Nos termos do n.º 3 do art. 17.º do CRPredial (introduzido pelo DL n.º 125/2013, de 30-08), o MP tem legitimidade para intentar acção de nulidade do registo predial por violação do princípio do trato sucessivo.
Contestaram o réu AA e a Autoridade Tributária e Aduaneira (ATA), tendo esta última invocado a ilegitimidade do Ministério Público para interpor a persente acção.
O Ministério Público veio exercer o contraditório.
Por sentença da 1.ª instância, e para o que ora releva, a excepção de ilegitimidade foi julgada procedente, sendo os réus absolvidos da instância.
Tendo o MP apelado, por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/09/2024 foi o recurso julgado improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
2. Desta decisão veio o Ministério Público interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, invocando a via excepcional de admissibilidade. Por acórdão da Formação de juízes a que se refere o art. 672.º, n.º 3 do CPC, o recurso foi admitido com fundamento na relevância jurídica da questão objecto de mesmo.
3. Formulou o Ministério Público as seguintes conclusões:
«1. Está em causa a legitimidade do Ministério Público para acção de nulidade do registo predial nos termos do art. 16º, alínea e) e 17º, nº 3 do Código de Registo Predial, e artigos 4.º n.º 1 al. r) e 9.º n.º 1 al. g) da Lei 68/2019 de 27/08 (Estatuto do Ministério Público) e a interpretação de tais disposições legais, interpretação que tem sido pouco tratada na jurisprudência e que é da maior relevância atentos os interesses em causa.
[excluíram-se as conclusões relativas à admissibilidade do recurso]
3. Está em causa a interpretação e aplicação de tal preceito, em conjugação com as normas do Estatuto do Ministério Público, tendo em conta as funções do Ministério Público na defesa, além do mais, do Estado, dos interesses da comunidade em geral e interesses que a lei determinar, nos termos da Constituição, do Estatuto e da Lei – arts. 2º, 4º nº 1 al. r) e 9º nº 1 al. g) EMP.
4. Na apreciação da legitimidade do Ministério Público para a acção de nulidade de registo predial o Acórdão recorrido convocou ainda o regime dos vícios do registo, incluindo as nulidades, e a interpretação dos arts. 16º al. e) e 121º nº 4 CRP.
[excluíram-se as conclusões relativas à admissibilidade do recurso]
10. Conforme art. 1º CRP, o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário, objectivo alcançado por força dos efeitos que a lei confere ao registo, os quais, por sua vez, assentam numa teia de regras e princípios a que o registo é submetido.
11. A grande importância do registo surge da garantia, segurança e certeza que advém da publicidade que é dada aos factos inscritos. É através do registo que qualquer pessoa pode ficar a saber qual a composição de determinado prédio, a quem pertence e se está onerado.
12. Daí a relevância da verdade registal para os terceiros, alheios aos factos e relações registais, para o público em geral e para a sociedade.
13. Por sua vez, a relevância das atribuições do Ministério Público na defesa dos interesses do Estado e interesses de ordem pública da coletividade, da verdade do registo predial, atribuições conferidas pelo nº 3 do art. 17º CRP e pelo seu Estatuto.
14. Com efeito, está por um lado em causa a legitimidade do Ministério Publico nas suas funções de defesa dos interesses do Estado e da comunidade e por outro lado os interesses da verdade do registo predial, expurgado dos seus vícios.
15. A atribuição da legitimidade ativa ao Ministério Público decorre da natureza pública do sistema registal português, que visa, em primeira linha, a tutela dos interesses de terceiros indeterminados, do público, situando-se a atividade registral na área da gestão pública do Estado.
16. Estão, pois, em causa interesses de elevada relevância social, da comunidade, do público em geral.
17. No Acórdão recorrido foi proferida decisão que manteve a decisão da 1ª instância, quanto à falta de legitimidade processual do Ministério Público para demandar os réus e até de interesse processual para tal, com a consequente absolvição dos réus da instância, nos termos dos arts. 576º nº 2, 577º al. e) 578º CPC.
18. Com fundamento, em primeira linha, em que a situação sempre podia ser resolvida por via dos processos privativos do registo predial expressamente previstos – art. 121º CRP - não competindo, assim, qualquer poder de iniciativa ao Ministério Público.
19. De qualquer forma, porque nos arts. 237º e 257º, do CPPT estão previstos os meios adequados a defender o direito alegadamente violado, não fazendo sentido requerer-se a nulidade do registo e seu cancelamento, deixando incólume os actos registais atinentes à venda judicial deixando sem suporte legal o auto de penhora e actos subsequentes anteriores àquele acto.
20. Por outro lado, porque, por via desta acção, se estaria a defender o direito de propriedade a favor de quem não é sequer parte no processo, dado que implicitamente se teria de reconhecer o direito do anterior titular do direito registado previamente ao do comprador, enquanto adquirente do bem imóvel por via da acção executiva.
21. O Ministério Público, nos termos dos artigos 16º, alínea e) e 17º, nº 3 do Código de Registo Predial, e artigos 4.º n.º 1 al. r) e 9.º n.º 1 al. g) da Lei 68/2019 de 27.08 (Estatuto do Ministério Público), instaurou acção declarativa de nulidade de registo, pedindo a declaração de nulidade do registo da penhora Ap. ..70, de 20/09/2013, do registo de aquisição Ap. .73, de 13/10/2014 e do registo de cancelamento oficioso da penhora Ap. .73, de 13/10/2014, efetuados a requerimento e no interesse da Autoridade Tributária Aduaneira e do Réu AA, com o consequente cancelamento de tais inscrições, sobre a fração autónoma identificada pelas letras “DD”, correspondente a arrecadação ampla, com área de 13m2, entre as garagens 26 e 27 na 2.ª cave, com entrada pelo 6 de 18 nº 122 da Rua ..., em ... - ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n,º 28 e inscrito na matriz sob o artigo .67.
22. Como fundamentos, apontou, além do mais, a nulidade do registo da penhora, por ter sido lavrado como definitivo, quando deveria ter sido provisório por natureza nos termos do artigo 92º, nº 2 al. a) CRP, porquanto sobre o imóvel penhorado existia registo de aquisição de propriedade a favor de pessoa diversa do executado (cfr. artigo 16º, al. e) do Código do Registo Predial), bem como apontou a declaração da nulidade dos registos de aquisição e de cancelamento do registo da penhora subsequentes a este porque dele dependentes e todos foram materializados como se o imóvel a que diziam respeito estivesse inscrito em nome do executado (quando, estava registado em nome de terceiro que jamais foi chamado a intervir nesta sucessão se registos), assim violando, para além do mais, os princípios da presunção da verdade registal (artigo 7º do CRP) e do trato sucessivo ( artigo 34º do CRP).
23. Compete ao Ministério Público, além do mais, representar o Estado, assumindo a promoção processual quer de interesses privados quer de interesses de ordem pública do Estado-Administração, representando ainda os interesses de ordem pública da coletividade, quando assume a defesa dos titulares a quem aproveita a atuação judiciária de normas de ordem pública (Estado-Coletividade), competindo-lhe ainda exercer as demais funções conferidas pela lei – arts. 2º e 4º nº 1 als. a) e h) e 9º nº1 als. a) e g) da Lei n.º 68/2019, de 27/08 (Estatuto do Ministério Público).
24. Existe norma legal expressa a conferir legitimidade ativa ao Ministério Público para propor a ação de declaração de nulidade do registo em questão - art. 17º nº 3 do CRP.
25. A atribuição da legitimidade ativa ao Ministério Público decorre da natureza pública do sistema registal português, que visa, em termos primordiais, a tutela dos interesses de terceiros indeterminados, do público, e só reflexamente protege o interesse privado daquele que aproveita do facto registado.
26. Conforme art. 1º CRP “O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário.”
27. O registo visa, pois, em termos primordiais, a tutela dos interesses de terceiros indeterminados, do público, e só reflexamente protege o interesse privado daquele que aproveita do facto registado.
28. O princípio do trato sucessivo, consagrado no art. 34º, nºs. 1 e 2 do CRP, pretende assegurar a continuidade do registo, e garantir a quem possui uma inscrição de aquisição ou reconhecimento de direito suscetível de ser transmitido a certeza de que não pode haver nova inscrição definitiva lavrada sem a sua intervenção.
29. O princípio da fé pública, inscrito no artigo 7º do CRP, traduz o valor pressuposto e inerente à publicidade do registo: uma presunção de verdade ou de exatidão do registo que constitui um outro modo de compreensão do principal dos efeitos substantivos do registo predial (Cfr. A. Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Lisboa, 1993 (Reimpressão 1979), págs. 273 e segs.).
30. A proteção conferida pelo registo traduz-se, assim, no sistema nacional de registo predial, por um lado, numa presunção de que o direito existe e, por outro, de que pertence ao titular nos precisos termos em que o registo o define.
31.O registo, como os atos jurídicos em geral, pode sofrer de alguma irregularidade que afete a sua própria existência, validade ou consistência.
32. O artigo 16º prevê as causas de nulidade, entre elas, na al. e), que o registo é nulo “quando tiver sido lavrado com violação do princípio do trato sucessivo”
33. Ora, no caso dos autos, é flagrante a violação do princípio do trato sucessivo, causada pelo facto de o Conservador do Registo Predial perante um pedido de registo de penhora de imóvel efetuado no âmbito de uma execução fiscal em que o titular inscrito não era o executado mas antes um terceiro, em vez de lavrar esse registo como provisório por natureza, como impõe o art. 92º, nº 2, al. a) do CRP, lavrou o mesmo como definitivo, dando azo aos subsequentes registo de aquisição e simultâneo cancelamento da penhora, todos sem a intervenção do titular inscrito.
34. Foi precisamente na defesa do interesse primordial público (da verdade registral/da fé pública do registo) que o Ministério Público propôs a presente ação de declaração de nulidade de registo, com a legitimidade expressamente conferida pelo nº 3 do art. 17º CRP.
35. O interesse reflexo da satisfação do interesse particular não justifica a negação do reconhecimento da legitimidade ativa do Ministério Púbico para a presente ação porque a considera necessária na defesa do interesse público que é primordial, interesse publico personalizado no Estado, que justifica a tutela jurisdicional na eliminação das nulidades do registo.
36. É certo que o Código de Registo Predial, nos seus arts. 120º e ss, prevê o processo de rectificação, processo que corre termos na própria conservatória e cuja decisão, nos termos do art. 131º, pode ser objecto de impugnação com interposição de recurso hierárquico ou mediante impugnação judicial, conferindo o nº 4 legitimidade ao Ministério Público para a impugnação.
37. Porém, de acordo com o nº 4 do art. 121º CRP, os registos nulos por violação do princípio do trato sucessivo são retificados pela feitura do registo em falta quando não esteja registada a ação de declaração de nulidade.
38. Assim, a rectificação faz-se pela feitura do registo em falta, pressupõe, assim, um registo em falta e não exclui a acção de nulidade.
39. Ora, no caso dos autos não há registo em falta, há sim registo definitivo efectuado a favor de quem já não é titular inscrito, em violação do trato sucessivo, pelo que não podia o conservador rectificar o registo, pois não havia registo em falta – art. 121º nº 4 CRP.
40. Daí que não tenha tido lugar o processo de rectificação do registo previsto nos arts. 120º e ss do CRP. E daí que o Ministério Público tenha instaurado a acção por se verificar a nulidade por violação do trato sucessivo prevista na al. e) do art. 16º CRP e por ter legitimidade para o efeito, legitimidade expressamente conferida pelo nº 3 do art. 17º CRP.
41. Assim, o Autor Ministério Público tem interesse direto em demandar, visando a reposição da verdade registral/da fê pública do registo (interesse público primordial que não é possível satisfazer por outra via que não seja a judicial).
42. Por sua vez, o que se pede na acção é a declaração de nulidade do registo da penhora e registos dele dependentes, sendo a relação material subjacente ao registo cuja nulidade se peticiona constituída pela relação registral estabelecida entre o apresentante e o conservador e não por um negócio subjacente, pela penhora ou venda fiscal que estão na sua base.
43. O Autor/Ministério Público não pediu a declaração de nulidade dos atos registados. Se o tivesse feito, então é que poderia afirmar-se que o Ministério Público estava a representar interesses particulares/fora das suas atribuições e competências.
44. É certo que, reflexamente, a presente ação, e como qualquer acção de nulidade do registo, prossegue, também, o interesse particular do titular inscrito do direito de propriedade de imóvel afetado pela realização do registo, neste caso registo da penhora como definitivo e dos subsequentes registos de aquisição e de cancelamento da penhora, todos sem a sua intervenção.
45. Mas porque está em causa, em primeira linha, a tutela dos interesses de terceiros indeterminados, do público, o interesse público que é inerente aos princípios da certeza do direito, da defesa de terceiros, da segurança do comércio jurídico, é que a lei confere expressamente ao Ministério Público legitimidade para a acção judicial de declaração de nulidade do registo, a par dos interessados – art. 17º nº 3 CRP.
46. Foi precisamente na defesa do interesse primordial público (da verdade registral/da fé pública do registo) que o Ministério Público propôs a presente ação de declaração de nulidade de registo, com a legitimidade expressamente conferida pelo nº 3 do art. 17º CRP e art. 9º nº 1, al. g) do EMP.
47. O nº 3 do art. 17º CRP a conferir expressamente, a par dos interessados, legitimidade ao Ministério Publico para a acção, foi introduzido pelo DL nº 125/2013.
48. Verificando-se, assim, que houve necessidade de fazer constar expressamente da norma a legitimidade activa do Ministério Público, a par dos interessados, para a acção de nulidade do registo, precisamente tendo em vista a defesa do interesse primordial público da verdade registral/da fé pública do registo.
49. Assim, o Autor Ministério Público tem legitimidade para acção de nulidade do registo, tal como a configurou.
50. O Tribunal da Relação fez uma incorreta interpretação dos arts. 16º al. e), 17º nº 3, 34º, 68º e 92º, nº 2 do Código de Registo Predial, arts. 4º nº 1 al. r) e 9º nº 1 al. g) da Lei nº 68/2019 de 27/08 (Estatuto do Ministério Público) e arts. 24º, nº 1, 30º, 576º, nº 2, 577º, al. e) e 578º, todos os CPC.».
Não foi apresentada resposta.
Cumpre apreciar e decidir.
4. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelo conteúdo da decisão recorrida e pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso.
Deste modo, o presente recurso tem como objecto unicamente a seguinte questão:
• Da legitimidade processual do Ministério Público para intentar a presente acção de nulidade de registo predial, com fundamento em violação do princípio do trato sucessivo.
5. Atendendo aos elementos constantes dos autos, são os seguintes os factos a considerar:
1 - O autor Ministério Público instaurou a presente acção de processo comum contra AA, BB, Estado Português – Autoridade Tributária e Aduaneira e Instituto dos Registos e Notariado, I.P. peticionando que seja declarada a nulidade do registo de penhora - AP...70 de 2013/09/20, do registo de aquisição - AP. .73 de 2014/10/13 e do registo de cancelamento oficioso da penhora - AP. .73 de 2014/10/13 a favor dos réus Autoridade Tributária e Aduaneira e AA, ordenando-se o cancelamento de tais inscrições.
2 - Invocou, em suma, que:
- no dia 16/09/2013, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ..............93, que correu termos do SF de ... – 2, e em que o segundo réu era executado, a exequente, ATA, procedeu à penhora da fracção DD, correspondente a uma arrecadação ampla, com a área de 13 m2, a 1.º do lado direito, entre as garagens n.º 26 e 27, 2ª cave, com entrada pelo n.º 122 da Rua ..., ..., descrita na CRP sob o n.º 28 a favor de B..., Lda e inscrita na matriz predial urbana sob o artigo .67, com o VPT de € 2.090,00, tendo, em 20/09/2013, o SF requerido à CRP de ...-2ª o registo da referida penhora, que foi lavrado a título definitivo sem que tenha intervindo o titular inscrito no registo de propriedade da sobredita fracção:
- em 25/09/2014, o SF de ... 2 procedeu à venda da aludida fracção, que veio a ser adquirida pelo primeiro réu, vindo a aquisição a ser registada em 13/10/2014, data em que foi oficiosamente cancelado o registo de tal penhora;
- a aludida fracção não pertencia ao executado aquando da penhora, pelo que o registo da penhora nunca poderia ter sido feita a título definitivo, tal como não o poderiam ter sido o registo da aquisição e cancelamento da penhora, sem a intervenção do titular inscrito, o que determina a nulidade do registo da penhora a título definitivo, por violação do trato sucessivo e que não tendo o titular inscrito intervindo, a penhora era nula, dando origem a uma aquisição igualmente nula, argumentando que, por já não ser passível de rectificação, só com a presente acção pode ser remediado o vício de registo.
6. Apreciemos a questão da legitimidade processual do Ministério Público para intentar a presente acção de nulidade de registo predial, com fundamento em violação do princípio do trato sucessivo
Na presente causa, veio o Ministério Público pedir a declaração da nulidade do registo de penhora, do registo de aquisição e do registo de cancelamento oficioso da penhora a favor dos réus Autoridade Tributária e Aduaneira (ATA) e AA, alegando, como causa de pedir, que, no dia 16/09/2013, no âmbito de um processo de execução fiscal, que correu termos no Serviço de Finanças de ..., em que o 2.º réu (BB) era executado, a exequente, ATA, procedeu à penhora de uma fracção descrita na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 28 a favor de B..., Lda e inscrita na matriz predial urbana sob o art. .67.º, com o VPT de € 2.090,00.
Afirma o Ministério Público que, na sequência de pedido do Serviço de Finanças para o efeito, foi lavrado na Conservatória o registo da referida penhora, a título definitivo, sem que tenha intervindo o titular inscrito no registo de propriedade da referida fracção, sendo que, em 25/09/2014, o Serviço de Finanças procedeu à venda da aludida fracção, que veio a ser adquirida pelo 1.º réu (AA), vindo a aquisição a ser registada em 13/10/2014, data em que foi oficiosamente cancelado o registo de tal penhora.
Invoca o Ministério Público que a fracção em causa não pertencia ao executado aquando da penhora, pelo que o registo da mesma nunca poderia ter sido feito a título definitivo, tal como não o poderiam ter sido o registo da aquisição e de cancelamento da penhora sem a intervenção do titular inscrito, o que determina a nulidade do registo da penhora a título definitivo, por violação do princípio do trato sucessivo. Acrescenta que, não tendo o titular inscrito intervindo no acto, a penhora se mostra nula, dando origem a uma aquisição igualmente nula.
O acórdão recorrido, na linha do entendimento do tribunal da 1.ª instância, considerou que o Ministério Público carecia de legitimidade processual activa para a presente causa, por actuar fora das suas atribuições, apresentando argumentos que se podem assim sintetizar: a situação sempre podia ser resolvida por via dos processos privativos do registo predial expressamente previstos, não competindo, nessa perspectiva, qualquer poder de iniciativa ao Ministério Público; encontram-se previstos nos arts. 237.º e 257.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), os meios adequados a defender o direito alegadamente violado, por via, respectivamente, de embargos de terceiro e de anulação da venda, não fazendo sentido vir-se requerer a nulidade do registo e seu cancelamento, deixando incólume o acto registal respeitante à venda judicial e sem suporte legal o auto de penhora e actos subsequentes; o reconhecimento da legitimidade processual do Ministério Público significaria que, por via desta acção, se defendesse o direito de propriedade a favor de quem não é parte no processo, numa causa em que, em termos primordiais, o exercício do direito depende de legitimação singular pelo correspondente titular.
Contra este entendimento insurge-se o Ministério Público, ora recorrente, afirmando que a norma do n.º 3 do art. 17.º do Código do Registo Predial lhe confere legitimidade activa para propor a presente acção de declaração de nulidade, uma vez que está em causa uma violação flagrante do princípio do trato sucessivo, sendo que o registo visa “em termos primordiais a tutela dos interesses de terceiros indeterminados, do público, e só reflexamente protege o interesse privado daquele que aproveita do facto registado”.
Vejamos.
6.1. Como se sabe, a legitimidade processual constitui um pressuposto processual, reconduzindo-se a sua falta à verificação de uma excepção dilatória (cfr. art. 577.º, alínea e), do CPC) cuja procedência obsta ao conhecimento do mérito da causa (art. 576.º, n.º 2, do mesmo Código).
De acordo com o critério estabelecido no art. 30.º, n.º 1, do CPC, é parte legítima, como autor, quem tiver interesse directo em demandar, sendo parte legítima, como réu, quem tiver interesse em contradizer.
Nos termos do n.º 2 daquele preceito legal, o interesse em demandar traduz-se na utilidade derivada da procedência da acção, sendo o interesse em contradizer aferido pelo prejuízo que dessa procedência advenha, esclarecendo o n.º 3 que, “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor”.
Com esta solução normativa, o legislador ultrapassou a vexata quaestio surgida no passado em torno do critério de determinação da legitimidade das partes, optando, como é comumente sabido, por adoptar uma posição próxima da tese de Barbosa de Magalhães, que se opunha à posição de Alberto dos Reis, que, por sua vez, entendia que a relação material relevante para estes efeitos seria a relação material controvertida existente (tal como se apresenta ao tribunal, ouvidas ambas as partes e, caso necessário, produzida prova). Ver, a este propósito, Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, págs. 128 e segs.; Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2004, págs. 55 e segs., e Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2010, págs. 415 e segs.
No regime actualmente em vigor, o critério comum de determinação da legitimidade das partes radica, assim, na titularidade da relação material controvertida, nos termos em que esta é configurada pelo autor da acção. Por conseguinte, para tal efeito, não se afigura exigível a efectiva titularidade da relação material controvertida, o que se traduz na desvalorização da legitimidade enquanto pressuposto processual (cfr. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Código de Processo Civil, Vol. 1.º, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2014, pág. 72).
No entanto, existem situações em que é a própria lei que identifica o titular da legitimidade activa ou passiva, prevalecendo tal indicação sobre a eventual indicação do autor em sentido diverso (cfr. Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, pág. 64). É o que sucede na situação em apreciação.
Aqui, o Ministério Público peticiona a declaração de nulidade registal, com fundamento na circunstância de o registo dos factos relativos à penhora e subsequente venda em execução fiscal do imóvel em causa a favor do 1.º réu, AA, terem sido lavrados em violação do princípio do trato sucessivo (cfr. alínea e) do art. 16.º do Código do Registo Predial), invocando, para sustentar a sua legitimidade específica, a norma constante do n.º 3 do art. 17.º de tal diploma, que dispõe que:
“A ação judicial de declaração de nulidade do registo pode ser interposta por qualquer interessado e pelo Ministério Público, logo que tome conhecimento do vício”.
Esta norma foi aditada pelo Decreto-Lei n.º 125/2013, de 30 de Agosto, e o seu concreto alcance, no que toca à legitimidade processual atribuída ao Ministério Público, terá de ser apurado tendo em conta: (i) por um lado, a teleologia dos poderes-deveres conferidos ao Ministério Público nesta matéria; (ii) e, por outro lado, a finalidade ínsita nos princípios cuja infracção é invocada para sustentar a causa de nulidade especificamente invocada.
6.2. Afigura-se relevante começar por realizar um breve enquadramento teórico-normativo a respeito da causa de nulidade registal invocada.
Como explica Isabel Pereira Mendes (Código de Registo Predial Anotado, 15.ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, pág. 165), “a nulidade é, a par da inexistência e da inexatidão, uma outra categoria de «vícios do registo»”.
O registo enfermará de nulidade quando se verifique alguma das seguintes situações, previstas no art. 16.º do Código do Registo Predial:
“a) Quando for falso ou tiver sido lavrado com base em títulos falsos;
b) Quando tiver sido lavrado com base em títulos insuficientes para a prova legal do facto registado;
c) Quando enfermar de omissões ou inexatidões de que resulte incerteza acerca dos sujeitos ou do objeto da relação jurídica a que o facto registado se refere;
d) Quando tiver sido efetuado por serviço de registo incompetente ou assinado por pessoa sem competência, salvo o disposto no n.º 2 do artigo 369.º do Código Civil e não possa ser confirmado nos termos do disposto no artigo seguinte;
e) Quando tiver sido lavrado sem apresentação prévia ou com violação do princípio do trato sucessivo.”.
De um ponto de vista da dogmática geral, a nulidade constitui uma espécie de invalidade dos actos jurídicos, operando ipso jure, sendo invocável por qualquer pessoa interessada e não sendo sanável pelo decurso do tempo ou mediante confirmação.
Tais considerações valem igualmente em sede tabular: “a nulidade do registo não permite a rectificação deste, o qual se mantém com o vício que o inquina, e só pode ser invocada depois de ter sido declarada por decisão judicial transitada em julgado” (Isabel Pereira Mendes, ob. cit., pág. 165).
A regra de que os registos afectados por nulidade não são rectificáveis apresenta, contudo, excepções, que se reconduzem às nulidades a que se referem as alíneas b), d) e e), parte final, do art. 16.º do CRPredial, as quais podem ser rectificadas independentemente de qualquer decisão judicial acerca da existência do vício (art. 121.º, n.ºs 1 e 4 do CRPredial). Cfr., a este respeito, Maria Ema Guerra, Código do Registo Predial Anotado, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pág. 96.
Em particular, a regra de que a nulidade do registo não permite a sua rectificação, só podendo ser invocada depois de declarada por decisão transitada em julgado, sofre um desvio quando tenha existido – como afirma o Ministério Público no presente caso – violação do princípio do trato sucessivo. Nessa situação, “os registos nulos por violação do princípio do trato sucessivo são retificados pela feitura do registo em falta quando não esteja registada a ação de declaração de nulidade” (art. 120.º, n.º 4 do CRPredial).
Percebe-se que assim seja: ao contrário do que sucede com outras causas de nulidade do registo – como a prevista na alínea a), que se reporta a uma nulidade substantiva –, o caso da nulidade de registo por falta de observância do trato sucessivo pode ser considerado, em sentido amplo, como um registo indevidamente lavrado, afigurando-se susceptível de rectificação através de um meio de sanação expedito e dotado de maior grau de informalidade, concretizado pela realização complementar do registo que se encontrava omisso.
A norma prevista no art. 121.º do CRPredial faz uma referência disjuntiva aos “registos indevidamente lavrados” e “àqueles que foram efetuados sem observância do trato sucessivo”. A disposição abrange, assim, não apenas os registos inexactos a que se refere o art. 18.º, mas também os casos de registos indevidamente lavrados e os efectuados sem observância do princípio do trato sucessivo, pretendendo ser suficientemente ampla “para permitir, na maioria dos casos, o ajustamento do registo à realidade material e jurídica subjacente, através do processo simples e rápido da rectificação do registo.” (Isabel Pereira Mendes, ob. cit. pág. 424).
Do que se deixa exposto, resulta que, até ao registo da acção de declaração de nulidade, coexistem dois meios (um judicial, outro extrajudicial) para que o interessado suscite a invalidade registal com base em violação do princípio do trato sucessivo: a acção de nulidade do registo ou o pedido de rectificação do mesmo junto do conservador.
No entanto, os campos de aplicação dos referidos meios não são necessariamente sobreponíveis. Isto porque, para que a sanação do vício registal seja possível através de rectificação, é necessário que estejam disponíveis os documentos que titulam os actos intermédios cuja inscrição se encontra em falta, situação que, na acção de nulidade do registo, pode não se verificar.
De resto, os efeitos que emergem da acção de nulidade do registo com fundamento em violação do princípio do trato sucessivo e da sua rectificação são estruturalmente diferentes: enquanto a procedência de uma acção como a presente implica a ineficácia (em sentido amplo) do registo efectuado, sem prejuízo da tutela dos terceiros de boa-fé (art. 17.º, n.ºs 1 e 2, do CRPredial), na rectificação de registo nulo por violação do princípio do trato sucessivo é reposta a regularidade da cadeia registal através da feitura do registo em falta (art. 121.º, n.º 4, do CRPredial), não sendo afectada a eficácia de qualquer registo efectuado.
Considerando os diversos pressupostos e efeitos dos dois mecanismos de reacção ao vício registal consistente na violação do trato sucessivo, não se pode acompanhar a afirmação do tribunal a quo, no sentido de que a pretensão que o Ministério Público pretende vir exercitar na presente acção poderia ser resolvida por uma via intra-sistemática do registo predial, com intervenção do conservador. Falta, porém, verificar se o exercício de tal pretensão se inscreve no âmbito da legitimidade processual legalmente conferida ao Ministério Público nesta matéria.
6.3. De acordo com o n.º 1 do art. 219.º da Constituição da República Portuguesa:
“Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a ação penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.”.
O Ministério Público representa o Estado, as Regiões Autónomas, as autarquias locais, os incapazes, os incertos e os ausentes em parte incerta (art. 4.º, n.º 1, alínea b), do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto (EMP), intervindo como parte principal nestas situações e também quando a lei lhe atribua competência para intervir nessa qualidade (art. 9.º, n.º 1, alíneas a), b), c) e g), do EMP).
Como sublinha Cunha Rodrigues, o conceito de representação utilizado “é juridicamente impreciso, pois compreende situações em que se está perante verdadeiros poderes de representação (tendentes a exprimir a vontade da pessoa ou do ente em nome de quem se age) e situações em que apenas se confia ao Ministério Público o patrocínio judiciário” (Em nome do povo, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pág. 155).
É possível, pois, na linha da classificação efectuada pelo Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, votado em 19-05-20002 (mas publicado no Diário da República apenas em 31-08-20183), da autoria de Henriques Gaspar, ordenar os poderes-deveres de intervenção processual do Ministério Público em poderes de representação, de assistência e de fiscalização, tendo presente que “a função de representação, quando exercida, corresponde à intervenção como parte principal, ou à intervenção principal, na terminologia do Estatuto”.
Em rigor, o Ministério Público não é parte, antes representa uma parte, aquela em nome ou no interesse de quem actua (cfr. António Neves Ribeiro, O Estado nos Tribunais (Intervenção cível do MP em 1.ª instância), 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1994, pág. 25).
Na representação do Estado, intervindo processualmente como parte principal, o Ministério Público assume a promoção processual, quer de interesses privados, quer de interesses de ordem pública do Estado-Administração. Mas o Ministério Público representa também o Estado-Colectividade quando defende o próprio ordenamento jurídico, actuando em representação de um interesse superior de ordem pública que poderá porventura coincidir, “simultânea ou reflexamente, com a defesa dos titulares do interesse a quem a actuação judiciária das normas aproveita (ou desaproveita) no concreto” (António Neves Ribeiro, ob. cit., pág. 20). Neste caso, o Ministério Público actua na dimensão ética do Estado, sendo a sua consciência legal “enquanto suporte jurídico da comunidade integrante, independentemente do aproveitamento, ou não, dos titulares dos direitos ou obrigações questionados através da relação processual” (Idem, ob. cit., pág. 20).
É este o título de representação que, em substância, é invocado pelo Ministério Público nos presentes autos, nos quais se apresenta a defender o ordenamento jurídico registal.
6.3. O registo predial, de acordo com o que estipula o art. 1.º do Código do Registo Predial “destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário”.
O registo, que deverá ser definido por referência à ideia de registo público (no duplo sentido de estatal e de acesso público - cfr. Rui Pinto Duarte, O Registo Predial, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 9), cumpre, essencialmente, uma função de publicidade teleologicamente orientada ao fim da segurança do comércio jurídico imobiliário, função essa que assume, no caso português, um carácter primacial, considerando que a denominada “aquisição tabular” (aquisição resultante do registo não baseada num negócio jurídico válido) se apresenta como excepcional (Rui Pinto Duarte, ob. cit, pág 15). Como sublinhou o acórdão deste Supremo Tribunal de 11-04-2019 (proc. n.º 22616/16.3T8LSB-A.L1.S2), disponível em www.dgsi.pt, “o registo predial tem como função prioritária garantir, através da sua publicidade, a segurança do comércio jurídico imobiliário, tanto no plano estático (situação jurídica dos prédios) como no plano dinâmico ou fenoménico (as vicissitudes a que esses bens estão expostos), em ordem a conferir certeza no respetivo tráfego”.
Verifica-se, por outro lado, um consenso em torno da correlação entre a existência de registos públicos de imóveis e desenvolvimento social. Como dá conta Rui Pinto Duarte (ob. cit., págs. 17 e seg.), tal relação não passou despercebida ao Conselho Económico e Social das Nações Unidas, que sublinhou que um sistema efectivo de registo predial (em sentido lato) contribui para: a garantia do direito de propriedade (entendido amplamente); a tributação da riqueza imobiliária; a garantia do crédito; a eficácia prática de decisões judiciais relativas a imóveis; a redução dos litígios relativos a imóveis; o desenvolvimento dos mercados imobiliários; a protecção dos imóveis públicos; a facilitação das reformas fundiárias; a promoção do desenvolvimento imobiliário; a promoção do planeamento urbanístico e das infraestruturas; a promoção da gestão ambiental; e até mesmo a produção de dados estatísticos.
Noutro plano, não oferece dúvidas que o princípio do trato sucessivo corresponde a um dos traços fundamentais do sistema de registo predial português, constituindo uma das vias para a efectiva realização da sua função e finalidade (cfr. Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 6.ª ed., Quid Iuris, Lisboa, 2010, pág. 122).
O seu alcance retira-se do art. 34.º do Código do Registo Predial, no qual se dispõe que:
“1 - O registo definitivo de constituição de encargos por negócio jurídico depende da prévia inscrição dos bens em nome de quem os onera.
2 - O registo definitivo de aquisição de direitos depende da prévia inscrição dos bens em nome de quem os transmite, quando o documento comprovativo do direito do transmitente não tiver sido apresentado perante o serviço de registo.
3 - A inscrição prévia referida no número anterior é sempre dispensada no registo de aquisição com base em partilha.
4 - No caso de existir sobre os bens registo de aquisição ou reconhecimento de direito suscetível de ser transmitido ou de mera posse, é necessária a intervenção do respetivo titular para poder ser lavrada nova inscrição definitiva, salvo se o facto for consequência de outro anteriormente inscrito.”.
Na verdade, quanto aos factos de que resulte a transmissão de direitos ou a constituição de encargos sobre imóveis, estipula o n.º 1 do art. 9.º do CRPredial que os mesmos não podem ser titulados sem que os bens estejam definitivamente inscritos a favor da pessoa de quem se adquire o direito ou contra a qual se constitui o encargo, exceptuando-se os casos previstos no n.º 2 do referido preceito, entre os quais se contam a venda executiva e a penhora (alínea a)).
Como assinalado por Carvalho Fernandes (ob. cit., pág. 122), o princípio do trato sucessivo, “quando observado, assegura, assim, uma cadeia ininterrupta de inscrições ou onerações relativas a certa coisa, desde a pessoa primeiramente inscrita como titular do correspondente direito até quem figura, no acto a registar, como autor da alienação ou oneração dessa coisa. Em suma, a observância do princípio do trato sucessivo dá a garantia de, salvo vício substantivo ou de registo, a consulta das inscrições relativas à descrição de certo prédio permitir apurar a história da situação jurídica desse bem, desde a primeira inscrição até ao momento da consulta.”.
José Alberto González (Direitos Reais (Parte Geral) e Direito Registal Imobiliário, Quid Iuris, Lisboa, 2001, pág. 269) afirma que a norma do art. 34.º do CRPredial consagra o trato sucessivo formal, que “supõe apenas que no registo existe um encadeamento lógico entre as inscrições, independentemente de o mesmo corresponder (ou não) àquilo que na verdade sucedeu (embora, evidentemente, se pretenda a máxima correspondência possível)”. Como explicita este autor (ob. cit., pág. 270), ao exigir-se uma sucessão lógica no arquivo registal, “o que está basicamente em causa é um problema de racionalidade do próprio registo. Daí que a realização de uma inscrição possa “obrigar” à realização de inscrições anteriores eventualmente em falta do ponto de vista registal. Contudo, também é certo que essa exigência de racionalidade tem repercussões externas, na medida em que o referido encadeamento de inscrições assenta no pressuposto de que as mesmas correspondem à realidade (o que está especialmente acertado se o dever imposto pelo art. 9.º/n.º 1 for observado)”.
6.4. Com a nulidade arguida, o Ministério Público visa precisamente obter uma sucessão lógica no arquivo registal, de modo a alinhá-lo com a realidade material e jurídica subjacente. Invoca, para fundamentar a sua pretensão – recorde-se – a circunstância de ter sido lavrado um registo definitivo (e não provisório, como determina o art. 92.º, n.º 2, alínea a) do CRPredial) da penhora de imóvel no âmbito de uma execução fiscal quando o titular inscrito não era o executado, mas um terceiro, dando azo aos subsequentes registos de aquisição e de cancelamento da penhora, que ocorreram sem a intervenção do titular inscrito.
As considerações tecidas pelo acórdão recorrido acerca da subsistência da validade da venda executiva, sobre os efeitos da declaração de nulidade do registo e sobre a natureza não absoluta do princípio do trato sucessivo apenas serão, eventualmente, relevantes para a questão do mérito do pedido, mas não para a questão da legitimidade.
Convocando as conclusões do Parecer do Conselho Consultivo da PGR acima referido (ver ponto 6.2. do presente acórdão), afirma-se no acórdão recorrido o seguinte: “Certo é que, como igualmente resulta do parecer de 31.8.2018, respeitante ao proc. n.º P000731996, que se pronunciou sobre a questão da legitimidade do MP para este tipo de acções, também se concluiu que ‘o Ministério Público apenas poderia eventualmente intervir, propondo uma acção de declaração de nulidade do registo, se se pudesse considerar a existência de um interesse público, personalizado no Estado, que justificasse ou impusesse a tutela jurisdicional na eliminação das nulidades do registo. E interesse público, com relevante autonomia, que não seja simplesmente a tradução externa, no plano registral, dos interesses privados que também estão presentes e que o registo predial se destina a proteger’.” [a negrito o teor do Parecer]
Labora, porém, o acórdão no equívoco (até certo ponto compreensível) de, perante a data da publicação deste Parecer no Diário da República (31 de Agosto de 2018), presumir que o mesmo se reporta ao regime do art. 17.º do Código do Registo Predial, na redacção dada pelo Decreto-lei n.º 125/2013, de 30 de Agosto. Ora, não é esse o caso, pois, como acima se assinalou, embora publicado naquela data o dito Parecer foi aprovado em 19 de Maio de 2000.
Ainda que o preâmbulo do Decreto-lei n.º 125/2013, que introduziu o n.º 3 no art. 17.º do CRPredial, não explique a razão pela qual conferiu legitimidade ao Ministério Público para propor a acção de nulidade do registo, a circunstância de o n.º 3 conferir legitimidade, cumulativamente, a qualquer interessado “e” ao Ministério Público, «logo que tome conhecimento do vício», mostra que o legislador tomou posição no sentido de a nulidade do registo não ser uma questão que interessa apenas aos afectados pelos vícios do registo, sendo antes uma questão de interesse público. Com efeito, quando – perante as dúvidas que transparecem no referido Parecer da PGR – o legislador decide alargar o círculo dos interessados para propor determinada a acção e inclui neles o Ministério Público indicia claramente que, de acordo com o critério do legislador, essa acção é de interesse público. O legislador tem interesse que a acção seja proposta e para prevenir a inércia de algum dos interessados alarga o leque daqueles que a podem propor.
Conclui-se, assim, pela procedência da pretensão recursória.
7. Pelo exposto, julga-se o recurso procedente, revogando-se a decisão do acórdão recorrido e declarando-se a legitimidade activa do Ministério Público, determinando-se o prosseguimento da acção.
Custas pelos recorridos
Lisboa, 13 de Março de 2025
Maria da Graça Trigo (relatora)
Isabel Salgado
Catarina Serra
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1. Por lapso, tanto no relatório da sentença da 1.ª instância como no relatório do acórdão da Relação o pedido surge como respeitando apenas ao registo de penhora – Ap. .73, de 13/10/2014 – e ao registo de cancelamento oficioso da penhora – Ap. .73, de 13/10/2014.
2. Consultar https://www.dgsi.pt/pgrp.nsf/-/B26A6D1553ADCB8E8025829700366F1B
3. Consultar https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/parecer/p000731996-2018-116308073