EMBARGOS DE TERCEIRO
PENHORA
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
DEFESA DA POSSE
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
APRECIAÇÃO DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DA PROVA
Sumário


I. O regime do art. 662.º do CPC estabelece um efectivo segundo grau de jurisdição na apreciação da prova produzida, sendo imposto ao TR, por força da previsão do art. 607.º, n.º 4, do CPC, que aprecie criticamente as provas indicadas como fundamento da impugnação de modo a formar a sua própria convicção.
II. Tendo o acórdão recorrido eliminado da factualidade dada como provada o facto que dizia respeito ao contrato-promessa de compra e venda das fracções penhoradas que, alegadamente, os embargantes teriam celebrado com a executada, mesmo aceitando-se a tese dos embargantes (existência de posse derivada de contrato-promessa de compra venda com traditio), não ficou provado o negócio jurídico que suportava a sua pretensão.
III. Além disso, no caso, os terceiros que deduzem a oposição mediante embargos não se encontram a habitar as referidas fracções, mas sim os seus filhos, não tendo sido alegado nem provado qualquer facto que permitisse sustentar que os embargantes detivessem a posse das fracções penhoradas em nome e por conta do interesse dos filhos.

Texto Integral

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


1. AA e BB deduziram os presentes embargos de terceiro por apenso à execução intentada por Hefesto STC, S.A. contra R...Construções, Lda., pedindo:


- O reconhecimento do direito de posse dos embargantes sobre as fracções autónomas “D” e “E” correspondentes, respectivamente, ao 1.º andar esquerdo e 1.º andar direito, Bloco A, para habitação, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito na Rua ...B, com vãos de porta para a Calçada ..., ..., freguesia de ..., descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de ... com n.º ..68 e inscrito matriz artigo ...26, da freguesia de ...;


- O reconhecimento dos direitos dos embargantes em relação às aludidas fracções;


- O levantamento das penhoras em relação às descritas fracções.


Alegam os embargantes que, em 13/11/2001, mediante contrato-promessa de compra e venda celebrado com a empresa executada R...Construções, Lda, adquiriram as fracções D e E penhoradas nos autos principais. Mais alegam que as chaves das referidas fracções foram entregues aos embargantes em 2006, encontrando-se as mesmas fracções a ser habitadas pelos dois filhos dos embargantes desde 2006 e 2008, até hoje, pacificamente, de boa fé e à vista de todos. Referem os embargantes que a sociedade executada não celebrou o contrato definitivo de compra e venda porque existe uma hipoteca constituída a favor do banco, tendo protelado sucessivamente a outorga da escritura respeitante às referidas fracções.


Por despacho de 29/07/2021 foram liminarmente recebidos os embargos de terceiro, determinando-se a suspensão da execução relativamente às fracções.


Devidamente notificados os embargados, a executada não contestou; a exequente contestou, invocando a nulidade da promessa de venda de bens alheios. Mais afirmando que a alegada posse invocada pelos embargantes nestes autos, a ser dada como provada, teria de ser considerada como exercício abusivo do direito, não sendo os presentes embargos de terceiro o meio processual idóneo a fazer valer os pretensos direitos dos embargantes.


Veio a ser proferida sentença que julgou os embargos procedentes.


Inconformada, a exequente interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual, por acórdão de 11/07/2024, foi julgado procedente, alterando-se a decisão da matéria de facto e julgando-se os embargos improcedentes.


2. Veio o embargante AA interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:


«1. O Tribunal da Relação de Lisboa, no douto acórdão, deu como provados os seguintes factos, nomeadamente: 1. Os embargantes, por consulta das certidões prediais permanentes, verificaram que se encontram registadas as aludidas penhoras pela Ap. .47 de 2021/03/22, em que é sujeito ativo a exequente Hefesto STC S.A., e sujeito passivo a executada R...Construções, Lda, no processo executivo n.º 2476/21.3T8LRS; 2. A aquisição das frações encontra-se registada a favor da sociedade executada pela Ap. 30 de 2003/03/05; 3. Foi celebrado, por documento epigrafado de “Contrato promessa de compra e venda e recibo de sinal”, datado de 13.11.2001, celebrado em data não apurada, mas anterior a 04.02.2003, com reconhecimento notarial das assinaturas, datado de 04/02/2003, outorgado entre BB, casada com AA (1ª outorgante) e “R...Construções, Lda” (2ª outorgante); 4. O gerente da sociedade executada entregou as chaves das frações “D” e “E” aos embargantes em 2006, encontrando-se as mesmas a ser habitadas pelos dois filhos destes; 5. Os embargantes, em 2009, deduziram Embargos de Terceiro no processo de execução fiscal n.º ..............99, sendo que, por sentença transitada em julgado em 28/11/2011, foram os embargos julgados provados e, consequentemente, determinado o levantamento da penhora sobre as frações “D” e “E”; 6. Foi celebrado, por escritura pública epigrafada de “Compra e Venda e Empréstimo”, datada de 04/02/2003, outorgada por AA e BB (1ºs outorgantes), “R...Construções, Lda” (2ª outorgante) e Caixa Económica Montepio Geral (3ª outorgante).


2. Este Tribunal, no acórdão ora recorrido decidiu, “Face ao exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem este coletivo da 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso procedente, e, em consequência, julgam-se os embargos de terceiro improcedentes”, pois, entendeu, que “não existe nenhum elemento minimamente isento que possa sustentar a celebração de tal contrato-promessa nos termos que constam do documento que o consubstancia, quer quanto à respetiva exigência enquanto negócio jurídico que efetivamente as partes quiseram celebrar, quer à data que dele consta.”


3. Com o devido respeito, douto acórdão do TRL enfermam de um grave erro, ao confundir reapreciação em segunda instância, com a apreciação presencial e in loco do tribunal de primeira instância, este não só ouviu as partes e as testemunhas, mas livremente viu e apreciou os seu gestos e semblantes, o modo como deram as suas respostas, as suas hesitações e mesmo os seus silêncios, ao não querem responder ao que lhes era perguntado e o modo como o fizeram, quer agora por em causa a livre e apreciação das provas pelo tribunal à quo e a livre convicção do juiz.


4. Assim compete ao Tribunal e não aos intervenientes processuais, julgar a matéria de facto, segundo os ditames previstos na lei, nomeadamente, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (exceto perante prova vinculativa), sendo estes os parâmetros determinantes do ato de julgar.


5. A reapreciação de matéria de facto, prende-se com o princípio da oralidade, no sentido de o mesmo implicar uma imediação, um contacto direto entre o julgador e os elementos de prova (sejam eles pessoas, coisas, lugares, sons, etc.), pois só através deste interagir pessoal, presencial, direto e imediato, é possível ao julgador formar a sua livre convicção


6. O contado direto, só existe de facto, na primeira instância, pois a imediação permite ao julgador ter uma perceção dos elementos de prova que é muito mais próxima da realidade do que qualquer posterior análise, a realizar pelo tribunal de recurso, mesmo que se socorra da documentação dos atos da audiência.


7. E em matéria de credibilidade de depoimento, esta imediação revela-se, de importância fulcral, já que no desenrolar do depoimento, a posição corporal, os gestos, as hesitações, o tom de voz, o olhar, o embaraço ou desembaraço, enfim, todas as componentes pessoais ligadas ao ato de depor, que são muitas vezes insuscetíveis de serem registadas, mas que ficam na memória de quem realizou o julgamento, como elemento inestimável de formação da convicção do julgador, mas são praticamente insuscetíveis de serem reapreciadas em sede de recurso.


8. Atendendo ao exposto, haverá que concluir que, em tal matéria, cabe apenas ao tribunal de recurso doutamente verificar, controlar, se o tribunal “a quo”, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, sendo certo que tal apreciação deverá ser feita com base na motivação elaborada pelo tribunal de primeira instância, na fundamentação da sua escolha. Ora tal não tal não foi seguido pelo douto Acórdão do TRL.


9. Refere-se no douto acórdão do TRL, que não é comum fazerem-se dois contratos-promessa distintos, e sem constar dos mesmos a referência à permuta do terreno, no entanto, nada na lei obsta a que tal suceda.


10. Todavia, o negócio jurídico principal e subjacente à celebração do contrato-promessa é a futura aquisição das frações “D” e “E”, cujo objeto se reparte pelos dois contratos-promessa celebrados, na mesma data a 13/11/2001.


11. O TRL, a fls. 25 do acórdão, refere que “não corresponde à verdade, que é o facto de a executada declarar que é dona e legítima possuidora do terreno, que foi naquela data – 13.11.2001”, pois os proprietários do terreno aquando da celebração do contrato-promessa eram AA e BB, os segundos contraentes do contrato-promessa, promitentes-compradores.


12. Atendendo aos contornos do negócio celebrado, consegue-se entender a menção pela sociedade como proprietária do terreno, pois, caso tudo ocorresse conforme os tramites normais, a mesma seria dona e legitima possuidora do terreno aquando da celebração do contrato prometido.


13. No entanto, este facto acerca da propriedade do terreno não obsta à validade do contrato, na medida em que é possível adquirir posteriormente essa propriedade.


14. Segundo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10/02/2004, processo n.º 04A4458, “Para terem legitimidade para celebração de contrato promessa de compra e venda, os promitentes vendedores não têm de ser proprietários do bem a vender. É válido o contrato promessa de compra e venda de coisa alheia. Podendo, portanto, os promitentes vendedores adquirir, entretanto, a propriedade da coisa, de modo a poderem cumprir na altura própria o contrato promessa celebrando o contrato prometido.” (sublinhados nossos).


15. Assim, conforme é o caso dos presentes autos, posteriormente a sociedade executada adquiriu a propriedade dos imóveis podendo celebrar-se o contrato de compra e venda das frações em causa. Pelo que, só nos resta concluir que os contratos-promessa em causa nos autos não enfermam de nulidade, contrariamente ao que consta do acórdão recorrido.


16. Como previamente alegado perante o Tribunal a quo, segundo o disposto no art.º 880º do C.C., é permitida a venda de bens futuros, ou seja, bens que, ao tempo da celebração o negócio ainda não existia, ou que ainda não são da titularidade de vendedor. Mesmo que o objeto do contrato-promessa de compra e venda tivesse por objeto um bem alheio, dispõe o art.º 893º do C.C., que “a venda de bens alheios fica, porém, sujeita ao regime de venda de bens futuros, se as partes os considerarem nessa qualidade”.


17. O negócio foi efetivamente realizado, termos em que o imóvel e as frações que ficaram na posse dos Embargantes pelo que há que decidir segundo o princípio da conservação dos contratos - princípio do favor negotii - em detrimento da formalidade do mesmo.


18. É ainda de referir, que apesar dos argumentos utilizados pela Embargada, o contrato-promessa não foi posto em causa, nem foi discutida a sua validade, o que foi igualmente desconsiderado na fundamentação do Tribunal a quo, sendo que tal facto consta, simultaneamente, dos factos provados, quer do Tribunal de Primeira Instância, quer do Tribunal da Relação.


19. Conforme o disposto no art.º 205º do C.N., a aposição do selo branco é feita junto da assinatura e da rubrica do notário ou do oficial, o que foi feito nos presentes autos no contrato-promessa que tem a assinaturas dos outorgantes reconhecidas notarialmente conforme consta dos autos.


20. Em 14/10/2021, entendeu o Tribunal da Relação de Guimarães, no processo n.º 2450/18.7T8VRL.G1 que, “E, nos termos do art. 211º do CC, o contrato promessa de compra e venda de bens futuros poderá vir a ser cumprido se a coisa vier a estar no poder do promitente vendedor ou este vier a ter direito a ela.” (sublinhados nossos)


21. Apesar da celebração do contrato de mútuo com hipoteca apenas se ter realizado em 04/02/2003, tal encontra-se justificado, atendendo ao facto de que a empresa Executada ter pendente uma hipoteca ao Banco exequente, hipoteca esta que o gerente da Executada ficou de pagar, tendo protelado sucessivamente a escritura das aludidas frações, até à data em que a mesma foi realizada.


22. No que respeita ao preço pago, não existe qualquer impedimento legal ou normativo de que o preço de um contrato-promessa de compra e venda seja pago integralmente, antes da celebração do contrato definitivo.


23. Nestes termos, decidiu o Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão datado de 21/11/2011, processo n.º 476/10.8TBPNF.P1, “A quantia que os autores e promitentes compradores pagaram à ré promitente vendedora, nos termos do contrato-promessa em causa, que corresponde à totalidade do preço (…) tem (presuntivamente) carácter de sinal (confirmatório).”


24. O Tribunal da Relação de Évora, no Acórdão datado de 21/12/2017, no processo n.º 1004/05.2TBLLE.E4, decidiu que “O pagamento integral da quantia correspondente ao preço total acordado para o contrato prometido, ainda no âmbito do contrato-promessa, não obsta à qualificação de tal entrega como tendo sido efectuada a título de sinal.”


25. Em suma, contrariamente ao entendimento do douto acórdão, salvo o devido respeito, não existem dúvidas acerca da autenticidade do documento apresentado, nem da sua validade, nem da legalidade da forma de realização do pagamento.


26. Não se compreende, salvo o devido respeito, o afirmado no acórdão recorrido “não existe, de todo, qualquer meio de prova isento e objetivo que possa sustentar a respetiva prova. (…) não havendo nenhuma referencia objetiva e isenta onde basear a respetiva “celebração”, e muito menos onde esta possa ser localizada no tempo, temos que o documento pode perfeitamente ter sido elaborado em qualquer altura”.


27. Inclusivamente o Tribunal a quo equaciona a possibilidade de ter sido elaborado “na altura em que foram deduzidos os embargos na execução fiscal (…) e exatamente para tal efeito, ou seja, ter sido elaborado unicamente para fundamentar esses embargos.” Ora, tal argumentação parece-nos completamente descabida porque não se alicerça com qualquer depoimento ou prova, até porque existe um reconhecimento notarial para o contrato-promessa, datado de 04/02/2003, pelo que, desta forma, equaciona-se que uma terceira entidade o Notário, completamente alheia e desinteressada no contrato, tenha violado a lei e os seus estatutos profissionais, sem ter qualquer tipo de benefício.


28. Nos termos do disposto no art.º 375º, n.º 1 e 2 do C.C., relativamente a documentos particulares, a letra e assinatura, ou apenas a assinatura do documento, têm-se por verdadeiras, caso sejam reconhecidas presencialmente, e no art.º 376º, n.º 1 do C.C., “O documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.”


29. Pois, conforme reconhece a douta sentença “O reconhecimento notarial constitui um elemento objetivo que permite concluir pela efetiva celebração do contrato-promessa que resulta das declarações que nele constam.” (sublinhados nossos)


30. Discorda-se ainda da decisão tomada pelo Tribunal a quo no que diz à posse dos Embargantes sobre as frações em causa nos autos.


31. A posse dos Embargantes, nos termos do art.º 1258º e ss. do C.C., tem-se como uma posse pública, pacifica, titulada e de boa-fé, porque a posse dos Embargantes era exercida à vista de qualquer pessoa, ao longo de vários anos, tendo existindo igualmente a tradição da coisa pela entrega das chaves do imóvel, sendo assim uma posse legítima.


32. Decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21/05/2024, processo n.º 830/04.4TBCLD-C.C2, “Tendo-se apurado que houve pagamento integral do preço e tradição da coisa e que os atos praticados no imóvel foram realizados à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de ninguém e na convicção dos embargantes serem donos do imóvel, estão reunidos os elementos integrantes da posse: corpus e animus, pelo que lhes assiste o direito de beneficiarem da tutela da posse, mediante embargos de terceiro.”


33. Conforme decidido, “A posse (traditio) ocorreu já depois de constituída e registada a hipoteca a favor da exequente sobre as frações penhoradas. Porém, os factos provados confirmam que o preço das frações encontra-se (integralmente) pago desde antes da constituição da hipoteca. A penhora das frações “D” e “E” é ofensiva do direito de posse dos embargantes, firmado antes da penhora e que por isso, é aqui de reconhecer.”


34. Entendeu o Tribunal da Relação de Évora, em 24/02/2005, no processo n.º 2594/04-3, “Se num contrato-promessa de compra e venda tiver operado a tradição da coisa para o promitente-comprador, foi-lhe atribuído um direito real de garantia e não um direito real de gozo e, consequentemente, pode ele deduzir embargos de terceiro, para defender a sua posse.”, seguindo o Supremo Tribunal de Justiça, em 06/03/1997, no processo n.º 96B638, “(…) que o promitente-comprador, que beneficie da tradição da coisa, pode usar das acções destinadas à defesa da posse e, consequentemente, também dos embargos de terceiro.”


35. É admitido pelo acórdão recorrido que “a jurisprudência tem admitido que, em determinadas circunstâncias, tal entrega possa gerar o exercício de poderes de facto suscetíveis de configurarem a posse baseadas diretamente no direito que se visa adquirir por via do contrato-promessa.”


36. Tal como exposto, não se pode concordar com a nulidade do contrato-promessa, dendo manter-se o fundamento para a posse dos Embargantes.


37. Os Embargantes estão na posse dos imóveis desde 2006, ano em que a sociedade executada entregou as chaves das frações “D” e “E” aos Embargantes, e as mesmas começaram a ser habitadas pelos filhos destes. O registo de aquisição nunca foi realizado porque a construtora/ sociedade executada não tinha o dinheiro necessário para pagar ao Banco exequente o distrate das hipotecas. Para além de que, é de referir que o facto de a tradição da coisa ter ocorrido antes da realização da escritura de compra e venda, não impede que os Embargantes sejam possuidores das frações.


38. Têm sido apontados na doutrina e na jurisprudência os seguintes elementos para concluir que o promitente-comprador atua como proprietário da coisa: 1. Parte do preço pago do imóvel – a jurisprudência tem entendido que o promitente comprador, que tenha pago a totalidade do preço, goza a coisa como fosse sua; 2. Contratos celebrados em seu nome (água, luz, gás, telefone, televisão, internet, seguro, etc.); 3. Realização de obras de remodelação; 4. Instalação de mobiliário; 5. Se a não realização do contrato prometido apenas se deve a questões relacionadas com as despesas do ato (ex. pagamento do IMI), concluindo-se que se este se comporta como proprietário tem o corpus e o animus, pode usar os meios possessórios, como a dedução de embargos de terceiro.


39. Inclusivamente, entendeu o Supremo Tribunal de Justiça, em 25/03/2014, processo n.º 1729/12.6TBCTB-B.C1.S1, “É válida e eficaz a tradição para os promitentes compradores, ainda que meramente simbólica, do andar objecto do contrato promessa, por estar provado que através de aditamento ao contrato promessa inicial, a promitente vendedora transmitiu aos promitentes compradores a “posse” do referido andar em construção, e que, aquando da assinatura do mencionado aditamento, a mesma promitente vendedora entregou a estes as chaves de acesso ao prédio, onde se localizava o andar, e ainda que, a partir de então, os recorrentes acederam ao prédio em questão, fazendo uso da chave que lhes foi entregue, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém. (…)


40. No entanto, no caso dos autos, não era possível que a hipoteca incidisse sobre o prédio, ou mais especificamente sobre as frações “D” e “E”, pois estas ainda não tinham sido construídas, existindo apenas o terreno destinado a construção. Ora, a hipoteca foi registada aquando da celebração do contrato de “Compra e Venda e Empréstimo”, em 04/02/2003, e a transmissão da propriedade ao embargante ainda não ocorreu por culpa da sociedade executada que alega falta de património suficiente para pagar ao banco exequente o distrate das hipotecas e realizar a escritura com os Embargantes.


41. Segundo o Acórdão do STJ, datado de 19/06/2007, processo n.º 07A1624, “A hipoteca - direito real de garantia - registada antes da transmissão da propriedade das fracções - ou da respectiva posse - é impeditiva da procedência de embargos de terceiro requeridos contra penhora operada em execução hipotecária.” 42. Por todo o exposto, não se pode concordar com o entendimento do TRL relativa à improcedência dos Embargos de Terceiro sobre as referidas frações, tendo em conta que a entrega das frações gera o exercício de poderes de facto baseados na posse diretamente no direito que se visa adquirir com a celebração do contrato-promessa. Assim sendo, deverá dar-se como provado o consta doutamente decidido pelo Tribunal de ..., na letra “E” dos Factos Provado, como se transcreve infra: “E. Por documento particular, epigrafado de “Contrato promessa de compra e venda”, datado de 13/11/2001, outorgado entre “R...Construções, Lda” (1ª outorgante) e BB casada com AA (2ª outorgante), declararam as partes, nas cláusulas 1ª a 3ª:


43. Contrariamente ao entendimento expresso no douto acórdão, o fundamento para se entender a existência de posse dos Embargantes, ou seja, o contrato-promessa, não desapareceu, mantendo-se assim a posição de possuidores com direito de defesa da posse.».


Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido e a repristinação da decisão do Tribunal da 1.ª instância.


A recorrida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso com a confirmação da decisão do acórdão recorrido.


3. Foram dados como provados os seguintes factos (mantêm-se a numeração e redacção do Tribunal da Relação):


A. Em 08/04/2021, foram fixados dois editais “Edital - Imóvel Penhorado”, nas frações autónomas “D” e “E” correspondentes respetivamente ao 1º andar esquerdo e 1º andar direito, Bloco A, para habitação, do prédio urbano em propriedade horizontal sito na Rua..., com vãos de porta para a Calçada ..., ..., freguesia de ..., descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de ... com n.º ..68 e inscrito matriz artigo ...26, da freguesia de ..., para penhora das aludidas frações no âmbito do Processo 2676/21.3..., do Tribunal de Comarca de Lisboa Norte- ..., Juízo de Execução, Juiz ..., em que é Exequente “Hefesto STC S.A.” e Executada “R...Construções, Lda”.


B. Os embargantes, por consulta das certidões prediais permanentes, verificaram que se encontram registadas as aludidas penhoras pela Ap. .47 de 2021/03/22, para garantia da quantia exequenda de € 437.412,93, em que é sujeito ativo a exequente Hefesto STC S.A., e sujeito passivo a executada R...Construções, Lda, no processo executivo n.º 2476/21.3T8LRS.


C. A aquisição das frações encontra-se registada a favor da sociedade executada pela Ap. 30 de 2003/03/05.


D. As aludidas frações autónomas têm, cada uma, o valor patrimonial de € 137.046,39.


E. [dado como não provado pelo Tribunal da Relação]


F. [alterado pela Relação] Por documento epigrafado de “Contrato promessa de compra e venda e recibo de sinal”, datado de 13.11.2001, celebrado em data não apurada, mas anterior a 04.02.2003, com reconhecimento notarial das assinaturas, datado de 04/02/2003, outorgado entre BB, casada com AA (1ª outorgante) e “R...Construções, Lda” (2ª outorgante), declararam as partes, nas cláusulas 1ª a 4ª:

G. [alterado pela Relação] Em data não apurada, a “R...Construções, Lda” entregou a AA um cheque no valor de € 34.915,86, para pagamento de parte do sinal e princípio de pagamento.


H. E pagou em dinheiro a quantia de € 9.975,95 [Esc. 2.000.000$00].


I. O gerente da sociedade executada entregou as chaves das frações “D” e “E” aos embargantes em 2006, encontrando-se as mesmas a ser habitadas pelos dois filhos destes, CC e DD, respetivamente, desde 2006 e 2008.


J. Foram realizados contratos de fornecimento de gás, eletricidade e água, para as aludidas frações, em nome dos filhos dos embargantes, que se mantêm até hoje.


K. Os embargantes, em 2009, deduziram Embargos de Terceiro no processo de execução fiscal n.º ..............99, sendo que, por sentença transitada em julgado em 28/11/2011, foram os embargos julgados provados e, consequentemente, determinado o levantamento da penhora sobre as frações “D” e “E”.


L. Por escritura pública epigrafada de “Compra e Venda e Empréstimo”, datada de 04/02/2003, outorgada por AA e BB (1ºs outorgantes), “R...Construções, Lda” (2ª outorgante) e Caixa Económica Montepio Geral (3ª outorgante), declararam as partes:


Facto dado como não provado pela Relação:


E. Por documento particular, epigrafado de “Contrato promessa de compra e venda”, datado de 13/11/2001, outorgado entre “R...Construções, Lda” (1ª outorgante) e BB, casada com AA (2ª outorgante), declararam as partes, nas cláusulas 1ª a 3ª:

4. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso.


Deste modo, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões:

• Erro do acórdão recorrido na apreciação da impugnação da matéria de facto;

• Erro do acórdão recorrido ao decidir não reconhecer a posse dos embargantes.


5. Erro do acórdão recorrido na apreciação da impugnação da matéria de facto


Impugna o recorrente a forma como o Tribunal a quo reapreciou a matéria de facto, invocando que o acórdão recorrido procedeu à «reapreciação em segunda instância, com a apreciação presencial e in loco do tribunal de primeira instância, este não só ouviu as partes e as testemunhas, mas livremente viu e apreciou os seu gestos e semblantes, o modo como deram as suas respostas, as suas hesitações e mesmo os seus silêncios, ao não querem responder ao que lhes era perguntado e o modo como o fizeram, quer agora por em causa a livre e apreciação das provas pelo tribunal à quo e a livre convicção do juiz».


Ainda que o recorrente não identifique, em concreto, quais os pontos da matéria de facto cujo julgamento pelo Tribunal da Relação pretende pôr em causa, da leitura das alegações (ponto 95), em conjugação com as conclusões 3) a 29), apreende-se que aquele pretende que seja dado como provado o ponto E, que o acórdão recorrido entendeu dar como não provado, e que respeita à celebração de um segundo contrato-promessa entre a executada e os embargantes.


Invoca o recorrente a autenticidade do contrato-promessa descrito no ponto E da factualidade dada como provada pela 1.ª instância, alegando o seguinte:


«[O] contrato-promessa não foi posto em causa, nem foi discutida a sua validade, o que foi igualmente desconsiderado na fundamentação do Tribunal a quo, sendo que tal facto consta, simultaneamente, dos factos provados, quer do Tribunal de Primeira Instância, quer do Tribunal da Relação.


19. Conforme o disposto no art.º 205º do C.N., a aposição do selo branco é feita junto da assinatura e da rubrica do notário ou do oficial, o que foi feito nos presentes autos no contrato-promessa que tem a assinaturas dos outorgantes reconhecidas notarialmente conforme consta dos autos».


De acordo com a regra geral consagrada nos arts. 662.º, n.º 4, e 674.º, n.º 3, do CPC, não pode o Supremo Tribunal de Justiça sindicar o modo como o tribunal da Relação apreciou a impugnação da matéria de facto quando os meios de prova envolvidos se encontrem abrangidos pelo princípio da livre apreciação da prova. A sua intervenção está circunscrita às situações em que seja invocado erro de direito, seja por violação de norma processual civil, seja por ofensa a disposição legal que exija certa espécie de prova ou que fixe a força de determinado meio de prova (cfr. art. 674.º, n.º 3, in fine, do CPC).


Em conformidade com a orientação, que se afigura prevalecente, da jurisprudência deste Supremo Tribunal (cfr. acórdãos de 24-10-2023, proc. n.º 24966/19.8T8PRT.P1.S1; de 04-07-2023, proc. n.º 19645/18.6T8LSB.L1.S1; de 15-06-2023, proc. n.º 6132/18.1T8ALM.L1.S2; e de 14-07-2021, proc. n.º 1333/14.4TBALM.L2.S1, consultáveis em www.dgsi.pt), este não fica igualmente dispensado de verificar se o Tribunal da Relação cumpriu o ónus de análise crítica da prova.


Na verdade, e diversamente do entendimento do recorrente, o regime do art. 662.º do CPC estabelece um efectivo segundo grau de jurisdição na apreciação da prova produzida, sendo imposto ao Tribunal da Relação, por força da previsão do art. 607.º, n.º 4, aplicável ex vi art. 663.º, n.º 2, ambos do CPC, que aprecie criticamente as provas indicadas como fundamento da impugnação de modo a formar a sua própria convicção.


No caso sub judice, constata-se que o acórdão recorrido procedeu à análise da prova produzida nos autos, em especial, à audição da prova gravada, conjugando-a com a demais prova documental, concluindo, em face da análise conjugada dos diferentes meios de prova analisados, pela necessidade de proceder à alteração da matéria de facto dada como provada e como não provada.


Não merece, assim, reparo a forma como o acórdão recorrido procedeu à reapreciação global da prova formando uma convicção própria e distinta da do Tribunal da 1.ª instância.


De uma forma particular, não merece reparo a apreciação que o acórdão recorrido fez ao considerar o ponto E como não provado.


Vejamos mais detalhadamente.


Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que o ponto E se refere ao seguinte facto:


«E. Por documento particular, epigrafado de “Contrato promessa de compra e venda”, datado de 13/11/2001, outorgado entre “R...Construções, Lda” (1ª outorgante) e BB, casada com AA (2ª outorgante), declararam as partes, nas cláusulas 1ª a 3ª:

Quanto a este ponto da matéria de facto, o Tribunal da Relação entendeu dá-lo como não provado com a seguinte fundamentação:


«Comecemos pelo facto constante da al. E. Dele resulta que o tribunal a quo deu como provado que em 13.11.2001 a executada prometeu vender aos embargantes 3 fogos da tipologia T3 que iriam integrar o edifício que seria construído pela executada no terreno identificado na cláusula 1ª. Dessa cláusula consta ainda que a executada declara que é proprietária desse terreno. Como resulta da fundamentação acima referida, a prova da celebração desse contrato nos termos que dele constam baseou-se unicamente na mera existência do documento e no depoimento do embargante AA. Na decisão recorrida disse-se que a embargada não apresentou contraprova, considerando ainda coerentes as declarações da parte e que é do conhecimento geral que negócios como este – de permuta entre a venda do terreno para construção e a compra de frações no edifício a construir – são comuns, daí decorrendo, no entender do tribunal a quo, a prova quanto ao aludido contrato-promessa.


Quanto à contraprova há que dizer que é óbvio que a mesma não existe, nem nunca poderia existir, desconhecendo-se até que contraprova o tribunal a quo considera que a embargada poderia apresentar. A embargada é completamente alheia a tal negócio, pretensamente celebrado cerca de ano e quatro meses antes da escritura que formalizou a aquisição do terreno pela executada e o contrato de mútuo com hipoteca que constitui o título executivo (celebrado em 04.02.2003)1. O argumento relativo à falta de contraprova pode ser válido nas situações em que a parte contrária está numa posição em também tem, em termos de juízo de normalidade ou por ter participado neles, um efetivo conhecimento dos factos em causa. Quando é completamente alheia a esses factos, o argumento não colhe de todo.


O documento está assinado pelos embargantes e pelo gerente da executada, todos eles com interesses comuns, os quais são opostos aos da exequente-embargada. Pergunta-se: tal documento interessa aos embargantes? Obviamente que sim, pois é nesse contrato que assentam a pretensão que vieram deduzir por via dos embargos. Ora, ponderada a prova, verifica-se que não existe nenhum elemento minimamente isento que possa sustentar a celebração de tal contrato-promessa nos termos que constam do documento que o consubstancia, quer quanto à respetiva existência enquanto negócio jurídico que efetivamente as partes quiseram celebrar, quer à data que dele consta.


Diz-se na sentença recorrida que é comum a celebração deste género de contratos, que serão de permuta entre um bem presente – o terreno onde o edifício vai ser construído – e um bem futuro – as frações que irão integrar o edifício. Isso é verdade. O que já não é nada comum é fazê-lo da forma como os embargantes dizem que o fizeram, ou seja, através de dois contratos-promessa distintos, sem que do teor de qualquer deles resulte a pretensa permuta. Desde logo consta do mesmo algo que não corresponde à verdade, que é o facto de a executada declarar que é dona e legítima possuidora do terreno, que foi naquela data – 13.11.2001 – adquirido aos segundos outorgantes, promitentes-compradores e ora embargantes. Depois temos que foi declarado que o preço devido pelas frações já se encontra integralmente efetuado, pagamento esse realizado na data em que o contrato foi celebrado. Ora, se a executada ainda não tinha adquirido a propriedade do terreno, se ainda iria celebrar a escritura e ainda tinha de pagar aos embargantes – que são os promitentes-compradores nesse contrato – pelo menos parte do preço devido pela compra do terreno (conforme teor do contrato-promessa referido na al. F), qual a razão para ter sido efetuado o pagamento das futuras frações naquela data? Se estamos perante um contrato-promessa que envolve uma permuta que ainda iria ser formalizada, estando, ademais, por pagar parte do preço devido pela compra do terreno, o pagamento integral que aí foi declarado relativo às futuras frações é contraditório com a existência de tal permuta. E quanto à cópia do cheque que foi junto com o requerimento de 29.06.2023, trata-se simplesmente de uma cópia constante do livro de cheques, não constituindo, portanto, um documento emitido pelo banco que comprova que o mesmo foi apresentado a pagamento e foi pago. Acresce que desse documento resulta evidente que o nome “AA” foi acrescentado, pois os respetivos carateres são manifestamente distintos dos restantes (traço mais acentuado, em contraste com os demais elementos da cópia, cujos traços são mais ténues). E trata-se de um pagamento alegadamente efetuado pela executada aos embargantes. Disse o embargante que se tratou de um acerto de contas decorrente da celebração em simultâneo de ambos os contratos-promessa. Mas, tal como se referiu quanto à existência do contrato, também aqui tal factualidade – a relação entre os dois contratos-promessa e o acerto de contas – decorre de declarações de parte sem sustentáculo em qualquer outro meio de prova minimamente isento (e nem sequer resulta do texto de qualquer um dos contratos-promessa).


Como se vê, o teor do contrato-promessa em apreço é muito estranho em face das circunstâncias que o rodeiam e não existe, de todo, qualquer meio de prova isento e objetivo que possa sustentar a respetiva prova. Dado o manifesto interesse na existência desse contrato-promessa por parte dos embargantes, não havendo nenhuma referência objetiva e isenta onde basear a respetiva “celebração”, e muito menos onde esta possa ser localizada no tempo, temos que o documento pode perfeitamente ter sido elaborado em qualquer altura, como por exemplo na altura em que foram deduzidos os embargos na execução fiscal a que se alude no item K dos factos provados e exatamente para tal efeito, ou seja, ter sido elaborado unicamente para fundamentar esses embargos. A simples existência do documento junto aos autos e as declarações de parte do embargante não são, de forma evidente, meios de prova que possam sustentar, em sede de embargos de terceiro perante a exequente-embargada totalmente alheia ao contrato, a celebração entre as partes do contrato-promessa que resulta do conteúdo do documento.


Deste modo, procede na íntegra a impugnação da matéria de facto pretendida pela recorrente quanto ao item E dos factos provados, que terá necessariamente de ser remetido para os factos não provados.».


Ao contrário do que ao alega o recorrente, e conforme se constata da contestação da exequente, o documento (contrato-promessa) respeitante ao facto E, foi impugnado pela exequente e consiste num documento (cfr. doc. 7 junto com a p.i.) que não tem o reconhecimento presencial das assinaturas, conforme é sublinhado pelo acórdão recorrido.


Nessa medida, estamos perante um documento particular impugnado pela exequente embargada, pelo que, por força do disposto no art. 374.º, n.º 2, do Código Civil, cabia aos embargantes o ónus de provar a veracidade do teor das declarações aí inseridas.


Este contrato teria, alegadamente, sido celebrado entre os embargantes e a sociedade executada, sendo a exequente um terceiro relativamente ao mesmo, pelo que, nos termos do disposto no art. 376.º, n.º 1, do Código Civil, apenas gozaria de força probatória plena quanto à materialidade das declarações atribuídas aos seus autores se as assinaturas estivessem reconhecidas (cfr. art. 410.º, n.º 3, do CC), desde que apresentado contra os autores dessas declarações e na medida em que lhe fossem prejudiciais. Relativamente a terceiros, como é o caso da embargante, e uma vez que o seu teor foi impugnado, este documento vale apenas como elemento de prova a ser apreciado livremente pelo tribunal (cfr. arts. 374.º, n.º 2 e 376.º do CC).


Refira-se, por ter apreciado situação similar ,o acórdão deste Supremo Tribunal de 21-02-2008, proc. n.º 15/08, com o seguinte sumário (disponível em www.stj.pt): «I - Foi junto ao processo um documento particular em que um dos executados declara que vendeu determinados bens à ora embargante. II - O embargado é terceiro em relação ao declarante e declaratário do citado documento, pelo que a declaração nele vertida é apreciada livremente pelo tribunal - art. 376.º, n.º 2, do CC. III - Ora, tendo o tribunal formado a sua convicção para decisão da matéria de facto no depoimento de testemunhas e não estando o documento referido imbuído de força probatória plena, prova toda ela livremente valorada, não é sindicável pelo STJ a fixação da matéria de facto em causa. (…).».


Conclui-se, assim, que o acórdão recorrido, no que se refere à reapreciação da matéria de facto e, em particular, à reapreciação do facto, dado como não provado, sob o ponto E, não incorreu na violação de qualquer norma legal pelo que se mostra excluída a sua reapreciação por este Supremo Tribunal. Esclareça-se ainda que, diversamente do alegado pelo recorrente (conclusão 27), não padecem de ilogicidade manifesta as presunções legais utilizadas na reapreciação da impugnação de tal ponto da matéria de facto.


6. Erro do acórdão recorrido ao decidir não reconhecer a posse dos embargantes


Nos presentes autos de oposição mediante embargos de terceiro pretendem os embargantes que seja reconhecida a sua posse sobre as fracções autónomas “D” e “E” correspondentes, respectivamente, ao 1.º andar esquerdo e 1.º andar direito, Bloco A, para habitação, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Rua ..., com vãos de porta para a Calçada do ..., ..., freguesia de ..., descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de ... com n.º ..68 e inscrito na matriz artigo ...26, da freguesia de ..., com o consequente levantamento das penhoras que recaem sobre as referidas fracções.


O acórdão recorrido fundamentou a decisão de improcedência nos seguintes termos:


«Como se constata, não obstante do contrato-promessa resultarem apenas direitos do âmbito obrigacional, não sendo, por regra, a entrega da coisa prometida vender suscetível de gerar a posse que fundamenta o uso de ações possessórias destinadas à respetiva defesa, exatamente porque não tem por base o exercício de um direito real, a jurisprudência tem admitido que, em determinadas circunstâncias, tal entrega possa gerar o exercício de poderes de facto suscetíveis de configurarem a posse baseadas diretamente no direito que se visa adquirir por via do contrato-promessa.


Ora, é exatamente esta conceção de posse que fundamenta os embargos de terceiro deduzidos pelos embargantes e foi também com base nela que a decisão recorrida fundamentou a respetiva procedência.


No entanto, como decorre do decidido quanto à impugnação da matéria de facto, o contrato-promessa onde os embargantes baseavam a posse que invocavam foi considerado não provado. Desapareceu, deste modo, o fundamento fáctico fundamental para se poder equacionar (sendo que, em todo o caso, mesmo que os factos se mantivessem, não era certo que a decisão proferida se pudesse manter atendendo, nomeadamente, à doutrina ínsita no acórdão de 27.06.2019, acima citado) a possibilidade da existência da invocada posse.


Em face disso, não havendo qualquer sustentáculo que possa fundamentar a posse dos embargantes, estes são meros detentores precários, e não possuidores, pelo que nenhum direito lhes assiste que possa ser oposto à penhora das frações levada a efeito na execução.


Os embargos de terceiro têm, portanto, de ser considerados improcedentes, procedendo deste modo o presente recurso». [negritos nossos]


Insurge-se o recorrente contra esta decisão, invocando essencialmente o seguinte:


«[A] posse dos Embargantes, nos termos do art.º 1258º e ss. do C.C., tem-se como uma posse pública, pacífica, titulada e de boa-fé, porque a posse dos Embargantes era exercida à vista de qualquer pessoa, ao longo de vários anos, tendo existido igualmente a tradição da coisa pela entrega das chaves do imóvel, sendo assim uma posse legítima.


(…) Têm sido apontados na doutrina e na jurisprudência os seguintes elementos para concluir que o promitente-comprador atua como proprietário da coisa: 1. Parte do preço pago do imóvel – a jurisprudência tem entendido que o promitente comprador, que tenha pago a totalidade do preço, goza a coisa como fosse sua; 2. Contratos celebrados em seu nome (água, luz, gás, telefone, televisão, internet, seguro, etc.); 3. Realização de obras de remodelação; 4. Instalação de mobiliário; 5. Se a não realização do contrato prometido apenas se deve a questões relacionadas com as despesas do ato (ex. pagamento do IMI), concluindo-se que se este se comporta como proprietário tem o corpus e o animus, pode usar os meios possessórios, como a dedução de embargos de terceiro».


Mais invoca o recorrente que os seus filhos, AA e DD, residem nas referidas fracções autónomas, desde 2006 e 2008, respectivamente, na sequência do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre a executada e os embargantes e da entrega das chaves das fracções a estes últimos.


Quid iuris?


6.1. A oposição mediante embargos de terceiro constitui uma forma de reacção de um terceiro contra a penhora ou outro acto de apreensão ou entrega de bens, invocando a ofensa da titularidade sobre o bem ou a sua posse ou outro direito incompatível com a diligência em causa (cfr. Marco Carvalho Gonçalves, Embargos de terceiro na acção executiva, Coimbra Editora, Coimbra, 2010, págs. 98 e segs.)


De acordo com Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Pires de Sousa (Código Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, pág. 436):


«Para poder fundar a procedência dos embargos fundados na posse, esta será em nome próprio, constituindo presunção da titularidade de um direito incompatível com a diligência (art. 1268.º do CC). Tratando-se de posse em nome de outrem (diverso do executado), deve decorrer de um direito pessoal de gozo ou de aquisição sobre o bem penhorado (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anot., vol. I, 42 ed., p. 675, e Andrade Mesquita, Direitos Pessoais de Gozo, pp. 205-208). Essencial é que o embargante se encontre numa situação que seja materialmente oponível à diligência efetuada, em resultado de alguma disposição legal que lhe confira a mesma tutela possessória» (Rui Pinto, A Ação Executiva, p. 716).»


Para que um terceiro possa ser reconhecido como possuidor, no âmbito dos embargos de terceiro, deve invocar o exercício de poderes materiais sobre a coisa (corpus), bem como a intenção de se comportar como titular efectivo daquele bem (animus), reconhecendo-lhe a lei a presunção dessa titularidade (cfr. art. 1268.º do CC).


Porém, nem toda a posse é susceptível de fundar a oposição mediante embargos, mas tão só a posse que permita presumir a existência do direito de propriedade a favor do embargante (Marco Gonçalves, ob. cit., pág. 75).


A posse pode ser titulada ou não titulada, sendo que a posse titulada é aquela que se mostra assente num meio legítimo de aquisição, não padecendo de vícios formais, ao passo que a posse não titulada é aquela que, nas palavras do mesmo autor (ob. cit. págs. 85 a 87 ), não se funda «em qualquer modo legítimo de aquisição ou quando o negócio jurídico, abstractamente idóneo para operar a transferência do direito, esteja inquinado por um vício formal. Nesta exacta medida, será não titulada a posse de alguém que detém uma coisa porque simplesmente se apossou dela, ou a posse fundada num contrato-promessa de compra e venda (já que não se trata, em si mesmo e em abstracto, de um modo legítimo de transmitir e de adquirir o direito de propriedade, porquanto do mesmo apenas resulta a obrigação de efectuar o contrato prometido) ou num contrato de compra e venda celebrado verbalmente, dado que a compra e venda de imóveis é um contrato formal. // (…) // Não sendo a posse titulada, o terceiro possuidor de um bem penhorado ou atingido por um acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens não pode, em regra, defender a sua posse através do incidente de embargos de terceiro, dado que carece de legitimidade substantiva para esse efeito».


Importa ainda distinguir a posse da mera detenção. Nos termos do art. 1253.º do CC:


«São havidos como possuidores precários ou meros detentores:

a. os que exerçam o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito;

b. os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito;

c. os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem».


Nas palavras do autor que vimos citando, «[v]erifica-se, assim, que o detentor, ainda que exerça um poder de facto sobre a coisa (corpus), fá-lo, contudo, sem qualquer animus possidendi, mas tão só animus detinendi, ou seja, com a consciência de que sobre a coisa existe um direito prevalecente de terceiro.» (Marco Gonçalves, ob. cit., págs. 94 e seg.).


6.2. Os embargantes fundamentam a posse das fracções penhoradas na celebração, em 13/11/2001, de alegado contrato-promessa de compra e venda, sendo promitentes-compradores os embargantes e tendo estes pagado de imediato o respectivo preço; e estando presentemente as fracções a ser habitadas pelos seus filhos.


A pretensão dos recorrentes, assente na invocada posse derivada de contrato-promessa de compra venda com traditio, já se apresentava ab initio com escassas possibilidades de sucesso, em face da orientação prevalecente seguida pela jurisprudência deste Supremo Tribunal (cfr. os acórdãos de 24/09/2020, proc. n.º 14731/16.0T8PRT-B.P1.S1, de 10-12-2019, proc. n.º 2587/15.4T8LOU-B.P1.S1, ambos consultáveis em www.dgsi.pt, bem como o acórdão de 22-02-2017, proc. n.º 8570/08.9TBMAI-A.P1.S1, com sumário disponível em www.stj.pt), nos termos da qual a tutela possessória baseada em contrato-promessa de compra e venda com traditio não permite a procedência dos embargos de terceiro à penhora, na medida em que: (i) o direito de retenção de que o promitente-comprador com traditio é titular nos termos do art. 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil, é um direito real de garantia acessório do direito de crédito daquele perante o promitente-vendedor, que só surge com o incumprimento do contrato-promessa; (ii) o direito de retenção apenas permite que o seu titular reclame o crédito privilegiado no âmbito da execução; (iii) em regra, o promitente-comprador não beneficia de posse correspondente ao direito de propriedade sobre a coisa objecto do contrato, uma vez que lhe falta o animus ou intenção de exercer sobre a coisa os poderes de facto correspondentes ao direito de propriedade ou outro direito real.


E dizemos, que, em regra, o promitente comprador não beneficia de posse correspondente ao direito de propriedade sobre a coisa objecto do contrato porque, conforme referido no acórdão recorrido, existe uma linha interpretativa que, efectivamente, admite que, em situações excepcionais, se reconheça a posse do promitente-comprador. Ver, neste sentido o acórdão deste Supremo Tribunal de 11-04-2013, proc. n.º 29808/97.0TVLSB-D.L1.S1, in www.dgsi.pt, assim sumariado: «(…) V - O contrato-promessa de compra e venda, mesmo acompanhado de tradição da coisa, por norma não é susceptível de transferir a posse ao promitente-comprador: se este obtém a entrega da coisa, antes da celebração do negócio translativo, adquire o corpus possessório, mas não o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário. VI - Excepcionalmente, porém, são configuráveis situações em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche todos os requisitos de uma verdadeira posse, por exemplo, caso haja sido paga já a totalidade do preço ou parte substancial do mesmo, ou quando, não tendo as partes o propósito de realizar o contrato definitivo (a fim de, v.g., evitar o pagamento do IMT ou precludir o exercício do direito de preferência), a coisa é entregue ao promitente-comprador como se sua fosse». [negrito nosso]


Contudo, e como se verificou no ponto anterior do presente acórdão, a factualidade dada como provada e não provada, exclui totalmente a possibilidade de se equacionar sequer estarmos perante uma dessas situações excepcionais.


Com efeito, e como vimos supra, o acórdão recorrido eliminou da factualidade dada como provada o facto, que constava do ponto E, que diz respeito ao contrato-promessa de compra e venda das fracções penhoradas que, alegadamente, os embargantes teriam celebrado com a executada. Deste modo, não está provado qualquer facto que, mesmo aceitando-se a tese dos embargantes, permitisse sustentar a sua posse, uma vez que não ficou provado o negócio jurídico que suportava a sua pretensão.


Além disso, verifica-se que os terceiros que deduzem a oposição mediante embargos, apesar de terem recebido as chaves das fracções autónomas penhoradas, não se encontram a habitar as referidas fracções, mas sim os seus filhos, AA e DD, respectivamente, desde 2006 e 2008. Na verdade, e de acordo com a factualidade alegada e provada (pontos I e J), os embargantes receberam, em 2006, as chaves das fracções da mão do gerente da sociedade executada e, posteriormente, os filhos destes passaram a habitar essas fracções, não tendo sido alegado nem provado qualquer facto que permitisse sustentar que os embargantes detivessem a posse das fracções penhoradas em nome e por conta do interesse dos seus filhos.


Temos, pois, que sempre estaria afastada a possibilidade de os embargantes, ora recorrentes, beneficiarem da invocada presunção de posse adveniente do disposto no art. 1268.º do Código Civil, na medida em os mesmos deixaram de ter qualquer domínio sobre as fracções penhoradas desde 2006 e 2008, com a entrega das fracções aos seus filhos.


Conclui-se, assim, pela ilegitimidade substantiva dos embargantes para a presente oposição mediante embargos de terceiro por não ter sido feita a demonstração de serem titulares do direito que invocam, uma vez que não foi provado qualquer facto que permita sustentar a posse dos embargantes relativamente às fracções penhoradas, o que determina a improcedência dos embargos.


8. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.


Custas pelos recorrentes


Lisboa, 13 de Março de 2025


Maria da Graça Trigo (relatora)


Orlando Nascimento


Isabel Salgado