorrida devido ao confinamento decretado.
Por outro lado, também não vislumbramos que o concreto exercitar da presente acção por parte do Autor, e o consequente pedido acional formulado, tenha ocorrido “fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência”, ou seja, que aquele exercitar, para além de ofensivo da justiça e do sentimento jurídico dominante, tenha criado uma desproporção ou desequilíbrio objectivo entre o logrado alcançar através da invocada resolução, e a utilidade daí adveniente, e as consequências a suportar pela outorgante Ré.
Concretizando, não merece acolhimento o juízo que considera ter ocorrido um desequilíbrio no exercitar do direito resolutivo por parte do Autor, ao impor uma qualquer inútil obrigação restitutiva à Ré ou ao provocar uma inadmissível desproporção entre a vantagem que adquire com o acolhimento das consequências decorrentes da resolução contratual e o sacrifício ou oneração causada à Ré.
Donde, neste entendimento, não se considera ter o Autor agido em violação das regras da boa fé e em clara situação de abuso de direito, nomeadamente na invocada modalidade de venire contra factum proprium, ou através de um exercitar desequilibrador do direito em equação, de molde a provocar inaceitável e inadmissível desproporção entre o ganho aquisitivo daí decorrente e o ónus ou sacrifício imposto.
Donde, sem necessidade de outras considerações, conclui-se no sentido de não se reconhecer que o Autor tenha agido em abuso de direito, decaindo, nesta parte, as conclusões recursórias apresentadas, com juízo de consequente improcedência da apelação.
- da necessária procedência do pedido reconvencional
Por fim, defende a Apelante que “tendo o Tribunal a quo dado como provado (facto provado 3.) que em 24 de Setembro de 2018, o Recorrido, na qualidade de segundo outorgante, e a Recorrente, na qualidade de primeira outorgante, assinaram um escrito particular denominado «contrato de formação»; o curso tinha uma duração total de 1.052 horas, sendo 832 horas de instrução teórica e 220 de instrução de voo (facto provado 4.); e o curso tinha um custo total de € 56.900,00 (facto provado 7.), e estando a quantia constante do pedido reconvencional vencida desde Fevereiro de 2020 (18 meses contados desde o início do contrato – artigo 7.º, alínea a), do contrato de formação), então resulta por demais evidente que a Recorrente tem direito a receber as quantias de que é credora uma vez que a denúncia unilateral do contrato pelo Recorrido só opera ex nunc, razão pela qual a decisão recorrida, ao absolver o Recorrido de pagar à Recorrente a quantia por esta reclamada em sede de pedido reconvencional, violou o disposto nos artigos 1171.º, n.º 1, e 1172.º, do Código Civil”.
Na sentença sob sindicância, no que concerne ao pedido reconvencional formulado, referenciou-se, apenas, que tendo-se concluído no sentido do Autor ter resolvido o contrato com justa causa, julgou-se improcedente o pedido reconvencional.
Ora, atento o enquadramento jurídico efectuado, a conclusão na presente sede não é diferente.
Com efeito, e desde logo, a Recorrente alude a estarmos perante uma denúncia unilateral do contrato de formação, à qual seriam aplicáveis as regras legais inscritas nos artigos 1171º, nº. 1 e 1172º, ambos do Cód. Civil.
Todavia, conforme justificámos, não só não estamos perante tal forma de cessação dos efeitos negociais, como não são aplicáveis, in casu, quer a figura jurídica da revogação, quer a obrigação indemnizatória do seu exercitar, nos termos prescritos nos citados normativos.
Assim, tendo-se concluído pelo legítimo e pertinente exercitar do direito de resolução contratual, fundado em justa causa, por parte do Autor, com as consequências indemnizatórias daí decorrentes, logicamente que surge como juridicamente inviável que o invocante deva ser onerado com a obrigação de pagamento da totalidade do valor contratual acordado, relativamente a um contrato validamente e justificadamente resolvido.
O que determina, sem ulteriores acrescentos, juízo de não acolhimento, igualmente nesta vertente, da pretensão recursória.
Assim, e em guisa conclusiva, improcede, in totum, a pretensão recursória apresentada, confirmando-se, ainda que com diferenciado enquadramento jurídico, a sentença recorrida/apelada.
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Nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, decaindo a Recorrente Ré na pretensão recursória deduzida, suporta as custas da presente apelação.
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IV. DECISÃO
Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em:
I. Julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela Apelante/Ré AWA – AERONAUTICAL, WEB ACADEMY, LDA., em que figura como Apelado/Autor AA ;
II. Em consequência, ainda que com diferenciado enquadramento jurídico, confirma-se a sentença recorrida/apelada ;
III. Nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, a Ré suporta as custas da presente apelação.
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Lisboa, 13 de Março de 2025
Arlindo Crua
Susana Mesquita Gonçalves
Paulo Fernandes da Silva
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1. A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
2. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª Edição, Almedina, pág. 285.
3. Idem, pág. 285 a 287.
4. Introdução ao Processo Civil Conceito e Princípios Gerais à Luz do Novo Código, 4ª Edição, Gestlegal, pág. 188 e 189.
5. Cf., Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Coimbra Editora, pág. 478.
6. Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª Edição, 2004, Almedina, pág. 453 e 454.
7. Idem, pág. 455 e 456.
8. Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Vol. I, 2014, 2ª Edição, Almedina, pág. 396.
9. Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, Almedina, pág. 301.
10. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pág. 672.
11. Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª Edição, 2017, Almedina, pág. 386.
12. Cf., ainda, acerca da presente matéria, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª Edição, 2017, pág. 307.
13. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Tomo I, 1999, Almedina, pág. 191, 192 e 197.
14. Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10 edição, pág. 547.
15. Da boa fé no Direito Civil, Vol. II, págs. 742 e segs..
16. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Tomo I, 1999, Almedina, pág. 200.
17. Idem, pág. 200 e 202.
18. Obra Dispersa, I, pág. 416 e seguintes, citado no douto Acórdão do STJ de 31/03/2009, Relator: João Bernardo, Processo nº. 09B652, in www.dgsi.pt .
19. cf.., Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, págs. 439 e 440.
20. Abel Delgado, Ob. Cit., pág. 162..
21. Idem, com a remissão para os autores e obras aí referenciados.
22. Ibidem, com remissão para os autores e obras aí referenciados.
23. Ibidem, págs. 164 e 165, bem como os autores e obras aí citados.
24. in “Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas”, in ROA Ano 2005, disponível em https://portal.oa.pt/publicacoes/revista/ano-2005/ano-65-vol-ii-set-2005/artigos-doutrinais/antonio-menezes-cordeiro-do-abuso-do-direito-estado-das-questoes-e-perspectivas-star/:.
25. In http://www.dgsi.pt , Doc. Nº SJ199005030783711.
26. In http://www.dgsi.pt , Doc. Nº SJ200006200016051.
27. cf.., ainda, entre outros, o sumariado no douto Acórdão do STJ de 02/02/89 – in http://www.dgsi.pt/jstj , Doc. n.º SJ198902020767822 -, onde se refere que o instituto do abuso de direito há-de “representar remédio tão eficiente quanto específico para actuar como válvula de segurança capaz de evitar que um direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito”, não se destinando, por sua vez, “a fazer extinguir direitos, antes se propõe manter o seu exercício em moldes conformes com o salutar equilíbrio dos interesses em jogo” ; o referenciado no douto acórdão do STJ de 08/07/82 – in http://www.dgsi.pt/jstj , Doc. n.º SJ198207080700801 -, que, após reafirmar a concepção objectiva do abuso de direito, acrescenta que este tem-se de “estruturar e alicerçar em factos que, para lá dessa falta de consciência, revelem um manifesto, clamoroso excesso, ofensivo dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico desse direito” ; o douto acórdão do STJ de 02/07/96 – in http://www.dgsi.pt/jstj , Doc. n.º SJ199607020001361 -, que reconhece a concepção objectivista do abuso de direito, mas realçando que a intencionalidade com que o titular tenha agido não deva ser ignorada para a questão de aferir se existe ou não abuso de direito, e acrescentando que a grande maioria da jurisprudência e doutrina “é no sentido de que improcede a arguição de nulidade de um contrato quando esta arguição configura um abuso de direito, como sucederá nos casos em que a nulidade formal é arguida pelo contraente que a provocou, ou levou dolosamente o autor a não formalizar o contrato ou procedeu de modo a criar nesse outro contraente a convicção de que não seria invocada a nulidade, procedendo, assim, de modo iníquo ou escandaloso” ; cf.., ainda, os Acórdãos do STJ de 28/10/97 e 12/04/89, in http://www.dgsi.pt/jstj , respectivamente, Doc. n.º SJ199710280006091 e SJ198904120773881.
28. Relatora: Laurinda Gemas, Processo nº. 22983/17.1T8LSB.L1, no qual o ora Relator interveio como 2º Ajunto.