ACIDENTE DE VIAÇÃO
CICLOMOTOR
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS FUTUROS
PRESSUPOSTOS
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Sumário


I.  Num quadro em que a lesada, com 14 anos, estudante, foi atribuído um défice funcional de 34 pontos por força das lesões sofridas, com incidência na zona maxo-facial, sem repercussão na actvidade escolar, tendo em conta a esperança média de vida e o salário médio mensal, afigura-se ajustado o montante de € 100. 000,00 para indemnizar o dano patrimonial futuro.
II. Atendendo a que esta indemnização é paga de uma só vez, permitindo ao beneficiário rentabilizá-la de imediato, o montante apurado deve ser, em princípio, reduzido de uma determinada percentagem – taxa de capitalização, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado, à custa alheia.

Texto Integral


Acordam os Juízes na 2ªsecção do Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. Da acção

AA, BB, por si e na qualidade de legais representantes da sua filha menor, CC, intentaram acção declarativa de condenação e processo comum, contra Seguradoras Unidas, S.A., actualmente, denominada Generali Seguros, S.A. pedindo a condenação da ré no pagamento: i) à A. CC a quantia de € 78.755,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a partir da citação e até integral pagamento, sem prejuízo da ampliação do pedido em função da prova a produzir, mormente a pericial; ii) aos AA. AA e BB a importância global de € 6.000,00.

Alegaram que em 06/04/2016, em ..., ocorreu um acidente de viação que envolveu o ciclomotor de matrícula ..-FN-.., conduzido por DD, e nele seguindo como passageira a menor CC, que em consequência, sofreu danos materiais e não patrimoniais, cuja indemnização nos termos do pedido reclamam da Ré, para a qual se encontrava transferida a responsabilidade civil na circulação do ciclomotor.

A Ré, na contestação, aceitou que o acidente ocorreu por despiste do ciclomotor e impugnou os restantes factos alegados na petição inicial quanto à dinâmica do acidente. Requereu a intervenção acessória provocada de DD, que foi admitida.

A Autora CC deduziu as seguintes ampliações do pedido:

a) A título de danos não patrimoniais para o total de € 27.000,00; b) A título de dano biológico para € 175.000,00; c) A título de danos não patrimoniais de € para € 60.000,00; d) a título de danos patrimoniais em € 1.356,00, em € 135,00 e 90,00.

Prosseguiu a instância os regulares trâmites e realizada a audiência final, proferiu-se sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, condenou a Ré:

-A pagar aos AA. AA e BB a quantia de € 3.000,00.

- A pagar à A. CC as seguintes quantias:

i) € 101.725,00, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da citação e até integral pagamento;

ii) a quantia de € 50.000,00, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da prolação da sentença e até integral pagamento;

iii) o que se vier a liquidar quanto aos danos de necessidade contínua de ajudas medicamentosas, acompanhamento futuro nas consultas de Medicina Física e de Reabilitação, ajuste e confeção de novas goteiras, terapia medicamentosa, incluindo a viscos suplementação com ácido hialurónico, tratamento ortodôntico e reabilitação com implantes dentários, eventual enxerto ósseo, colocação de coroas de cerâmica sobre implantes e respetivas consultas de acompanhamento de Medicina Dentária.

2. Da apelação

Inconformada, a Autora CC interpôs recurso da sentença, pedindo, em síntese, que a indemnização seja atribuída de acordo com a gravidade e extensão dos danos, devendo fixar-se a título de dano biológico a quantia de € 150.000,00, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da citação, e a título de danos não patrimoniais em quantia não inferior a € 80.000,00.

O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão tirado em maioria, julgou improcedente a apelação.

3. Da revista

Mantendo a sua discordância no referente à quantia fixada pelas instâncias pelo dano biológico, interpôs recurso de revista, pugnando pela alteração da compensação monetária na quantia de € 150.000,00, que reputa adequada e proporcional, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da citação.

Nas alegações retirou no final as conclusões seguintes:

«1.ª - O presente recurso visa a revogação da douta Sentença, porquanto se discorda da

indemnização fixada a título de dano biológico, tendo em conta os danos provados;

2.ª - A Autora sofreu graves danos, sendo, ainda, estudante e menor de idade à data do acidente, ficando a sofrer de uma IPP de 35 pontos; Tais danos vêm devidamente plasmados nos factos dados como provados nos Autos. FP E merecem, indubitavelmente, a tutela do direito.

3.ª - Ora, ponderando todos factos dados como provados, considerando a idade da A. (14 anos de idade à data do acidente) que o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é de 34 pontos, e que a incapacidade é definitiva,

4.ª -Quanto à fixação da indemnização decorrente do DANO BIOLÓGICO. O valor indemnizatório nesta espécie de danos não é diretamente determinável e quantificável, sendo necessário recorrer à equidade na determinação do quantum indemnizatório, ainda que se possa recorrer a tabelas financeiras ou matemáticas, mas apenas e só como meros auxiliares, como critério geral de orientação para a determinação equitativa do dano.

5.ª - Quanto a este dano biológico há a considerar: A idade da autora – 14 anos - à data do acidente; a esperança média de vida fixável nos 83 anos; o limite de vida ativa fixável nos 67 anos; o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 35 pontos;1

O salário médio nacional e a necessidade de fazer esforços acrescidos para exercer essa profissão e da atividade do dia a dia; A progressão na carreira e os aumentos salariais daí decorrentes; a taxa de juro, hoje muito próxima dos 0% ou mesmo negativa.

6.º-Considera-se que a referência para efeitos de cálculo da indemnização da incapacidade funcional em que se traduz o dano biológico não tem de ser o salário auferido pelo lesado, nem tão pouco o salário mínimo nacional, conforme tem vindo a ser entendido muitas vezes, quando o lesado não exerce atividade profissional. O dano biológico expresso no grau de incapacidade de que o lesado fica a padecer, e quando não interfere na capacidade de ganho, determinando a necessidade de um esforço acrescido para viver e para todas as atividades diárias, levando a uma diminuição da qualidade de vida em geral, é igualmente grave para quem exerce uma profissão remunerada com € 5.000,00 ou com € 500,00 sendo a dimensão do direito à saúde que está em causa e que é, tal como o direito à vida, igual para qualquer ser humano o ordenado base médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem no ano em 2021 (não há valores para os anos posteriores) foi de € 1.294,10 (mil duzentos e noventa e quatro euros e dez cêntimos).

8.ºNeste contexto, não esquecendo, que a autora, ainda muito jovem, tinha potencialidades que lhe auguravam uma evolução profissional positiva, evolução essa que, com a amplitude que poderia ter, está irremediavelmente comprometida, refletindo-se negativamente - mesmo fazendo o autor esforços acrescidos no desempenho da sua actividade - na evolução profissional da Autora, consideramos justo, adequado e proporcional, a fixação da quantia de €150.000,00 a título de dano biológico acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, a partir da citação e até integral pagamento;

9.º - Ao assim não decidir, o Acórdão recorrido violou, entre outras disposições legais, o disposto nos art. ºs 483.º, 562.º e 564.º do Código Civil.»


*


Nas contra-alegações a Ré argumenta que o valor de Euros 100.000,00, fixado na sentença a título de dano biológico, é justo e equitativo, face às últimas decisões do Supremo Tribunal de Justiça para casos similares.

II. Admissibilidade e objecto da revista

Atestados os requisitos gerais de recorribilidade, o fundamento do recurso e uma vez que, o acórdão impugnado foi tirado em maioria, a revista é admitida – cfr. artigos 629º, nº1, 671º e 674º, nº1, al) a do CPC.2

Analisadas as conclusões da recorrente, em interface com o acórdão impugnado, haverá que decidir se o valor monetário fixado em compensação do dano biológico na componente de danos não patrimoniais futuros, se revela ajustado no quadro factual apurado.

III. Fundamentação

A. Os Factos

Vem provado das instâncias

1 – No dia 06/04/2016, pelas 22,10 horas, o ciclomotor de matrícula ..-FN-.. circulava na Rua ..., em ..., conduzido pelo chamado DD.

2 – Neste ciclomotor seguia como passageira a A. CC 3 – O ciclomotor entrou em despiste.

4 - CC nasceu a .../.../2002 e foi registada como filha de BB e de AA.

5 – O Chamado DD não tinha autorização legal para conduzir.

6 –Conduzia com uma TAS de 0,8 g/l e sob o efeito de substâncias psicotrópicas.

7 – A responsabilidade civil por danos causados a terceiros com a circulação do ciclomotor de matrícula ..-FN-.. encontrava-se transferida para a Ré, à data do acidente, mediante contrato titulado pela apólice de seguro do ramo automóvel nº .........29 – fls. 152/155.

8 - O ora Chamado DD foi condenado, por sentença proferida a 26/04/2018, no processo comum singular nº 242/16.7..., e transitada em julgado a 28/05/2018, pela prática de um crime de ofensa à integridade física negligente, p. e p. pelo art.º 148.º, nºs. 1 e 2, do C. Penal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 5,00 – fls.216/242.

9- Na referida sentença proferida no processo comum singular nº 242/16.7... foram dados como provados (além do mais que não interessa reproduzir) os seguintes factos:“1º - No dia 06/04/2016, pelas 22,10 horas, quando o arguido – sem habilitação legal para conduzir, e sob a influência de álcool – conduzia no sentido Este – Oeste, o ciclomotor de matrícula ..-FN-.. pela Rua ..., em ...;2º - … Contornou uma curva à direita sem adequar nem diminuir a velocidade de, pelo menos, 60 km/hora, e sempre superior a 50 km/hora, que vinha imprimindo ao veículo que conduzia;3º - … Apesar de se tratar de local assinalado no sentido Este – Oeste com sinais de trânsito verticais C13 e A1 – respetivamente de proibição de exceder a velocidade máxima de 50 km e sinal de perigo, curva à direita.4º - … Razões por que perdeu o controlo do ciclomotor, entrou em despiste e acabou por se imobilizar junto ao lancil do passeio existente na via por onde circulava, projetando no solo a ofendida, CC, que transportava como passageira.5º - Em consequência direta e necessária do embate resultaram, além do mais, para a ofendida, CC, traumatismo no membro inferior esquerdo, traumatismo com perda de consciência e traumatismo da face e região mentoniana com laceração frontal supraciliar e supra labial esquerda, edema da face com hematoma periorbitário esquerdo, alteração da oclusão com evidente fratura mandibular complexa, laceração do pavimento anterior da boca e esfacelo da língua, língua assimétrica com desvio do eixo para a direita e fratura da mandíbula com perda de dentes 31, 32, 41 e 42.6º - O arguido conduzia distraído, descuidada e imprevidentemente, a uma velocidade que lhe não permitia parar no espaço livre e visível à sua frente, superior à indicada para o local, que não adequou ao local, nem diminuiu especialmente, como devia, incumprindo a regra obrigatória devidamente sinalizada, ao contrário do que bem se sabia obrigado.8º - Daí o embate, ocorrido em arruamento urbano de pavimento flexível em aglomerado asfáltico em estado regular de conservação, com dois sentidos de trânsito, delimitada por linha contínua, local em curva com inclinação descendente na hemifaixa do lado direito, de boa visibilidade e com tempo bom e boa visibilidade em toda a sua largura e extensão, sem obstáculos naturais” – fls. 218 e 219.

10 – A A. CC seguia no ciclomotor com o capacete de proteção aposto na cabeça.

11 – O local do acidente situa-se na cidade de ....

12 – A A. CC após o acidente foi transportada para o Serviço de Urgência do Hospital 1, na cidade do ..., onde deu entrada, no dia 06/04/2016, pelas 23,48 horas, vítima de acidente de viação, do qual resultou: fratura tríplice mandibular (ângulo direito, ângulo esquerdo e para-sínfise esquerda); fratura palatina; fratura malar esquerda; fratura dos ossos próprios do nariz; fratura da arcada zigomática esquerda; fratura do pavilhão da órbita esquerda.

13 - À entrada apresentava-se consciente, colaborante e orientada, apresentando uma pontuação de 15 na escala de Glasgow. Evidenciava "Laceração frontal supraciliar esquerda e labial superior esquerda", "Edema da face, sobretudo lábios e hemiface esquerda, com hematoma peri-orbitário esquerdo", "Alteração da oclusão com evidente fratura mandibular complexa", "Aparente retrussão malar esquerda", "...laceração do pavimento anterior da boca e da língua... limitação da abertura da boca".

14 - Realizou TAC cerebral que mostrou: "Hematoma epicraniano frontal e periorbitário a esquerda. Sinais de diversas fraturas incluindo: - Fraturas com desalinhamento de todas as paredes do seio maxilar esquerdo, associadas a hemossinus. - Parede lateral e, aparentemente, do pavimento da orbita esquerda. - Lamina interna do processo pterigóideo esquerdo. - Fratura da vertente media do arco zigomático esquerdo. Hemossinus maxilar esquerdo e preenchimento dos seios esfenoidais, de predomínio a direita".

15 - Foi internada para tratamento cirúrgico o qual se veio a verificar no dia 14/04/2016 com: sutura de esfacelo da língua; exodontia do dente 48 incluso; constatação de secção do nervo mentoniano direito, sem possibilidade de anastomose; osteossíntese com placas e parafusos das fraturas da mandíbula; constatação do dente 41 sem viabilidade, solto do alvéolo; bloqueio com 4 IMFs e elásticos; redução fechada da fratura do malar esquerdo.

16 - O internamento decorreu sem complicações e em 20/04/2016 teve alta com indicação de efetuar a medicação prescrita, manter alimentação líquida/mole, manter elásticos e ser presente no Serviço de Cirurgia Maxilo-Facial no dia 27/04/2016.

17 - Foi pela primeira vez presente em consulta deste serviço no dia 06/06/2016. À data apresentava boa evolução da sua situação clínica, sem limitação da abertura da boca. Efetuou ortopantomografia de controlo.

18 - Foi de novo presente em tal consulta em 16/01/2017 manifestando queixas de dor e língua presa. Apresentava dor à palpação do vestíbulo à esquerda.

19 - Em consulta datada de 14/05/2018 encontrava-se descrito “ao fim deste tempo aparece com mordida aberta anterior e mordida x a esq, associada a dores na tam dta? Reabsorção cond ou ef da ortodontia

20 - Em 21/05/2018 apresentava agravamento considerável da oclusão, verificando-se, em 27/08/2018, melhoria clínica com mais contatos dentários, a usar elásticos, em classe III.

21 - Em relatório datado de 25/10/2018 está descrito que a examinanda se encontra a realizar tratamento ortodôntico no exterior, aguardando por cirurgia para extração de material de osteossíntese.

22 - No dia 06/03/2019 foi internada no CH 1, tendo sido submetida a extração do material de osteossíntese (exceto parte da placa inferior e dois parafusos que não foram removidos por osteointegração) e tendo sido também realizada extração dos dentes 18 e 28. Teve alta no dia seguinte com marcação de consulta de Cirurgia Maxilofacial para o dia 15/03/2019.

23 - Em 15/04/2019 foi observada em tal consulta, constando-se: "Bem, sem queixas de novo. Mantem mordida aberta anterior, só contatos molares. Peço modelos para avaliar possibilidade de cirurgia maxilar - pondrara remoção do aparelho...ver reação em 47".

24 - Em relatório clínico do CHSJ - Consulta Externa de Cirurgia Maxilofacial, datado de 07/11/2019, encontra-se reportado: "Neste momento encontra-se a realizar tratamento ortodôntico, após o qual iniciou queixas de dtm e apresenta alterações de oclusão".

25 – Informação clínica do Serviço de CMF do Hospital 1 datada de 18/04/2021: “acidente de viação, em 06/04/2016, com veículo de 2 rodas, com projeção e perda de consciência associada, trazida pela VMER. Proteção apenas com capacete sem proteção mandibular. À entrada com: - múltiplas escoriações, esfacelo supraciliar esquerdo e do lábio superior também à esquerda; - fratura tripla complexa da mandíbula, ângulo direito, cominutiva da sínfise ângulo esquerdo; - fratura palatina e maxilar esquerdas; - fratura do complexo zigomático malar esquerdo; -fratura dos ossos próprios do nariz; - traumatismo alveolodentarío da sinfise mandibula.

Foi submetida a correção cirurgia com osteossínteses múltiplas e bloqueia intermaxilar com tração elástica. Acabou por perder no total os incisivos inferiores (31, 32, 41 e 42).

Entretanto por necessitar de reabilitação oral foram removidas as placas e os parafusos colocados ao nível da sínfise. A evolução foi favorável e não ficou com alterações de oclusão significativas. Iniciou reabilitação oral com prótese removível inferior correção ortodôntica fixa.

Em consulta a 14/05/2018 é observada e apresenta alterações de oclusão de novo, com mordida cruzada molar à esquerda e aberta anterior associada a queixas temporomandibulares. Por progressão das queixas articulares e das alterações de oclusão decidiu-se interromper e remover a correção ortodôntica fixa. As queixas de DTM persistiram e realizou Ressonância magnética das Atms em 29/03/2021, com o seguinte relatório:"Articulação temporo-mandibular direita: Discretos sinais degenerativos do côndilo com áreas de irregularidade da cortical. Sem outras alterações ósseas. Ligeira dismorfia do disco, que se encontra discretamente luxado, anteriormente com a boca fechada, reduzindo com a abertura bucal. Pequeno derrame articular. Sem alterações dos músculos da mastigação. Articulação temporo-mandibular esquerda: Aspeto dismórfico do côndilo, com redução do seu diâmetro. Anteroposterior e incipiente osteofitose. Sem outras alterações ósseas. Normal morfologia do disco, que se encontra discretamente luxado. Anteriormente com a boca fechada, reduzindo com a abertura bucal. Sem derrame articular. Sem alterações dos músculos da mastigação".

Neste momento tem consulta de reavaliação clínica programada para 19/04/2021, para eventual decisão cirúrgica. Continua com alterações de oclusão graves adquiridas após a colocação de aparelho fixo para correção dentária.

26 - Informação clínica do Serviço de CMF do Hospital 1 datada de 19-04-2021:” em relação ao relatório anterior e após observação hoje em consulta acrescenta-se o seguinte: Mesmas queixas de DTM mista bilateral. Não está a fazer correção postural nem a usar goteira. Eo- sem limitação da abertura da boca, sem desvios. Sem clicks associados. Péssima postura cervical e contraturas masseterianas. Agravamento da mordida cruzada à esq e aberta anterior. Será urgente tomar uma decisão quanto ao iniciar tratamento ortodôntico de novo ou começar a usar goteira oclusal em relação cêntrica, de modo a diminuir a carga articular e a evitar cirurgia da ATM. Deve fazer fisioterapia das atms e cervical e reeducação postural”.

27 – Informação do relatório clínico da Clínica ..., Lda, datado de 17/01/2019: “A referida paciente apresentou-se nesta clínica requisitando ser observada. A paciente referiu ter sofrido uma queda por acidente rodoviário. A paciente está a ser seguida a nível hospitalar. Após observação, a paciente apresentava o seguinte diagnóstico clínico: - ausência das peças dentárias 3.1, 3.2, 4.1 e 4.2. Cl. II Div I com mordida cruzada esquerda.

O plano de tratamento consiste:

- Tratamento ortodôntico fixo autoligado por um período nunca inferior a 48 meses e dependerá da colaboração da paciente.

- Reabilitação protética provisória removível com prótese acrílica dos dentes 3.1, 3.2, e por último, já em fase adulta, colocação de 3 implantes com 4 coroas metalo-cerâmicas implanto-suportadas para reabilitação fixa dos dentes 3.1, 3.2, 4.1, 4.2.

À presente data a paciente já se encontra em tratamento tendo já colocado aparelho ortodôntico fixo autoligado no dia 23.05.2017 e já foi reabilitada provisoriamente com uma prótese removível acrílica para substituição dos dentes perdidos.

A referida paciente colocou aparelho autoligado no dia 23.05.2017. neste momento está com arco super-expandido superior .016x.022 e arco inferior .020 aço com próteses.

Última consulta foi a 06.01.2019 onde foi realizado o seguinte tratamento:

- Arco super-expandido aço .016x.022 superior;

- Arco aço .018 inferior;

- Colocação durante o dia e noite elásticos 4,5oz curto nos dentes 13-43 e 26-33 e à noite 4,5oz 13-23-33-43-13”.

28 - Foram facultados relatórios da Clínica ..., Lda, subscritos pela Dr.ª EE, que se transcrevem:

a) "Venho por este meio proceder ao envio dos registos clínicos da paciente CC até ao dia 09.05.2019. A referida paciente colocou aparelho autoligado no dia 23.05.2017. Neste momento está com arco aço super-expandido superior .018 e arco aço inferior .018 aço com próteses acrílica dente 31, 32, 41 e 42. Além disso está a colocar durante o dia elásticos 4,5oz nos dentes 43-13 e 36-23 e à noite elásticos 6,7oz 13-45 e 23-35.

Em colaboração com o médico assistente do Hospital 1, a paciente será sujeita a uma cirurgia para reposicionamento do maxilar superior e fecho da mordida aberta”.

b) "Venho por este meio dar o meu parecer positivo quanto à cirurgia maxilo-facial para reposicionamento do maxilar superior. Envio os moldes em gesso”, datado de 29/09/2019.

c) Informação Clínica ..., Lda datada de 27-07-2020, dos dados clínicos com data posterior a setembro 2019:

- No dia 18-11-2019: Restauração classe II em compósito no dente 1.7;

- No dia 17-02-2020: remoção dos aparelhos ortodônticos fixos superior e inferior por indicação da equipa médica do Hospital 1.

- No dia 12-03-2020: restauração classe I em compósito no dente 3.4.

- No dia 07-05-2020: Restauração classe II em compósito no dente 3.5.

- No dia 19-05-2020: restauração classe II em compósito no dente 3.7.

- No dia 09-06-2020: exodontia simples do dente 3.6.

29 - Junto à documentação Clínica ..., Lda datada de 27-07-2020 consta um documento manuscrito cuja autoria se presume ser da Dra. FF, sem data: “Cara colega, como deve saber, do ponto de vista da oclusão, a CC está muito pior após colocar o aparelho fixo do que estava antes (pode-se ver pela ortop. de controlo pós-operatório).

Neste momento não penso que uma cirurgia maxilar, mesmo que com disfunção associada resolva o problema”.

30 – A A. CC apresenta as seguintes sequelas relacionáveis com o evento; na face: cicatriz nacarada, transversal, muito pouco aparente, na metade lateral da região supraciliar direita, com 1,2 cm de comprimento; cicatriz nacarada, pouco aparente, em forma de "Z", na metade esquerda da região frontal, medindo os seus segmentos 2 cm, 1 cm e 0,5 cm de comprimento; cicatriz nacarada, transversal, pouco aparente, na metade lateral região supraciliar esquerda, com 1,5 cm de comprimento; discreta cicatriz nacarada, na região suprageniana esquerda, com 0,8 cm de comprimento; cicatriz nacarada, pouco aparente, na face inferior da metade esquerda da região mentoniana, com 1 cm de comprimento; assimetria da língua com desvio do seu eixo para a direita; cicatriz nacarada, transversal, ligeiramente deprimida, pouco aparente, no terço médio do dorso da língua, com 2 cm de comprimento; prótese dentária em substituição dos dentes 31, 32, 41 e 42; distância de abertura máxima da boca entre arcadas dentárias, ao nível dos incisivos, mede 4cm de comprimento. E, ainda, desvio mandibular para a esquerda, com mordida cruzada esquerda.

Limitação nos movimentos de protusão, retrusão, lateralidade esquerda e direita, assim como em movimentos de abertura máxima (limitada a 35 mm até sentir dor). Dores na articulação temporo-mandibular – fls. 395v.

Membro inferior esquerdo: área pigmentada acastanhada, com padrão estriado transversal, pouco aparente, no terço distal da face anterior da coxa, com 2 cm de diâmetro; cicatriz nacarada violácea no quadrante supero-medial do joelho, com 3 cm x 0,5 cm; área pigmentada acastanhada, pouco aparente, no quadrante ínferomedial do joelho, com 3,5 cm x 2 cm.

31 – A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 16/01/2017.

32 – O período de défice funcional temporário total é fixável num período de 17 dias.

33 – O período de défice funcional temporário parcial é fixável num período de 279 dias.

34 – O período de repercussão temporária total para as atividades escolares é fixável num período de 72 dias.

35 - O período de repercussão temporária parcial para as atividades escolares é fixável num período de 224 dias.

36 – O quantum doloris é fixável no grau 4/7.

37 – O défice funcional permanente da integridade físico-psíquica é fixável em 34 pontos.

38 – É de perspetivar a existência de dano futuro, tendo em conta a existência de lesão articular com inevitável evolução para artrose, condicionando um agravamento do quadro álgico e rigidez articular.

39 – As sequelas de que a A. ficou a padecer são compatíveis com o exercício da atividade escolar habitual da A. CC.

40 – O dano estético é fixável no grau 4/7.

41 – Dependências permanentes: a A. CC apresenta como dependências a necessidade contínua de ajudas medicamentosas, acompanhamento futuro nas consultas de Medicina Física e de Reabilitação, ajuste e confeção de novas goteiras, terapia medicamentosa, incluindo a viscossuplementação com ácido hialurónico, tratamento ortodôntico e reabilitação com implantes dentários, eventual enxerto ósseo, colocação de coroas de cerâmica sobre implantes e respetivas consultas de acompanhamento de Medicina Dentária.

42 – A 15/04/2016, a CC manifestou ligeira odinofagia e dificuldade em deglutir a saliva – fls. 67.

43 - No dia 18/04/2016, a CC estava melhor do edema, mas mantinha oclusão, referia otalgia esquerda e ainda se recusava a engolir a saliva – fls. 66.

44 - No dia 19/04/2016, a CC ainda se encontrava com otalgia e com alguma dificuldade na deglutição da saliva e na higiene oral – fls. 66.

45 - No dia seguinte, a autora já se apresentava melhor do edema da face e já conseguia engolir a saliva e ingerir líquidos – fls. 66.

46 - Neste dia, foram removidos os pontos da face.

47 - Durante o período de internamento, a CC manteve-se em profundo sofrimento.

48 - A A. AA, mãe da A. CC, permaneceu ao lado da sua filha durante todo o período de internamento.

49 - A CC, nos primeiros dias de internamento, estava irreconhecível, dadas as lesões na face.

50 - Foi emitido atestado médico, na data da alta clínica, com a indicação de durante quinze dias não comparecer no seu local de ensino por aguardar pós-operatório, e após esse período, não fazer educação física nem atividades físicas durante dois meses – fls. 121.

51 - Durante quinze dias após a alta hospitalar, a A. CC, por indicação médica, manteve-se em repouso e quase sempre retida no leito, só se levantando, com dificuldade, para tomar as suas refeições diárias e fazer a sua higiene diária.

52 - Quem tratou da CC foi a sua mãe, que assim teve de faltar ao emprego.

53 - A A. CC tinha muitas dores na cabeça e não tinha força para se movimentar e tinha de ser auxiliado em todas as suas tarefas diárias, tais como tomar banho, vestir-se, ir à casa de banho, comer.

54 - Só bebia líquidos com a ajuda de uma palhinha, pois não podia mastigar.

55 - No dia 12/05/2016 a A. CC regressou à escola, tendo frequentado apenas as aulas do período da manhã, voltando para casa depois do almoço por se sentir incapaz, física e psicologicamente, para permanecer na escola.

56 - A CC ainda tinha a cara muito inchada e com dores no corpo, o que provocava o gozo e a chacota dos colegas.

57 - Não podia mastigar devido à falha de dentes e das fraturas que foi alvo na face.

58 - Queixava-se de muitas dores no corpo, em particular no maxilar – o que a impedia de falar de forma percetível – e da dificuldade em permanecer sentada por longos períodos.

59 - E manifestava também tristeza causada pelos comentários depreciativos relativamente ao seu aspeto físico por parte de alguns alunos da escola e disso dava conta aos professores.

60 - A CC realizou mais duas tentativas de frequência das aulas, mas as suas limitações físicas levaram-na a desistir logo nas primeiras aulas do dia.

61 - A CC tinha muitas dores, principalmente no maxilar, que a impediam de dormir.

62 - Estava psicologicamente abalada e que não apresentava condições, quer físicas quer psicológicas, para frequentar a escola.

63 - As justificações de falta foram aceites dado que, quando a aluna compareceu na escola após o acidente, foram visíveis as suas limitações físicas – fls. 122/123.

64 – A A. CC, não foi avaliada no terceiro período por falta de assiduidade, justificada por ter sido vítima de um acidente de viação no dia 6 de abril.

65 - Como consequência desta situação, obteve classificação, ao abrigo do artigo 29, ponto 1 do Despacho Normativo n.º1-F/2016, de 5 de abril de 2016, mantendo os níveis atribuídos no final do segundo período: ficou com dois níveis um, a Matemática e Ciências Naturais, seis níveis dois, a Português, Espanhol, História, Geografia, Físico-Química e Educação Cívica, e nível três às disciplinas de Educação Visual, Educação Tecnológica, Educação Física e Tecnologias da Informação e Comunicação, o que perfaz oito disciplinas com níveis inferiores a três.

66 - O Conselho de Turma analisou a situação da aluna e considerou que não apresentava condições para transitar de ano.

67 - A A. CC frequentou as consultas externas no Hospital 1, na cidade do ..., mas nunca foi sujeita a tratamento dentário.

68 – A A. CC, porque não suportava a ausência de dentes, as dores constantes na boca, o facto da limitação forte da mastigação que não lhe permitia comer carne e alimentos mais duros e a vergonha e chacota social de que era alvo, recorreu aos serviços da Clínica ..., Lda da, em ..., onde passou a ser seguida pela Dra. EE.

69 – Os AA. AA e BB já pagaram € 2.800,00 à Clínica ..., Lda da, relativamente aos cuidados médico-dentários prestados à A. CC – fls. 449 e 450.

70 - Atualmente, a A. CC, em virtude das lesões advindas do presente sinistro, padece de: a) fenómenos dolorosos na boca; b) sensação de falta de força na boca, sobretudo na arcada dentária inferior, onde lhe faltam quatro dentes, o que lhe dificulta a mastigação de alimentos como bife e maçã; c) só come fruta passada; d) só consegue comer pão mole; e) sente diminuição da sensibilidade da metade direita da região oral; f) sensação de abano na mandibula ao correr; g) alteração na face.

71 – À data do acidente, a A. CC era saudável, fisicamente bem constituída, dinâmica, alegre, social e sociável e não sofria de qualquer aleijão ou diminuição física, funcional, laboral e de utilização do seu corpo.

72 - E nunca havia sofrido qualquer outro acidente.

73 - As lesões e sequelas provocadas pelo acidente em questão, provocaram à A. uma forte angústia e tristeza, pois com apenas 14 anos de idade, sentia-se gozada pelas outras colegas de escola,

74 - No momento do acidente e nos instantes que o precederam, a A. CC sofreu um enorme susto.

75 - Sofreu dores muito intensas, em todas as regiões do seu corpo atingidas.

76 - Passou a ser uma pessoa uma pessoa triste, sisuda e com tendências para o isolamento.

77 - A A. CC viu danificadas e inutilizadas as peças de vestuário, que usava na altura da ocorrência do acidente, nomeadamente 1 blusa, 1 camisola, 1 par de calças, 1 par de sapatos e toda a roupa interior.

78 - Durante o período de internamento da CC no Hospital 1, os demandantes, pais, fizeram deslocações diárias, em viatura própria, desde a respetiva residência até àquele estabelecimento, a fim de visitar e acompanhar a sua filha.

79 - Acompanharam a sua filha a três Consultas Externas no Hospital 1.

80 – Os AA. AA e BB sofreram muito com o padecimento da sua filha, tendo-a acompanhado a todo o momento, viram-na chorar com as dores, após o acidente, choro que durou vários meses.

81 - Durante muitas semanas, os demandantes pais atravessaram períodos de intranquilidade, com tristeza e angústia, que lhes perturbava o próprio sono.

82 – E sofreram os incómodos e transtornos ligados com as deslocações que tiveram de saber por via dos tratamentos médicos a que a menor CC foi sujeita.

83 – A A. CC despendeu em tratamentos dentários em consequência do acidente dos autos: € 300,00, a 12/02/2021 – fls. 425v. e 426v.;€ 550,00, a 06/07/2021 – fls. 426;€ 45,00, a 17/12/2021 – fls. 427; € 45,00, a 08/03/2022 – fls. 427v.; € 73,00, a 23/06/2023 – fls. 428; € 73,00, a 05/08/2022 – fls. 428v.; g) € 73,00, a 20/05/2022 – fls. 429;h) € 10,00, a 22/04/2022 – fls. 429v.; i) € 63,00, a 22/04/2022 – fls. 430;) € 45,00, a 01/10/2022 – fls. 430v.;k) € 73,00, a 14/11/2022, no total de € 1.350,00 – fls. 431; l) € 45,00, a 30/01/2023 – fls. 446;m) € 45,00, a 14/04/2023 – fls. 447;n) € 45,00, a 06/03/2023 – fls. 448;o) € 45,00, a 24/05/2023 – fls. 453; p) € 45,00, a 26/06/2023 – fls. 454.

B. O Direito

1.A Autora pediu inicialmente que a indemnização devida pelo dano biológico, na componente de danos patrimoniais futuros, se fixasse em € 175 000,00, e em € 60 000,00 na componente de danos não patrimoniais.

A sentença arbitrou a título de danos não patrimoniais a quantia de € 50 000,00 (cinquenta mil euros) e a título de indemnização por danos futuros, na vertente de dano biológico, a indemnização de € 100. 000,00 (cem mil euros).

Na apelação a recorrente pediu que se fixasse a título de dano biológico o montante indemnizatório de € 150 000,00, que a Relação não acolheu.

A Autora permanece inconformada.

2. O dano biológico; dano patrimonial futuro; lesado menor de idade

Breves notas de enquadramento

O défice funcional, ou dano biológico, representado pela incapacidade permanente resultante das lesões sofridas em acidente de viação, é suscetível de desencadear danos no lesado de natureza patrimonial e, ou de natureza não patrimonial.

A afectação do lesado no plano funcional, que por mão da doutrina e seguida pela jurisprudência, está qualificado como dano biológico, com repercussão negativa a nível da actividade geral e na sua profissão habitual justifica, por conseguinte, a indemnização na componente de dano patrimonial.3

Desde logo, o dano biológico derivado de incapacidade geral permanente, ainda que parcial, comporta uma diminuição somática funcional do lesado, implicando por isso esforço acrescido para conseguir, como anteriormente ao acidente, desempenhar as mesmas tarefas, e nessa medida assume uma dimensão patrimonial futuro.4

Á luz deste entendimento , a incapacidade parcial permanente, afetando ou não a atividade laboral do lesado, representa em si mesmo um dano patrimonial futuro, mesmo que não implique repercussão negativa no rendimento salarial ou na sua atividade profissional, o lesado necessitará de um maior empenho, de um estímulo acrescido, que pode justificar a indemnização por danos patrimoniais futuros, seja no plano da perda ou diminuição de outras oportunidades profissionais e ou de índole pessoal.

Nesta vertente, a indemnização por danos patrimoniais futuros revela-se com particular acuidade, v.g., na situação da vítima menor de idade ao tempo do acidente que não tenha ainda ingressado na vida laboral.

Colhendo os ensinamentos de TRIGO MG sobre as consequências de natureza patrimonial da incapacidade geral ou funcional do lesado, o denominado “dano biológico” - «[…] a jurisprudência nacional veio aperfeiçoando os critérios a ponderar na fixação equitativa da indemnização por danos patrimoniais futuros (traduzidos na perda de rendimentos) causados pela incapacidade laboral específica, isto é, causa pela afetação da capacidade do lesado para o exercício da sua actividade profissional à data da ocorrência da lesão física, os procedimentos utilizados não tinham em conta – ao menos de forma sistemática – a circunstância de que afectação, em maior ou menor grau, da capacidade laboral genérica das vítimas é, também ela, suscetível de determinar perdas de rendimentos e, portanto, danos patrimoniais futuros. Esta omissão mostrava-se especialmente evidente nas seguintes situações: a) Situação de lesado menor de idade que, em razão da idade, não exerce qualquer profissão no momento do evento danoso; b) Situação do lesado que, não sendo afectado na sua capacidade laboral específica, é, porém afectado na sua capacidade laboral genérica; c) Situação do lesado que, em razão de circunstâncias várias de idade, saúde, dedicação à família, etc., não exerce profissão à data de ocorrência da lesão, sendo, contudo, afetado na sua capacidade laboral genérica. […].»5

No mesmo sentido entende MOTA SOARES R observa “[..] se encararmos o dano biológico como uma lesão da integridade psicofísica, não podemos recusar a premissa de que esta é igual para todos. Nessa medida, nos casos em que os lesados não sofram uma efectiva diminuição dos rendimentos profissionais (quer porque estes não ficam diminuídos, quer porque estão em causa estudantes, desempregados ou reformados), havendo antes a necessidade de maiores esforços para obtenção dos mesmos rendimentos, não há razão alguma para tratamentos diferenciados por referência ao salário ou ao rendimento habitual.”6

Em relação aos danos patrimoniais o princípio é o de que a indemnização deve calcular-se de acordo com os princípios e com as regras dos artigos 562.º e seguintes do Código Civil.

No que concerne aos danos patrimoniais futuros, na situação em que não foram apurados os valores dos danos a ressarcir, face à ausência de regras legais precisas, deverão calcular-se seguindo juízos de verosimilhança ou de probabilidade, a partir da casuística factual provada, conjugados com diversos critérios de cálculo de natureza instrumental, intervindo a equidade em último ratio, a fim de ajustar o montante da indemnização ao caso concreto.

No caso do dano biológico, na vertente do dano patrimonial futuro, o Supremo Tribunal vem indicando como critérios orientadores principais para o cálculo da indemnização - o défice funcional permanente de integridade físico-psíquico, os esforços acrescidos o lesado terá de desenvolver para exercer a sua actividade profissional e ainda todas as limitações na realização de actividades da sua vida pessoal e quotidiana a esperança média de vida, a previsível evolução profissional e os reflexos a nível remuneratório. 7

Por último, o ajuizamento do cálculo da indemnização por danos assente em critérios de equidade, por exigível segurança na aplicação do direito deverá ser, em princípio, mantido o juízo prudencial e casuístico validado pelas instâncias, que nele não estão vinculadas a um estrito critério normativo.

Trata-se da orientação sedimentada na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que não exclui a necessidade de conferência dos limites e pressupostos de cada caso, relevando, pois, os padrões de indemnização prosseguidos em casos análogos pelo Supremo Tribunal, na procura de uma justiça relativa e conforme aos ditames estabelecidos no artigo 8.º, n.º 3, por imperativo do princípio da igualdade, como decorre do artigo 13º da Constituição.

2.1. A questão em debate – a indemnização do dano patrimonial futuro que tem em conta a expressão do deficit funcional que a Autora ficou a padecer.

O cálculo de uma indemnização ressarcitória deste tipo de danos implica um juízo de difícil prognose da vida futura do lesado no futuro, de mera probabilidade.

Procurando atingir a justiça do caso, têm os tribunais vindo a acolher a solução de a indemnização ao lesado nesse componente, enquanto dano futuro, dever representar um capital que não se extinga ao fim da vida activa e seja susceptível de lhe garantir durante ela, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho.

Posto isto, retomando a situação em juízo.

A matéria de facto relevante vem provada nos pontos 23 a 28, 31 a 41, e destes salientamos:

Ao tempo do acidente (abril de 2016) a Autora CC tinha 14 anos, ficando a padecer do défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 34 pontos, quantificado por referência a um índice de 100.

A afectação física incidiu em particular na zona da face, maxilar e dentária com a extensão e sequelas descritas nos pontos 28, 31 e 40 dos factos provados.

Foi submetida a cirurgias e planos de tratamento e acompanhamento na área da ortodontia, e a consolidação médico legal fixou-se em 16.01.2017.

A Autora era estudante do segundo ciclo e mais não se apurou quanto ao seu percurso académico, tendo informado em audiência que se encontrava a trabalhar numa fábrica.

O quantum compensatório na componente de dano patrimonial futuro, representará, por conseguinte, o valor do capital de que será privada em decorrência da limitação funcional que padece a Autora, devendo atender-se apenas aos ganhos fortemente prováveis e verosímeis, tentando compensar a inerente dificuldade de cálculo num período tão longo com apelo a juízos de equidade.

Insurge-se a recorrente quanto ao valor fixado em Euros 100,000,00, argumentando que o cálculo da indemnização da incapacidade funcional em que se traduz o dano biológico, na situação do lesado não exercer atividade profissional, não tem de ser o salário mínimo nacional, mas o ordenado base médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem, de € 1.294,10 no ano de 2021, e as potencialidades da Autora jovem que auguravam uma evolução profissional positiva.

No Acórdão recorrido, em suporte da base de cálculo e os critérios seguidos na fixação da indemnização nesta vertente do dano patrimonial futuro, contrapôs-se o seguinte:

“[…] no caso presente e como decorre dos factos provados, não se pode atender desde logo à perda de rendimentos provenientes da atividade profissional habitual, porque a lesada na data em que ocorreu o acidente não exercia qualquer profissão remunerada, era estudante e em julgamento declarou exercer a profissão de operária fabril (ponto 39 dos factos provados).

Nada se apurou a respeito das suas habilitações, nomeadamente se prosseguiu os estudos ou se tem alguma formação profissional diferenciada, elementos relevantes para aferir das possibilidades de progressão na carreira, com possíveis aumentos salariais.

Ainda que se possa utilizar como base de cálculo o ordenado base médio mensal dos trabalhadores por conta de outrem, como defende a apelante, já não se justifica a aplicação de tal valor por referência ao ano em 2021, quando o acidente ocorreu em 2016. Em 2016 o ordenado base médio mensal dos trabalhadores do sexo feminino, por conta de outrem, ascendia ao montante de € 840,30 (https://www.pordata.pt – última atualização a 19 de dezembro de 2023).

De igual forma, não se pode acompanhar a afirmação segundo a qual a taxa de juros hoje está muito próxima do 0%. A taxa de juros, ainda que baixa, tem vindo a aumentar verificando-se uma tendência para a sua estabilidade, ainda que em baixa.

Pelo facto de a indemnização ser paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la de imediato, o montante apurado deve ser, em princípio, reduzido de uma determinada percentagem, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado, à custa alheia. [ ..]”

Essa redução tem por referência os possíveis ganhos resultantes da aplicação financeira do capital antecipadamente recebido (taxa de capitalização) – na medida em que, colocando o capital a render, o beneficiário sempre receberá os correspondentes juros ou rendimentos remuneratórios.

[..], a jurisprudência tem situado essa dedução, com recurso à equidade, entre os 10% e os 33%.

Porém, no atual quadro económico, em que se tem assistido a uma redução substancial dos rendimentos gerados com aplicações financeiras do capital tem-se optado pela aplicação de uma taxa mínima, na ordem dos 10%.[…] Verifica-se que na avaliação do dano não se deduziu ao valor arbitrado uma percentagem por efeito de ocorrer antecipação do pagamento de todo o capital, o que significa que ainda que se atribuísse um valor superior ao arbitrado sempre seria de deduzir esse montante e que não se aplica, em obediência ao principio consagrado no art.º 635º/5 CPC.[..]”

A Relação decidiu bem e de forma fundamentada!

Reitera-se o ponto central, como ilustra o recente aresto do Supremo Tribunal de Justiça de 27.01.2023:

«[..]. II. O único critério legal para a fixação da indemnização do dano biológico (dano futuro) é a equidade (cfr. art. 566.º/3 do C. Civil), o que não significa, que não se usem, como auxiliar, como instrumento de trabalho, fórmulas matemáticas, que têm o mérito de impedir “ligeirezas decisórias” ou involuntárias leviandades e subjetivismos, na medida em que obrigando o julgador à externalização, passo a passo, do seu juízo decisório e a uma maior “densificação” da fundamentação da decisão, contribuem para impedir raciocínios mais ligeiros e/ou maquinais na fixação de indemnização.[..]».8

No caso, o tribunal a quo considerou o período de referência para o cálculo da indemnização por correspondência à esperança média de vida da lesada.

Por outro lado, não questionamos, como também não o fez o tribunal recorrido – que nas situações como a dos autos deverá atender-se ao salário médio mensal do ano da lesão dos trabalhadores por conta de outrem, isto porque a lesada era estudante do ensino secundário, na ausência de indícios que apontem para o patamar mais baixo da remuneração profissional e que exercerá agora a actividade de operária fabril, sem apuramento dos valores que aufere.

Observe-se ainda que conforme ressuma da matéria de facto, as sequelas físicas descritas, em princípio, não condicionarão a Autora nas suas opções profissionais futuras, nem comportam limitação no seu exercício.

Certo é que, não podemos deixar de acompanhar o acórdão recorrido, ao ponderar o facto de a indemnização ser paga à Autora de uma só vez, permitindo rentabilizá-la em termos financeiros, havendo, por isso, que introduzir um desconto no valor encontrado, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado, à custa do responsável pelo facto lesivo.9

Ajustamento liminar pela antecipação do pagamento de todo o capital, sendo que neste domínio a jurisprudência vem oscilando na consideração de uma dedução entre os 10% e os 33%.

Dedução que o tribunal recorrido atendeu no mínimo de 10%, com referência às taxas de rentabilidade de aplicação de capital, que, não obstante, a imprevisibilidade da sua variação, por tão longo período, parece correcto e ajustado.

Finalmente, conforme evidencia a motivação do acórdão, prosseguiu uma diligente comparação dos valores atribuídos em casos com proximidade em alguns elementos, na jurisprudência atualizada dos tribunais superiores, que não merece reparo.

Na difícil tarefa de alcançar um valor justo, equitativo e proporcional designadamente em face dos valores indemnizatórios que se colhem na jurisprudência mais recente do Supremo Tribunal, em situações com pontos de contacto- como a idade jovem da lesada e, o valor do DFP, afigura-se-nos adequado o valor de €100.000,00, a título de compensação monetária na componente dos danos patrimoniais futuros do dano biológico.10


*


Em síntese, o valor da indemnização fixado pelas instâncias a título de dano patrimonial futuro - dano biológico- é justo e adequado a ressarcir a Autora.

Soçobram as conclusões da recorrente.

IV. Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

As custas do recurso são a cargo da Autora recorrente que nele decaiu.

Lisboa, 13 de março de 2025

Isabel Salgado (relatora)

Emídio Francisco dos Santos

Maria da Graça Trigo

_________


1. Só por lapso se indica “35” – face ao facto provado no ponto 37- “34”.

2. Cfr. E, ainda o AUJ 7/2002 de 20.09.2022, publicado no DR II em 18.10.2022.

3. Seguindo a linha prevalecente da jurisprudência.

4. Para maior desenvolvimento do conceito do dano biológico -cfr. TRIGO MG, in «O conceito de dano biológico como concretização jurisprudencial do princípio da reparação integral dos danos – Breve contributo– Breve Contributo, in Revista Julgar nº 46 – Retorno aos Acidentes de Viação: Antigas e Novas Questões –, Edição da ASJP, Nº 46 (2022), pp. 260/8

5. Autor e Obra citados.

6. In O Dano Biológico quando da Afetação Funcional não Resulta Perda da Capacidade de Ganho…” Revista Julgar nº 33 º, pp. 111 e ss.

7. Sobre os critérios indemnizatórios, e na linha da fundamentação dos acórdãos deste Supremo Tribunal de 16.03.2017 (proc. n.º 294/07.0TBPCV.C1. S1), de 25.05.2017 (proc. n.º 2028/12.9TBVCT.G1. S1), de 06.12.2017 (proc. n.º 559/10.4TBVCT.G1. S1), de 29.10.2020 (proc. n.º 111/17.3T8MAC.G1. S1) e de 22.01.2022 (proc. n.º 6158/18.5T8SNT.L1. S1) e de 24.02.2022 (proc. n.º 1082/19.7T8SNT.L1. S1), consultáveis em www.dgsi.pt

8. No proc nº 5986/18.6T8LRS.L1. S1, in www.dgsi.pt.

9. Acolhendo o entendimento da jurisprudência preponderante – cfr. inter alia os Acórdãos do STJ de 30.03.2017, no proc. nº 2233/10.2TBFLG.P1. S1; de 19.04.2018, no proc. nº 196/11.6TCGMR.G2. S1, in Sumários Cíveis dos Acórdãos do STJ, disponíveis in open space; e também o Acórdão do STJ de15.03.2018 no proc. nº 4084/07.2TBVFX.L1. S1, citado no acórdão recorrido - “a jurisprudência tem situado essa dedução, com recurso à equidade, entre os 10% e os 33”in www.dgsi.pt.

10. Não podemos, contudo, ignorar que a avaliação comparativa com outras decisões nem sempre se mostra de resultado líquido, como vem invocado, pois que, para além dos factores comuns do índice de incapacidade geral permanente, idade e outros, deverá realizar-se a conexão entre as lesões físicas sofridas e as exigências próprias de actividades profissionais ou económicas alternativas, compatíveis com as qualificações e competências de cada lesado concreto.