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CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONTACTOS
RECURSO
LEGITIMIDADE DA ASSISTENTE
VIGILÂNCIA ELECTRÓNICA
Sumário
I – Deve ser rejeitado o recurso da assistente relativo à medida da pena, quando o Ministério Público se conformou com esta. II – Em crime de violência doméstica, ao ter optado pela não fiscalização, por meios técnicos de controlo à distância, da pena acessória de proibição de contactos, o Tribunal a quo proferiu uma decisão contra a assistente, para efeitos do art. 401.º, n.º 1, b), do Código de Processo Penal, da qual a mesma pode recorrer. III – Traduzindo-se o crime no envio, por telemóvel, de mensagens escritas pelo arguido com ameaças de morte à assistente, algumas delas no mesmo dia, com alusões ao paradeiro desta em certos momentos e à mudança de casa do arguido para o mesmo município onde reside a assistente, a simples aplicação da pena acessória não é suficientemente dissuasora da prática pelo arguido de novos crimes na pessoa da assistente. IV – Para a protecção efectiva da assistente, e como forma de prevenir que o arguido se permita escalar a gravidade da sua conduta, passando das palavras aos actos, é essencial para a protecção da vítima a fiscalização da citada pena acessória por meios técnicos de controlo à distância.
Texto Integral
Neste processo n.º 339/24.0GBBCL.G1, acordam em conferência as Juízas na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I - RELATÓRIO
No processo comum singular n.º 339/24...., a correr termos no Juízo Local Criminal (J...) de ..., Comarca de Braga, em que é assistente AA, foi proferida sentença a 23 de Outubro de 2024, que condenou o arguido BB, pela prática de um crime de violência doméstica, p e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, com a condição de o arguido, além de cumprir a pena acessória de afastamento e proibição de contactos, frequentar programa destinado aos agentes de crimes de violência doméstica (de acordo com o que vier a ser estabelecido pela DGRSP), nos termos do art. 38.º, n.º 1 e 2, da Lei n.º 112/2009.
Foi ainda o arguido condenado na pena acessória de proibição de, por qualquer forma, contactar e/ou se aproximar da assistente, incluindo a proibição de se deslocar ou aproximar da sua residência e do seu local de trabalho, a uma distância inferior a 300 metros, pelo período de 3 (três) anos, nos termos do disposto no art. 152.º, n.º 4 e 5, do C. Penal[1].
Inconformada, recorreu a assistente, apresentando as seguintes conclusões[2]:
«II. O presente recurso visa a alteração da decisão na parte em que decidiu pela suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido, porquanto não estão verificados os pressupostos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, e, a título subsidiário, visa a aplicação de meios técnicos de controlo à distância para efeitos de fiscalização do cumprimento da pena acessória de proibição de contactos, nos termos do art. 152.º/5 do Código Penal. III. O interesse da assistente/recorrente no presente recurso é o de evitar ser (novamente) alvo de ilícito(s) penal(ais) por parte do arguido. IV. No âmbito do processo n.º 234/19...., foi aplicada ao ora arguido a suspensão provisória do processo pela prática de factos integradores do crime de violência doméstica na pessoa da ora assistente/recorrente, conforme resulta da factualidade dada como provada pela sentença recorrida sob as alíneas a), d) e e) e do documento com a referência Citius 190029529, junto com o presente recurso sob a forma de doc. 1. V. No âmbito do processo n.º 48/18...., foi aplicada ao ora arguido a suspensão provisória do processo pela prática de factos integradores do(s) crime(s) de detenção de arma(s) proibida(s), conforme resulta do documento com a referência Citius 16001001, junto com o presente recurso sob a forma de documento n.º 2. VI. Além da detenção de armas e munições sem que para tal possuísse qualquer autorização ou licença, resultou da factualidade suficientemente indiciada no processo n.º 48/18.... que o ora arguido havia disparado uma das referidas armas contra si próprio, com o intuito de pôr termo à vida. VII. Do processo de violência doméstica n.º 234/19.... - itens 4. e 5. da respetiva acusação - resultou que o aqui arguido ingeria bebidas alcoólicas em excesso, apresentando-se com sinais de embriaguez em muitas das ocasiões em que iniciou discussões com a aqui assistente/recorrente e que culminaram na prática de factos integradores do crime de violência doméstica. VIII. Conexo com o consumo excessivo de bebidas alcoólicas, consta do registo criminal que o arguido foi condenado, no âmbito do processo n.º 33/20...., por um crime de condução em estado de embriaguez (item o. da sentença recorrida). IX. No passado mês de Junho o arguido comunicou aos presentes autos a alteração de sua residência da Rua ..., ..., ... ... - ..., para a Rua ..., ..., ..., ... ... - ..., residindo atualmente a 11 quilómetros de distância (o que equivale a cerca de 15 minutos de distância) da assistente/recorrente, conforme resulta dos documentos com a referência Citius ...45 e 16261922, juntos com o presente recurso sob a forma de documentos 4 e 5. X. O arguido está desempregado e não aufere subsídio de desemprego, sendo sustentado com a ajuda da irmã, a qual o ajuda a pagar a renda da casa onde reside, no valor de 650 € mensais - alínea n) da matéria dada como provada pela sentença recorrida. XI. O arguido é, portanto, uma pessoa que não se encontra inserida do ponto de vista profissional, logo as exigências de prevenção especial são, naturalmente, superiores. XII. Recentemente, foi extraída certidão de folhas 176 a 189 e 213 para efeitos de instauração de (novo) inquérito por detenção de arma proibida no qual é suspeito o arguido - documento com a referência Citius 191761173, junto com o presente recurso sob a forma de documento n.º 6. XIII. Por despacho proferido em 19/06/2024 nos presentes autos, foram aplicadas ao arguido, ao abrigo do disposto nos arts. 193º, n.º 1, 200º, n.º 1, als. a), d) e e), e 204º, al. c), todos do C. P. Penal e art.º 31º, n.º 1, als. a), c) e d) da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, para além do termo de identidade e residência anteriormente prestado, as seguintes medidas de coação: - Não permanecer, nem se aproximar, a uma distância inferior a 500 (quinhentos) metros, da residência da vítima; - Não contactar, por qualquer meio, com a vítima, nem da mesma se aproximar; - Não adquirir, não usar ou entregar, de forma imediata, armas ou outros objetos e utensílios que detiver, capazes de facilitar a continuação da atividade criminosa. XIV. O arguido violou as obrigações que lhe foram impostas por aplicação das referidas medidas de coação, concretamente a proibição de contactar, por qualquer meio, com a assistente/recorrente (cfr. requerimentos da assistente/recorrente de 11/10/2024 e 21/10/2024, com as referências Citius 16778035 e 16826614, respetivamente). XV. Neste processo provou-se, nomeadamente, que o arguido insultou a assistente/recorrente, perseguiu-a, controlou as suas redes sociais e ameaçou- a frequentemente de morte. XVI. De facto, o arguido revela uma atitude de total indiferença perante os bens jurídicos tutelados pelo crime de violência doméstica: em primeiro lugar, já anteriormente o arguido cumpriu injunções e regras de conduta pela prática de factos integradores do crime de violência doméstica - injunções e regras de conduta essas que, à exceção do período temporal em que vigoraram, não foram menos gravosas do que as aplicadas pela sentença recorrida -, e nem por isso deixou de “reincidir”, isto é, repetiu a prática de factos integradores do crime de violência doméstica; em segundo lugar, o arguido violou as medidas de coação que lhe foram impostas no âmbito dos presentes autos, concretamente a proibição de contactar, por qualquer meio, com a assistente/recorrente. XVII. Conjugada a factualidade dada como provada pela sentença recorrida com uma vida marcada pelo consumo excessivo de bebidas alcoólicas, detenção (ilegal) de armas e munições, uma tentativa de suicídio, a situação de desemprego, a alteração da residência para a zona de residência da assistente/recorrente, bem como a circunstância de o arguido demonstrar uma atitude de indiferença perante os bens jurídicos tutelados pelo crime de violência doméstica, impõe-se concluir serem elevadas as exigências de prevenção que no caso concreto se fazem sentir, não sendo a suspensão da execução da pena de prisão apta a realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. XVIII. O Tribunal a quo violou os artigos 50.º/1, 40.º/1 e 71.º/1 do Código Penal. XIX. A sentença recorrida deve ser alterada na parte em que decide suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido, revogando-se a referida suspensão e condenando-se o arguido ao cumprimento efetivo da pena de prisão que lhe foi aplicada (2 anos). XX. A título subsidiário, para a hipótese de se entender que a decisão de suspensão da execução da pena de prisão deve ser mantida, deve ser decretada a aplicação de meios técnicos de controlo à distância para efeitos de fiscalização da pena acessória de proibição de contactos com a vítima (art. 152.º/5 CP). XXI. O Tribunal a quo entendeu que não se justificava a fiscalização da medida por meios técnicos de controlo à distância porque estes mecanismos são inócuos no que respeita ao envio/receção de mensagens diz respeito. XXII. Acontece que, ilícito(s) penal(ais) do tipo dos praticados pelo arguido (injúrias, ameaças de morte, etc) são passíveis de ser executados por outras vias que não através de mensagens e contactos via telemóvel. XXIII. O arguido, que reside atualmente a 11 minutos de distância da assistente/recorrente, pode muito bem deslocar-se à habitação desta a fim de insultá-la e ameaçá-la, pode persegui-la, e, consequentemente, molestá-la psicologicamente, humilhá-la, perturbá-la, intimidá-la, atemorizá-la e coartá-la na sua liberdade de ação e movimentos, fazendo-a sentir-se vexada, inquieta, humilhada, aterrorizada e com medo que o arguido possa vir a atentar contra a sua vida (cfr. factos dados como provados pela sentença recorrida sob os itens g., j. e k.). XXIV. De resto, o acompanhamento da pena acessória de proibição de contactos através de meios técnicos de controlo à distância apresenta-se uma medida prudente atentas as inúmeras ameaças de morte dirigidas pelo arguido à assistente/recorrente. XXV. Em conclusão, é útil, adequado e necessário que a pena acessória de proibição de contacto e/ou aproximação da assistente/recorrente, incluindo a proibição de se deslocar ou aproximar da residência e do local de trabalho desta a uma distância inferior a 300 metros, seja acompanhada da respetiva fiscalização por meios técnicos de controlo à distância. XXVI. O Tribunal a quo infringiu o disposto no art. 152.º/5 do Código Penal.»
Pugna o recorrente, a título subsidiário, pela alteração da sentença recorrida no sentido de se submeter a pena acessória de proibição de contactos e/ou aproximação com a assistente à fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, nos termos do art. 152.º, n.º 5, do Código Penal.
O recurso foi admitido.
O arguido respondeu, com as conclusões que seguem:
«1. O presente recurso está centrado na impugnação da decisão sobre a matéria de direito relativa ao ponto em que o tribunal a quo se decide pela suspensão da execução da pena de prisão. 2. A Assistente/Recorrente sustenta o seu recurso em razões que, salvo melhor opinião, não demonstram que só o cumprimento efetivo da pena prisão será suscetível de realizar as finalidades da pena, uma vez que, a) A decisão do tribunal a quo, ao substituir a pena privativa de liberdade, já refletiu adequadamente sobre uma avaliação proporcional ao comportamento do arguido e seus antecedentes, nomeadamente tendo em consideração que foi aplicado o instituto da suspensão provisória no âmbito do processo n.º 234/19..... b) O facto de ter sido aplicada ao arguido a suspensão provisória no âmbito do processo n.º 48/18...., relativo ao crime de detenção de arma proibida, não implica qualquer conexão direta com o crime de violência doméstica ora em análise, nem com os presentes autos. c) Não pode a tentativa de suicídio ser tida em conta na decisão quanto à revogação da suspensão da pena prisão, uma vez que, salvo melhor opinião, tal circunstância não tem qualquer relevância para a aplicação de uma pena efetiva. d) Apesar do aqui o Arguido ter sido, efetivamente, condenado por um crime de condução em estado de embriaguez, no âmbito do processo 33/20...., não é ocasião suscetível de afirmar que o Arguido padece de comportamentos compulsivos relacionados com a ingestão de bebidas alcoólicas. e) O facto de o Arguido ter alterado de residência, ainda que fique mais próximo da aqui Recorrente, não implica qualquer violação da pena acessória a que fora condenado, nem mesmo acarretou qualquer contacto pessoal com a Assistente. f) A situação de desemprego é recente, sendo que o Arguido tem atuado no sentido de voltar ao mercado de trabalho o mais breve possível. g) A respeito do novo inquérito por detenção de arma proibida, como a própria esclarece foi o próprio Arguido que “No dia 26 de Maio de 2024 (…) ligou para o Posto Territorial ... da GNR a informar que, após ter falado com as filhas, recordou-se que uma das armas de fogo de sua propriedade poderia encontrar-se na casa que foi do casal”, o que revela um comprometimento com a ordem jurídica. h) Não pode a invocada violação das medidas de coação, pesar no sentido de ser aplicada pena de prisão efetiva, uma vez que, tais factos reportam-se, como a Assistente refere e bem, a data anterior à proferição da sentença. 3. Por assentar em fundamentos absolutamente certeiros, deve a Douta Sentença recorrida ser mantida. 4. Também no que se reporta à eventual aplicação de meios de controlo à distância, tal fiscalização revelar-se-ia desadequada e desproporcional.»
O Ministério Público na 1.ª instância apresentou resposta, sendo as conclusões:
«1. A decisão judicial recorrida é insusceptível de qualquer juízo de censura, encontrando-se fundamentada de forma irrepreensível, tendo sido feita pelo Meritíssimo Juiz a quo uma correcta apreciação dos factos e adequada aplicação do direito, não tendo sido violadas as normas ínsitas nos artigos 40.º, 71.º, 50.º e 152.º, n.º 5 do Código Penal. 2. Atentas as circunstâncias particulares do caso concreto, designadamente as que depõem a favor e contra o arguido e, bem assim, os critérios de determinação da medida concreta da pena, que se regem pelo disposto nos arts. 40.º e 71.º do C.P, entendemos que a pena achada – de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, assente na condição do cumprimento da pena acessória e na frequência de programa específico destinado a agressores em contexto de violência doméstica, a definir pela DGRSP - é justa, proporcional e adequada. 3. Mostram-se verificados os pressupostos formais e materiais subjacentes ao instituto da suspensão de penas, na medida em que, atenta a gravidade dos factos, o modo de actuação do arguido, a sua personalidade e o teor do certificado de registo criminal – de onde apenas consta averbada a condenação no âmbito do Proc. 33/20.... pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez ocorrido em 2020 – é legítimo efectuar o juízo de prognose favorável de que a solene advertência corporizada na sentença e ameaça de prisão são suficientes para manter o arguido afastado da prática de actos ilícitos típicos. 4. Com efeito, não procede o argumento segundo o qual o Mmo. Juiz a quo não atentou nas elevadas necessidades de prevenção especial refletidas, designadamente, no historial e personalidade do arguido que, segundo a assistente, para além de se encontrar desempregado e consumir bebidas alcoólicas, já contactou com o sistema de justiça nos proc. 234/19.... e 48/18...., tendo beneficiado da aplicação do instituto da suspensão provisória do processo. 5. Na verdade, contrariamente ao alegado pela assistente, a decisão do julgador avaliou a panóplia de circunstâncias elencadas pela assistente, concluindo, contudo, a nosso ver bem, que o recurso à suspensão de penas seria suficiente para satisfazer as necessidades de punição. 6. Reitera-se que os factos relativamente aos quais se fez incidir a suspensão provisória do processo não podem ser valorados pelo julgador como se de verdadeiros antecedentes criminais se tratassem, já que o arguido, nesses processos, não foi submetido a julgamento, nem tão pouco foi condenado por sentenças transitadas em julgado. 7. Paralelamente, o facto ter sido instaurado inquérito contra o arguido pela eventual prática de crime de detenção de arma proibida, de o arguido residir em ..., de ter sido condenado pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez – o que, nas palavras da assistente, é revelador do consumo excessivo de álcool – e de já ter tentado o suicídio não são circunstâncias que permitam concluir pela imperiosidade do cumprimento de pena de prisão efectiva, à qual apenas se recorre quando as demais se revelam insuficientes ou ineficazes, o que não se verifica in casu. 8. Por outro lado, face às características da conduta típica adoptada pelo arguido – que agia através do envio reiterado, via whatsapp, de mensagens de teor ameaçador/injurioso – afigura-se-nos adequada e proporcional a condenação numa pena acessória de proibição de contactos/aproximação, sem necessidade de fiscalização por intermédio de meios de controlo à distância, tanto mais que estes, atento o seu modus operandi, se revelariam ineficazes para proteger a vítima. 9. Em suma, não merece censura ou reparo a sentença colocada em crise, pelo que se pugna pela sua manutenção nos seus precisos e exactos termos.»
Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta levanta a questão prévia da inadmissibilidade do recurso no que respeita à pena, por falta de legitimidade da assistente, pelo que o recurso deve nessa parte ser rejeitado; quanto ao mais, embora entenda que a assistente já tem legitimidade, defende a improcedência do recurso, porque, além de o arguido não ter dado o seu consentimento para a fiscalização por vigilância electrónica, esta não se mostra essencial para a protecção da vítima.
Cumprido o contraditório, apenas respondeu a recorrente, alegando que tem interesse em agir no que respeita à fixação da pena e, quanto à vigilância electrónica, é imprescindível para a protecção da assistente, não sendo a resposta do arguido ao recurso uma oposição à respectiva aplicação.
Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A. Delimitação do objecto do recurso
Nos termos do art. 412.º do Código de Processo Penal[3], e face às conclusões do recurso, seriam duas as questões a resolver:
- a alteração da medida da pena aplicada ao arguido; e
- a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância da pena acessória de proibição de contactos e/ou aproximação com a assistente.
Porém, como ponto prévio, cabe apreciar a admissibilidade da parte do recurso que tem directa relação com o principal pedido formulado.
Na perspectiva da recorrente, a pena principal aplicada ao arguido pelo Tribunal a quo – 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por 3 anos, sob condição do cumprimento da pena acessória de afastamento e proibição de contacto com a assistente e da frequência de programa destinado aos agentes de crimes de violência doméstica – não se adequa ao caso, defendendo a assistente a condenação do arguido na pena efectiva de 2 anos de prisão.
Mas pode a assistente recorrer quanto a esta questão específica?
No caso, a assistente, como ofendida no crime, assume a qualidade, conferida pelo art. 69.º, n.º 1, de “colaborador(a) do Ministério Público, a cuja actividade subordina(m) a sua intervenção no processo, salvas as excepções previstas na lei”.
Concretamente, e em sede de recurso, compete aos assistentes “interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o Ministério Público não o tenha feito” (n.º 2, c), do art. 69.º), especificando o art. 401.º, n.º 1, b), que os assistentes (tal como os arguidos) têm legitimidade para recorrer de “decisões contra eles proferidas”.
Portanto, tornou-se necessário interpretar se a aplicação de uma pena ao arguido era, ou não, uma dessas decisões, se a sua prolação é contra o assistente. Sobre isto se pronunciou (à data, denominado assento) o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 8/99[4]: “O assistente não tem legitimidade para recorrer, desacompanhado do Ministério Público, relativamente à espécie e medida da pena aplicada, salvo quando demonstrar um concreto e próprio interesse em agir.”
E na mesma sede claramente se explica porquê: “Este interesse em agir tem de ser concreto e do próprio, (…) se o assistente não demonstrar um real e verdadeiro interesse, um seu pedido de agravação da pena (em termos de espécie ou de medida) tem um cunho, ou, pelo menos, aparenta tê-lo, de regresso à vindicta privada, o que de há muito felizmente desapareceu das nossas leis - ainda quando elas admitem a acção directa ou a legítima defesa nunca se as quis como e enquanto sinal de vindicta, mas enquanto acção de justiça dentro de um apertado e rigoroso condicionalismo que concretamente se previu e o qual o agente não deve voluntariamente provocar. Nestes casos, aparece com uma nitidez, bem demarcada, a ideia - exacta - de que o domínio da acção penal cabe ao MP.”
Quer dizer, o assistente não tem, sozinho, qualquer direito a exigir a aplicação de uma determinada pena, nem a alteração da medida desta.
Esta mesma orientação vem a ser seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça: “As finalidades da punição, que se refletem na espécie e medida da pena, não visam dar satisfação imediata aos assistentes, enquanto ofendidos pela prática dos crimes e, por isso, não se pode considerar, em regra, que são afetados pela espécie ou medida da pena, continuando a entender-se que o interesse em agir do assistente depende da invocação pelo mesmo de um interesse concreto e próprio.”[5].
Também esta Relação já se pronunciou no mesmo sentido, precisando os conceitos (cumulativos) da admissibilidade do recurso penal do assistente, a legitimidade e o interesse em agir. “Parte legítima é aquela que pode, segundo o Código, recorrer duma determinada decisão judicial, à luz da sua posição subjectiva perante o processo e que é avaliada a priori. Já o interesse em agir consubstancia-se na «necessidade de recorrer aos tribunais para acautelamento de um direito ameaçado que precisa de tutela e só por essa via é possível obtê-la». Ou seja, «o interesse em agir radica na utilidade e imprescindibilidade do recurso aos meios judiciários para assegurar um direito em perigo. Trata-se, portanto, de uma posição objectiva perante o processo, que é ajuizada a posteriori». (…), no seu objecto não está em causa qualquer decisão que directamente o afecte ou desfavoreça, ou que tenha sido contra ele proferida..”[6]Como se escreveu no respectivo sumário, “não se vê onde possa fundar-se a utilidade e muito menos a imprescindibilidade do recurso (…), pois que, objectivamente, não se vislumbra qualquer direito ameaçado que careça de tutela.”
Pese embora esta precisão de conceitos – decisões há que focam a questão na (falta de) legitimidade, e outras na (falta de) interesse em agir –, é inelutável que, sendo o recurso apenas interposto pela assistente, desacompanhada do Ministério Público, como é aqui o caso (já que este, a fazê-lo, teria de o apresentar na 1.ª instância), não pode aquela lograr a alteração da medida da pena, uma vez que lhe falta o concreto e próprio interesse em agir, estabelecido como excepção no acórdão uniformizador citado.
Tem, por isso, nesta parte – conclusões II a XIX – de ser rejeitado o recurso da assistente, mantendo-se a decisão recorrida no que respeita à pena fixada ao arguido.
1. Factos provados[8]
«a) O arguido e AA contraíram casamento no dia ../../1984. b) O referido casamento foi dissolvido por divórcio decretado por decisão proferida em 06/04/2018, na Conservatória do Registo Civil ..., no âmbito do processo de divórcio n.º 1133/2018. c) Na pendência do casamento o arguido e a assistente tiveram duas filhas: a CC, nascida em ../../1988, e a DD, nascida em ../../1998. d) No âmbito do inquérito que correu termos na Secção de ... do Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Braga sob o n.º 234/19...., por se encontrar indiciada a prática, pelo arguido, no período compreendido entre o início do casamento e o dia ../../2019, de um crime de violência doméstica na pessoa da ora assistente, foi aplicado o instituto da suspensão provisória do processo pelo prazo de 15 meses. e) No âmbito do referido inquérito foi proferido despacho de arquivamento no dia 07/04/2021, na sequência do cumprimento das injunções impostas. f) Desde, pelo menos, o dia 09/07/2023, nas circunstâncias de tempo infra descritas, fazendo uso do número de telemóvel ...57, o arguido enviou à assistente AA, para o número de telemóvel ...09, através da aplicação “Whatsapp”, as seguintes mensagens escritas, do seguinte teor, nas datas e horas que se expõem: a. No dia 09/07/2023, o arguido enviou à assistente AA as seguintes mensagens: - pelas 16h11m: “Boa tarde, tu vais ficar so nao pensas em arranjar um namorado, matute a ti e o segundo, com certeza é forte tone liquida esse filho da puta”; - pelas 16h16m: “Ja disse a ti se envolver com alguem, eu dou-te 2 tiros com um 9 milimetros, quer dizer que um disparo deste re”; - pelas 16h18m: “Podes ter a certeza que te vou-te matar, envia esta para a judiciária”; - pelas 16h23m: “A minha solução é iluminar vais desaparecer”; - pelas 16h39m: “Vais tu e muita família tua, estas o tipo de família que vai pro carvestoi”. b. No dia 05/03/2024, o arguido enviou à assistente AA as seguintes mensagens: - pelas 20h49m: “Vou-te puta da merda, eu já sei que andas a fuder, a vontade”; - pelas 20h50m: “E vou apanhaste na melhor maneira”; - pelas 21h47m: “Eu já por onde andas, vou apanharte na melhor hora”. c. No dia 26/03/2024, o arguido enviou à assistente AA, pela forma indicada, as seguintes mensagens: - pelas 21h47m: “Vou matarte”; - pelas 21h50m: “Estou a qui perto”. d. No dia 29/03/2024, o arguido enviou à assistente AA as seguintes mensagens: - pelas 21h16m: “Enquanto não resolveres o assunto da casa, não vais ter descanso, pede a tua mãe, que pagou tudo, do teu irmão e tua cunhada, uma fortuna, tens o mesmo direito”; - pelas 21h20m: “Agora que vou para, ... as coisas vão ficar mais complicadas, eu já te vi 3 vezes”; - pelas 21h27m: “Queres um concelho meu, apaga a tua foto do ... e ...”; - pelas 21h32m: “Tu ainda não percebeste, mas consigo, saber com falas, eu sempre disse, só não sei o que não quero”; - pelas 21h36m: “As tuas palavras, fotos, chamadas estão, controladas, vai dar merda, eu, sei merda é merda mesmo”. e. No dia 26/04/2024, o arguido enviou à assistente AA a seguinte mensagem: - pelas 14h41m: “(…) já te disse homem não vais ter, é eu igual, vou morrer só, passiencia”. f. No dia 29/04/2024, o arguido enviou à assistente AA as seguintes mensagens: - pelas 00h19m: “(…) és uma mafiosa e mentirosa (…)”; - pelas 14h04m: “Es uma mulher mentirosa e falsa (…) eu já sabia que eras mafiosa, e me traiste, que eu sei por um amigo meu”; - pelas 14h31m: “E outra coisa, eu sei com falas às 3,4 ou4e meia por ouatssap”. g. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito de, através das condutas descritas, adoptadas após a dissolução do casamento com a assistente AA, molestar psicologicamente a ex-mulher, humilhá-la (ofendendo-a na sua honra e consideração), perturbá-la, intimidá-la, atemorizá-la e coarctá-la na sua liberdade de acção e movimentos. h. Não obstante, o arguido estava ciente de que tinha para com a assistente AA especiais deveres de cuidado, respeito e solidariedade, atentas as circunstâncias de terem sido casados e terem duas filhas em comum. i. Sabia ainda o arguido que todas as suas condutas eram proibidas por lei e criminalmente punidas. j. Como consequência dos comportamentos do arguido acima descritos, a assistente AA sentiu-se vexada, humilhada, aterrorizada, com medo que o arguido pudesse vir a atentar contra a sua vida e inquieta. k. A actuação do arguido levou ainda a que a assistente AA evitasse relacionar-se, sobretudo nas redes sociais, com outras pessoas.
l. Mais se provou que: m. O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos que lhe estavam imputados. n. O arguido encontra-se desempregado e não aufere subsídio de desemprego; é sustentado com ajuda da irmã, que o ajude ainda a pagara a renda da casa onde mora, no valor de € 650,00 mensais; tem o 9.º ano de escolaridade o. Por decisão de 31/08/2020, transitada em julgado a 30/09/2020, no âmbito do processo n.º 33/20...., que correu termos no Juízo Local Criminal de Felgueiras, foi o arguido condenado, pela prática, em 29/08/2020, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, na pena de 85 dias de multa, à taxa diária de € 5,50 e, ainda, na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, pelo prazo de 6 meses, penas estas já extintas.»
2. Pena acessória de proibição de contacto com a vítima
«Dispõe o n.º 4 do artigo 152.º do Código Penal que “nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima…” acrescentando-se no n.º 5 que “a pena acessória de proibição de contacto com a vítima pode incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância”. No caso presente, e face ao que verificado apurou, cremos que a melhor forma de se compatibilizarem os desígnios de reinserção do arguido e de defesa da vítima será a de, não determinando (por ora) o cumprimento efectivo de uma pena de prisão, obrigar ainda o arguido a afastar-se compulsivamente da ofendida AA. De resto, com a aplicação de tal medida, ficará o arguido consciente não só de que, além da eventual revogação da suspensão de que beneficie (no caso de violar esta proibição), incorrerá o arguido na prática de um novo crime. Nestes termos, e pelo prazo de 3 anos, proíbo o arguido de, por qualquer forma, contactar ou se aproximar da ofendida AA, incluindo obviamente a proibição de o arguido se aproximar ou deslocar à residência da ofendida ou do seu local de trabalho. No caso, importa sobretudo que cessem os contactos, sobretudo à distância, empreendidos entre arguido e vítima, de forma a não mais ser a mesma assediada com mensagens da natureza daquelas que supra se deixam transcritas. Posto isso, não se vislumbra necessária a fiscalização através dos meios de controlo à distância, considerando o tipo de comportamento em apreço e que se pretende obviar no futuro.»
C. Apreciação do recurso
Fiscalização do cumprimento da pena acessória por meios técnicos de controlo à distância
Pretende a assistente que esta pena seja acompanhada de vigilância electrónica, porquanto os ilícitos penais em causa nos autos podem ser executados por outra via que não a de mensagens por telemóvel, o arguido mora a 11 minutos de distância de sua casa e tal fiscalização é «uma medida prudente atentas as inúmeras ameaças de morte dirigidas pelo arguido à assistente/recorrente» (conclusões XX a XXVI).
O art. 152.º, n.º 5, do Código Penal, já transcrito na sentença recorrida (supra B.2.), relativo à pena acessória de proibição de contacto com a vítima, usa uma forma verbal impositiva e não facultativa: o respectivo cumprimento “deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância”[9].
Esta fiscalização, além da óbvia constrição do condenado, destina-se sobretudo à protecção da vítima: havendo uma vigilância electrónica dos movimentos do condenado, e uma distância mínima a respeitar por este em relação àquela, isso confere à vítima um reforço de segurança e tranquilidade, uma vez que uma aproximação (e incumprimento da pena acessória) acciona um alarme junto da equipa apta a monitorizar tal vigilância, com a consequente intervenção das autoridades policiais.
A pena acessória de proibição de contactos com a vítima, e a possibilidade da sua aplicação, foi introduzida no Código Penal – ainda o crime do art. 152.º tinha por epígrafe “maus tratos e infracção de regras de segurança” – pela Lei n.º 7/2000, de 27 de Maio, para o crime de maus tratos (nºs. 2 e 3 daquele artigo), com o aditamento do n.º 6.
Aí se tem mantido desde essa altura, sendo que a alteração seguinte ao art. 152.º, da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro – que reformulou toda a norma, com a nova epígrafe “violência doméstica” – estabeleceu pela primeira vez a possibilidade de o cumprimento da pena acessória ser fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância.
Posteriormente, e sempre no sentido do reforço da tutela das vítimas:
- foi aprovada a Lei n.º 112/2009, destinada à prevenção da violência doméstica e à protecção e assistência das suas vítimas; e
- a Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, alterou o n.º 5 do art. 152.º, substituindo o “pode” pelo actual “deve” (conforme supra aludido), relativo à fiscalização da pena acessória;
- já em 2015, foi aprovado o Estatuto da Vítima (Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro), que introduziu essa noção no Código de Processo Penal – art. 67.º-A – e lhe confere especiais direitos, entre os quais o direito à protecção (art. 15.º).
Não há, por isso, qualquer dúvida de que, ao ter optado pela não fiscalização da pena acessória por meios técnicos de controlo à distância, o Tribunal a quo proferiu uma decisão contra a assistente, para os efeitos do art. 401.º, n.º 1, b): a aplicação da vigilância electrónica é do interesse (concreto e próprio) da assistente, destinando-se, em abstracto e nomeadamente, à protecção da sua vida, integridade física e liberdade.
Portanto, a recorrente pretende, nesta parte do recurso, um efeito útil para si, não estritamente relacionado com a medida ou espécie de pena aplicada ao arguido, mas com a sua própria segurança, já que não lhe é indiferente se a pena acessória vem ou não acompanhada de vigilância electrónica; por isso, segue-se aqui o entendimento de que a assistente “tem legitimidade e interesse em pugnar pela modificação da decisão relativa às penas acessórias que são desfavoráveis às suas expectativas”[10], nesta parte se devendo apreciar o recurso.
Analise-se, então, se colhem os argumentos da recorrente no sentido da fiscalização da pena acessória nos termos previstos na lei.
Algumas incidências processuais são, para este efeito, relevantes:
- a 27 de Março de 2024, data da denúncia, foi atribuído à ora recorrente o estatuto de vítima especialmente vulnerável (ref.ª ...49, pág. 25);
- a seu pedido, a assistente foi inserida no programa de teleassistência, previsto no art. 20.º, n.º 4, da Lei n.º 112/2009, a 11 de Abril de 2024 (ref.ª ...47);
- a 26 desse mês, ocorreu a constituição de arguido, residindo este à data na ... (ref.ª ...45);
- a 3 de Junho de 2024, o arguido veio comunicar a alteração da sua residência para a freguesia ..., ... (ref.ª ...22);
- a 18 de Junho de 2024, na sequência da dedução da acusação, o arguido foi ouvido em interrogatório judicial, tendo-lhe sido aplicadas, na parte que aqui releva, as medidas de coacção de não permanecer, nem se aproximar a uma distância inferior a 500 m, da residência da ora recorrente, e de não contactar com esta, por qualquer meio, nem dela se aproximar (ref.ª ...13);
- tais medidas de coacção foram mantidas no despacho de recebimento da acusação, de 17 de Julho de 2024 (ref.ª ...77);
- a 22 do mesmo mês, a GNR avaliou o risco de violência doméstica como médio (ref.ª ...12);
- realizado o julgamento a 16 de Outubro de 2024 (ref.ª ...78), a 21 do mesmo mês a assistente veio juntar aos autos cópia de novas mensagens telefónicas que o arguido lhe teria enviado (ref.ª ...14), à semelhança do que já tinha feito a 11 desse mês (ref.ª ...35).
É verdade que nos autos estão em causa mensagens enviadas por telemóvel do arguido para a assistente, sem que haja prova de qualquer aproximação física daquele a esta (apesar de, aparentemente, o arguido ter persistido em contactar a assistente pelo mesmo meio, antes e depois da audiência de julgamento).
Porém, não foram quaisquer mensagens: além de várias delas se concentrarem em curto espaço de tempo – o que indicia uma perseguição e assédio do arguido para com a assistente, amplamente justificativas da teleassistência de que a assistente quis beneficiar, como vítima –, em quatro dos seis dias em causa (que, lembre-se, vão de 9 de Julho de 2023 a 29 de Abril de 2024) o arguido faz expressas ou implícitas (mas nem por isso menos claras) ameaças de morte à assistente:
- a 9 de Julho de 2023, escreve, por duas vezes, que a mata/vai matar, que lhe dá dois tiros com uma 9mm (ou seja, que recorrerá a arma de fogo), que “vais desaparecer”, e até estende idêntica ameaça à família da assistente;
- a 5 de Março de 2024, usa por duas vezes o verbo “apanhar” por referência à assistente (o que, conjugado com as mensagens anteriores, significa que mantém idêntica intenção de matar), com uma referência a “onde andas” e “melhor hora”, numa clara vontade de que a assistente se sentisse vigiada por ele;
- a 26 de Março de 2024, volta a afirmar que vai matar a assistente, completando, três minutos depois, com a afirmação de que está perto, em nova manifestação de assédio;
- a 29 de Março de 2024, o arguido anuncia à assistente que já a viu três vezes e que, agora que vai para ..., “as coisas vão ficar mais complicadas”, acrescentando, a seguir a outras mensagens e passados 16 minutos, que controla as palavras, fotografias e chamadas da assistente, e “vai dar merda, eu, sei merda é merda mesmo”; o conjunto destas afirmações, em conexão com as mensagens anteriores (sobretudo as de três dias antes), traduz novamente a vontade de atentar contra a vida da assistente.
Ora, a gravidade destas mensagens é inequívoca: o arguido verbaliza insistentemente a intenção de acabar com a vida da sua ex-mulher e mãe das suas filhas, intensificando o seu “cerco” e aludindo até à sua mudança de casa para mais perto da residência da assistente.
Também os efeitos desta conduta são relevantes, porquanto levaram a que a assistente se sentisse «aterrorizada, com medo que o arguido pudesse vir a atentar contra a sua vida e inquieta», conforme facto provado j.
A violência doméstica, mesmo entre ex-cônjuges, é uma realidade de tal modo disruptiva da vida da vítima que não pode ser deixada de ser levada a sério pelos Tribunais, como reflexo da evolução legislativa e, felizmente, também do repúdio social crescente perante este tipo de crime: desta seriedade se fez eco o Mm.º Juiz a quo, com a condenação do arguido, quer na pena principal quer na pena acessória.
Porém, para a questão ora versada no recurso, afigura-se ter o Tribunal a quo minimizado o risco de concretização, por parte do arguido, dos actos por ele anunciados, desde logo face à mudança de residência deste, referida pela assistente: o arguido deixou de morar a mais de 67 km e mais de uma hora de distância (na ...), e passou a residir a cerca de 11 km ou 17 minutos de casa da assistente (que habita na freguesia ..., ...)[11].
Acresce que, face à indiciação de, entre o início do casamento e ../../2019, o arguido ter praticado crime de violência doméstica na pessoa da assistente, foi-lhe aplicado o instituto da suspensão provisória do processo pelo prazo de 15 meses; o arguido cumpriu as injunções e tais autos foram arquivados em Abril de 2021 – factos provados d) e e).
Há, portanto, neste arguido um padrão de comportamento que não augura nada de positivo e perante o qual a simples aplicação da pena acessória, sem qualquer controlo instantâneo, se mostra insuficiente: ao cumprir aquelas injunções, o arguido não fez mais do que aquilo a que estava obrigado, e mesmo assim voltou à carga, com a prática deste crime, pelo que não se vislumbra como é possível concluir, com segurança, que a simples aplicação da pena acessória seja suficientemente dissuasora da prática de novos crimes na pessoa da assistente, tudo à custa da falta de protecção efectiva desta.
É óbvio que a instalação de vigilância electrónica não evita per si que o arguido envie mensagens por telemóvel à assistente; porém, previne que o arguido se permita escalar a gravidade da sua conduta, passando das palavras aos actos. Não se trata de presumir o pior, mas de proteger a vítima tal como ela precisa e merece.
Por outro lado, afigura-se que a actual e supra aludida redacção do art. 152.º, n.º 5, do Código Penal (desde a Lei n.º 19/2013, “deve ser fiscalizado”), não deixa margem para dúvidas: se o tribunal optar, nos termos do n.º 4, pela aplicação da pena acessória de proibição de contactos e de aproximação da vítima, a fiscalização do cumprimento por meios técnicos de controlo à distância é, como regra, imperativa.
Ultrapassada que está a fase de avaliar a necessidade e proporcionalidade de impor ao arguido essa pena acessória (matéria fora do âmbito do recurso), mais não resta do que fazê-la acompanhar da vigilância electrónica, ex vi parte final do n.º 5 do art. 152.º: “quando aplicada [a pena acessória,] a implementação dos meios de controlo à distância é obrigatória, salvo circunstâncias que revelem a manifesta desnecessidade de fiscalização por tais meios.”[12]
Casos há em que, desde o início do processo até à sentença, já tudo se pacificou entre o ex-casal, e cada um deles refez já a sua vida afectiva; ou em que um deles emigrou, seguindo uma vida longe do outro. Nessas situações – aliás, excepcionais, porque a regra é o conflito continuar latente e com risco de escalar – seria não só desnecessária a vigilância electrónica como, no caso de deslocações para o estrangeiro, até impossível.
Porém, não é o que se passa nos autos, como se referiu: a distância física entre arguido e vítima diminuiu consideravelmente, e com ela aumentou o risco de o arguido tentar uma aproximação física da assistente, com efeitos que poderiam ser trágicos.
Assim, mostra-se não só essencial para a protecção da vítima, como até legalmente obrigatório, nos termos do art. 152.º, n.º 5, que a pena acessória de proibição de contactos e de afastamento seja fiscalizada através dos meios técnicos de controlo à distância, detalhados nos arts. 35.º e 36.º da Lei n.º 112/2009.
Aqui chegados, é irrelevante para a sorte do recurso a falta de consentimento do arguido para a utilização desses meios: quer se entenda que, perante a vinculação do art. 152.º, n.º 5 (bem como a tendência legislativa e jurisprudencial para acentuar as medidas de prevenção da violência doméstica), não se mostram necessários nem o consentimento do arguido nem a especial fundamentação pelo Tribunal para a aplicação dos meios técnicos de controlo à distância[13], quer se defenda ter o julgador de fundamentar a essencialidade a que se alude no art. 36.º, n.º 7, da Lei n.º 112/2009, como meio de tornar dispensável o consentimento do arguido, o que supra ficou escrito conduz à mesma conclusão – no caso, deve a pena acessória de proibição de contactos ser acompanhada de fiscalização por meios de controlo à distância, acolhendo-se nesta parte a pretensão da recorrente.
III - DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam as Juízas na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em:
- não admitir o recurso na parte relativa à alteração da pena fixada ao arguido; e
- julgar procedente o recurso interposto pela assistente AA, determinando-se que a pena acessória de afastamento e proibição de contactos aplicada ao arguido BB seja fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, a operacionalizar na 1.ª instância.
Sem custas.
Guimarães, 25 de Fevereiro de 2025
(Processado em computador e revisto pela relatora)
As Juízas Desembargadoras
Cristina Xavier da Fonseca Isilda Pinho Florbela Sebastião e Silva