CONDUÇÃO DE VEÍCULO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
ACIDENTE DE VIAÇÃO
COLHEITA DE AMOSTRA DE SANGUE
CONSENTIMENTO
Sumário


1. Na situação de inconsciência do condutor de veículo automóvel - em consequência de intervenção em acidente de viação – e do respectivo transporte nessa condição para o hospital, fica não só prejudicada a realização do exame de pesquisa de álcool no ar expirado, como também fica dispensada a exigência de qualquer consentimento para a realização da colheita do sangue para efeito estrito de exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool
2. A colheita da amostra de sangue levada a cabo neste circunstancialismo não enferma de qualquer nulidade geradora de proibição de prova.
3. Diferente seria se, não obstante a intervenção do arguido em acidente de viação e haver necessidade de assegurar o respectivo transporte a unidade de saúde, o mesmo tivesse sofrido apenas ferimentos ligeiros, sem perda de consciência, que não impossibilitassem a realização do exame de pesquisa de álcool no ar expirado no local do acidente.

Texto Integral


Acordam os Juízes Desembargadores, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

1. Decisão recorrida
No âmbito do processo n.º 443/22.... do Juízo Local Criminal de Ponte de Lima, por sentença datada de 3 de Outubro de 2024, o arguido AA, nascido em ../../1968 e com os demais sinais dos autos, foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 8,00 (oito euros) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, prevista pelo artigo 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, pelo período de 5 (cinco) meses.

2.
Recurso
Inconformado com esta sentença, o referido arguido recorreu da mesma, tendo concluído a respectiva motivação nos seguintes termos (transcrição):
“(…)

1 – Não existe prova direta de que o arguido fosse o condutor do veículo sinistrado.
2 – Em face dos depoimentos, da totalidade da prova produzida diga-se, e conjugando a prova na sua globalidade, surge como plausível que fosse um terceiro a conduzir o veículo e tenha, antes da primeira testemunha pudesse chegar, abandonado o local.
3 - A testemunha BB foi clara, prestou um depoimento sem hesitações daquilo que vivenciou, tendo transmitido que se encontrava na casa de banho no momento em que ouviu um estrondo.
4 - Foi ainda clara em relatar que entre esse momento e o momento em que chegou ao local terão passado cerca de 3 a 5 minutos.
5 - Viu o arguido inanimado nesse momento, deitado na via, do lado oposto ao veículo.
6 - Daqui resultando que ninguém viu o arguido a conduzir o veículo em questão.
7 - As características do local em que o sinistro ocorreu foram descritas como uma zona de monte, com uma habitação em bruto e caminhos de monte por onde poderia alguém escapar-se sem ser visto.
8 – A mesma testemunha relatou que seria perfeitamente possível, alguém que fosse interveniente no acidente, pudesse dali escapar, tendo tempo para sair do local antes que chegasse e fosse visto.
9 – A testemunha referiu ainda que não relatou à GNR, no local e dia do sinistro, que viu o arguido a sair do veículo, pois tal não corresponde à verdade, como os militares da GNR tentaram fazer crer nos seus depoimentos, que se verificam que quanto a isso não podem corresponder à verdade.
10 - Não é verdade que seja inverosímil que alguém possa, sendo o condutor, ter abandonado o arguido.
11 - Basta pensar que essa pessoa podia constatar duas coisas em muito pouco tempo: tinha tido um acidente de viação e o arguido podia ter perdido a vida. Se a isso se conjeturar que pudesse estar a conduzir sob o efeito de álcool, percebemos que poderia muito bem e rapidamente ter pensado em abandonar o local antes que alguém chegasse, para assim se eximir à sua responsabilidade.
12 - E não se diga que o facto de o veículo ter a porta do condutor aberta é indício de que o condutor era o arguido, por ter saído pela mesma.
13 - Como referiram os bombeiros ouvidos, “cada acidente é o seu acidente”, podendo existir uma série de explicações para tal facto, ou seja, para o facto de apenas a porta do condutor estar aberta à chegada da testemunha.
14 - Não sabemos se a porta do passageiro ficou bloqueada e tal facto não foi possível aferir pela prova testemunhal, mas sabemos que, ao invés da porta do condutor que ficou virada para a estrada, a porta do passageiro ficou virada para o monte, com vegetação e como tal, essa seria razão mais que suficiente para que quem tivesse que sair do veículo conscientemente, o fizesse para o outro lado.
15 - Mais, se o arguido, entre 3 a 5 minutos após o acidente se encontrava inanimado, é, dizemo-lo, bastante provável que tenha ficado assim em consequência do acidente.
16 - E se assim o foi, fica por explicar como saiu o arguido do veículo para o outro lado da via, sendo que o único local por onde parece ter saído, terá sido a porta.
17 - Conjugando a forma como o arguido se encontrava (inanimado), o facto de a porta estar aberta e não havendo sinais de que o mesmo tenha sido projetado, coloca-se sempre como possível que alguém tenha tirado o arguido do veículo e possivelmente assustado, tenha abandonado o local à pressa para não ser visto e com receio que o arguido pudesse ter falecido em consequência do acidente.
18 - Assim e conjugando por um lado a falta de prova quanto ao facto de ser o arguido o condutor, e por outro a possibilidade, em face da dinâmica dos acontecimentos, de existir uma pessoa que fosse o condutor do veículo, deverá ser dado como não provado, que o arguido era o condutor.
19 – Acresce ainda que ninguém testemunhou de que o arguido ia ao volante do veículo. Essa prova, cabia à acusação efetuar.
20 – As testemunhas são inquiridas “sobre os factos de que possua conhecimento direto e que constituam objeto da prova”, ex vi art. 128º do CPP.

SEM PRESCINDIR
21 - A sentença violou os artigos 152º, nºs 1 e 2 e 156º do Código da Estrada (doravante CE), artigos 1º, nºs 1 e 3 e 4º, nº 1, da Lei 18/2007, 358º, 359º e 379º, do Código de Processo Penal.
22 – O exame sanguíneo constitui, in casu, uma prova nula, uma vez que na recolha de amostra de sangue para análise, o condutor sinistrado, transportado a um estabelecimento de saúde, ao qual desconhecemos se foi diagnosticada a impossibilidade de realizar teste de pesquisa de álcool no ar expirado, não é informado do fim da colheita nem lhe é solicitado qualquer consentimento para a sua recolha.
23 - Tratando-se de um ato que viola a integridade física e tem como objetivo, uma possível incriminação do sinistrado, o mesmo deve ser informado ou estar devidamente esclarecido do fim a que se destina a recolha do sangue.
24 - Resultando da matéria de facto o desconhecimento sobre se o arguido deu o seu consentimento para a colheita de sangue e que tal colheita foi realizada sem consulta à sua vontade, configurando em consequência uma prova nula.
25 - Daí resultando que não poderá ser dada como provada a TAS em causa, imputando, como consequência, a absolvição do arguido.
(…)”.

3. Resposta ao recurso
Após a admissão liminar do recurso, o Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu a este recurso nos seguintes termos (transcrição):
“(…)
1. O arguido discorda da ponderação da prova levada a cabo pelo Tribunal a quo e que permitiu fixar a matéria de facto que conduziu à sua condenação pela prática do crime de que vinha acusado.
2. Da douta sentença recorrida alcança-se quais os elementos probatórios que escoraram a convicção do Tribunal a quo quanto à fixação da matéria de facto dada por provada e como ocorreu o processo decisório.
3. A convicção do Tribunal a quo formou-se na valoração crítica dos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento em conjunto com o auto de notícia, com os documentos fotográficos juntos aos autos – os quais relevam:- quanto ao local e improbabilidade de terceiro dali se ausentar sem ser visto pela testemunha BB; - quanto à porta do veículo que se encontrava aberta; - e quanto ao estado do veículo, evidenciando a impossibilidade do arguido se movimentar no seu interior para sair pela porta que se encontrava aberta caso não fosse o condutor – e com as declarações prestadas pelo próprio arguido na audiência de julgamento de 26/09/2024, gravadas no sistema media studio, com início às 10h03 e termo às 10h15.
4. Nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal, “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção (….)” do julgador.
5. E a livre convicção do julgador, respeitadas que sejam as regras da experiência comum e da mais elementar lógica dedutiva, é formada sem constrangimentos; aliás, como mui eloquentemente foi já decidido pelo Tribunal da Relação do Porto, no seu douto Acórdão de 06 de Março de 2002, consultável em dgsi.pt, onde se lê “mesmo quando houver documentação da prova, a sua livre apreciação, devidamente fundamentada segundo as regras da experiência, no sentido de uma das soluções plausíveis torna a decisão inatacável. Doutro modo seriam defraudados os fins visados com a oralidade e a imediação da prova”.
6. A prova dos factos em processo penal não tem de ser directa, pelo que o facto do arguido não ter sido visto a conduzir o veículo nas circunstâncias de tempo e lugar que vieram a ser dadas como provadas não permite sustentar a conclusão, pela qual pugna, de que o Tribunal a quo tinha que dar como não provados os factos constantes da acusação.
7. No crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. no art.º 292º, n.º1 do Código Penal, o elemento objectivo traduz-se na condução de veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l; por sua vez, no que respeita ao elemento subjectivo, o crime pode ser cometido quer a título de dolo (em qualquer das suas modalidades), quer a título de negligência (em qualquer das suas modalidades). Não faz parte do tipo incriminador o meio usado para a detecção de álcool no sangue.
8. Os meios usados para detecção de álcool no sangue não podem deixar de ser expeditos, sob pena de tornar impraticável a acção policial e sob pena de não se recolher o valor da taxa de álcool existente no sangue no momento da condução já que se altera com o decurso do tempo, como é do conhecimento geral.
9. Os procedimentos legalmente estabelecidos para a realização do teste de pesquisa de álcool no sangue, destinados à averiguação do grau de alcoolemia para efeito de apuramento de responsabilidade criminal ou contra-ordenacional, encontram-se previstos no Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei 18/2007, de 17 de Maio, em conjugação com os art.ºs 153.º e 156.º, ambos do Código da Estrada.
10. Da conjugação dos art.ºs 153.º e 156.º do Código da Estrada com os art.º1 e 4º, n.º1 do Regulamento resulta que a detecção de álcool no sangue do condutor, não sendo possível, por razões físicas ou de saúde, através de exame no ar expirado, terá que ser realizada por via de análise em amostra de sangue recolhida com observância dos preceitos legais.
11. Resulta da prova colhida nos autos, nomeadamente do auto de notícia de fls. 3, das declarações prestadas pelo arguido e dos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, que o arguido, na sequência do acidente de viação no qual foi interveniente, foi transportado de ambulância para as urgências do Hospital ..., porque estava ferido, onde foi sujeito a exame através de análise ao sangue colhido, exame que não estava dependente do seu consentimento por derivar de uma obrigação legal (art.º156.º do Código da Estrada).
12. Encontrando-se o arguido no Hospital ..., para receber assistência médica, não se vislumbrava possível, face ao seu estado de saúde, a realização do teste para detecção de álcool no sangue através de analisador quantitativo – nem era exigível que o arguido ao mesmo se submetesse - já que tal implicava que pudesse deslocar-se ao Posto da GNR ou Esquadra da PSP, pois os agentes da autoridade não se fazem acompanhar do mesmo, o que não era possível perspectivar quando tal pudesse ocorrer. O exame devia/deve ser realizado no mais curto prazo possível até porque se trata de prova rapidamente perecível.
13. A violação dos direitos do arguido beneficiários de tutela constitucional, nomeadamente o direito à integridade física e reserva da vida privada, através da colheita do sangue, porque não desproporcional no confronto que com os interesses que se visam acautelar com a fiscalização do estado de influenciado pelo álcool no exercício da condução, está conforme à Constituição – art.º18.º, n.º2 da CRP (no mesmo sentido veja-se o já citado Ac. da Rel. de Guimarães de 11/03/2019, em que foi Rel. Armando Azevedo, consultável em www.dgsi.pt).
14. O resultado do exame de álcool no sangue apurado não adveio de prova proibida/nula.
15. Nenhum reparo merece, pois, a ponderação e valoração da prova produzida levadas a cabo na douta sentença em recurso, cujo julgador beneficiou da oralidade e imediação da produção de prova na audiência de discussão e julgamento e que não se socorreu de prova proibida, impondo-se, por isso, a sua manutenção.
(…)”.

4. Tramitação subsequente
Recebidos os autos nesta Relação, o processo foi com vista à Digníssima Procuradora-Geral Adjunta, o qual emitiu parecer fundamentado pugnando pela improcedência total do recurso.

Este parecer foi notificado para efeito de eventual contraditório e o recorrente respondeu reiterando integralmente a sua pretensão recursória.

Efectuado o exame preliminar, foi determinado que o recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

*
II – FUNDAMENTAÇÃO

A) Objecto do recurso
Em conformidade com o disposto no art.º 412.º do Código do Processo Penal (CPP) e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Assim sendo,  importa apreciar, apenas, a questão da impugnação do julgamento da matéria de facto.

B) Apreciação do recurso
1) Fundamentação de facto da decisão recorrida
A decisão recorrida apresenta, na parte que interessa, o seguinte teor (transcrição):
            “(…)
II – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

MATÉRIA DE FACTO PROVADA
1) No dia ../../2022, pelas 15h30, na Avenida ..., na União de Freguesias ... e ..., concelho ..., o arguido AA, sendo portador de uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos 1,84 g/l, correspondente à quantificação de etanol no sangue de 2,11g/l por análise ao sangue, deduzida da margem de erro admissível de 0,27g/l, conduziu o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula ..-..-ZF, tendo sido no local interveniente em acidente de viação por via do seu próprio despiste.
2) Tal taxa resultou da ingestão deliberada e consciente de bebidas alcoólicas por parte do arguido antes de iniciar a condução.
3) O arguido conduziu tal veículo, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas, com o conhecimento das características de via pública por onde circulava e de que se encontrava sob a influência do álcool, ciente de que podia ser portador de uma TAS superior a 1,20 g/l, não se tendo coibido, apesar de tal, de conduzir a referida viatura naquelas circunstâncias.
4) Agiu o arguido de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e punida por lei penal.
5) O arguido é solteiro e reside em ..., em casa arrendada (partilhada).
6) Tem o 7º ano de escolaridade, é motorista de pesados e trabalha para a empresa espanhola de transportes EMP01... S.L., auferindo cerca de 1.300,00 € mensais.
7) Com o pagamento da sua parte da renda despende 250,00 € mensais.
8) O arguido não tem antecedentes criminais registados.
*
MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
Não há factos não provados.
*
MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA E NÃO PROVADA
A convicção do tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação de todos os meios de prova produzidos e/ou analisados em audiência de julgamento (cfr. artigo 355º, do Código de Processo Penal), sempre no confronto com as regras gerais da experiência e da norma do artigo 127º, do Código de Processo Penal.
Em concreto, consideraram-se as declarações das testemunhas e do arguido, conjugadas com o teor do auto de notícia de fls. 3, do relatório toxicológico de fls. 4 (que permitiu quantificar a taxa de álcool apresentada), do aditamento de fls. 6, da participação de acidente de viação de fls. 40 e 41, do documento de fls. 30 e 31 (registo automóvel) e das fotografias juntas aos autos por e-mail de 19/09/2024.
A testemunha BB, única que conhecia o arguido por ser da mesma freguesia, foi a primeira a acudir ao local, por morar nas proximidades e ter sido alertado pelo “estrondo”. Demorou entre 3 a 5 minutos a sair de casa e, já no quintal, viu o veículo acidentado, capotado na berma. Só quando se aproximou do local do acidente é que viu o arguido, inanimado, no meio da via, sobre a curva. Não viu mais ninguém no local. Encaminhou o arguido (que, entretanto, começou a reagir) para fora da via, ajudando-o a sentar-se numa cadeira e ligou para o 112. Mais esclareceu que, depois de recobrar a consciência, o arguido queixava-se de dores, dizia “asneiras”, mas não perguntou por ninguém, designadamente um eventual ocupante do veículo.
Foram ouvidos como testemunhas CC e DD, militares da GNR, e  EE, FF,  GG, HH, II, JJ e KK, bombeiros (uns pertencentes às equipas de emergência médica e outros à equipa de desencarceramento). Todos acorreram ao local do acidente após a chamada da testemunha BB, pelo que apenas encontraram o arguido já sentado na cadeira.
Os bombeiros tiraram as fotografias juntas aos autos, onde é visível o veículo capotado com a porta do condutor aberta, voltada para a estrada e, mais concretamente, para o local onde a testemunha BB viu o arguido inanimado.
O arguido optou por falar apenas no fim da produção de toda a prova testemunhal, apresentando uma versão incoerente e contrária às regras de experiência. No dizer do arguido, estando muito cansado da última viagem de trabalho (por ter conduzido a noite toda), foi tratar de assuntos relacionados com o IRS e, após, ao invés de seguir directo para casa, parou no café onde, sozinho, bebeu (“não sei bem o quê”; “penso que cerveja”), acordando depois no hospital. Daí retira as seguintes ilações: não era ele quem dirigia o veículo quando ocorreu o acidente de viação; alguém, que não conseguiu identificar, se terá prontificado para o levar a casa, conduzindo o veículo automóvel pertença do arguido e fugido a pé após o acidente de viação, deixando-o inconsciente no meio da estrada.
Ora, não há qualquer indício, mínimo que seja, que coloque uma terceira pessoa no local do acidente, designadamente no interior do veículo e a exercer a condução (o arguido não estava acompanhado por ninguém no café; ninguém viu uma terceira pessoa a conduzir o veículo do arguido; ninguém relatou vestígios da presença de uma terceira pessoa, seja no interior do veículo, seja no local do acidente ou sequer nas proximidades), o que torna irrelevante a fantasiosa versão apresentada pelo arguido (e isso mesmo que houvesse tempo para a imaginária terceira pessoa - supondo que saía ilesa do violento acidente –, fugir pelos caminhos de monte antes da chegada da testemunha BB, abandonando o arguido - que antes procurara ajudar - à sua sorte e agora em risco de vida, se não pelas lesões causadas pelo acidente, pelo menos pelo risco de ser atropelado, já que ficara inconsciente no meio da via, numa curva).
Daqui decorre que a única conclusão a tirar, que se coaduna com a prova produzida e com as regras de normalidade, é que era o arguido que, ao volante do veículo, exercia a condução no momento do acidente de viação e, consequentemente, que o fazia após a ingestão de bebidas alcoólicas em quantidade suficiente para lhe determinarem a taxa de álcool no sangue que apresentou.
Para a factualidade referente à intenção e representação inerente à sua conduta, foi ponderada a matéria provada, conjugada com critérios de razoabilidade e regras de experiência comum (quem bebe bebidas alcoólicas está, necessariamente, ciente de que pode apresentar taxa de álcool no sangue superior aos limites legais e age conformando-se com tal resultado).
Quanto à situação pessoal e económica do arguido foram levadas em conta as suas afirmações, plausíveis nessa parte e que não foram infirmadas por qualquer outro elemento de prova.
Foi ainda considerado o certificado do registo criminal.
(…)”.

2. Erro de julgamento da matéria de facto
2.1. Dispõe o art. 428.º do CPP que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.

Dado que no caso em análise houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação integral, pode o tribunal de recurso reapreciá-la na perspectiva ampla prevista nos artigos 412.º, n.º 3, e 431.º do CPP, ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.

Nestes casos de impugnação da matéria de facto, a apreciação pelo tribunal superior já não se restringe ao texto e contexto da decisão, mas abrange a análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada/gravada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do artigo 431.º, alínea b), do Código de Processo Penal.

Este recurso não tem por finalidade nem pode ser confundido com um "novo julgamento" da matéria de facto, assumindo-se antes como um “remédio” jurídico.

Na verdade, conforme salientou o Prof. Germano Marques da Silva, “Recorde-se que o recurso ordinário no nosso Código é estruturado como um remédio jurídico, visa corrigir a eventual ilegalidade cometida pelo tribunal a quo. O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Por isso também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e sobretudo que tenha de indicar expressamente os vícios da decisão recorrida.” (“Registo da prova em Processo Penal. Tribunal Colectivo e Recurso”, in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra 2001, pág. 809).

No mesmo sentido, ficou escrito no Ac. STJ de 17 de Fevereiro de 2005, Proc. 04P4324, “(…) o recurso em matéria de facto para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente, mas é antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada”.
 
Por conseguinte, o recurso em matéria de facto, destina-se apenas à reapreciação da decisão proferida em primeira instância em pontos concretos e determinados.

Tem como finalidade a reapreciação de “questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida” (cfr. designadamente o art. 410º, n.º l do CPP).

Daí que o legislador tenha estabelecido um específico dever de motivação e formulação de conclusões do recurso nesta matéria (artigo 412.º, n.º 1, 3 e 4 do CPP).

Segundo o n.º 3 do citado artigo 412.º, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.

Por seu turno, nos termos do n.º 4 do mesmo artigo 412.º, na redacção que lhe foi conferida pela lei n.º 27/2015, de 14 de Abril, “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”. 

A este respeito, como se salientou no Ac. do STJ de 19-5-2010, processo n.º 696/05.7TAVCD.S1, que “As indicações exigidas pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP são imprescindíveis para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto e não um ónus de natureza puramente secundária ou meramente formal, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre matéria de facto”.

Nesta matéria, o Ac. da Rel. de Coimbra de 22.10.2008, proferido no proc. n.º 1121/03.3TACBR.C1, bem explicita “A especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida … que considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença, sendo que a exigência legal de especificação das “concretas provas” só se queda satisfeita com a indicação do conteúdo específico do meio de prova”.

Ainda sobre a exigência contida na alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP, importa não perder de vista, como bem se enfatizou no Ac. desta Rel. de Guimarães de 20-3-2006, proc.º n.º 245/06, disponível em www.dgsi.pt, que (…) a lei refere as provas que «impõem» e não as que “permitiriam» decisão diversa. É que afigura-se indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção

A este respeito, como se salientou no Ac. do STJ de 19 de Maio de 2010, processo n.º 696/05.7TAVCD.S1, “As indicações exigidas pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP são imprescindíveis para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto e não um ónus de natureza puramente secundária ou meramente formal, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre matéria de facto”.

Para que não houvesse dúvidas, o Ac. STJ n.º 3/2012, veio fixar a seguinte jurisprudência: “Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações”.

Assim, o ónus processual de indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, previsto na alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do C.P.P., apresenta uma configuração alternativa, conforme a acta da audiência de julgamento contenha ou não a referência do início e do termo de cada declaração gravada, nos seguintes termos:
- se a acta contiver essa referência, a indicação das concretas passagens em que se funda a impugnação faz-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º (n.º 4 do artigo 412.º do C.P.P.);
– se a acta não contiver essa referência, basta a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens/excertos” dos meios de prova oral gravados (Vide Ac. da Relação de Évora, 28.05.2013, p. 94/08.0GGODM.E1, disponível em www.dgsi.pt).

Ainda sobre esta matéria relativa aos ónus do recorrente, o Ac. da Rel. de Coimbra de 22.10.2008, proferido no proc. n.º 1121/03.3TACBR.C1, bem explicita “A especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida … que considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença, sendo que a exigência legal de especificação das “concretas provas” só se queda satisfeita com a indicação do conteúdo específico do meio de prova”.
*
Por outro lado, importa ter sempre presente que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente (artigo 127º do Código de processo Penal).

No caso do julgamento, a entidade competente é, naturalmente, o juiz.

A livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova.

A livre valoração da prova deve ser entendida como “valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão” (Vide Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal II, Verbo, 1999, pp. 122-127).

Consequentemente, segundo a lição do Prof. Figueiredo Dias –, “Lições de Direito Processual Penal”, págs. 135 e segs. –, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode consequentemente assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente, porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação, ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos, ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão”.

Como justamente se salientou no Ac. da Rel. do Porto de 12-5-2004: “I - A convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso quando seja obtida através de provas ilegais ou proibida, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova ou, então, quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum. II - Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum deve acolher-se a opção do julgador”. 

Por isso, o recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova.

Aliás,  “a decisão do Tribunal há-de ser sempre uma "convicção pessoal - até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais" - Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, Coimbra, 1974, pág. 204.

No que concerne à questão da credibilidade das declarações e depoimentos, a imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como «a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão» (FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.

 Assim, a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador que é fundada na imediação e na oralidade, que o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (Vide Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013, www.dgsi.pt).

Por outro lado, a credibilidade em concreto de cada meio de prova tem subjacente a aplicação de máximas da experiência comum que informam a opção do julgador.

E estas podem, e devem, ser escrutinadas pelo tribunal superior.

Porém tal sindicância deverá ter sempre uma visão global da fundamentação sobre a prova produzida de forma a poder acompanhar todo o processo dedutivo seguido pela decisão recorrida em elação aos factos concretamente impugnados. Não se pode, nem deve substituir, a compreensão e análise do conjunto da prova produzida sobre um determinado ponto de facto pela visão parcial e segmentada eventualmente oferecida por um dos sujeitos processuais.»

A tarefa de valoração da prova e de reconstituição dos factos, tendo em vista alcançar a verdade – não a verdade absoluta e ontológica, mas uma verdade histórico-prática e processualmente válida –, o julgador não está sujeito a uma “contabilidade das provas”. E não será a circunstância, normal nas lides judiciais, de se contraporem, pela prova pessoal (declarações e testemunhos), versões contraditórias, a impor que o julgador seja conduzido, irremediavelmente, a uma situação de dúvida insuperável.

Por outro lado, nada obsta a que o juízo probatório se funde apenas no depoimento de uma única testemunha, ainda que a mesma seja a ofendida do crime sob julgamento.

Este singelo depoimento deve ser livremente valorado pelo Tribunal e pode levar à condenação do arguido desde que seja entendido que tal depoimento foi prestado de forma séria e credível.

O velho aforismo “testis unus testis nullus”, carece de eficácia jurídica num sistema como o nosso em a prova já não é tarifada ou legal mas antes livremente apreciada pelo tribunal

Consequentemente, o tribunal não está impedido de considerar provados os factos apenas com base no depoimento de uma única testemunha, mesmo que essa testemunha seja o ofendido.

2.2. Explicitado o entendimento sobre o sentido e alcance da impugnação da matéria de facto, na vertente da impugnação ampla, importa constatar que o recorrente discorda da decisão sobre o julgamento da matéria de facto dada como provada sob o n.º 1, ou seja, impugna não só o julgamento da matéria de facto relativa à  intervenção do arguido no própria condução do veículo, como também impugna a própria quantificação da taxa de álcool no sangue dada como provada.

Resulta claro da motivação e das conclusões do seu recurso que o arguido tem em vista o erro de julgamento a que alude o art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, traduzido numa errónea valoração das provas produzidas em julgamento no que tange à supra descrita factualidade.

2.3. Relativamente às concretas provas que, na sua perspectiva, impõem decisão diversa na parte da factualidade relativa à própria condução do veículo dos autos, o recorrente trouxe à liça, no essencial, o depoimento da testemunha BB e as declarações do próprio arguido (isto não obstante ter reproduzido integralmente os depoimentos – e apenas estes – produzidos na audiência de julgamento).

Entende o recorrente que é “plausível que fosse um terceiro a conduzir o veículo e tenha, antes que a primeira testemunha pudesse chegar, abandonado o local”.         

Cotejando a motivação e as conclusões do recurso com a fundamentação de facto da decisão recorrida acima transcrita, facilmente se constata que o recorrente não alega que a descrição que a sentença recorrida faz do conteúdo das declarações e dos depoimentos prestados no julgamento – incluindo as declarações e os depoimentos ora valorizados no recurso –, não corresponde ao que na realidade disseram o arguido e as testemunhas.  

Toda a alegação do recorrente ao longo das considerações que vai adiantando em abono da sua tese resume-se à sua discordância relativamente à forma como o tribunal a quo valorou a prova, limitando-se a avançar a sua ponderação acerca da prova produzida, notoriamente distinta daquela que ficou estabelecida na sentença recorrida, visando que este tribunal a adopte.

Dito de outro modo, o que o recorrente pretende é, no fundo, que este tribunal de recurso proceda a um novo julgamento acerca de tais factos, analisando toda a prova produzida na primeira instância a fim de fixar depois a matéria de facto de acordo com a convicção do próprio recorrente, considerando os factos em causa como não provados.

E olvidando que, para que este tribunal de recurso pudesse levar a cabo a pretendida alteração da matéria de facto, tornava-se necessário que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento não apenas aconselhasse, ou permitisse, ou consentisse uma tal alteração, mas antes impusesse essa alteração da decisão a que o tribunal recorrido chegou, fundamentadamente, sobre a matéria de facto.

O facto controvertido essencial consiste na condução do veículo sinistrado pelo arguido.

A sentença recorrida dá boa nota do conteúdo da prova existente e justifica porque deu como provada a intervenção do arguido nos factos.    

Ora, é preciso não esquecer a jurisprudência – acima citada – segundo a qual “I - A convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso quando seja obtida através de provas ilegais ou proibida, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova ou, então, quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum. II - Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum deve acolher-se a opção do julgador

Bem como a jurisprudência mais assertiva plasmada no acórdão da Relação de Évora de 19/05/2015, proferido no âmbito do Proc. nº 441/10.5TABJA.E2,, www.dgsi.pt , segundo a qual “Se, perante determinada situação, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis, e o Juiz, fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente, ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efectuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que opte por ela.”.

Não obstante o “ataque” dirigido à convicção do tribunal a quo, há que referir que, tendo este tribunal procedido à audição da gravação da prova na sua integralidade, nos termos do disposto no art. 412.º, n.º 6, e não apenas à audição dos segmentos assinalados pelo recorrente, e analisada e concatenada a demais prova produzida, de índole documental, concluiu-se que a motivação da decisão de facto constante da sentença recorrida reproduz genericamente tudo quanto se desenrolou em audiência de discussão e julgamento.

Na verdade, a análise de toda a prova (gravada e documental) não nos dá qualquer indício de que aquele tribunal decidiu mal.

Antes pelo contrário, confirma o raciocínio coerente, lógico e racional prosseguido pelo tribunal a quo para dar como provados os factos em discussão.

Facilmente se percebe, da leitura do texto da decisão recorrida, conjugada com as regras da experiência comum, que a mesma é escorreita, devida e suficientemente fundamentada - maxime no que tange à concreta intervenção do arguido nos factos em apreço e aos resultados da sua conduta -, e os juízos e a análise crítica que ali é expendida são lógicos, prudentes, não arbitrários e estribam-se nas referidas regras da experiência.

Em especial, a convicção do tribunal a quo não foi alcançada através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova, nem afronta de forma manifesta as regras da experiência comum.

É certo que ao recorrente assistia o direito de apresentar a versão que lhe aprouvesse e que tivesse por mais adequada à defesa da sua tese, o que fez nos termos que constam das conclusões recursórias.

Porém, em bom rigor, o recorrente, ao alegar em tais moldes, sem apontar argumentos ou provas impositivas de uma decisão diversa da que foi tomada pelo tribunal nos segmentos aludidos, está, em síntese, a impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre os mesmos aquela adquiriu em julgamento, olvidando a regra da livre apreciação da prova ínsita no art. 127.º do CPP.

Acresce que a alegada plausibilidade da intervenção de um terceiro na condução do veículo não resulta efectivamente de qualquer prova produzida no julgamento e emerge tão-só da desconsideração indevida do alcance probatório das presunções judiciais e da especulação associada à inexistência de uma testemunha que tivesse observado o arguido a conduzir o veículo dos autos.

Na verdade, o próprio arguido deu conta no final do julgamento de que apenas se lembrava de ter conduzido sozinho o veículo automóvel dos autos até um estabelecimento de café – onde entrou igualmente sozinho – e não se recorda de mais nada até ter acordado no Hospital ....

Mais, o arguido “não tem ideia nenhuma” daquilo que bebeu e com quem esteve, bem como também “não tem ideia nenhuma” de ter saído do referido café e ter conduzido o veículo capotado e sem  quaisquer ocupantes junto ao qual veio a ser encontrado prostrado em plena faixa de rodagem.

Serve isto para dizer que não existe sequer qualquer prova da intervenção de um terceiro que permita sustentar minimamente uma versão dos factos alternativa que imponha decisão diversa da recorrida.

Concluindo, o recurso improcede nesta parte.

2.4. Conforme já se avançara, o recorrente também impugna a própria quantificação da taxa de álcool no sangue dada como provada.

Para tanto, o recorrente alega, concretamente, que:
“22 – O exame sanguíneo constitui, in casu, uma prova nula, uma vez que na recolha de amostra de sangue para análise, o condutor sinistrado, transportado a um estabelecimento de saúde, ao qual desconhecemos se foi diagnosticada a impossibilidade de realizar teste de pesquisa de álcool no ar expirado, não é informado do fim da colheita nem lhe é solicitado qualquer consentimento para a sua recolha.
23 - Tratando-se de um ato que viola a integridade física e tem como objetivo, uma possível incriminação do sinistrado, o mesmo deve ser informado ou estar devidamente esclarecido do fim a que se destina a recolha do sangue.
24 - Resultando da matéria de facto o desconhecimento sobre se o arguido deu o seu consentimento para a colheita de sangue e que tal colheita foi realizada sem consulta à sua vontade, configurando em consequência uma prova nula.
25 - Daí resultando que não poderá ser dada como provada a TAS em causa, imputando, como consequência, a absolvição do arguido.”

2.4.1. Vejamos o quadro normativo ordinário e constitucional aplicável à questão suscitada pelo recorrente.

A prova em processo penal está sujeita ao princípio da legalidade, segundo o qual são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art 125.º, do Código de Processo Penal).     

Por outro lado, são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física das pessoas (art. 32.º, n.º 8, da Constituição, e art. 126.º, n.º 1, do CPP).        

Acresce que são ofensivas da integridade física das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante ofensas corporais (art. 126.º, n.º 2, al. a), do CPP).

Contudo, o legislador penal tipificou como crime a condução, dolosa ou negligente, de veículo com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l (art. 292.º, n.º 1, do Código Penal).

Tal incriminação de perigo  abstracto traduz-se na antecipação da tutela penal directa da segurança rodoviária e, reflexamente, da vida e da integridade física, cuja validade não mereceu qualquer censura pelo Tribunal Constitucional (Vide, mais recentemente, Ac. TC 95/2011, www.tribunalconstitucional.pt).
   
Para assegurar a utilidade da referida incriminação, os condutores devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool (art. 152.º, n.º 1, al. a), do Código da Estrada, na redacção da Lei n.º 72/2013).

A quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por teste no ar expirado ou por análise de sangue (art. 1.º, n.º 2, do “Regulamento de fiscalização da condução sob a influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas”, anexo Lei n.º 18/2007).

A submissão  do condutor ao teste de detecção de álcool através do exame de pesquisa de álcool no ar expirado também não mereceu qualquer censura pelo Tribunal Constitucional (Vide Acórdão TC 319/95 e Acórdão TC 628/2006, www.tribunalconstitucional.pt).

Em particular, os condutores que intervenham em acidente de viação devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado (art. 156.º, n.º 1, do CE).

Quando não tiver sido possível a realização deste exame de pesquisa de álcool no ar expirado, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita de amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool (art. 156.º, n.º 2, do CE).

Esta colheita de sangue é efectuada no mais curto prazo possível após a ocorrência do acidente (art. 5.º, n.º 1, do RFASP).   

A conformidade constitucional da recolha de sangue para despistagem de álcool em condutor inconsciente por ter sido interveniente em acidente de viação também não mereceu qualquer censura pelo Tribunal Constitucional, nomeadamente no que respeita ao invocado direito fundamental à integridade pessoal na dimensão física (Vide Acórdão TC 418/2013, www.tribunalconstitucional.pt).

Efectivamente, neste último acórdão, ficou expressamente consignado que: 
“(…)
Na linha do que já tem vindo a ser defendido pela citada jurisprudência do Tribunal Constitucional, poderemos considerar que a admissibilidade da colheita de amostra de sangue, para exame do estado de influenciado pelo álcool, não comporta, por si, um juízo de desconformidade constitucional.
Na verdade, como acabámos de recensear, a jurisprudência deste Tribunal tem vindo a considerar que a Constituição autoriza, atendendo às finalidades em causa, e respeitadas as demais exigências constitucionais, a restrição dos direitos fundamentais à integridade pessoal, à reserva da vida privada ou à autodeterminação informativa (v.g., Acórdãos n.º 254/99 e n.º 155/2007, citados).
E a recolha de amostra de sangue, nas específicas circunstâncias em análise no presente recurso, apesar de contender com o direito à integridade pessoal e o direito à reserva da vida privada do examinando, igualmente não comporta um juízo de desconformidade constitucional.
A intervenção nos referidos direitos fundamentais dirige-se à salvaguarda da eficácia da pretensão punitiva do Estado, relativamente a normas sancionatórias criadas como garantia de efetiva tutela material de outros direitos fundamentais valiosos - a vida, a integridade física, a propriedade privada - abarcados pela proteção da segurança da circulação rodoviária.
Ora, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, o direito à integridade pessoal não impede o “estabelecimento de deveres públicos dos cidadãos que se traduzam em (ou impliquem) intervenções no corpo das pessoas (v. g., vacinação, colheita de sangue para testes alcoolémicos, etc.)”, desde que a obrigação não comporte a sua execução forçada, sem prejuízo da punição em caso de recusa (in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, p. 456).
No caso, por um lado, a intervenção em análise é obrigatoriamente realizada em estabelecimento de saúde, com observância das leges artis médicas, e envolve um grau de afetação da integridade corporal muito baixo. Por outro lado, nas circunstâncias que analisamos, tal intervenção não envolve uma direta violação da vontade do examinando, mas uma impossibilidade de consideração da mesma - dada a circunstância de o examinando não estar em condições de prestar ou recusar o consentimento - correspondendo, assim, a uma forma menos grave de interferência no direito à autodeterminação.
Por último, apesar de corresponder a uma ingerência no direito à esfera pessoal de privacidade do examinando, tem um alcance intrusivo reduzido, porquanto apenas implica a recolha, para fins restritos e legalmente delimitados, de uma amostra de um material biológico preciso, revelador de limitadas informações acerca da vida privada do visado, realizada no recato conatural ao contexto hospitalar, por pessoal de saúde sujeito a segredo profissional.
Tudo ponderado, resulta que a restrição obedece ao princípio da proporcionalidade, sendo adequada – correspondendo a meio idóneo à prossecução do objetivo de proteção dos direitos fundamentais em análise – bem como necessária – por corresponder ao único meio, face ao caráter perecível da prova, que ainda permite a satisfação da pretensão punitiva do Estado – e proporcional, em sentido estrito, apresentando-se como equilibrada e correspondente à justa medida imposta pela proteção dos direitos que cumpre acautelar.

9. Concluímos, desta forma, pela não inconstitucionalidade da interpretação, extraída da conjugação do artigo 4.º, n.os 1 e 2, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17 de maio, e do artigo 156.º, n.º 2 do Código da Estrada, segundo a qual o condutor, interveniente em acidente de viação, que se encontre fisicamente incapaz de realizar o exame de pesquisa de álcool no ar expirado, deve ser sujeito a colheita de amostra de sangue, por médico de estabelecimento oficial de saúde, para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool, nomeadamente para efeitos da sua responsabilização criminal, ainda que o seu estado não lhe permita prestar ou recusar o consentimento a tal colheita.”

Conhecidos os limites legais acabados de enunciar, regressemos agora ao caso dos autos.
           
2.4.2. No caso concreto, mostra-se assente que o arguido conduzia o veículo dos autos quando se despistou.

Mais resulta das declarações do próprio arguido que o mesmo só recuperou integralmente a respectiva consciência – na sequência deste acidente de viação – quando já se encontrava no Hospital ..., para onde fora transportado pela ambulância em virtude do seu estado de saúde.

Assim sendo, à luz das normas acima enunciadas e com o alcance expressamente delimitado, é manifesto que o estado de saúde do arguido após o acidente que o vitimou não permitia a respectiva submissão imediata a exame de pesquisa de álcool no ar expirado no local do capotamento da viatura e que o médico do estabelecimento oficial de saúde para o qual o arguido foi transportado estava obrigado a proceder à colheita de amostra de sangue, no mais curto prazo possível, para posterior exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool.

Neste circunstancialismo de inconsciência do arguido e de transporte para o hospital, fica não só prejudicada a realização do exame de pesquisa de álcool no ar expirado, como também  a exigência de qualquer consentimento para a realização da colheita do sangue para efeito estrito de exame de diagnóstico do estado de influência pelo álcool (Vide, no mesmo sentido, Ac. TRG 11.03.2019, p. 38/18.1GAVNF.G1, disponível em www.dgsi.pt).

Por conseguinte, a colheita da amostra de sangue levada a cabo neste caso não enferma de qualquer nulidade geradora de proibição de prova.

Diferente seria se, não obstante a intervenção do arguido em acidente de viação e haver necessidade de assegurar o respectivo transporte a unidade de saúde, o mesmo tivesse sofrido apenas ferimentos ligeiros, sem perda de consciência, que não impossibilitassem a realização do exame de pesquisa de álcool no ar expirado no local do acidente.

Nesta última hipótese, a eventual colheita ulterior de amostra de sangue sem o consentimento do condutor sinistrado já estaria ferida de nulidade que obstaria à respectiva valoração.

Não foi isso que sucedeu no caso concreto.

2.5. Concluindo, o recurso também improcede nesta parte.
           
III – DECISÃO

Em função do exposto, acordam os Juízes Desembargadores desta Secção Criminal em julgar o recurso totalmente improcedente e, em consequência, manter a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, com taxa de justiça fixada em 3 UC (art. 513.º, do CPP, e art. 8.º do RCP e tabela III anexa).
*
Guimarães, 25 de Fevereiro de 2025
(Texto elaborado em computador pelo relator e integralmente revisto pelos subscritores)

(Paulo Almeida Cunha - Relator)
(Pedro Cunha Lopes)
(Fátima Furtado)