I - Provando-se que a autora incorreu em erro ao adquirir um imóvel, pois desconhecia que o plano de pormenor do PDM do município previa a demolição da construção nele existente, é irrelevante para a decisão sobre a anulação do negócio com fundamento em erro sobre o objecto do negócio, a decisão, no processo, da questão da legalidade/ilegalidade do plano de pormenor.
II – E é irrelevante porque a declaração de ilegalidade de nada serviria à autora/compradora, pois não a poderia opor ao Município, nem lhe daria a possibilidade de proceder à remodelação da construção, visto que é aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal que cabe a competência para fiscalizar a legalidade do plano de pormenor.
Pediu:
a. Se anulasse o negócio de compra e venda, celebrado em 03 de Agosto de 2020, entre a autora e a 1.ª ré, com fundamento em erro-vício da vontade, na modalidade de erro sobre o objecto do negócio, nos termos do disposto no artigos 251.º e 247.º, ambos do Código Civil;
b. Se ordenasse a restituição de tudo quanto houvesse sido prestado, nos termos do disposto no art.º 289.º do C.C., sendo a 1.ª ré condenada a restituir à autora a quantia de 650 000,00 €;
c. Caso assim não se entendesse, a anulação parcial do negócio com redução de preço, devendo a 1.ª ré restituir à autora, a quantia de 640 000,00 € (650.000,00 € - 10.000,00 €).
d. A condenação da 1.ª ré a indemnizar a autora, pelo valor de 10.369,90 €, pelos danos patrimoniais que a sua actuação lhe causou;
e. A condenação dos 2.º e 3.ª réus, de forma solidária, nos mesmos termos da 1.ª ré, por terem contribuído, de forma essencial para a existência de erro na formação da vontade da autora;
f. Juros de mora que se vencerem desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Para o efeito alegou, em síntese, que, em 3 de Agosto de 2020, comprou à 1.ª ré, pelo preço de 650 000 euros, o prédio urbano destinado a habitação, situado em ... de Troia, concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número dois mil e vinte e quatro da freguesia de ..., inscrito na matriz da freguesia de ... sob o artigo ..02, convencida da hipótese de reconstruir a edificação nele existente, quando, na realidade, tal reconstrução está sujeita a demolição, realidade que os réus omitiram à autora de forma consciente e voluntária.
Os réus contestaram, pedindo se julgasse improcedente a acção.
Após a citação dos réus, o processo sofreu as seguintes modificações objectivas:
• Mediante requerimento da 3.ª ré, a Seguradoras Unidas, SA, actualmente “Generali Seguros, S.A.” foi admitida a intervir nos autos como associada da 3.ª ré. Citada, contestou a acção, pedindo se julgasse a mesma improcedente;
• A ré AA faleceu, tendo sido habilitado como seu sucessor, para com ele prosseguirem os termos da demanda, o réu BB.
O processo prosseguiu os seus termos e após a realização da audiência final foi proferida sentença que julgou improcedente a acção e, em consequência, absolveu os réus dos pedidos. Julgou ainda improcedente o pedido de condenação da autora, como litigante de má-fé, que havia sido deduzido pela 1.ª e pelo 2.º réu.
Apelação
A autora não se conformou com a sentença e dela interpôs recurso de apelação, pedindo a sua substituição por decisão que condenasse os réus nos termos peticionados.
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão proferido em 11-07-2024, julgou parcialmente procedente a apelação e, em consequência:
a. Anulou o negócio de compra e venda, celebrado em 03/08/2020, com fundamento em erro-vício da vontade, na modalidade de erro sobre o objecto do negócio, com a consequente restituição de tudo quanto houver sido prestado, condenando o sucessor habilitado de AA – o réu BB – a restituir à autora a quantia de 650 000,00 € (seiscentos e cinquenta mil euros), acrescida dos juros de mora que se vencessem desde a citação até efectivo e integral pagamento;
b. Condenou os réus BB, por si e na qualidade de herdeiro habilitado, I..., Lda e Generali Seguros, SA a pagar solidariamente à autora, AG Property, a quantia de 10.369,90 € (dez mil e trezentos e sessenta e nove euros e noventa cêntimos) pelos danos patrimoniais que a sua actuação lhe causou, acrescido dos juros de mora que se vencessem desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Revista:
O réu BB e a interveniente GENERALI SEGUROS, S.A. não se conformaram e interpuseram recurso de revista, pedindo a revogação do acórdão e a manutenção da decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância.
O recurso interposto pela interveniente GENERALI SEGUROS não foi admitido.
Os fundamentos do recurso interposto pelo réu BB, expostos nas conclusões, foram os seguintes:
a. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 46º da Lei 62/2013, de 26 de Agosto e 682.º do Código de Processo Civil, o Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de revista que, salvo nos casos excepcionais contemplados no nº 1 al. b) e nº 3 do artigo 674º do CPC, aplica definitivamente o regime jurídico aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido, consistindo as excepções referidas “na ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova”, como dispõe o nº 3 do artigo 674º do C.P.C. (prova vinculada);
b. Na apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal recorrido violou regras essenciais de Direito probatório, designadamente o artigo 574.º, n.º 2, do CPC e o artigo 342.º do CC;
c. Não se trata de sindicar a apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto em si, mas sim avaliar se o Tribunal da Relação respeitou as normas de Direito probatório aplicáveis no exercício da sua função;
d. O tribunal a quo alterou a decisão proferida em primeira instância e com o seguinte sentido:
• 36) Nas negociações estabelecidas antes da realização da escritura de compra e venda acima referida, também participaram os advogados da Autora e da primeira Ré, tendo sido fornecidas às advogadas da Autora a documentação referente ao imóvel em causa nos termos referidos em 10.
• 37) Foram efectuados contactos telefónicos entre as advogadas da Autora e da Ré.
e. E aditou aos factos provados os seguintes:
• 46) Pese embora todos os Réus tivessem conhecimento da sujeição a demolição da construção existente no Imóvel, segundo o entendimento da Câmara Municipal, mesmo depois de o Advogado Dr. CC os ter alertado que esta situação deveria ser transmitida aos futuros interessados na compra, tal não aconteceu;
• 47) Os Réus omitiram, propositadamente, à Autora a sujeição a demolição da edificação existente no imóvel, para que esta fechasse o negócio rapidamente sem antes conhecer o teor do referido processo camarário – Processo POU n.º .00/19;
• 48) A Autora solicitou ao Arq. DD que elaborasse o projecto de remodelação do Imóvel, com os respectivos estudos preliminares, ignorando a real situação do imóvel;
• 49) A Autora apenas teve conhecimento de que estava prevista a demolição da edificação quando o seu Arq. DD, já no âmbito do projecto de remodelação, se deslocou à Câmara Municipal de Grândola, em 21 de Outubro de 2020, e tomou conhecimento do historial do Processo POU n.º .00/19.
f. Na contestação o recorrente tomou posição frontal e divergente da versão da recorrida (autora), corroborada por prova documental: a dos números 1 a 4;
g. A recorrida (autora), em articulado de resposta, fez uma impugnação genérica dos factos essenciais alegados pela recorrente em sua defesa;
h. A 31 de Maio de 2022, a recorrente junta ao citius com a notificação dos ilustres mandatários das outras partes a decisão do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados a autorizar a junção dos aludidos documentos 1 a 4 da contestação, por não estarem em causa comunicações abrangidas pelo dever de sigilo.
i. Estes documentos – 1 a 4 – reproduzem não só comunicações entre os mandatários da recorrente e da recorrida (autora) como foram o veículo para habilitar os Advogados da recorrida (autora) com uma panóplia de documentos que vão além dos mencionados no ponto 10 dos factos provados;
j. A aqui recorrida (autora) uma vez mais não tomou posição sobre os documentos e têm de se concluir, segundo regras legais probatórias,
• Que não é admitida prova testemunhal, quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por meio com força probatória plena. (nº 2 do artigo 393);
• Que o documento particular não impugnado pela parte contrária beneficia de força probatória plena quanto às declarações nele constantes atribuídas ao seu autor, cfr. art.ºs 374.º n.º 1, 376.º n.º 1 e 368.º, todos do C. Civil.
k. Donde que, tendo o tribunal a quo alterado o facto do ponto 36 com este sentido “tendo sido fornecidas às advogadas da Autora a documentação referente ao imóvel em causa nos termos referidos em 10”; o ponto 37 que exclui a factualidade as dada em primeira instância “que serviram para trocar impressões sobre a intenção do município de Grândola de demolir o prédio e a necessidade de esclarecer o comprador de que esta edilidade faria de tudo ao seu alcance para boicotar a venda; e aditado aos factos provados os alinhados sob os novos pontos 46 a 49, manifestamente viola os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova;
l. Por exemplo, na comunicação datada de 8 de Julho de 2020, pelas 15:54 horas (documento 1) foram anexados não só os documentos mencionados no ponto 10 dos factos provados, mas também outros (incluindo vários ficheiros jpg “PDM”, “PUT – condicionantes”, “PUT, publicação”; PUT – zonamento”). Esta comunicação foi acusada de recepção pelas Advogadas da recorrida, como se pode apurar pela resposta desse mesmo dia e as 15:17horas e no dia 13 de Julho, pelas 13:14 (doc 3 da contestação), e pela solicitação de um contacto telefónico para esclarecimentos.
m. Nesta mesma comunicação das 15:54 horas, foram identificados os documentos que deveriam ser analisados, sendo solicitado às Advogadas da recorrida que informassem sobre o prazo necessário para tal análise. Na comunicação do dia 10 de Julho de 2020, pelas 23:39 horas (doc 3), as advogadas da recorrida foram informadas que a exclusividade do negócio estava assegurada por 15 dias e, na comunicação das 13:14 do dia 13 de Julho (doc 3), manifestaram o propósito “de obter alguns esclarecimentos”;
n. Estas comunicações eletrónicas entre Advogados são detalhadamente descritas nos artigos 4º, 5º, 6º, 16º, 17º, 26º, 28º, 29º, 30º e 31º com o alcance dado pelo recorrente e não foram devidamente impugnadas, com o alcance exigido pela Lei;
o. De acordo com o disposto no artigo 368.º do Código Civil, as reproduções fotográficas ou cinematográficas, os registos fonográficos e, de um modo geral, quaisquer outras reproduções mecânicas de factos ou de coisas fazem prova plena dos factos e das coisas que representam, desde que a parte contra quem os documentos são apresentados não impugne a sua exactidão;
p. Assim, em conformidade com as regras legais probatórias, não tendo estes documentos sido impugnados, possuem força probatória plena;
q. Na presente acção, a recorrida (autora) arguiu ter sido enganada, argumenta que não foi devidamente informada sobre as veladas ameaças de demolição por parte da Câmara de Gandola e que foi pressionada para fechar o negócio.
r. A livre apreciação da prova não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes (artigo 607º nº 5 do CPC);
s. Os Senhores Desembargadores da Relação de Évora, em vez de tirarem conclusões parciais, baseando-se exclusivamente nos depoimentos das testemunhas apresentadas pela recorrida (autora), com o devido respeito, deveriam ter conferido maior crédito e fiabilidade à Meritíssima Juíza do tribunal de primeira instância, que formou a sua convicção, necessariamente, com base em elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, e em factores que não são racionalmente demonstráveis. A alusão aos princípios da imediação e da oralidade permite uma apreciação ética dos depoimentos - saber se quem depõe tem a consciência de que está a dizer a verdade– algo que não está ao alcance do tribunal ad quem (Acs. do STJ de 19.05.2005 e de 23-04-2009 dgsi.pt., p.09P0114);
t. Embora a decisão da Relação sobre a matéria de facto seja, em principio, é irrecorrível, não podemos deixar de expressar a nossa perplexidade perante a parcialidade do raciocínio dos Senhores Desembargadores, que conferiram foros de seriedade e credibilidade ao depoimento da testemunha Dra. EE, ao ponto de considerarem fiável a explicação dada pela Senhora testemunha Advogada (Diligencia_..._2023-05-09_15-29-07) quando a rotações 00:11:20 refere que “Não, até porque o acórdão, a única coisa relevante relativamente a este acórdão, a nosso ver, era que era a questão da usucapião do direito de propriedade da dona AA do imóvel”;
u. De acordo com o Ac. do STJ de.20.05.2010, dgsi.pt p. 73/2002.S1 «Quando o pedido de reapreciação da prova se baseie em elementos de características subjectivas, a respectiva sindicação tem de ser exercida com o máximo cuidado e só deve o tribunal de 2.ª instância alterar os factos incorporados em registos fonográficos quando efectivamente se convença, com base em elementos lógicos ou objectivos e com uma margem de segurança muito elevada, que houve errada decisão na 1.ª instância, por ser ilógica a resposta dada em face dos depoimentos prestados ou por ser formal ou materialmente impossível, por não ter qualquer suporte para ela.»;
v. Não basta a mera ausência de impugnação ou a existência de uma impugnação genérica para que um facto seja considerado assente e provado nos autos; é também necessário que esse facto seja relevante para a decisão da causa, isto é, que se trate de um facto essencial e não meramente instrumental. Está é a conclusão que se extrai do artigo 574.º, n.º 2, do CPC à luz do artigo 5.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do CPC que reforça esta conclusão
w. Querendo obstar ao efeito cominatório consagrado no n.º 2 do artigo 574.º, ex vi artigo 587.º do CPC, a recorrida (autora) deveria ter-se defendido de forma conclusiva quanto aos factos alegados pela recorrente que reputa como não verdadeiros, o que teria de ter sido feito de forma tempestiva e de modo processualmente adequado;
x. Bem andou o tribunal de primeira instância ao não considerar como provado o facto constitutivo do direito da recorrida (autora), especialmente após a contraprova apresentada pela recorrente (que, repete-se não foi impugnada), em conformidade com o disposto no artigo 346º, in fine, do Código Civil;
y. O STJ deve conhecer da questão de saber se estes factos devem ser admitidos por acordo das partes, não podendo, como tal, ser alterados pelo Tribunal da Relação. Caso contrário, estar-se-ia a configurar uma violação de lei processual expressa (art.º 574.º, nº 2, do CPC), sendo que, nos termos da segunda parte do art.º 674.º, n.º 3, do mesmo diploma, na revista pode ser invocado qualquer erro de direito na fixação dos factos;
z. As presunções judiciais, embora não sejam autênticos meios de prova, face à lei, podem ser sindicados por este Venerando STJ, que poderá avaliar se a Relação fez um uso correcto dessas presunções, de acordo com a Lei e a jurisprudência dominante. Trata-se de matéria de direito, sendo permitida a sindicância do uso das presunções judiciais fora do condicionalismo imposto pelo artigo 349º do Código Civil.
aa. A argamassa sobre a qual a Relação fundamentou a alteração da matéria de facto (juízo que está excluído de sindicância nesta sede) assenta na confiança depositada pelos Senhores Desembargadores nas declarações da referida advogada EE. Ou seja, partem de uma presunção, baseada numa regra da experiência, para concluírem que o autor negociou em erro, numa falsa representação que lhe foi ocultada pela falecida ré AA, conclusão esta que não é coerente com o desenvolvimento lógico da matéria de facto dada como provada pelo tribunal de primeira instância.
bb. O ónus da prova de que a recorrida (autora) foi informada dos intentos que o município de Grândola tinha relativamente ao imóvel incumbia à habilitada 1º ré, e foi feita essa demonstração que a Relação fez vista grossa;
cc. A Relação, baseada “na bondade das declarações da advogada EE” (a mandatária que acompanhou a recorrida (autora) durante as negociações e que estabeleceu contacto telefónico com o signatário e advogado da falecida AA, como decorre dos documentos 1 a 4 da contestação), e nas regras da experiência do que habitual ocorre em situações semelhantes, revogou a sentença com fundamento numa representação distorcida da realidade ou na ignorância de circunstâncias de facto de ou direito que influenciaram a decisão da recorrida (autora), ocultadas pela a ré AA.
dd. Recorrendo aquelas deduções – ou seja as regras da experiência e do normal acontecer em casos semelhantes – um julgador imparcial teria questionado, naquele caso concreto, as declarações da advogada que participou nas negociações, quando confrontadas com as ilações que se retiram da prova documental (documento 1 a 4 da contestação), incluído os documentos que foram partilhados com a mandatária da autora e anexados, bem como a defesa por excepção, não impugnada pela recorrida (autora). Assim, teria decidido como a Meritíssima Juíza do Tribunal de Primeira Instância. Teria indagado quais os documentos que instruem uma compra e venda, o razão da inclusão de outros documentos adicionais, e, tendo estes sido partilhados com a mandatária do comprador, qual seria a atitude de um mandatário diligente ao ser confrontado com um acórdão do STJ que aborda e toma posição sobre a situação pré-existente perante o normativo urbanístico e ambiental posterior, acompanhado de uma certidão camarária negativa acerca da “demolição”, PDM, PUC e demais planos para a zona de troia?
ee. O que qualquer Advogado diligente teria feito seria interpelar e solicitar esclarecimentos ao remetente. Foi precisamente o que a mandatária da recorrida fez, como se depreende das comunicações após a rececpçao dos documentos (doc 3 – dia 13 de julho 2020, pelas 13:14h).
ff. E os esclarecimentos que solicitou, fazendo fé nas explicações dadas pela mandatária da recorrida na audiência de julgamento, quando inquirida (Diligencia_..._2023-05-09_15-29-07) quando a rotações 00:11:20 refere que “Não, até porque o acórdão, a única coisa relevante relativamente a este acórdão, a nosso ver, era que era a questão da usucapião do direito de propriedade da dona AA do imóvel”) são realmente credíveis, considerado que a mandatária estava munida de uma certidão predial do prédio que titulava a aquisição da propriedade a favor da ré AA através da. AP. 57 de 2019/09/17?
gg. Com base nas mesmas regras, uma pessoa normal nas condições da recorrida (investidor imobiliário com vários negócio na península de Troia) que estava representado por advogado quando confrontado com aquela documentação diversa, alguma dispensável para instruir a escritura de compra e venda - ainda que se admita, por mera hipótese de raciocínio, que não tenha sido informada de que o município pretendia demolir o imóvel -, não teria consultado os planos disponíveis no site da Camara Municipal de Grândola, informação essa que é publica;
hh. A essencialidade do erro também tem de ser encarada sob o aspecto subjectivo do errante, por não ter tomado todas as medidas razoáveis para evitar o erro, sendo que a sua negligência ou falta de cuidado inviabilizam a anulação do negócio (artigos 247º e 251º do Código Civil).
ii. Igualmente, socorrendo-nos das mesmas regras, uma pessoa normal e nas condições pessoais da 1ª ré e do seu mandatário, acreditaria que tal informação sobre a “demolição” e as intenções do município não teria sido transmitida às mandatárias da recorrida (autora), especialmente quando, meses antes e sem saber quem seria o potencial interessado, foi feita uma recomendação expressa através da comunicação das 13 horas do dia 8 de Maio de 2020 (documento 16 da pi) enviada ao mediador imobiliário, que, cerca de dois meses depois, apresentou o comprador?
jj. O depoimento do Sr. FF (o mediador) não sugere que tal informação tenha sido ocultada em conluio com a 1ª ré, ou que esta tivesse conhecimento de que a “recomendação” tinha sido omitida pela mediadora quando o seu mandatário entabula negociações com a recorrida.
kk. Dado que a presunção judicial se estrutura entre um facto conhecido ou inicial - inferência lógica ou máximas da experiência – e um facto desconhecido ou final, o nexo lógico é o elemento decisivo da presunção. A inferência do ponto de vista lógico implica uma relação entre premissas e conclusão, conexão esta que se concretiza mediante a aplicação de regras e princípios (regras da experiência) que determinam a validade dessa relação e conclusão.
ll. Portanto, é pertinente questionar se esta fé cega (ilógica e violadora do disposto nos artigos 349º e 351º do Código Civil) é suficiente para que a Relação presuma e conclua que a recorrida (autora) foi enganada, quando, pela aplicação das regras de Direito probatório, supra denunciadas, se impõe decisão distinta?
mm. O Tribunal da Relação, no exercício da competência que lhe é atribuída para a fixação da matéria de facto, violou a lei processual, por erro de interpretação e aplicação das normas constantes do artigo 662.º, n.º 1 e 2 do CPC, o que se inscreve ainda no âmbito de sindicância do recurso de revista, em conformidade com o disposto no artigo 674.º, n.º 1, al. b) e nº 3 do CPC;
nn. Se o raciocínio do acórdão da Relação quanto à subsunção dos factos ao direito foi correctamente compreendido, o recorrente entende que as normas jurídicas foram interpretadas e aplicadas incorrectamente.
oo. Segundo a Relação:
• “verifica-se que, ao contratualizar a compra, a Autora agiu com uma falsa representação da realidade, estando convicta que estava a adquirir um imóvel com uma casa que poderia remodelar quando, na realidade, adquiriu um prédio sujeito a demolição, tal como resulta do plano de pormenor do Plano Director Municipal de Grândola” e constrói a partir desta premissa a tese de que a recorrida (autora) foi ardilosamente enganada, conclusão que se revela infundada.
• O plano de pormenor para a península de Troia prevê a “demolição”.
pp. Um dos documentos partilhados à recorrida (autora) – facto assente sob o nº 10 e documento 8 da pi - tratou-se de um acórdão destes STJ que teve por objecto o imóvel destes autos e se decidiu, como não podia deixar de o ser, que “Quanto à alegada violação das normas legais relativas à Reserva Ecológica Nacional (REN), tendo em conta que a construção ocorreu em 1956, facto de ter sido provado que "A construção referida está instalada em zona de REN (Reserva Ecológica Nacional), delimitada no município de Grândola pela RCM n o 70/2000, de 01.07. " (facto provado 69) não permite, sem mais, dar como verificada tal violação, uma vez que a Reserva Ecológica Nacional foi criada apenas em 1983 (pelo Decreto-Lei no 321/83, de 5 de Julho), que o perímetro da REN no concelho de Grândola foi definido apenas em 2000 e que a restrição a ocupação, uso e transformação do solo da REN apenas foi estabelecida em 2008 (pelo Decreto-Lei no 166/2008, de 22 de Agosto). Em suma, sendo a data da construção da parcela dos autos anterior às normas legais em causa, conclui-se pela não verificação da alegada violação das normas legais relativas à Reserva Ecológica Nacional.”
qq. A respeito desta concreta situação da garantia da existência activa e passiva, o artigo 60º do RJEU é esclarecedor: 1 – As edificações construídas ao abrigo do direito anterior e as utilizações respectivas não são afectadas por normas legais e regulamentares supervenientes.
rr. Encerra esta disposição legal o princípio do “tempus regit actum” acolhida no acordão do STJ supramencionado proferido na acção que envolveu a 1ª ré e a sociedade Soberana e que recaiu sobre a titularidade da propriedade do prédio transmitido à autora.
ss. Neste sentido, entre outra e abundante jurisprudência dos nossos tribunais superiores, citam-se os seguintes acórdãos:
• Ac. STA (Proc 0291/04) de 01.03.2005, relator Alberto Augusto Oliveira;
• Ac do TCA Sul (Proc 03667/08) de 13.03.2009, relator Rui Pereira;
• AC. do TCA Sul (Proc 03006/07) de 17.06.2010, relator Cristina dos Santos;
• Ac TCA Sul (Proc 07022/10) de 20.09.2012, relator Cristina dos Santos;
• Ac TCA Norte (Proc. 01801/06.1BEVIS) de 17.04.2015, relator Rogério Paulo da Costa Martins;
• Ac- TCA Sul (Proc 1119/08.5BELSB) de 04.07.2020, relator José Gomes Correia;
tt. Fez incorrecta aplicação do Direito a Relação ao concluir “que não se trata apenas de uma impossibilidade de realizar obras de ampliação, mas antes de uma casa que, segundo o plano de pormenor do plano director municipal, teria de ser demolida e cujas obras de recuperação não poderiam ser autorizadas pela Câmara Municipal”.
uu. Os Planos Municipais de Ordenamento do Território, de que os PDM constituem uma espécie, “são instrumentos de natureza regulamentar, aprovados pelos municípios”, ou seja, normativa, e como regulamentos que são, não projectam os seus efeitos para o passado, ou seja, não têm efeitos retroactivos e devem conformar-se com normas de valor hierárquico superior, nomeadamente as que, à semelhança do disposto no artigo 60º nº 1 do RJUE, estabelecem que “as edificações construídas ao abrigo do direito anterior e as utilizações respectivas não são afectadas por normas legais e regulamentares supervenientes”.
vv. É essencial para a demolição que se esteja perante uma edificação ilegal, o que não se verifica no caso do prédio vendido à recorrida (autora).
ww. A construção do prédio em questão é anterior ao ano de 1963 (factos assentes sob o nº 10 e documento 9 da pi.) e o PDM, REN e os demais planos ambientais e urbanísticos para a zona são posteriores, tal como é posterior a exigência de licenciamento das edificações pelo município de Grândola.
xx. É do conhecimento oficioso – e não poderia ser ignorado pela Relação - que o primeiro plano urbanístico e ambiental para o território onde se implanta a o prédio dos autos data de 2000; que a REN (Reserva Ecológica Nacional foi criada apenas em 1983 pelo Decreto-Lei no 321 / 83, de 5 de Julho); que foi delimitada no município de Grândola pela RCM n o 70/2000, de 01.Julho e que a restrição à ocupação, uso e transformação do solo da REN apenas foi estabelecida em 2008 (pelo Decreto-Lei no 166/2008, de 22 de Agosto).
yy. Trata-se de uma consagração do princípio da irretroatividade das normas jurídicas, previsto no artigo 12.º do Código Civil e reforçado no artigo 18.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa,
zz. Em abstracto, quando haja que prosseguir o interesse público, qualquer prédio pode ser objecto de demolição, mas no quadro de uma expropriação.
aaa. O prédio dos autos, tendo sido construído antes de qualquer plano urbanístico e ambiental, só pode, dentro desse quadro legal, ser demolido se os planos assumirem claramente um carácter expropriativo, implicando o desencadear do dispositivo indemnizatório do respectivo titular, nos termos do disposto no artigo 171º do RJGIT (Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial).
bbb. Os planos em questão, contudo, não têm essa vertente expropriativa. Qualquer medida que extravase este quadro legal é ilegal.
ccc. Os Planos ambientais e Municipais têm “natureza regulamentar”, normativa, e como regulamentos que são, não projectam os seus efeitos para o passado, ou seja, não têm efeitos retroactivos e, consequentemente, as situações jurídicas consolidadas à data da entrada em vigor dos planos diretores municipais e normativos ambientais não são afectadas, beneficiando da garantia do existente nas vertentes passiva e activa – cfr. artº 60º nºs. 1 e 2 do RJUE.
ddd. Denuncia o recorrente o erro de julgamento de direito nesta vertente em virtude da Relação não ter excecionado a aplicação ao caso do princípio tempus regit actum, que consagra o princípio da irretroatividade das normas jurídicas, em manifesta violação do disposto nos artigos 60º nº1 do RJUE, artigo 12.º do Código Civil e reforçado no artigo 18.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
A autora respondeu ao recurso, sustentando a manutenção da decisão recorrida. Os fundamentos da resposta expostos nas conclusões foram os seguintes:
1. O Recorrente BB começa o seu recurso por tentar equivocar o Tribunal quanto à sua qualidade neste processo, mas cumpre antes de mais esclarecer que o mesmo não está no processo apenas pela sua qualidade de herdeiro da falecida Ré AA, mas por si próprio, uma vez que foi demandando e condenado enquanto tal pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
2. O Recorrente pretende que este Tribunal reaprecie a matéria de facto apurada pelo Tribunal da Relação, o que é inadmissível, pois não estamos perante qualquer dos casos excepcionais previstos nos artigos 682.º, 674.º, 3 CPC.
3. Alega que tal possibilidade de o STJ reapreciar a matéria de facto assenta na violação do ónus da prova, uma vez que a Autora/Recorrida não impugnou a factualidade vertida nos arts. 4.º, 5.º, 6.º, 8.º, 15.º, 16.º a 23.º, 26.º, 28.º a 32.º da contestação do Réu/Recorrente e o Tribunal a quo não teve isso em conta.
4. Acontece que, estamos perante a resposta à Contestação, num caso onde a Réplica não era admissível, pelo que, desde logo, não se aplica o ónus da impugnação especificada, previsto no artigo 578.º, n.º 1 CPC, não tendo assim qualquer efeito cominatório a não impugnação especificada por parte da Ré (nesse sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, Processo n.º 19815/19.0T8PRT.P1, de 05/23/2022).
5. De todo o modo, a verdade é que a Autora/Recorrida respondeu à Contestação, defendendo-se da litigância de má-fé peticionada pelos Recorrentes, onde se pronunciou também sobre os factos e documentos juntos pelos RR juntos com o referido articulado (vd. artigos 11.º a 42.º da resposta à contestação), pelo que, dúvidas não restam de que em momento algum a Autora, ora recorrida, aceitou os factos e os documentos apresentados pelos RR na contestação.
6. Acrescenta ainda o Recorrente que mais adiante no processo, em concreto, em 31.05.2022, veio juntar aos autos a autorização da Ordem dos Advogados para a junção dos documentos que havia juntado com a Contestação (docs. 1 a 4) e que mais uma vez, a Autora não tomou posição sobre os mesmos.
7. Acontece que, nenhum destes documentos (docs. 1 a 3) contém a informação que os vendedores esconderam da Autora, ou seja, a existência de uma área onde se prevê a demolição por parte da Câmara Municipal das construções ali existentes.
8. Essa informação consta apenas do Plano de Pormenor e não do PDM, ou seja, não consta de nenhum dos documentos remetidos pelo mandatário dos RR. à mandatária da Autora nos tais e-mails juntos com a Contestação (ponto 23 dos factos provados).
9. Pelo que, na verdade, acaba por ser uma falsa questão a de saber se a Autora/Recorrida aceitou ou não o teor e a validade de tal correspondência, pois os documentos juntos pelos RR. não são susceptíveis de provar os factos alegados na Contestação, uma vez que deles não resulta que tenha sido transmitida à mandatária da Autora a informação de que a área em questão se encontrava abrangida por um Plano de Pormenor que prevê a demolição de todas as construções ali existentes
10. Assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora decidiu alterar, e bem, o facto dado como provado no ponto 36, retirando-se a menção incorrecta de que haviam sido fornecidas às advogadas da Autora a documentação referente ao Imóvel e também os esclarecimentos acima referidos em 35.
11. A Recorrida o que pôs em causa, pretensão atendida pelo Tribunal a quo, foi que os RR. lhe tenham fornecido os esclarecimentos referidos em 35 e não a documentação referente ao Imóvel, da qual não constava o Plano de Pormenor aprovado para a área em questão.
12. E quais são esses esclarecimentos que foram omitidos da compradora? Os constantes de um e-mail enviado pelo mandatário do Réu ao próprio cliente e constante do ponto 35 dos factos provados, onde de forma expressa este alerta para a necessidade dos futuros compradores serem alertados para a verdadeira situação do Imóvel: “(…). À revelia deste enquadramento legal e do Ac. de revista os poderes políticos institucionalizados – movidos por interesses pouco claros, seguramente em comunhão com os da S..., Lda – insistem de forma infundada e ilegal que a construção viola aquele plano e é para demolir. Na minha modesta opinião, e com respeito por entendimento diverso, quem comprar o prédio deve ter conhecimento destes fait divers e preparar-se para uma briga com o município (instigado pela S..., Lda) que, no final, não passará de meros arrufos de políticos ressabiados. Sendo certo que a conta final das despesas com processos e advogados, seguramente, será arcada pelo município.
13. Acontece que, em momento algum, esses esclarecimentos essenciais para o que se discute na presente demanda resultavam dos e-mails ou documentos juntos pelos RR. na Contestação, nem dos mesmos resultava que tal informação tivesse sido transmitida à Recorrida, que só teve conhecimento dos mesmos através de um email enviado à mandatária da Recorrida por FF, em 20 de Janeiro de 2021, às 14:25, na sequência de um telefonema mantido entre ambos (sendo que, a escritura de compra e venda foi outorgada a 03 de Agosto de 2020, ou seja, seis meses antes).
14. Pelo que não existiu por parte do Tribunal a quo qualquer violação das normas legais na apreciação da prova, desde logo, porque a posição da Autora/Recorrida sempre foi e será a mesma – porque corresponde à verdade dos factos: afirmar que nunca foi remetida, nem lhe foi dado conhecimento (quer pessoal, quer telefonicamente), nem à Autora, nem às suas mandatárias, através do envio de documentos ou transmissão de informações, da real situação do Imóvel, ou seja, que o mesmo está implantado numa zona sujeita a demolição, onde nenhuma obra de remodelação virá a ser aprovada pela Câmara Municipal de Grândola, cfr. atestou Arq. GG no seu depoimento (minuto 00:16:22.0 - 00:16:43.0).
15. Ora, não tendo o Tribunal da Relação violado a força plena de qualquer meio de prova, a sua actuação regida pelo art. 662.º, n.º 1, do CPC é insindicável em sede de revista, nos termos conjugados dos arts. 662.º, n.º 4, e 674.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPC.
16. Mas mesmo que este Tribunal entendesse que deveria intervir na apreciação da matéria de facto, o que apenas se concede a benefício de raciocínio, a verdade é que nada deveria ser alterado, porquanto é totalmente adequada e correcta a análise crítica feita pelo Tribunal da Relação de Évora à prova produzida em Julgamento e existente no processo, uma vez que a Recorrida fez prova inequívoca de que os Recorrentes, de forma consciente e propositada, omitiram à Recorrente informações essenciais acerca do Imóvel, que eram do seu conhecimento (essencialmente, que o mesmo se encontra numa zona abrangida pelo Plano de Pormenor aprovado, onde vem prevista a sua demolição), com o propósito evidente de celebrarem um negócio altamente rentável que, de outra forma, nunca teria sido possível.
17. Não é defensável considerar que o erro foi imputável à Autora/Recorrida porque mesmo que conseguisse retirar essa informação do site da Câmara Municipal de Grândola – facto que não foi dado como provado – tal não inviabilizaria o erro e a má fé e intenção de enganar por parte dos vendedores, porquanto tal erro decorre precisamente do facto de ter sido enviado às mandatárias da Autora informação parcial e propositadamente indutora de erro (certidão de não demolição, que apenas significa que no momento em questão não se mostrava pendente uma ordem de demolição ou uma demolição voluntária, como os vendedores bem sabiam e por isso solicitaram à Câmara a emissão deste documento).
18. Ou seja, o Recorrente BB, não só foi informado pela Câmara Municipal de Grândola acerca da sujeição a demolição do imóvel, como, caso tivesse dúvidas acerca da pertinência desta informação, o que apenas se concede a mero benefício de raciocínio, uma vez que o Recorrente BB tinha noção que “perdeu” o anterior interessado no imóvel justamente por esse motivo, o seu mandatário esclareceu-o, alertou-o, de que essa informação deveria ser fornecida a futuros interessados.
19. O Recorrente BB invoca que um dos documentos partilhados no processo negocial foi um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que deu a conhecer a situação do Imóvel. Com este argumento, o Recorrente BB está a tentar “atirar areia para os olhos” do Tribunal.
20. O referido acórdão aborda a questão da alegada violação do regime da Reserva Ecológica Nacional, que nada tem que ver com o Plano de Pormenor, que prevê a demolição do imóvel em apreço (cfr. Depoimento GG [00:26:14.5]).
21. Invoca o Recorrente BB o princípio da garantia do existente previsto no artigo 60.º do Regime Jurídico da Edificação e Urbanização (“RJUE”), mas não lhe assiste mais uma vez razão, porquanto a garantia do existente só é admissível de ser invocada se os planos urbanísticos (posteriores) nada disserem em sentido contrário (Nesse sentido, escreve FERNANDA PAULA OLIVEIRA, MARIA JOSÉ CASTANHEIRA NEVES, DULCE LOPES, “Regime Jurídico da Urbanização e Edificação Comentado”, 4.ª edição, Almedina, 2016, págs. 461 e 462).
22. Face ao exposto, prevendo o Plano de Pormenor a demolição do imóvel – cfr. facto Provado 23, não merece qualquer acolhimento a invocação do regime do artigo 60.º do RJUE e, nessa medida, o rol de jurisprudência que o Recorrente BB indica nas suas alegações de recurso.
23. Atento o exposto, está igualmente errada a asserção do Recorrente BB de que “[é] essencial para a demolição que se esteja perante uma edificação ilegal.”, uma vez que a demolição pode estar prevista num plano urbanístico em relação a imóveis / edificações legais, como ocorre no caso em apreço, ao abrigo da liberdade de planeamento, prevista no n.º 4 do artigo 65.º da Constituição da República Portuguesa. 2
24. No presente caso, ao contrário do alegado pelo Recorrente BB, estamos na presença do que a doutrina designa de “expropriações do plano”, sem prejuízo de o bem permanecer na titularidade do seu proprietário, porque estamos perante um sacrifício que tem efeito equivalente a uma expropriação – cfr. artigo 17.º, n.º 3, da Lei n.º 31/2014, de 30 de maio (Lei de bases gerais da política pública de solos, de ordenamento do território e de urbanismo).
25. No entanto, independentemente do direito a indemnização, o pressuposto para a aquisição do imóvel pela Recorrida era o seu uso e fruição e não o recebimento de uma indemnização após a demolição, até porque tendo a Recorrida adquirido o Imóvel por um valor muito elevado (650.000,00€), determinado em exclusivo pela sua localização singular, qualquer indemnização que lhe possa ser atribuída será de valor irrisório, por estarmos na presença de uma construção em madeira, antiga, de fraca qualidade arquitetónica e conforto e de reduzidas dimensões.
26. Motivo pelo qual andou bem o Acórdão recorrido, que deve ser integralmente mantido, por não merecer a sua decisão e fundamentação qualquer reparo.
• Saber se, na decisão relativa à matéria de facto, o acórdão recorrido violou o artigo 574.º, n.º 2, do CPC, o artigo 342.º do CC, e os artigos 374.º, n.º 1, 376.º e 368.º, do CPC e as normas constantes dos artigos 662.º, n.º 1 e 2, do mesmo diploma;
• Saber se o acórdão recorrido, ao anular o contrato de compra e venda com fundamento em erro sobre o objecto do negócio, violou o disposto nos artigos 60.º, n.º 1, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, o artigo 12.º do Código Civil e o artigo 18.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
Provados:
1. A Autora é uma sociedade comercial constituída ao abrigo da Lei Francesa, que tem desenvolvido alguns negócios imobiliários em Portugal e que é representada pelo seu gerente único Sr. HH, também de nacionalidade francesa.
2. A 1.ª Ré AA foi proprietária do prédio urbano destinado a habitação, situado em ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..24 da freguesia do ..., inscrito na matriz da freguesia de ... sob o artigo ..02, com o valor patrimonial de 30.690,00 €.
3. O 2.º réu, BB, é sobrinho da 1.ª ré e apresentou-se ao longo do processo negocial de alienação do imóvel acima referido, como seu procurador.
4. A 3.ª ré é uma sociedade de mediação imobiliária que intermediou o negócio objecto dos presentes autos, e que se apresenta como uma sociedade de intermediação imobiliária de imóveis de luxo.
5. A Autora já havia investido na área imobiliária em Portugal com intermediação da 3.ª ré, entidade que julgava credível, que lhe havia dado a conhecer boas oportunidades de negócio, e com quem estabeleceu uma relação de confiança.
6. No âmbito da sua actividade comercial, a 3.ª ré deu a conhecer à autora, na pessoa do Sr. HH, que o imóvel referido nos autos estava à venda.
7. Com efeito, no dia 3 de Julho de 2020, o Sr. HH recebeu um e-mail do Sr. FF, agente imobiliário da “I..., Lda”, pessoa que já conhecia anteriormente como colaborador da referida agência, informando-o de um óptimo negócio na ..., que descreveu como uma “propriedade fantástica e única”.
8. Segundo o próprio panfleto publicitário que foi disponibilizado ao Sr. HH, tratava-se de uma casa para reconstrução numa localização privilegiada “Trata-se de uma casa para reconstrução, num lugar privilegiado, na ... – Península de Troia, localizada em cima da Praia. Tem uma área de terreno de 1000 m2 e uma área de construção de 69,79 m2. Composta por 3 quartos, 1 wc, cozinha e sala. Está implantada numa zona de cota de terreno elevada com uma vista que abrange toda a ... de Tróia”.
9. Parecendo-lhe uma boa oportunidade de negócio, o Sr. HH deslocou-se ao local manifestando o seu interesse pelo imóvel, tendo ficado agendada uma visita ao mesmo “com a presença do proprietário”.
10. De seguida, logo no dia 6 de Julho de 2020, foram remetidos por email enviado pelo Sr. FF à Autora os documentos que se seguem, e que segundo o próprio lhe permitiriam celebrar o contrato promessa de compra e venda: 1. Caderneta Predial 2. Sentença do Supremo tribunal que conclui que não são violadas normas legais relativas à Reserva Ecológica Natural. 3. Certidão da Câmara Municipal de Grândola, certificando que não existe processo de demolição. 4. Certidão da Câmara Municipal de Grândola, confirmando a dispensa de licença de utilização, uma vez que foi construído antes de 1963. 5. Certidão Permanente.
11. Tais documentos foram enviados ao Sr. FF pelo 2.º réu BB.
12. A primeira visita ao imóvel decorreu no dia 7 de Julho de 2020, com a presença do Sr. FF e do Sr. BB.
13. Coube então ao Sr. BB esclarecer todas as questões que lhe foram colocadas pelo interessado, designadamente quanto aos acessos ao local, condicionantes do mesmo e legalidade e possibilidade de reconstrução do referido imóvel.
14. O segundo réu, BB, na qualidade de representante e procurador da primeira ré, sua tia, informou o Sr. HH, de que não poderiam demolir a casa sem submeterem um projeto na Câmara Municipal de Grândola e que poderiam fazer obras de beneficiação, alteração interior e poderiam/deveriam substituir a cobertura, devido ao facto de esta ser em telha de fibrocimento tendo em todo o caso que informar a Câmara.
15. Tendo o Sr. HH mostrado interesse na aquisição do imóvel, o Sr. FF, nesse mesmo dia, enviou um e-mail à advogada, tendo em vista a formalização do negócio.
16. Pelo advogado do Sr. BB foi concedido o prazo de 15 dias para que o Sr. HH decidisse se pretendia ou não adquirir o imóvel pelo preço de 650.000,00 € (seiscentos e cinquenta mil euros).
17. Entretanto, o Sr. HH contactou também o Arq. DD, a quem explicou as obras que pretendia realizar, solicitando que o mesmo se deslocasse ao local para conhecer o imóvel e dar o seu parecer quanto às obras pretendidas.
18. Para análise do imóvel a ser adquirido, os advogados da autora tiveram acesso à documentação anteriormente remetida por e-mail (e supra mencionada).
19. O Sr. FF enviou vários e-mails ao Sr. HH pedindo uma resposta da autora relativamente à aquisição do imóvel, sob pena de perder o negócio, uma vez que segundo os proprietários havia outro interessado na compra do Imóvel.
20. Na sequência do que foi agendada a escritura de compra e venda.
21. A qual teve lugar no dia 3 de Agosto de 2020, tendo a autora adquirido o imóvel pelo preço acordado e pago de imediato, de 650.000,00 € (seiscentos e cinquenta mil euros), mediante a entrega à 1.ª Ré de dois cheques sacados sobre o “Banco Santander Totta, SA”, com os n.ºs ........46 e ........45, respectivamente no valor de 455.000,00 € (quatrocentos e cinquenta e cinco mil euros) e 195.000,00 € (cento e noventa e cinco mil euros).
22. Desde 03 de Agosto de 2020, o Arq. DD iniciou o estudo do imóvel e a elaboração de projetos que fossem de encontro ao pretendido pela Autora.
23. Quando em 21 de Outubro de 2020, o Arq. DD foi reunir com a Chefe de Divisão de Planeamento e Urbanismo para obter informação sobre o tipo de obras que podiam ser realizadas no imóvel, e quais os procedimentos a adoptar, foi informado de que no Plano de Pormenor da área onde se situa a edificação está prevista a sua demolição.
24. Com efeito, e conforme resulta da certidão do Processo Camarário POU n.º .00/19, em momento anterior ao negócio celebrado com a Autora, existiu outro interessado, o Dr. II, na compra do imóvel, que depois de ter tomado conhecimento da situação do mesmo, desistiu da referida aquisição.
25. Em 24 de Setembro de 2019, no âmbito dessa anterior negociação, o solicitador JJ, em representação da proprietária e do seu sobrinho, 1.ª e 2.º Réus, enviou um e-mail para a Câmara Municipal de Grândola a solicitar a emissão de certidão que confirmasse a dispensa da licença de utilização referente ao imóvel, por ser anterior a 1963.
26. Em 23 de Dezembro de 2019 é emitida a Certidão n.º 120/2019, que atesta que a construção é anterior a 1963.
27. Em 14 de Janeiro 2020, a fls. do Processo POU n.º .00/19, encontra-se um e-mail interno, onde se apura acerca do exercício do direito de preferência por parte da Câmara Municipal de Grândola, sendo que o referido e-mail contém uma referência manuscrita com o seguinte teor: “Ao Sr. Presidente, Em resposta à dúvida colocada, informo que segundo o PUT a edificação em causa terá que ser objeto de demolição. Proponho que se informe CRP/Casa Pronta em conformidade. (Assinatura) 20.01.2020”
28. No seguimento dessa informação camarária, em 23 de Janeiro 2020, a Câmara Municipal de Grândola enviou um e-mail para a “C...”, colocando em cópia o escritório de advogados que representava o promitente comprador, assim como o solicitador JJ, representante da proprietária e do seu sobrinho, 1.ª e 2.º Réus, no qual é dada informação expressa de que a edificação em causa terá que ser objecto de demolição.
29. Reagindo a essa informação, o dito solicitador enviou um e-mail à Câmara Municipal de Grândola em 24 de Janeiro de 2020, no qual anexou o Acórdão do STJ (também remetido à Autora e junto aos presentes autos), tendo a Câmara de imediato respondido que a indicação que o acórdão remetido em nada contende com a necessidade de demolição da edificação em virtude do PP.
30. Em 6 de Fevereiro de 2020, a fls. do Processo POU n.º .00/19, o promitente comprador, Dr. II, enviou um e-mail para a Câmara Municipal de Grândola questionando a informação dada acerca da demolição do Imóvel – em que copia o 2.º Réu, BB, com o e-mail ....
31. Em 17 de Fevereiro de 2020, o solicitador JJ procedeu ao levantamento na Câmara Municipal de Grândola da Certidão n.º 18/20, com o seguinte teor: i) Despacho de 17/01/2020 não se pretende exercer direito de preferência; ii) Info técnica de 20/01/2020 – informa-se que a edificação em causa terá de ser objecto de demolição e manda informar a Casa Pronta.
32. Consta ainda do Processo POU n.º .00/19, a fls. 156 e ss., um parecer jurídico elaborado em 28 de Abril de 2020, pelos serviços da Câmara Municipal de Grândola, que conclui que a construção existente no imóvel está sujeita a demolição.
33. O referido parecer foi notificado ao escritório de advogados P..., Lda (que representava o anterior interessado na aquisição do imóvel, o Dr. II) através do ofício n.º ..21/20 de 19/06.
34. É no seguimento deste parecer jurídico e de toda a informação anterior existente no Processo POU n.º .00/19 que surge a Certidão n.º 57/20, datada de 4 de Junho 2020, e emitida a pedido do solicitador representante da 1.ª e 2.º réus, a certificar que não existe nenhum processo de demolição nos nomes constantes no POU n.º .00/19
35. Em 08/05/2020, num e-mail dirigido pelo advogado Dr. CC ao 2.º réu BB, em resposta a um pedido de esclarecimentos formulado por este, foi transmitido o seguinte: “Caro Arqto. BB, (…) No curso da acção judicial foi suscitada a questão de a implantação do prédio ofender as normas legais relativas à reserva ecológica nacional, mas o STJ pôs termo a essa querela, concluindo que a construção é anterior a qualquer plano e não viola normas legais relativas à REN. Em reforço do decidido no acórdão de revista, os planos em vigor identificam a parcela e classificam-na como área de ocupação e enquadramento. À revelia deste enquadramento legal e do Ac. de revista os poderes políticos institucionalizados – movidos por interesses pouco claros, seguramente em comunhão com os da S..., Lda – insistem de forma infundada e ilegal que a construção viola aquele plano e é para demolir. Na minha modesta opinião, e com respeito por entendimento diverso, quem comprar o prédio deve ter conhecimento destes fait divers e preparar-se para uma briga com o município (instigado pela S..., Lda) que, no final, não passará de meros arrufos de políticos ressabiados. Sendo certo que a conta final das despesas com processos e advogados, seguramente, será arcada pelo município. E digo “seguramente” porque em todas as disputas legais existe o risco associado ao julgador, não obstante o enquadramento legal apontar no sentido da legalidade da construção”.
36. Nas negociações estabelecidas antes da realização da escritura de compra e venda acima referida, também participaram os advogados da autora e da primeira ré, tendo sido fornecidas às advogadas da autora a documentação referente ao imóvel em causa nos termos referidos em 10.
37. Foram efectuados contactos telefónicos entre as advogadas da Autora e da Ré.
38. Antes da escritura de compra e venda referida nos autos, já a Autora havia adquirido outros imóveis na península de Troia.
39. Para a Autora foi essencial a existência de uma casa (construção) no imóvel para a formação da sua vontade em contratar.
40. Os Réus souberam da intenção da autora remodelar a casa, tendo inclusivamente sido acompanhada de Arquitecto em pelo menos uma das visitas efectuadas.
41. A Autora solicitou a avaliação do Imóvel à firma “Pr..., Lda”, concluindo-se no respectivo Relatório de Avaliação, datado de 27/11/2020, que “o valor real e corrente numa situação normal de mercado, tendo em conta o uso actual do mesmo”: V = 715.000,00 € (setecentos e quinze mil euros); e que “o valor real e corrente numa situação normal de mercado, excluindo a possibilidade de qualquer uso urbano”: V = 10.000,00 € (dez mil euros).
42. Por tais serviços, a autora teve de pagar à firma “Pr..., Lda”, a quantia de 1.869,90 € (mil oitocentos e sessenta e nove euros e noventa cêntimos).
43. Pelos serviços prestados pelo Arq. DD para elaboração do projecto de remodelação (incluindo os trabalhos preliminares e preparatórios) e análise da sujeição a demolição, a autora pagou-lhe, em Janeiro de 2021, a quantia de 8.500,00 € (oito mil e quinhentos euros).
44. Em Abril do ano de 2017, foi celebrado o contrato de seguro de grupo do ramo “Responsabilidade Civil de Mediadoras Imobiliárias”, titulado pela apólice n.º .....94, no âmbito do qual é Tomadora do Seguro a “APEMIP – Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal” (NIF .......19), ao qual a aqui terceira ré, “I..., Lda”, aderiu em 06/04/2020, transferindo para a Interveniente “Generali Seguros, SA” o risco inerente à sua responsabilidade civil decorrente do incumprimento das normas previstas na Lei n.º 15/2013, de 08 de Fevereiro, dentro do âmbito e limites contratualmente fixados.
45. A partir daquela data, a Seguradora garantia “até ao limite do capital fixado nas Condições Particulares, as indemnizações que possam legalmente recair sobre o Segurado, por responsabilidade civil resultante dos danos patrimoniais que sejam causados aos clientes decorrentes exclusivamente de ações, omissões ou incumprimento das obrigações do Segurado no exercício profissional da atividade de mediação imobiliária, conforme definido na legislação em vigor”.
46. Pese embora todos os réus tivessem conhecimento da sujeição a demolição da construção existente no imóvel, segundo o entendimento da Câmara Municipal, mesmo depois de o Advogado Dr. CC os ter alertado que esta situação deveria ser transmitida aos futuros interessados na compra, tal não aconteceu.
47. Os réus omitiram propositadamente à autora a sujeição a demolição da edificação existente no imóvel, para que esta fechasse o negócio rapidamente sem antes conhecer o teor do referido processo camarário – Processo POU n.º .00/195.
48. A autora solicitou ao Arq. DD que elaborasse o projecto de remodelação do Imóvel, com os respectivos estudos preliminares, ignorando a real situação do imóvel.
49. aAutora apenas teve conhecimento de que estava prevista a demolição da edificação quando o seu Arq. DD, já no âmbito do projecto de remodelação, se deslocou à Câmara Municipal de Grândola, em 21 de Outubro de 2020, e tomou conhecimento do historial do Processo POU n.º .00/197.
Factos não provados:
a. Que os réus, aproveitando-se do facto de o Sr. HH ser de nacionalidade francesa, pressionaram-no, por intermédio do agente imobiliário, para tomar uma decisão final sem ter acesso a todos os elementos que lhe permitiriam de forma consciente e esclarecida tomar uma decisão acerca da aquisição do Imóvel.
A primeira questão é a de saber se o acórdão sob recurso, ao julgar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, violou o artigo 574.º, n.º 2, do CPC, o artigo 342.º do CC, e os artigos 374.º, n.º 1, 376.º e 368.º, do CPC, e as normas constantes dos artigos 662.º, n.º 1 e 2, do mesmo diploma.
A decisão de facto que está em causa foi a seguinte:
• Alteração do ponto número 36 dos factos provados, consistente em julgar não provado que, nas negociações estabelecidas antes da realização da escritura de compra e venda, tenham sido fornecidas às advogadas da autora os esclarecimentos referidos no ponto n.º 35, constantes do documento n.º 16 junto com a petição, que lhes havia sido enviado pela terceira ré;
• Alteração do ponto n.º 37 dos factos provados, que se traduziu na decisão de julgar não provado que os contactos telefónicos entre as advogadas da autora e da ré serviram para trocar impressões sobre a intenção do município de Grândola de demolir o prédio e a necessidade de esclarecer o comprador de que esta edilidade faria de tudo ao seu alcance para boicotar a venda;
• Alteração dos pontos números 1, 2, 4 e 5 dos factos não provados, passando a julgar-se provada tal matéria que consta dos pontos números 46 a 49.
Seguindo a ordem das conclusões, o recorrente começou por alegar que o tribunal da Relação, ao alterar a decisão de facto, violou os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova (conclusão K). Apesar de não indicar nesta conclusão quais os preceitos alegadamente violados, é de entender que se refere aos que regulam a prova documental, pois anteriormente (conclusão f) referiu-se à prova documental (documentos números 1 a 4) e aos artigos 374.º, n.º 1, 376.º, n.º 1 e 368.º, todos do Código, sendo que dois deles (os artigos 368.º e 376.º) se referem à força probatória de documentos.
Como o próprio recorrente reconhece logo na 1.ª conclusão, o Supremo Tribunal de Justiça, fora dos casos previstos na lei, apenas conhece de matéria de direito (artigo 46.º da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário) e segundo o n.º 2 do artigo 682.º do CPC, a decisão proferido pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo caso excepcional previsto no n.º 3 do artigo 674.º.
O caso excepcional previsto neste número compreende duas situações:
• Ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto;
• Ofensa de uma disposição expressa da lei que fixe a força de determinado meio de prova.
Socorrendo-nos das palavras de Alberto dos Reis, em anotação ao parágrafo segundo do artigo 722.º do CPC de 1939, cuja redacção é praticamente igual à da 2.ª parte do n.º 3 do artigo 674.º, “... as duas excepções previstas no parágrafo não constituem desvios da regra geral de que não é lícito ao Supremo Tribunal de Justiça conhecer de matéria de facto. Se atentarmos na natureza do erro cometido pela Relação nos casos apontados, havemos de reconhecer que se trata rigorosamente de erro de direito, e não de erro de facto. Há erro na fixação dos factos da causa; mas o erro traduz-se na violação de determinada norma jurídica. É, portanto, erro de direito” (Código de Processo Civil anotado Volume VI, Coimbra Editora, Limitada, 1981, páginas 30 e 31).
A alegação do recorrente remete-nos para a segunda hipótese, pois, na sua lógica argumentativa, ao alterar os pontos números 36 e 37, no sentido acima indicado, o tribunal da Relação desprezou a força probatória dos documentos 1 a 4, dado que eles provavam plenamente a realidade que o tribunal da Relação julgou não provado.
Este fundamento do recurso é de julgar improcedente.
Os documentos em causa são, à luz da dicotomia estabelecida no n.º 1 do artigo 363.º do CC, documentos particulares.
É de considerar exacta a alegação do recorrente de que a autoria deles não foi impugnada, como é de reputar exacta a alegação de que, segundo o n.º 1 do artigo 374.º do Código Civil, o documento particular cuja autoria seja reconhecida faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento (hipótese que não tem interesse para o caso dos autos).
Mas se estas alegações são exactas, já o não são os efeitos que delas retira o recorrente, ou seja, que tais documentos provavam plenamente os factos constantes dos pontos números 36 e 37 que a Relação julgou não provados. Vejamos.
Os factos que constavam dos pontos números 36 e 37, que a Relação julgou não provados, traduzem-se em declarações atribuídas aos advogados da ré dirigidas aos advogados da autora, antes da realização da escritura. Logo, para se poder afirmar que os documentos em causa provavam plenamente tais factos/declarações seria necessário que eles compreendessem precisamente as declarações dos advogados da ré mencionadas nos referidos pontos de facto. A verdade é que não há nos referidos documentos nenhuma declaração da autoria dos advogados da ré dirigida aos advogados da autora com o teor que foi julgado não provado. De resto, não se vê – e o recorrente não explica – como é que o documento n.º 4, que corresponde à cópia do bilhete de identidade de AA, prova plenamente os mencionados factos.
Improcede, pois, a alegação de que o tribunal da Relação, ao alterar a decisão de facto, violou preceitos reguladores da força probatória dos documentos.
A segunda linha argumentativa do recorrente contra a decisão relativa à matéria de facto é constituída pela alegação de que o tribunal da Relação, ao julgar não provados os mencionados factos violou o artigo 574.º, n.º 2, do CPC.
A lógica argumentativa do recorrente é a seguinte:
• Segundo o n.º 2 do artigo 574.º do CPC, consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados;
• Para obstar ao efeito cominatório previsto no n.º 2 do artigo 574.º do CPC, não bastava à recorrida uma impugnação genérica; devia ter-se defendido de forma conclusiva quanto aos factos alegados pela recorrente que reputa como não verdadeiros.
Esta argumentação não colhe.
Nos termos do artigo 574.º, n.º 2, do CPC, consideram-se admitidos por acordo os factos que forem impugnados, salvo estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito.
Segue-se daqui que os factos que o tribunal da Relação julgou não provados seriam de considerar admitidos por acordo se estivessem reunidas as seguintes condições:
• Se tivessem sido alegados pelo réu;
• Se a autora os não tivesse impugnado e também não estivessem em contradição com a posição da autora considerada no seu conjunto.
A primeira condição está reunida. Os réus AA e BB alegaram:
• Sob o artigo 6.º da contestação, que as advogadas do comprador tinham conhecimento da correspondência e dos esclarecimentos contidos no documento 16 da petição que lhes tinha sido já comunicado pela 3.ª ré;
• E sob o artigo 16.º que, quando o mandatário da vendedora (1ª ré) recebe do Sr. FF a comunicação que constitui o documento 2 desta contestação (a do dia 7 de Julho de 2020, pelas 16:23), já tinham antecedido 2 ou 3 telefonemas que serviram para trocar impressões sobre a intenção do município de Grândola de demolir o prédio e a necessidade de esclarecer o comprador de que esta edilidade faria de tudo ao seu alcance para boicotar a venda.
Falha, no entanto, a segunda. Com efeito, esta versão dos réus está em clara oposição com a que foi apresentada pela autora, na petição, consistente na alegação, sob o artigo 25.º, de que os réus omitiram propositadamente à autora a sujeição a demolição da edificação existente no imóvel, e na alegação, sob o artigo 59.º, que a autora apenas teve conhecimento de que estava prevista a demolição da edificação quando o seu arquitecto DD se deslocou à Câmara de Grândola, em 21 de Outubro de 2020 e tomou conhecimento do historial do Processo POU n.º .00/19.
Daí que a circunstância de a autora, na resposta à contestação, não ter tomado posição expressa sobre a alegação dos réus, feita nos artigos 6.º e 16.º da contestação, não tem o efeito cominatório pretendido pelo recorrente. De resto, não era sequer processualmente admissível a resposta a tal alegação visto que a defesa dos réus é de classificar como defesa por impugnação (1.ª parte do n.º 2 do artigo 571.º do CPC) e não é admissível resposta ou réplica para o autor se pronunciar sobre esta modalidade de defesa (artigo 3.º, n.º 4, interpretado a contrario, e artigo 584.º, n.º 1, ambos do CPC).
É, assim, de concluir que a matéria que figurava nos pontos números 36 e 37 e que o tribunal da Relação julgou não provada não era de considerar admitida por acordo. Logo, a decisão de julgá-la não provada não violou o artigo 574.º, n.º 2, do CPC.
Como não violou o artigo 342.º do CC, pois esta imputação baseia-se na alegação de que a 1.ª ré provou que a recorrida foi informada dos intentos que o Município de Grândola tinha em relação ao imóvel, mas a Relação ignorou-a (os termos do recurso são: “fez vista grossa), quando tal prova não foi feita. A realidade apurada foi a contrária, como decorre dos pontos 46, 47 e 49 dos factos considerados provados.
A terceira linha argumentativa da recorrente é constituída pela alegacão de que o tribunal da Relação violou por erro de interpretação e aplicação as normas dos artigos 662.º, n.º 1 e 2, do CPC. A coberto desta alegação, o que o recurso contém é uma crítica à decisão da Relação de, no julgamento da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, ter dado crédito à testemunha EE e desvalorizado a convicção do julgador da 1.ª instância. O recorrente apelida a decisão da Relação de violadora do disposto nos artigos 349.º e 351.º do Código Civil.
Este fundamento do recurso também está votado ao fracasso.
Quando o recorrente alega – como sucede no caso - que o tribunal da Relação deu crédito a uma testemunha, que não o merece, e que deveria ter “conferido maior crédito e fiabilidade à Meritíssima juíza do tribunal de 1.ª instância, que formou a sua convicção, necessariamente, com base em elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da prova, em factores que não são racionalmente demonstráveis” (conclusão s), o recorrente está a acusar o tribunal de ter incorrido em erro na apreciação da prova testemunhal.
Sucede que este meio de prova está sujeito à livre apreciação do tribunal (artigo 396.º do Código Civil) e o erro na apreciação de provas sujeita à livre apreciação do tribunal não pode ser obejcto de revista. É o que afirma a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 674.º do CPC.
Acresce, contra a imputação ao acórdão recorrido da violação do artigo 662.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC, que o erro na apreciação de prova sujeita à livre convicção do tribunal não tem qualquer relação com as alíneas do n.º 2, nem com o n.º 1, na parte em que atribui à Relação o poder de alterar a matéria de facto com base nos factos assentes ou num documento superveniente. Quando muito poderia colocar-se a hipótese de ter a ver com o poder de o tribunal da Relação alterar a decisão com base na prova produzida. Porém, nem com este segmento da norma tem relação, pois ele limita-se a prever o poder de o tribunal da Relação, reexaminando a prova produzida, alterar a decisão relativa à matéria de facto. Tal segmento não fornece qualquer indicação ao tribunal quanto ao sentido com que deve julgar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
A tese da recorrente é a de que a matéria de facto, tal como ela foi fixada pelo tribunal da Relação, não constituía base suficiente para a decisão de direito. No seu entender, a demolição da construção que existe no imóvel adquirido, prevista no plano de pormenor do PDM de Grândola é ilegal, pois contraria o artigo 60.º, n.º 1, do Regime Jurídico da urbanização e Edificação, artigo 12.º do Código Civil, e artigo 18.º, n.º 3 da Constituição.
Este fundamento do recurso também é de julgar improcedente.
Ao alegar no sentido acima exposto, o recorrente argumenta como se a decisão sobre a anulação do contrato de compra e venda, fundada no erro sobre o objecto do negócio, dependesse da resposta à questão de saber se o plano de pormenor do PDM de Grândola, na parte em que prevê a demolição da construção existente no imóvel comprado pela autora, ora recorrida, viola as disposições acima indicadas. Sucede que não depende. Com efeito, o erro que a autora invocou para fundamentar a anulação da compra e venda não foi o erro quanto à legalidade do plano de pormenor, na parte atrás referida. Foi o desconhecimento, aquando da celebração do contrato de compra e venda, em 3-08-2020, de que, no plano de pormenor do PDM de Grândola, estava prevista a demolição da construção existente no imóvel adquirido. E este desconhecimento provou-se como o atesta o ponto n.º 49 dos factos julgados provados, onde está afirmado que a autora apenas teve conhecimento de que estava prevista a demolição da edificação quando o seu Arq. DD, já no âmbito do projecto de remodelação, se deslocou à Câmara Municipal de Grândola, em 21 de Outubro de 2020, e tomou conhecimento do historial do Processo POU n.º .00/197. De resto, provou-se inclusive que os réus omitiram propositadamente à autora que a demolição do imóvel estava prevista no plano de pormenor (ponto n.º 47).
Perante este erro, as questões que se colocavam eram as seguintes:
• Saber se se estava perante um erro sobre o objecto do negócio, a que se refere o artigo 251.º do Código Civil;
• Saber, em caso de resposta afirmativa, se à luz de tal preceito, combinado com o artigo 247.º do Código Civil, estavam reunidas as condições para anular o negócio.
O acórdão respondeu afirmativamente a estas questões, em termos que não merecem censura.
Sobre a qualificação do erro:
Nas palavras de Ana Filipa Morais Antunes, que aqui seguimos, para efeitos do artigo 251.º do Código Civil, o erro é sobre o objecto quando “... se desconhece ou se representa erradamente dada coisa ou prestação na sua configuração objectiva, isto é, nas suas qualidades (características físicas ou jurídicas), identidade ou substância (vg. Cor, dimensão, localização, finalidade, atributos, entre outros índices. Numa palavra, o desconhecimento ou a falsa representação da realidade incide sobre elementos que influenciam o destino a dar ao objecto ou que interferem no valor objecto em si mesmo, designadamente, atentas as possibilidades de utilização projetadas...” (Comentário ao Código Civil Parte Geral, Universidade Católica Editora, página 596).
O desconhecimento de que a construção existente no imóvel estava sujeita a demolição cabe nesta noção de erro sobre o objecto, pois ele incide sobre um elemento que tem relação com o destino do imóvel adquirido e com o respectivo valor. Tem relação com o destino porque sujeição a demolição impedia a remodelação e o aproveitamento da construção dele existente. Tem relação com o valor, pois provou-se que o valor de mercado, tendo em conta o uso actual (uso como urbano) era de 715 000 euros, ao passo que o valor de mercado do mesmo imóvel, mas sem a possibilidade de qualquer uso urbano, era de 10 mil euros (ponto n.º 41).
Sobre a verificação das condições necessárias à anulação do negócio:
Decorre do artigo 251.º combinado com o artigo 247.º do CC Civil que o erro sobre o objecto do negócio tornava este anulável desde que se verificassem as seguintes condições:
• Essencialidade do erro, ou seja, a autora não adquiriria o imóvel se soubesse que o plano de pormenor previa a demolição da construção nele existente e que ela, autora, não poderia proceder à remodelação da casa aí edificada;
• Se o declaratário conhecesse ou não devesse ignorar a essencialidade para o declarante do elemento sobre que incidiu o erro (2.ª parte do artigo 247.º para onde remete o artigo 251.º) ou seja, a vendedora sabia ou não devia ignorar que a autora não teria adquirido o imóvel se soubesse que estava prevista, no plano de pormenor do PDM de Grândola, a demolição da casa nele existente e de que a não podia remodelar.
Esta realidade colhe-se nos pontos números 8, 39 e 40 dos factos provados, pois aí se afirma:
• Que, segundo o panfleto publicitário que foi disponibilizado ao gerente da autora, tratava-se de uma casa para reconstrução numa localização privilegiada (8);
• Que para a autora foi essencial a existência de uma casa (construção) no imóvel para a formação da sua vontade em contratar (39);
• Que os réus souberam da intenção da autora de remodelar a casa (ponto n.º 40).
Segue-se do exposto que a resposta à questão da legalidade/ilegalidade do plano de pormenor, na parte em que previa a demolição da casa existente no imóvel adquirido pela autora, não era necessária para decidir sobre a anulação do negócio com fundamento nos artigos 251.º e 247.º, ambos do Código Civil.
Contra esta conclusão não vale a alegação de que o tribunal devia pronunciar-se sobre a legalidade/ilegalidade do plano de pormenor, pois na hipótese de ser ilegal (na parte em que prevê a demolição da construção existente no imóvel), a autora teria possibilidade de a remodelar a casa existente no imóvel e dar-lhe o uso que pretendia quando a adquiriu.
Sucede que a declaração de ilegalidade de nada serviria à autora, pois não a poderia opor ao Município de Grândola, nem lhe daria a possibilidade de proceder à remodelação da construção existente no imóvel. E não a poderia opor porque, cabendo aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a competência para fiscalizar a legalidade do plano de pormenor (artigo 4.º, n.º 1, alínea b) do Estatuto dos Tribunais Administrativos Fiscais), a decisão sobre a legalidade do plano proferida neste processo não produziria efeitos fora dele. É o que resulta do n.º 2 do artigo 91.º e parte final do n.º 2 do artigo 92.º, ambos do Código de Processo Civil.
Daí que a ilegalidade do plano de pormenor que a recorrente quer ver declarada no presente processo é irrelevante para a decisão sobre a questão da anulação do negócio com fundamento em erro.
Mais: também seria irrelevante, para a resposta à questão da anulação com fundamento em erro, a decisão proferida na jurisdição administrativa e fiscal, a declarar a ilegalidade do plano de pormenor, depois de celebrada a compra. É que, socorrendo-nos mais uma vez das palavras de Ana Filipa Morais Antunes na obra supracitada, página 592, “... o erro-vício ... consiste no desconhecimento ou falsa representação de uma circunstância, de facto ou de direito, passada ou presente relativamente ao momento da emissão da declaração negocial...”. O erro diz respeito, pois, a circunstâncias anteriores ou contemporâneas da declaração negocial; não a circunstâncias posteriores.
Segue-se daqui que a realidade que relevava para aferir o erro invocado pela autora era a que existia na data em que ela celebrou o contrato de compra e venda e não a que resultasse de decisão proferida posteriormente na jurisdição administrativa e fiscal. Ora, naquela data, a realidade que se impunha à autora e que ela desconhecia era a constituída pelo plano de pormenor com a previsão de demolição da casa existente no imóvel e a impossibilidade de remodelar tal casa e de lhe dar um uso.
Pelo exposto, ao anular o contrato de compra e venda com fundamento em erro, o acórdão não violou as disposições indicadas pelo recorrente. De resto, não faz sequer sentido imputar-lhe tal violação, pois decorre das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 639.º do CPC que só tem sentido imputar à decisão a violação das normas que constituíram fundamento jurídico do que foi decidido e é isento de dúvida que as normas indicadas pelo recorrente nem foram aplicadas pelo acórdão como fundamento da decisão nem viram a sua aplicação recusada por ele.
Decisão:
Nega-se a revista e, em consequência, mantém-se o acórdão recorrido.
Responsabilidade quanto a custas:
Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e a circunstância de o recorrente ter ficado vencido no recurso, condena-se o mesmo nas respectivas custas.
Lisboa, 13 de Março de 2025
Relator: Emídio Santos
1.º Adjunto: Orlando dos Santos Nascimento
2.º Adjunta: Maria da Graça Trigo