EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
AUDIÊNCIA PRÉVIA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO SURPRESA
FALTA DE NOTIFICAÇÃO
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
PRESSUPOSTOS
VIOLAÇÃO
FALECIMENTO DE PARTE
Sumário


Aplicando-se ao caso dos autos a orientação constante do ponto II do AUJ n.º 2/2025, considera-se que, não podendo os autores ignorar que, por força do regime aplicável (art. 276.º, n.º 1, do CPC), o processo se encontrava a aguardar o impulso processual que lhes competia nos termos do art. 351.º, n.º 1, do CPC, o decurso do prazo previsto no art. 281.º, n.º 1, do CPC, sem nada virem requerer ou promover aos autos, designadamente sem virem promover a habilitação de herdeiros, determina a aplicação da cominação do n.º 1 do art. 281.º do CPC (a extinção da instância por deserção) sem necessidade de audiência prévia.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I - Relatório

1. AA intentou a presente acção declarativa constitutiva sob a forma de processo comum contra BB, pedindo a anulação do contrato celebrado entre o autor e a ré em relação à transmissão das quotas da sociedade S..., Lda, devendo a ré ser condenada à restituição da titularidade das quotas e ao pagamento de todos os encargos com o processo.

2. A ré contestou, invocando, além do mais, as excepções da ilegitimidade passiva e activa e a caducidade do direito à acção.

3. O autor respondeu e requereu a intervenção principal provocada de sua mulher, CC, e dos demais outorgantes no contrato em apreço nos autos - DD, EE, FF e GG

3. Veio a ser proferido despacho que admitiu a intervenção principal provocada de:

a) CC, como associada do autor;

b) DD, como associado da ré;

c) EE, como associado da ré;

d) FF, como associada da ré; e,

e) GG, como associado da ré e foi ordenada a citação dos chamados.

4. Os intervenientes como associados da ré, GG e FF, vieram aderir à posição do autor.

5. Foi proferido despacho saneador, no âmbito do qual se considerou ultrapassada a questão da ilegitimidade das partes e se relegou para sede de sentença final o conhecimento da excepção da caducidade.

6. Foi fixado o objecto do litígio e elencados os temas da prova.

7. Chegou ao conhecimento dos autos, a ... .10.2023, o óbito da ré, pelo que, em 13.10.2023, foi proferido o seguinte despacho:

“Atento o falecimento da ré BB, declaro suspensa a instância – cfr. artigo 270.º n.º 1 do CPC.

Atenta a proximidade da data designada para a audiência final e o tempo que previsivelmente poderá durar o incidente de habilitação de herdeiros, dou sem efeito a audiência final agendada para o dia 31 de Outubro de 2023.

Notifique”.

8. Notificado às partes tal despacho e nada tendo sido requerido nos autos, em 15.05.2024, foi proferido o seguinte despacho:

“Nos termos do disposto no artigo 281.º n.º 1 do Código de Processo Civil, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

É o caso dos presentes autos, que aguardam o impulso processual das partes, designadamente dos autores que, desde que foi declarada a suspensão da instância por falecimento da ré BB por despacho de 13/10/2023 (ref.ª .......64) nada mais vieram requerer ou promover, designadamente a habilitação de herdeiros.

Atento o exposto, declaro a extinção da instância por deserção cfr. artigos 281.º n.º 1 e 277.º c) do Código de Processo Civil.

Custas pelos autores - cfr. 527.º do CPC.

Notifique”.

9. Em 21.05.2024 veio o autor (entretanto, na realidade, já falecido, mas sendo tal facto desconhecido então dos autos) alegar a surpresa, pela decisão de extinção da instância, dizendo, além do mais que “…cumpre referir que se entende que era sobre a Ré que impendia o ónus de promover o “seu” incidente de habilitação de herdeiros, uma vez que a responsabilidade de tal incidente recai sobre a mesma (mas por razões de cooperação e proatividade, irá proceder-se à abertura do incidente de habilitação de herdeiros da Ré BB). Os presentes autos foram instaurados porque sempre existiu total interesse em que fosse proferida decisão de mérito sobre o pedido formulado pelo Autor”. Termina pedindo que seja o mesmo despacho revogado, por ser nulo, sendo deferida a requerida habilitação de herdeiros.

10. Em 22.05.2024 foi apensado o incidente de habilitação de herdeiros da falecida ré.

11. Por requerimento de 02.06.2024, veio o interveniente DD informar que o autor da presente acção, seu avô, faleceu no dia ... .04.2014, requerendo que se considere caducado o mandato que o falecido conferiu ao seu mandatário.

12. Mais uma vez, os intervenientes (co-réus) GG e FF, vieram aderir à posição do autor, pedindo a nulidade do despacho de extinção da instância.

13. O interveniente DD veio opor-se à “revogação” do despacho em apreço, por eventual nulidade.

14. O interveniente GG, inconformado com a decisão de extinção da instância veio interpor recurso de apelação pedindo a sua revogação e substituição por outra que, concedendo prazo aos intervenientes processuais para se pronunciarem sobre uma tal promoção ou intenção judicial.

16. Por acórdão de 19.11.2024 foi o recurso julgado procedente, e, com voto de vencido, foi decidido revogar «a decisão recorrida e, considerando que já foram apensos aos presentes autos a necessária habilitação de herdeiros da falecida ré, ordenando que os autos prossigam os seus ulteriores e normais termos».

17. Deste acórdão vem o interveniente DD interpor o presente recurso, invocando a via excepcional de admissibilidade e formulando as seguintes conclusões:

«1) O presente recurso é de revista excecional tendo por fundamento: (i) a existência de questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, se mostra claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – cfr. artº 672º, nº 1 al. a) do CPC; (ii) - estar o acórdão recorrido em contradição com o acórdão proferido este Supremo Tribuna l– acórdãos fundamento – em relação à mesma questão fundamental de direito tendo ambos sido proferidos no domínio da mesma legislação – cfr. artº 672º, nº 1 al. c) do CPC.

2) A questão controvertida respeita à interpretação do artº 281º do CPC (normativo dedicado ao instituto da deserção da instância) e consiste em saber se, estando em causa incidente de habilitação de herdeiros sem que a parte tenha manifestado dificuldade na obtenção de elementos para o instruir, se mostra verificado o elemento subjetivo da culpa da parte que não promove o andamento do processo, determinando a extinção da instância decorridos que sejam 6 meses por falta de impulso processual, sem necessidade de despacho judicial que advirta para a consequência de uma tal inércia?

Ou se, ao invés, a extinção da instância, por deserção, apenas pode ocorrer depois que a parte seja notificada do despacho que a advirta para tal consequência, em consequência de tal inércia? (obrigação do juiz conferir o direito ao contraditório – cfr. artº 3º, nº3 do CPC)

3) A relevância jurídica da questão acima (sob uma formulação positiva e negativa) colocada perante este Supremo Tribunal é. pois, por demais evidente, não apenas pelas consequências substantivas que pode implicar, mormente em relação à caducidade do direito, considerando a natureza declarativa do despacho que determina a deserção, como ainda em face da divergência da solução dada ao nível da doutrina e na jurisprudência, inclusive deste Supremo tribunal, sendo a apreciação de tal questão indispensável a uma melhor aplicação do direito, em face, igualmente, da projeção e transponibilidade para outras mais situações que implicam idêntica solução por parte deste Supremo Tribunal.

4) A resposta à questão colocada mereceu decisões contraditórias entre o acordão recorrido e o acordão fundamento, cuja cópia se anexa, tendo o mesmo Supremo Tribunal considerado, neste último, não impor, a lei, a obrigação de notificar o autor para indagar das razões pelas quais a parte manteve o processo parado, pendente do seu impulso processual.

5) A respeito de uma pretensa violação do contraditório – princípio inscrito no artº 3º, nº 3 do CPC – para negar a sua verificação, no acordão fundamento sustentou-se que o princípio do contraditório não existe para superar ónus processuais. E dá como exemplos: o tribunal não notifica o réu que não contestou para averiguar se tinha condições para contestar, se percebeu o conteúdo da citação e os efeitos que para si decorrem de não contestar da ação.

6) Entendeu, o acordão fundamento, que o invocado princípio do contraditório seria imprestável na situação ali em discussão – a mesma que a discutida nestes autos – pois que, os autos apenas aguardavam que a parte apresentasse um dos mais simples incidentes que o Código de Processo Civil prevê.

7) No caso dos autos o próprio despacho de suspensão da instância por falecimento da Ré, fazia referência ao incidente de habilitação de herdeiros a requerer, sendo aquele do seguinte teor “Atento o falecimento da ré BB, declaro suspensa a instância – cfr. artigo 270.º n.º1 do CPC. Atenta a proximidade da data designada para a audiência final e o tempo que previsivelmente poderá durar o incidente de habilitação de herdeiros, dou sem efeito a audiência final agendada para o dia 31 de Outubro de 2023.

8) O autor dispunha de todos os elementos que precisava para requerer o incidente de habilitação de herdeiros – único ato de que dependia o impulso do processo para sair do estado “moribundo” em que se encontrava com a suspensão da instância que perdurou durante mais de 6 meses – tando assim que, logo após aquele despacho de deserção da instância o autor se apressou a requerer tal incidente, tendo-o instruído com os documentos a tal necessários.

9) A questão merece que seja estabilizada jurisprudência, em acordão a proferir, no sentido apontado no acordão fundamento de ser de determinar a deserção da instância se, estando em causa a falta de impulso processual por estarem os autos a aguardar que seja requerido incidente de habilitação de herdeiros, a instância se encontra suspensa por mais de 6 meses sem que nesse período a parte sobre quem recaia o ónus de o promover, justifique essa sua inércia, sem necessidade de despacho precedente que para tal a advirta.

10) Ainda que numa diferente tese da vertida no acordão fundamento, à qual o aqui recorrente adere, se entendesse que o contraditório devesse ser conferido para averiguação da culpa do autor pela paralisação do processo, no caso não passaria de um ato processualmente inútil, visto que nenhuma justificação o autor dispunha – como acabou por demonstrar – para manter o processo em estado letárgico.

11) Pelo que, mesmo a esta luz, sempre teria que ter sido proferido despacho de extinção de instância por deserção, por facto imputável ao autor, onerado que estava com o ónus de promover o andamento do processo, não havendo o que averiguar acerca da imputação por tal inércia, por estar à vista essa culpa do autor.

12) O acordão recorrido fez incorreta, ainda que desculpável, interpretação do artº 281º do CPC, assim como considerou indevidamente ter sido violado o princípio do contraditório ao aplicar à situação dos autos o disposto no artº3º, nº3 do CPC, pelo que deve o acórdão recorrido ser revisto, revogado e substituído por outro que julgue como na 1ª instância, determinando a extinção da instância por deserção.».

18. O interveniente GG contra-alegou, concluindo nos termos seguintes:

«I - A presente revista excecional foi apresentada pelo Recorrente, tendo como fundamentos as alíneas a) e c), do n.º 1, do artigo 672.º, do CPC, contudo não foram respeitados os pressupostos das alíneas a) e c), do n.º 2 de um tal normativo.

II - Por um lado, o Recorrente faz uma alegação genérica e abstrata para tentar preencher o requisito previsto na alínea a), supra, sendo que a questão em discussão não extravasa os interesses do próprio Recorrente; por outro lado, o Recorrente manifesta que o seu “acórdão fundamento” está em contradição com o acórdão recorrido, contudo, o Recorrente não identifica, conforme exigido pela nossa Lei Adjetiva, os aspetos de identidade entre uma e outra decisão (o Recorrente apenas discorda do entendimento perfilhado na decisão recorrida).

III - Razão pela qual, não tendo o Recorrente respeitado o estatuído pelo artigo 672.º, n.º 2, alíneas a) e c) do CPC, deverá a revista excecional ser rejeitada, o que se requer que seja reconhecido, para todos os devidos e legais efeitos.

IV - Caso não se entenda nos termos supra expostos, o que não se concede, mas por mero dever legal de patrocínio se acautela, importa referir que o Recorrente promove uma total de adulteração da questão controvertida, por forma a obter colhimento na sua pretensão processual e nos efeitos da revista excecional que deduziu, o que deverá determinar na rejeição de uma tal pretensão.

V - Por fim, caso também não se entenda nos termos supra expostos, o que não se concede, mas por mero dever legal de patrocínio se acautela, é importante referir que o Recorrente procede a uma delimitação factual parcial e direcionada aos seus (censuráveis) interesses, uma vez que tenta transparecer uma visão diversa daquela que efetivamente se verificou nos presentes autos.

VI - O falecido Autor para além de ter interposto a ação, apresentou vários requerimentos ao longo do processo, seja de resposta às exceções, seja requerendo a intervenção principal provocada de mais 4 intervenientes (suportando as respetivas taxas de justiça), bem assim de outros requerimentos, nomeadamente tendo requerido o incidente de habilitação da falecida Ré (ainda que no dia 21-05-2024).

VII - Nunca existiu qualquer indício, evidência ou sinal, de falta de interesse no prosseguimento do processo, bem pelo contrário, nem relativamente ao falecido Autor, nem de qualquer outro interveniente processual.

VIII - No caso em concreto, é altamente injusto, desproporcional, desadequado, irrazoável e com consequências jurídicas irreversíveis (nomeadamente, a perda do direito invocado), determinar-se a deserção da instância, sem conceder prazo aos intervenientes processuais para se pronunciarem sobre uma tal promoção ou intenção judicial e, desse modo, “aferir” pela colaboração e cooperação perante o Tribunal “a quo” e demais intervenientes processuais, respeitando-se o princípio do contraditório, previsto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, e o princípio da cooperação, previsto no artigo 7.º do CPC, evitando-se uma decisão surpresa.

IV - No sentido do exposto já se pronunciou este Egrégio Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito dos acórdãos datados de 14-12-2016 (proferido no âmbito do processo n.º 105/14.0TVLSB.G1.S1), datado de 05-07-2018 (proferido no âmbito do processo n.º 105415/12.2YIPRT.P1.S1), datado de 03-10-2019 (proferido no âmbito do processo n.º 1980/14.4TBVDLL1.S1), datado de 13-10-2022 (proferido no âmbito do processo n.º 105415/12.2YIPRT.P1.S1), e datado de 19-03-2024 (proferido no âmbito do processo n.º 86/22.7T8PTL.G1.S1), para além dos vários acórdãos proferidos pelos nossos Tribunais da Relação e que supra se encontram devidamente identificados (todos disponíveis em www.dgsi.pt).

X - Pelo exposto, a decisão que o Recorrente pretende obter é injusta e totalmente desproporcional aos efeitos resultantes de um despacho sem qualquer cominação judicial, contrariando os princípios basilares e estruturantes do Acesso ao Direito, do Estado de Direito Democrático, bem ainda os princípios do contraditório e do dever de gestão e cooperação processual, razão pela qual, deverá a pretensão do Recorrente, ser julgada totalmente improcedente, para todos os devidos e legais efeitos.».

II – Admissibilidade

Ainda que o recurso tenha sido interposto por via excepcional, invocando as alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 672.º do CPC, esclareça-se que, tendo o recurso de apelação sido julgado procedente, revogando-se a decisão a 1.ª instância, é manifesto que não se verifica o obstáculo da dupla conforme (art. 671.º, n.º 3, do CPC), sendo o recurso admissível.

III – Objecto

Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelo conteúdo da decisão recorrida e pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso.

Deste modo, o presente recurso tem como objecto unicamente a seguinte questão:

• Regularidade da decisão de extinção da instância (por deserção) com fundamento na violação do princípio do contraditório.

IV – Fundamentação de direito

1. Recordemos a tramitação dos autos no Tribunal de 1.ª instância, na parte ora relevante:

- Tendo chegado ao conhecimento dos autos, a ... .10.2023, o óbito da ré, em 13.10.2023 foi proferido o seguinte despacho:

“Atento o falecimento da ré BB, declaro suspensa a instância – cfr. artigo 270.º n.º 1 do CPC.

Atenta a proximidade da data designada para a audiência final e o tempo que previsivelmente poderá durar o incidente de habilitação de herdeiros, dou sem efeito a audiência final agendada para o dia 31 de Outubro de 2023.

Notifique”.

- Notificado às partes tal despacho e nada tendo sido requerido nos autos, em 15.05.2024, foi proferido o seguinte despacho:

«Nos termos do disposto no artigo 281.º n.º 1 do Código de Processo Civil, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.

É o caso dos presentes autos, que aguardam o impulso processual das partes, designadamente dos autores que, desde que foi declarada a suspensão da instância por falecimento da ré BB por despacho de 13/10/2023 (ref.ª .......64) nada mais vieram requerer ou promover, designadamente a habilitação de herdeiros.

Atento o exposto, declaro a extinção da instância por deserção cfr. artigos 281.º n.º 1 e 277.º c) do Código de Processo Civil.

Custas pelos autores - cfr. 527.º do CPC.

Notifique.».

Tendo sido interposto recurso de apelação, o Tribunal da Relação julgou-o procedente, decidindo revogar «a decisão recorrida e, considerando que já foram apensos aos presentes autos a necessária habilitação de herdeiros da falecida ré, ordenando que os autos prossigam os seus ulteriores e normais termos».

Insurge-se o recorrente contra esta decisão, alegando essencialmente o seguinte:

- Sempre teria de ter sido proferido despacho de extinção de instância por deserção, por facto imputável ao autor, onerado que estava com o ónus de promover o andamento do processo, não havendo o que averiguar acerca da imputação por tal inércia, por estar à vista essa culpa do autor;

- O acórdão recorrido fez por isso uma incorreta interpretação do art. 281.º do CPC, assim como considerou indevidamente ter sido violado o princípio do contraditório consagrado no art. 3.º, n.º 3, do CPC.

Pugna o interveniente GG pela manutenção da decisão do acórdão recorrido.

2. Está em causa a interpretação do n.º 1 do art. 281.º do CPC no qual se dispõe o seguinte: «considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses», conjugado com o previsto no art. 269.º, n.º 1, alínea a), do CPC (a instância suspende-se «[q]uando falecer ou se extinguir alguma das partes (…)» e no art. 351.º, n.º 1 («A habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem os termos da demanda, pode ser promovida tanto por qualquer das partes que sobreviverem como por qualquer dos sucessores e deve ser promovida contra as partes sobrevivas e contra os sucessores do falecido que não forem requerentes»).

Mais concretamente, está em causa apurar se, notificados o(s) autor(es) do despacho de 13.10.2023 que declarou a suspensão da instância por motivo de falecimento da ré e decorridos mais de seis meses sem que viessem promover a habilitação de herdeiros, se deve ter também como verificado o pressuposto subjectivo (negligência do(s) autor(es)) previsto no n.º 1 do art. 281.º do CPC, sem necessidade da sua prévia notificação.

Pela sua especial relevância para a resolução da questão recursória, importa referir ter presente que, muito recentemente, o Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça proferiu a seguinte decisão uniformizadora (AUJ n.º 2/2025, publicado no Diário da República, Iª Série, de 26.02.2025):

«I - A decisão judicial que declara a deserção da instância nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil pressupõe a inércia no impulso processual, com a paragem dos autos por mais de seis meses consecutivos, exclusivamente imputável à parte a quem compete esse ónus, não se integrando o acto em falta no âmbito dos poderes/deveres oficiosos do tribunal.

II - Quando o juiz decida julgar deserta a instância haverá lugar ao cumprimento do contraditório, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, com inerente audiência prévia da parte, a menos que fosse, ou devesse ser, seguramente do seu conhecimento, por força do regime jurídico aplicável ou de adequada notificação, que o processo aguardaria o impulso processual que lhe competia sob a cominação prevista no artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.». [negrito nosso]

Na fundamentação deste acórdão pode ler-se o seguinte:

«O princípio do contraditório constitui indiscutivelmente pedra angular no nosso panorama processual civil.

Conforme salienta Rui Pinto in Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Almedina 2018, a página 39:

“A garantia do processo equitativo do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa implica que a medida de tutela final seja produzida com a participação dos titulares da relação litigiosa, como sucede, aliás, com toda a actividade do Estado que interfira com os direitos dos cidadãos.

Num sentido objectivo a participação dos interessados é a própria lógica de estruturação do processo e que se sintetiza numa afirmação: a decisão judicial sobre uma providência requerida deve ser o resultado de um procedimento ou método que implique uma faculdade de comparticipação, colaboração ou influência paritárias”.

Não é, portanto, minimamente questionável a sua importância absolutamente fulcral e decisiva para que a lide possa processar-se de forma justa e equitativa, enquanto configuração prática do direito das partes à tutela jurisdicional efectiva.

Daqui não resulta, porém, que exista fundamento legal para obrigar o juiz, antes de declarar a deserção da instância nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, e sempre que a questão se suscite, a cumprir invariavelmente o contraditório previsto no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, através da prévia audiência das partes.

Nenhuma norma ou princípio processual especificamente o impõe para todas e cada uma das situações, mormente face à sua clara e inequívoca desnecessidade no caso concreto.

(Diga-se, aliás e a este propósito, que no âmbito da acção executiva, e nos termos do n.º 5 do artigo 281.º do Código de Processo Civil, a deserção da instância não é sequer declarada pelo juiz, o que significa a afirmação da desnecessidade de audiência prévia das partes (enquanto regra) nesse momento - o da deserção - em todos os processos desta natureza).

Com efeito, a negligência processual relevante para a deserção da instância pode e deve estar necessariamente espelhada, em termos claros e inequívocos, na própria tramitação processual e na sua singular conformidade com quadro legal aplicável, cuja análise permitirá, com a necessária segurança, concluir que a parte tinha (ou devia ter) naquele caso concreto a consciência de que os autos se encontravam parados à espera da prática do acto processual que lhe competia, tendo ainda a mesma a noção segura e efectiva dos efeitos processuais associados à sua eventual e futura inércia.

Ou seja, constitui pressuposto essencial deste instituto o juízo extraído pelo tribunal no sentido de que, com base no que é concretamente revelado pela análise detalhada da tramitação processual e pela atenta e rigorosa tomada em consideração do regime jurídico aplicável ao caso concreto, a parte estava (ou deveria estar naquelas circunstâncias específicas e peculiares) perfeitamente ciente da sua obrigação de agir (não o fazendo), num domínio em que imperam os princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade.

Assim, assente nestes particulares pressupostos, afrontará o princípio da economia processual expresso no artigo 130.º do Código de Processo Civil pretender artificialmente acrescentar, em todos os casos, sistematicamente, uma nova obrigação processual adicional não prevista normativamente - a obrigatoriedade incontornável da audiência da parte antes da prolação do despacho de deserção da instância (cujos pressupostos devem resultar afinal, com segurança e em termos absolutamente objectivos, da simples leitura dos autos, desde que devidamente conjugada com a aplicação das normas legais pertinentes) - e que, uma vez não observada, fulminaria inexoravelmente a decisão judicial com o vício de nulidade (artigo 195.º do Código de Processo Civil).

Importa, portanto, afastar o entendimento de que, em todas as situações processuais que tenham a ver com a possibilidade de declarar a deserção da instância nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a ausência da prévia audiência da parte interessada redundaria invariavelmente na violação dos princípios do contraditório e da proibição de decisões surpresa consignados no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Desde logo, na medida em que sendo exigível para a verificação da negligência processual relevante o conhecimento (ou dever do conhecimento) da parte relativamente à obrigatoriedade da prática do acto processual em falta e à consciência da consequência legal associada, os seus direitos de defesa neste tocante encontram-se já, por sua natureza, devida e inteiramente salvaguardados, não sendo razoável invocar-se a obrigatoriedade de concessão de nova oportunidade para que esta - que se concluiu, de forma absolutamente clara e inequívoca, haver falhado o dever processual a que se encontrava especialmente adstrita - se pronunciasse sobre aquilo que já antes bem sabia ou que, actuando diligentemente, deveria necessariamente saber.

Contrariando a pretensa imperatividade, indiferenciadamente e em todos os casos, da sua audiência prévia para assegurar o exercício do contraditório, nos termos gerais do artigo 3.º, n.º 3, do Código Civil, dir-se-á igualmente:

- ou a parte poderia não ter (ou não deveria ter) no caso concreto consciência e total segurança quanto à sua obrigação de agir processual e, então, justifica-se nessas circunstâncias que fosse ouvida, designadamente para poder afirmar que não se encontrava numa situação de negligência relevante para a declaração de extinção da instância por deserção;

- ou, pelo contrário, se existe de facto devidamente comprovado no processo esse mesmo conhecimento, em termos claros e inequívocos, face ao regime jurídico aplicável que estabelecia indubitavelmente essa sua obrigação de agir, perante um tão impactante silêncio omissivo por mais de seis meses, torna-se difícil de compreender e aceitar, em termos de razoabilidade e da eficácia do funcionamento da própria instituição judiciária, bem como da racionalidade e economia na utilização dos meios ao seu dispor, a exigência da obrigação processual imposta ao tribunal de indagar junto da própria parte (faltosa) acerca das hipotéticas razões pelas quais, afinal de contas, sendo a especial interessada no expedito andamento dos autos, permaneceu silenciosa e inerte durante tão longo período temporal.

Assim sendo, inexiste nestas circunstâncias qualquer tipo de prolação de decisão surpresa proibida pelos princípios gerais do contraditório e da tutela da confiança.

Exigindo-se, nesses termos e para este concreto efeito, que a parte tivesse consciência da obrigação da prática do acto processual e da consequência da sua inércia pelo prazo (mais de seis meses) legalmente fixado, não fará, em princípio, sentido considerar que a mesma, nada tendo, entretanto, feito no processo - como especialmente lhe competia -, não pudesse razoavelmente contar com o desfecho (esperado e não surpreendente) para o qual, há longos seis meses, havia sido expressamente advertida e de que ficara naturalmente ciente.

Note-se, ainda, que se encontra, em qualquer circunstância e em ultima ratio, salvaguardada a livre possibilidade de impugnação judicial por via de recurso nos termos gerais contra os fundamentos (de facto e de direito) do despacho que declara a deserção da instância - onde aí sim poderá livremente questionar o respaldo jurídico que esteve na base da declaração judicial de deserção da instância -, bem como a livre invocação do instituto do justo impedimento previsto no artigo 140.º do Código de Processo Civil, com a demonstração dos correspondentes (e exigentes) requisitos legais.

Encontramo-nos perante um instituto jurídico e processual - a deserção da instância - motivado por razões puramente pragmáticas, já assinaladas supra, que não retiram, no plano substantivo, o direito que assistirá às partes, uma vez despertadas da letargia que as assolou nesta instância, de interporem nova acção judicial em que, com a diligência, atenção e cooperação devidos, poderão fazer valer em juízo as pretensões que deixaram cair na anterior.

O que significa basicamente, e em termos práticos, que ao decidir julgar deserta a instância deverá, em princípio, haver lugar ao cumprimento do contraditório, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, com inerente audiência prévia das partes, desde que a parte interessada não devesse ter conhecimento, por força do regime jurídico aplicável ou de notificação oportunamente realizada, que o processo aguardaria o seu impulso processual sob tal cominação.

(Sufraga-se, desta forma e inteiramente, a corrente jurisprudencial consolidada e firme do Supremo Tribunal de Justiça de que se deu notícia supra e à qual se adere sem dúvidas ou hesitações).

Atente-se, a título de exemplo paradigmático, no caso típico da suspensão da instância por falecimento da parte em conformidade com o disposto no artigo 269.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil.

O despacho do juiz declarando a suspensão da instância é notificado à parte, aguardando os autos pela promoção do incidente de habilitação que permitirá fazer cessar a suspensão nos termos gerais do artigo 276.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil.

A parte tem, ou deverá ter, neste contexto, a perfeita consciência de que, força do regime jurídico aplicável, deverá impulsionar nos autos o incidente de habilitação nos termos gerais do artigo 351.º do Código de Processo Civil.

Se nada faz no processo, passados seis meses e um dia, o juiz deverá desde logo julgar deserta a instância, nos termos do artigo 281.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, sem qualquer necessidade de exercício do contraditório que, neste circunstancialismo, deixa de ser justificável.

(…).» [negritos nossos]

Temos, assim, que, pela aplicação ao caso dos autos da orientação constante do ponto II do AUJ n.º 2/2025, se considera que, não podendo o(s) autores ignorar que, por força do regime aplicável (art. 276.º, n.º 1, do CPC), o processo se encontrava a aguardar o impulso processual que lhe competia nos termos do art. 351.º, n.º 1, do CPC, o decurso do prazo previsto no art. 281.º, n.º 1, do CPC, sem nada virem requerer ou promover aos autos, designadamente sem virem promover a habilitação de herdeiros, determina a aplicação da cominação do n.º 1 do art. 281.º do CPC (a extinção da instância por deserção) sem necessidade de audiência prévia do(s) mesmo(s) autor(es).

V – Decisão

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se a decisão do acórdão recorrido e declarando-se a extinção da instância por deserção.

Custas pelos recorridos

Lisboa, 13 de Março de 2025

Maria da Graça Trigo (relatora)

Carlos Portela

Orlando Nascimento