A competência de um juízo de execução em razão da matéria afere-se em função dos termos do requerimento executivo e não em função das questões que os executados alegaram em sede de embargos de executado.
Para o efeito alegou em síntese seguinte:
• O exequente é legítimo portador de um cheque no valor de € 200 000,00 (duzentos mil euros), emitido pela sua mãe, BB, sacado sobre o Banco BPI, com data de emissão de 1-06-2021;
• O cheque foi entregue ao exequente pela sua mãe, a título de doação, no ano de 2020;
• O cheque encontra-se datado de 1-06-2021, uma vez que a mãe do exequente só nessa data queria que fosse levantado o montante;
• Acontece, porém, que a mãe do exequente vem a falecer em Janeiro de 2021;
• Apresentado a pagamento, o referido cheque não foi pago na data do vencimento (2-06-2021) nem posteriormente pelo executado, apesar de diversas vezes, instado a fazê-lo.
Convidado a aperfeiçoar o requerimento executivo, no sentido de indicar se a invocada doação foi, ou não, feita por conta da legítima, bem como justificar a razão pela qual alega que o executado CC é solidariamente responsável pela dívida exequenda, o exequente veio esclarecer que este executado é responsável na qualidade de herdeiro da sacadora do cheque e, tendo a entrega deste constituído uma doação manual, não há lugar à colação.
Em 13/3/2022, foi proferido despacho de indeferimento liminar do requerimento executivo com os seguintes fundamentos:
• A herança de BB não tinha personalidade judiciária
• O executado CC era parte ilegítima por não era obrigado em face do título executivo;
• Mostrando-se que a herança de BB ainda estava por partilhar e constituindo a doação que o exequente alega ter-lhe sido feita passivo dessa herança, é na partilha que a doação deverá ser considerada por forma a apurar como há-de ser composto o quinhão de cada um dos herdeiros».
O exequente não se conformou com a decisão e interpôs recurso de apelação. O tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão proferido em 17-11-2022, revogou o despacho recorrido, na parte em que indeferiu liminarmente a execução quanto ao executado CC, e determinou que o mesmo fosse substituído por outro que convidasse o exequente a apresentar novo requerimento executivo, onde (…) alegasse todos os factos constitutivos da sucessão e identificasse todos os sucessores.
Na 1.ª instância, o exequente foi convidado a apresentar novo requerimento executivo, onde «alegue todos os factos constitutivos da sucessão e identifique todos os sucessores da falecida obrigada cambiária, por forma a suprir a ilegitimidade (plural) detetada por preterição de litisconsórcio necessário passivo».
O exequente correspondeu ao convite, indicando como herdeiros da falecida BB, ele próprio e CC, e os legatários, instituídos por testamento, os netos da mesma, DD, EE, FF e GG.
Por despacho de 24-2-2023, foi determinado que DD, EE, FF e GG passassem a constar como executados [ao lado do já executado CC] e se procedesse à citação dos mesmos.
No presente apenso, vieram os executados CC, GG, EE e FF deduzir oposição à execução, mediante embargos, pedindo:
a. Se julgasse procedente a invocada exceção de ilegitimidade passiva por preterição de litisconsórcio necessário, absolvendo os embargantes da instância;
b. Caso assim não se entendesse, se julgasse procedente a invocada exceção de incompetência absoluta em razão da matéria, absolvendo os Embargantes da instância;
c. Caso assim não se entendesse, se julgasse procedente a invocada exceção de prescrição do direito de ação, absolvendo os Embargantes do pedido;
d. Caso assim não se entendesse, se julgasse procedente a invocada exceção de inexistência de título executivo, absolvendo os Embargantes da instância;
e. Caso assim não se entendessem se julgassem os presentes embargos procedentes, por provados, sendo os embargantes absolvidos do pedido e, em consequência, ser determinada a extinção da presente execução.
O exequente contestou, pedindo se julgassem improcedentes os embargos.
Findos os articulados, foi proferida sentença que decidiu:
1. Julgar improcedente a excepção de incompetência em razão da matéria e a excepção de ilegitimidade passiva, fundada em preterição de litisconsórcio necessário;
2. Julgar extinta a execução por a obrigação exequenda ser ilíquida e não poder ser determinada no processo executivo.
Apelação
O exequente/embargado não se conformou e interpôs recurso de apelação, pedindo se revogasse a sentença e substituísse a mesma por decisão a julgar improcedentes os embargos e a determinar a prossecução dos termos normais da execução.
Na resposta, os executados/embargantes requereram a ampliação do âmbito do recurso, no sentido de o tribunal de recurso conhecer dos fundamentos dos embargos em que ficaram vencidos:
• Ilegitimidade dos executados por preterição de litisconsórcio necessário;
• Incompetência do tribunal em razão da matéria.
Arguiram ainda a nulidade da sentença por omissão de pronúncia quanto às seguintes questões:
• Inexistência de título executivo com força cambiária;
• Prescrição do direito de acção;
• Inexistência de título executivo (cheque) enquanto mero quirógrafo.
O tribunal da Relação, por acórdão proferido em 5-11-2024, julgou a apelação e a ampliação do objecto do recurso parcialmente procedentes e, em consequência:
a. Confirmou a decisão recorrida, na parte em que julgou improcedente a excepção de incompetência absoluta do tribunal;
b. Declarou nula a decisão recorrida, na parte em que omitiu o conhecimento da excepção de falta de título executivo;
c. Supriu aquela nulidade, julgando aquela excepção improcedente;
d. Confirmou a decisão recorrida, na parte em que julgou improcedente a excepção de preterição de litisconsórcio necessário;
e. Revogou a decisão recorrida, na parte em que julgou procedente a excepção de iliquidez da obrigação exequenda e que, com esse fundamento, determinou a procedência dos embargos e a extinção da execução, a qual substituiu por outra que:
• Julgou improcedente aquela excepção;
• Determinou o prosseguimento dos embargos, com a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, tendente à densificação dos factos invocados como constitutivos da relação subjacente ao cheque exequendo, nos termos supra expostos, seguindo-se os ulteriores termos processuais, com oportuna produção de prova, para conhecimento das restantes questões suscitadas.
Revista:
Os embargantes/executados não se conformaram e interpuseram recurso de revista dos seguintes segmentos decisórios do acórdão:
• Do que confirmou a decisão da 1.ª instância de julgar improcedente a excepção de incompetência do tribunal em razão da matéria;
• Do que julgou improcedentes a excepção da falta de título executivo e a de prescrição do direito de ação.
O Exm.º Desembargador relator admitiu a revista contra o segmento do acórdão que confirmou a decisão da 1.ª instância de julgar improcedente a excepção de incompetência em razão da matéria, mas não a admitiu contra o segmento que decidiu sobre a excepção de prescrição da obrigação cambiária e sobre a excepção de inexistência de título executivo.
Os fundamentos do recurso, na parte em que foi admitido, expostos nas conclusões foram os seguintes:
A. A apreciação do tribunal a quo traduz-se numa errada e simplista perceção da relação jurídica apresentada nos autos, a qual se reveste de maior complexidade fáctica e jurídica e cujas respetivas consequências não foram tidas em conta como seria legalmente exigível.
B. No caso concreto estamos perante uma execução intentada pelo apelado (na qualidade de alegado credor da herança da sua falecida mãe) apenas contra os apelantes (na qualidade de herdeiros/legatários da referida herança) para cobrança de uma alegada dívida da herança que ainda se encontra indivisa.
C. O alegado crédito é expressamente contestado pelos restantes herdeiros/legatários quer na sua efetiva existência quer na validade da alegada constituição, não constando o ora apelado nos autos como herdeiro/executado/responsável pela dívida da herança ao lado dos apelantes.
D. É no âmbito do processo de inventário que deverão ser relacionados os bens que constituem o objeto da sucessão e as dívidas da herança, existindo procedimentos específicos – nomeadamente o previsto no artigo 1106.º do CPC - para os casos de ocorrência de divergências entre os interessados acerca do reconhecimento de determinada dívida, sendo aí atribuídos poderes ao juiz responsável pelo processo para apreciar a respetiva existência e montante e decidir pela venda de bens da herança caso não haja acordo entre os interessados.
E. A própria doação alegada pelo Apelado, nos termos em que é invocada, não se encontra dispensada de colação, razão pela qual o respetivo montante deve obrigatoriamente ser relacionado em sede de processo de inventário.
F. A falta/ausência de qualquer um dos herdeiros em sede de processo executivo (na parte passiva da relação jurídica) impedirá sempre a penhora e venda efetiva de bens da herança indivisa para efeitos de liquidação da dívida peticionada pois não se encontram representados em juízo todos os interessados para que tal venda possa ocorrer e o juiz do processo executivo não tem competência para decidir da venda de bens da herança nesses termos.
G. Tratando-se de situação e decisões que terão obrigatoriamente repercussões no ativo da herança e nos respetivos quinhões hereditários dos Executados/interessados, os juízos de execução são materialmente incompetentes para a respetiva apreciação e decisão de tais questões, sendo a competência para o efeito conferida em sede de processo de inventário e verificando-se assim a invocada exceção de incompetência em razão da matéria, que deverá ser julgada procedente e conduzir à absolvição dos Apelantes da instância.
H. Subsidiariamente e caso se entenda que - ao invés da existência de uma situação de incompetência em razão da matéria - os factos objeto dos autos configuram uma situação de erro na forma de processo, o Tribunal de recurso, não se encontrando vinculado à qualificação jurídica apresentada pelas partes deverá decidir em conformidade, decretando a procedência da respetiva exceção e revogando o respetivo segmento do acórdão recorrido em conformidade, substituindo-o por outro que absolva os Apelantes da instância.
O exequente embargado respondeu. Na resposta, começou por alegar a inadmissibilidade da revista interposto contra o segmento do acórdão que confirmou a decisão da 1.ª instância de julgar improcedente a excepção de incompetência em razão da matéria. Subsidiariamente, sustentaram a improcedência do recurso.
Saber se o acórdão recorrido é de revogar e de substituir por decisão que julgue que o tribunal onde foi proposta a execução – juízo de execução de ... do tribunal judicial da comarca de Lisboa Oeste - é incompetente em razão da matéria para o conhecimento das questões suscitadas no processo.
Questão suscitada pela resposta:
Saber se o acórdão recorrido, na parte em que confirmou a decisão proferida na 1.ª instância de julgar improcedente a excepção de incompetência em razão da matéria, não admite recurso.
Do ponto de vista lógico, a 1.ª questão a que importa responder é a suscitada na resposta ao recurso.
O recorrido sustenta que o recurso de revista com fundamento na violação das regras de competência em razão da matéria interposto pelos recorrentes seria admissível se coubesse na previsão do n.º 1 do artigo 671.º do CPC, ou seja, se tivesse posto termo ao processo, absolvendo da instância os recorrentes ou algum deles quanto a pedido ou reconvenção deduzidos, o que não se verifica.
Salvo o devido respeito, não assiste razão ao recorrido. Vejamos.
O acórdão sob recurso foi proferido em sede de embargos de executado. Logo, é-lhe aplicável o regime da revista previsto no artigo 854.º do CPC. Conforme decorre da parte inicial do preceito, este regime não prejudica a aplicação dos casos em que é sempre admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, ou seja, não afasta a aplicação do n.º 2 do artigo 629.º do CPC. Um dos casos em que o recurso é sempre admissível é quando tiver por fundamento a violação das regras de competência em razão da matéria. E é admissível quer o acórdão da Relação caiba na hipótese do n.º 1 do artigo 671.º do CPC quer não caiba.
Pelo exposto, o recurso é de admitir.
O acórdão sob recurso confirmou a decisão da 1.ª instância de julgar improcedente a excepção de incompetência, em razão da matéria, dizendo que o juízo de execução é competente para a execução que corre como processo principal (e consequentemente para os respectivos embargos) já que a mesma tem evidente natureza cível: cobrança de um crédito decorrente da celebração de um invocado contrato de doação, com base num documento apresentado como título executivo.
Os recorrentes, mantendo os argumentos já invocados nos embargos, sustentam a incompetência com base na seguinte linha argumentativa:
• Estamos perante uma execução intentada pelo apelado (na qualidade de alegado credor da herança da sua falecida mãe) apenas contra os apelantes (na qualidade de herdeiros/legatários da referida herança) para cobrança de uma alegada dívida da herança que ainda se encontra indivisa.
• O alegado crédito é expressamente contestado pelos restantes herdeiros/legatários quer na sua efetiva existência quer na validade da alegada constituição;
• Que é no âmbito do processo de inventário que devem ser relacionados os bens que fazem parte da herança e as dívidas da herança, existindo no referido processo procedimentos específicos no caso de existirem divergências entre os interessados acerca do reconhecimento da dívida;
• A doação alegada pelo embargante está sujeita a colação, razão pela qual deve ser relacionada em sede de inventário;
• Tratando-se de situação e decisões que têm repercussões no activo da herança e nas quotas hereditárias dos executados, os juízos de execução são materialmente incompetentes para a respectiva decisão, sendo a competência conferida ao processo de inventário.
O recurso é de julgar improcedente.
Nele está em causa uma questão de competência em razão da matéria.
Na resposta a esta questão, importa tomar em conta os seguintes pressupostos.
No plano dos factos, a realidade que releva para aferir da competência do tribunal em razão da matéria é constituída pelo pedido e pela causa de pedir, nos termos em que foram configurados pelo autor na petição, ou, nos casos das execuções, pelos termos do requerimento executivo. Este pressuposto tem apoio no n.º 1 do artigo 91.º do CPC, ao dispor que “o tribunal competente para a acção é também competente para o conhecimento dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa”. Com efeito, ao dispor nestes termos, o preceito aponta no sentido que é por referência à acção – ou seja, por referência ao acto com que se propõe a acção, que é a petição inicial (n.º 1 do artigo 259.º do CPC) – que se determina a competência do tribunal.
Este entendimento é afirmado pelo Tribunal de Conflitos e pelo Supremo Tribunal de Justiça, como o atestam, entre outros, os seguintes acórdãos: o acórdão do Tribunal de Conflitos proferido em 11-12-2024, no processo n.º 024/22, o acórdão do STJ proferido em 9-11-2017, no processo n.º 8214/13.7TBVNG-A.P1.S1., o acórdão do STJ proferido em 11-05-2022, no processo n.º 627/19.7T8CNT.C1.S1., o acórdão do STJ proferido em 17-10-2024, no processo n.º 407/19.0T8PRG.G1.S1. e o acórdão do STJ de 30-01-2025, no processo n.º 25047/22.2T8LSB.L1.S1, todos publicados em www.dgsi.pt.
Em sede de direito, importa tomar em conta, na decisão sobre a questão da competência em razão da matéria, as leis de organização judiciária, dado que resulta do n.º 2 do artigo 40.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26-08-2013 e do artigo 65.º do CPC que a competência em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de 1.ª instância, é determinada pelas leis de organização judiciária.
Laborando com base nestes pressupostos, é de afirmar a competência do tribunal onde foi instaurada a execução.
Em primeiro lugar, tendo por referência o acto de propositura da acção (requerimento executivo) temos uma acção executiva instaurada pelo exequente para obter dos executados o pagamento de uma quantia determinada (200 000 euros).
Considerando as espécies de execuções consoante o seu fim, a que se refere o n.º 6 do artigo 10.º do CPC, estamos perante execução para pagamento de quantia certa, regulado pelas disposições gerais e comuns do processo de execução (artigos 712.º a 723.º do Código de Processo Civil) e pelas disposições próprias do processo ordinário de execução para pagamento de quantia certa (artigos 724.º a 854.º do CPC).
Em segundo lugar, nos termos do n.º 1 do artigo 129.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26-08-2013) compete aos juízos de execução exercer, no âmbito dos processos de execução de natureza cível, as competências previstas no Código de Processo Civil.
As questões que, segundo os recorrentes, o litigio suscita e que não são da competência dos juízos de execução – que era no processo de inventário que deviam ser relacionadas as dívidas da herança; que a doação alegada pelo exequente não estava dispensada de colação, razão pela qual devia ser relacionada no inventário; que a execução para cumprimento da alegada doação tem repercussões no activo da herança e nas quotas hereditárias dos executados, devendo ser apreciadas em sede de inventário – são questões que eles suscitaram nos embargos, como meios de oposição à execução.
Sucede que, como decorre do n.º 1 do artigo 91.º do CPC, não são as questões incidentais levantadas nos embargos nem as suscitadas como fundamento de oposição à execução que determinam a competência do tribunal em razão da matéria.
Pelo exposto, é de manter o acórdão recorrido na parte em que confirmou a decisão da 1.ª instância de julgar improcedente a excepção de incompetência dos juízos de execução, em razão da matéria.
Para a hipótese de não proceder a pretensão de incompetência do tribunal em razão da matéria, os recorrentes pediram se julgasse que o processo de execução não era o próprio para os factos em questão nos autos; o processo próprio seria o de inventário.
Não cabe a este tribunal conhecer desta pretensão subsidiária. A revista foi admitida ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC, na parte em que dispõe que é sempre admissível recurso com fundamento na violação das regras de competência em razão da matéria.
Nestes casos, o fundamento do recurso delimita também o seu objecto. Tal significa que o tribunal de recurso pronuncia-se apenas sobre a questão de saber se a decisão recorrida violou as regras de competência em razão da matéria. Mais nenhuma outra questão será conhecida pelo tribunal de recurso. Cita-se em abono desta interpretação, a título exemplificativo, o acórdão do STJ proferido em 28-01-2021, no processo n.º 4129/19.3T8FNC.L1.S1, publicado em www.dgsu.pt.
Nega-se a revista e, em consequência, mantém-se o acórdão recorrido.
Responsabilidade quanto a custas:
Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de os recorrentes terem ficado vencidos no recurso, condenam-se os mesmos nas respectivas custas.
Lisboa, 13 de Março de 2025
Relator: Emídio Santos
1.º Adjunto: Carlos Portela
2.ª Adjunta: Isabel Salgado