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CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
TRADIÇÃO DA COISA
POSSE
ACESSÃO DA POSSE
Sumário
I – O contrato promessa de compra e venda pode dar lugar a uma posse em nome próprio, correspondente ao exercício do direito de propriedade, nomeadamente quando, havendo tradição da coisa, o promitente comprador proceda ao pagamento da totalidade do preço ou as partes tenham o propósito de não realizar a escritura pública correspondente ao contrato prometido e a coisa foi entregue em definitivo ao promitente comprador, como se dele já fosse. II – A par da orientação doutrinária e jurisprudencial tradicional, de acordo com a qual a acessão na posse pressupõe que aquele que pretende somar à sua a posse do antecessor, adquirida por título diverso da sucessão por morte, disponha de um título formalmente válido de transmissão do direito real correspondente, tem vindo a impor-se uma outra, nomeadamente ao nível da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, segundo a qual a acessão pode também ser invocada por quem não tenha justo título de aquisição da posse, bastando que o possuidor actual tenha adquirido a posse derivada do antecessor através da entrega ou tradição da coisa, sem que seja de exigir que a posse seja titulada ou causal.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:
I. RELATÓRIO:
AA e mulher, BB, intentaram a presente acção de processo comum contra CC e mulher, DD, pedindo que se declare nula e de nenhum efeito uma escritura de justificação notarial outorgada por estes em 19/08/2020 e que, em consequência, se ordene o cancelamento dos registos com base nela efectuados.
Para tanto, e em síntese, alegam que são falsos os factos declarados na dita escritura e que o imóvel a que a mesma se reporta sempre esteve na posse da autora e seus irmãos, herdeiros dos putativos alienantes, embora tenha sido prometido vender ao réu marido em 2019.
Devidamente citados, os réus contestaram, alegando que adquiriram o imóvel aos herdeiros de EE e FF, mediante contrato promessa de compra e venda outorgado em ../../2019 pelo réu marido, como promitente comprador, e pela autora e seus irmãos, como promitentes vendedores, tendo estes recebido a totalidade do preço da venda (€ 11.000,00) e autorizado aquele a legalizar o imóvel pela forma jurídica que entendesse, a suas expensas, atentas as dificuldades registrais surgidas em sede denegociações.
Mais alegam que, conforme acordado, outorgaram a escritura impugnada, valendo-se para o efeito das informações que lhes foram prestadas pela própria autora e seus irmãos, juntando à sua posse, adquirida por via da promessa, a posse dos promitentes vendedores, pelo que, ao instaurar a presente acção, os autores incorrem em abuso de direito, na modalidade do “venire contra factum proprium”.
Pugnam, em conformidade, pela improcedência da acção.
Saneados os autos e realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, nos termos da qual se julgou a acção improcedente e se condenaram os autores, como litigantes de má-fé, a pagarem aos réus a quantia de €1.000,00 (mil euros) a título de indemnização.
Inconformados, os autores interpuseram recurso, em cuja alegação formularam as seguintes conclusões:
1ª - Do teor do facto 5º da resenha factual dada como provada consta, além do mais, que "... prometeram vender ao réu CC que aceitou comprar, o prédio....".
2ª - O meio probatório deste facto 5º consistiu no próprio contrato-promessa, documento particular autêntico e com força probatória plena.
Porém, como se vê do referido documento, o seu teor é diferente e tem ou pode ter efeitos jurídicos diferentes.
3ª - Assim, mantendo-se o demais constante desse facto 5º, deverá o mesmo ser substituído pela seguinte redação: "... prometeram vender ao réu CC e este prometeu comprar, o prédio....
4ª - Consta do facto provado em 9 da resenha factual provada que "os promitentes vendedores receberam logo no dia da outorga do contrato-promessa a totalidade do preço, do qual deram quitação.
5ª - Este facto foi provado por acordo das partes, o que é verdade, e foi alegado no art. 6º-A da petição inicial.
6ª - No entanto o facto está incompleto, porquanto foi alegado que "o pagamento foi feito por cheques de €1.000, um a cada promitente vendedor, sendo que a Autora nunca chegou a levantar o referido cheque por entretanto ter perdido o interesse no contrato.
7ª - Porque a parte omitida pode ter interesse para a decisão da causa, impõe-se que o facto 9 seja completado, passando a ter a seguinte redacção: 9. "os promitentes vendedores receberam logo no dia da outorga do contrato-promessa a totalidade do preço, do qual deram quitação, tendo o pagamento sido feito por cheques de €1.000 a cada promitente vendedor, sendo que a Autora nunca chegou a levantar o referido cheque por entretanto ter perdido o interesse no contrato".
8ª - Foi decidido, na sentença recorrida, dar como provado o facto 16 da resenha factual, com o seguinte teor: "16. Tanto a Autora e os seus irmãos como os Réus usufruem do prédio, de forma pública, pacífica e de boa fé, há mais de 40 anos, na convicção de serem os seus legítimos proprietários e de não lesarem direitos de propriedade alheios".
9ª - Para assim o decidir, a Meritíssima Juiz fundamentou-se nos depoimentos de testemunhas.
10ª - Contudo, no que se refere ao decurso temporal (40 anos) da fruição do prédio pelos Réus, o facto 16 está em contradição com o facto 10, o qual refere que "após a outorga do contrato[-promessa] (ocorrida em ../../2019 - vide facto 5) o Réu começou a usufruir do prédio".
11ª - Os factos 10 e 5 estão provados com fundamento em documento particular com força probatória legal plena.
12ª - Ora, desde a outorga do contrato promessa até à propositura da acção (estabilidade da instância) nem 2 anos decorreram, pelo que dizer "mais de 40" é um perfeito absurdo, se não um equívoco.
13ª - Caso a Meritíssima juiz, misturando a questão de facto com a questão de direito (repare-se que, na fundamentação de direito da sentença, a Meritíssima Juiz começa por defender a tese jurídico-legal da soma da "posse" dos Réus à "posse" dos Autores), tenha desde logo querido fazer na matéria de facto essa soma jurídica, assim adiantando nos factos a solução jurídica a dar ao litigio, tal decisão é ilegal.
14ª - Também quanto às características da posse dos Réus enunciadas no facto 16, a decisão está errada, desde logo no que se refere "à convicção de serem (os Réus) seus legítimos proprietários e não lesarem direitos alheios".
15ª - Desde logo, tal facto, nesta parte, está em contradição com os factos provados em 5º (promessa de compra e venda), 8º (execução específica para o caso de incumprimento) e 19 ("a Clª 4 do contrato promessa estabelecia que o Réu ficava com o encargo de custear o registo).
16ª - Por outro lado, o contrato promessa de compra e venda, com entrega, ao promitente comprador, da coisa prometida vender é, por natureza, incompatível com a posse em nome próprio, sendo essa entrega considerada, sempre, como posse em nome alheio ou simples detentor da coisa (Ac. RC de 20.4.82, in BMJ nº 318 - 487).
17ª - Do contrato-promessa apenas resulta a obrigação de contratar, ou seja, a obrigação de celebrar o contrato prometido. Do contrato promessa não resulta, só por si, a transferência da posse da coisa prometida vender para o promitente comprador (Ac. do STJ de 7.2.91, in AJ nº 15º/16º - 28).
18ª - E, mesmo que, por hipótese, o contrato-promessa consubstanciasse uma simulação de uma compra e venda verbal (tal como foi entendido pela Meritíssima juiz a quo), tal simulação, porque contemporânea da outorga do documento escrito do contrato-promessa, nunca poderia ser provada por testemunhas, nos termos do art. 394º do CC.
19ª - O facto 16º, tal como está redigido, é em si mesmo um absurdo, por impossível, pois a posse dos Autores é incompatível com a posse dos Réus, isto é, tratando-se de posses sucessivas, nunca poderiam Autores e Réus, simultaneamente, usufruirem o imóvel há mais de 40 anos na convicção de serem ambos seus legítimos proprietários.
20ª - Pelo exposto, deve o facto provado em 16 ser alterado, eliminando-se a referência aos Réus, e passando a ter a seguinte redacção: "16. A Autora e os seus irmãos usufruem do prédio, de forma pública, pacífica e de boa fé, há mais de 40 anos, na convicção de serem os seus legítimos proprietários e de não lesarem direitos de propriedade alheios".
21ª - Foram dados como provados os factos 17 e 18 com as seguintes redacções:
17 "Com o contrato[-promessa] celebrado, os promitentes vendedores pretendiam vender definitivamente ao Réu o referido prédio";
18 "Através da Cláusula 4ª do contrato[-promessa], os promitentes vendedores pretendiam autorizar o Réu a outorgar escritura de justificação notarial do prédio prometido vender".
22ª - Tais factos não foram alegados, não são instrumentais de nenhum outro facto alegado por Autores ou Réus, estando, aliás, em oposição e contradição com a versão dos factos alegados pelos Réus, pelo que, nos termos do art. 5º do CPC, está vedado ao juiz conhecer de tal matéria.
23ª - De resto, a Meritíssima juiz, na fundamentação da matéria de facto, não faz qualquer ilação entre estes factos e os factos alegados de que são instrumentais, como se lhe exige no disposto no art. 607º CPC.
24ª - Os factos 17 e 18 estão em contradição e oposição com a própria versão dos Réus na Contestação. Concretamente, resulta do artigo 7 da Contestação que, "tendo-se levantado, na data da outorga do contrato-promessa, dificuldades na obtenção do registo do imóvel (obviamente em nome da Autora e seus irmãos) e, consequentemente, na transmissão definitiva a favor dos Réus, foi dada autorização aos Réus para procederem à legalização do imóvel da forma mais célere, ficando a seu (dos Réus) cargo o pagamento das despesas da escritura pública e do registo". E nos arts. 21, 22 e 23 da Contestação: "Tendo os Réus (no) contrato-promessa ficado autorizados (melhor seria dizer: obrigados) a legalizar o imóvel, pretendiam estes proceder à legalização daquele rústico visando a transmissão definitiva... Todavia, os Réus e a Autora e demais herdeiros tinham conhecimento que o rústico se encontrava omisso na descrição registral ... Uma vez que ... todas as despesas inerentes à ... realização da escritura pública e obtenção do registo ficaram a cargo dos Réus, ...".
25ª - É, pois, evidente que os Réus ficaram incumbidos de tratar do registo do imóvel com vista à celebração da escritura pública do contrato prometido.
26ª - Assim, os factos 17 e 18 estão em contradição com o acordado no contrato promessa, na interpretação que os próprios Réus lhe deram, pelo que não podem os mesmos ser dados como provados.
27ª - Lê-se na fundamentação da matéria de facto que a "razão pela qual se deu como provados os factos consignados nos pontos 14 a 20" foi "por o Tribunal não conferiu credibilidade às declarações da Autora e conferiu credibilidade à versão das testemunhas GG, EE e HH, a qual se revelou em consonância com a versão dos Réus corporizada na Contestação.
28º - Ora, os factos 17 e 18, sendo contemporâneos da celebração do contrato-promessa e estando em oposição com o teor deste, mormente com os factos provados em 5º (promessa de compra e venda), 8º (execução específica para o caso de incumprimento) e 19 ("a Clª 4 do contrato promessa estabelecia que o Réu ficava com o encargo de custear o registo)[obviamente, o registo em nome dos Autores e seus irmãos, da responsabilidade destes], não podia ser provado por testemunhas, nos termos do art. 393º CC.
29ª - Pelas razões expostas, os factos provados em 17 e 18 da resenha factual devem ser eliminados.
30ª - Escreveu-se na sentença recorrida: "De tudo o exposto, resulta a conclusão de que os Réus (por si e na qualidade de sucessores do anterior possuidor) têm o corpus de posse sobre a coisa ... e... o animus ..."
"Assim, só podemos concluir que os Réus (por si e juntando a posse dos anteriores possuidores que lhes foi transmitida por tradição do prédio) têm a posse sobre o prédio justificado".
"Tal posse remonta à data de 1975, por força da posse dos anteriores possuidores, o que perfaz um hiato temporal superior a 20 anos ...".
31ª - Na versão dos factos provados acolhida na sentença recorrida, a posse dos Réus ter-se-ia iniciado com a entrega do prédio rústico que lhes foi feita em 2019 na outorga do contrato-promessa e por acordo verbal.
32ª - Todavia, a acessão na posse, prevista no art. 1256º CC, exige a existência de título legal válido. E nos termos do art. 1259º CC, o título consiste em qualquer modo legítimo de adquirir. O título não se presume, devendo a sua existência ser provada por aquele que o invoca.
33ª - "A acessão de posses pressupõe e exige a existência de um vínculo jurídico por via do qual a situação possessória haja sido regularmente transmitida ao que actualmente a invoca. Transmitida a posse por mera transmissão verbal, acto nulo como modo legítimo de aquisição de propriedade imobiliária, apenas pode ser invocada a exercida pessoalmente e não a posse dos seus antepossuidores" (Ac. RP de 7.1.76, in BMJ 256º - 170).
34ª - "Só existe acessão na posse se esta for transmitida através de uma relação jurídica válida entre os dois possuidores sucessíveis" (Coll. Jur. 1980, 4º, 288).
35ª - Por isso, tendo os Réus começado a usufruir do prédio após a outorga do contrato (promessa), celebrado em ../../2019 (factos provados 5 e 10), o hiato temporal possessório não tem sequer 2 anos e as declarações dos Réus e das testemunhas cúmplices insertas na escritura de justificação notarial referidas nos factos 1 a 4 da resenha factual provada são despudoradamente falsas e fraudulentas.
36ª - Nos termos do art. 875º CC, o contrato de compra e venda só é válido se for celebrado por escritura pública.
37ª - Pelo que, não se verificando o requisito temporal da posse para a aquisição do direito de propriedade pelos Réus, impõe-se a revogação da sentença por falta do referido fundamento.
38ª - Entende a sentença recorrida que a impugnação judicial, por parte dos Autores, da falsidade da escritura de justificação notarial, em virtude de o celebrado contrato-promessa de compra e venda do seu prédio (ou, como se queira, a compra e venda verbal dissimulada nesse contrato-promessa) não é modo legítimo de transmitir o direito de propriedade de que são titulares, essa pretensão dos Autores, dizíamos, deve ser considerada como abusiva.
39ª - Todavia, o Autor marido não interveio na celebração do contrato promessa, pelo que tudo quanto, na sentença recorrida, se censura ao comportamento dos promitentes vendedores, concretamente o facto de estes terem verdadeiramente querido fazer, não uma promessa de venda, mas sim uma venda verbal, não é imputável ao Autor marido.
40ª - E se um dos Autores, em litisconsórcio, não actuou em abuso do direito é quanto basta para o juiz não poder considerar improcedente a acção com esse fundamento.
41ª - A exigência de escritura pública nos contratos de alienação de direitos imobiliários estabelecida nos art. 875º CC e 89º do Cód. Not. tem natureza imperativa, não podendo ser afastada pela vontade das partes.
42ª - Trata-se de norma de interesse público e destina-se a proteger as partes intervenientes contra a imponderação e em garantir a certeza e segurança no comércio jurídico.
43ª - Devendo o juiz conhecer oficiosamente do correspondente vício de nulidade, sem necessidade de invocação.
44ª - Assim, é da mais linear coerência que os Autores (Autora incluída) não possam ser censurados por abuso do direito ao invocar um direito (direito de propriedade) de imóvel de que é efectivamente titular e ao fazer uso da possibilidade de arrependimento inerente à natureza do contrato-promessa.
45ª - E pelas razões expostas nas conclusões 39ª a 44ª, impõe-se a revogação da decisão que condenou os Autores como litigantes de má-fé.
Nestes termos e nos melhores de Direito, deve dar-se provimento ao recurso e a sentença recorrida ser revogada, substituindo-a por outra que, dando total procedência à acção, condene os Réus no pedido.
Assim se decidindo, se fará inteira e sã Justiça.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
No caso vertente, as questões a decidir que ressaltam das conclusões recursórias são as seguintes:
- Se houve erro na apreciação da prova, devendo ser alterada a redacção dos pontos 5º, 9º e 16º do elenco dos factos provados e eliminados os pontos 17º e 18º do mesmo elenco;
- Se, alterada a matéria de facto nos termos propugnados, deve ser julgada procedente a acção e revogada a condenação dos autores como litigantes de má-fé;
- Se, independentemente do sucesso da impugnação da matéria de facto, não tendo o autor marido intervindo no contrato promessa, não pode proceder o abuso de direito que determinou a improcedência da acção, nem a condenação daquele como litigante de má-fé.
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III. FUNDAMENTOS:
Os factos
Na primeira instância foi dada como provada a seguinte factualidade:
1. CC e DD outorgaram escritura de justificação no Cartório Notarial ... de II em 19 de Agosto de 2020, e exarada a fls. 86 do Livro de escrituras diversas n.º ...8-F, na qualidade de justificantes e, tendo JJ, GG e KK confirmado as suas declarações.
2. Na escritura id. em 1., CC e DD declararam: “que são donos, com exclusão de outrem, do seguinte imóvel: prédio rústico composto de macieiras, mato e vinha do douro, com uma área de dez mil e duzentos metros quadrados, sito em ... ou ..., na freguesia ..., concelho ..., omisso na competente Conservatória do Registo Predial, a confrontar a norte com LL, do Sul e do Nascente com caminho e do Poente com MM, inscrito na respectiva matriz sob o artigo rústico ...77, da união de freguesias ... e ... (proveniente do artigo rústico ...87 da extinta freguesia ... com o valor patrimonial tributário, para efeitos de IMT, de € 9.625,85, ao qual atribuem o mesmo valor”.
3. Mais declararam “que o referido prédio lhes ficou a pertencer, em meados de mil novecentos e noventa e nove, por compra verbal, efectuada a EE e mulher, FF (já falecidos), casados que foram em comunhão geral de bens, residentes que foram em ..., ..., a qual não chegou a ser formalizada, pelo que, os justificantes não possuem qualquer título formal que legitime o domínio do referido prédio. Que não obstante isso eles têm usufruído o dito prédio, cultivando-o, fazendo lenha, podando as árvores, lavrando o terreno, colhendo os correspondentes frutos e defendendo as suas estremas, gozando todas as utilidades por ele proporcionadas, pagando os respectivos impostos, com o animo de quem exercita direito próprio, sendo reconhecidos como seus donos por toda a gente, fazendo-o de boa fé, por ignorarem lesar direito alheio, pacificamente, porque sem violência, continua e publicamente, à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém – e tudo isto por lapso de tempo superior a vinte anos. Que dadas as enunciadas características de tal posse eles adquiriram o identificado prédio posse adquiriram por usucapião – título este que, por natureza, não é susceptível de ser comprovado por meios normais”.
4. Na escritura id. em 1., JJ, GG e KK declararam “que por serem verdadeiras, confirmam as declarações ora prestadas pelos primeiros outorgantes”.
5. Por acordo celebrado em ../../2019, a Autora BB e os seus irmãos JJ, EE, NN, GG, OO e KK Autores prometeram vender ao Réu CC que aceitou comprar, o prédio rústico composto por macieiras, mato, terra de cultivo e vinha do Douro, com a área de 10.200 m2, sito em ... (ou ...), União de Freguesias ... e ... de ..., concelho ..., a confrontar de Norte com LL, de Sul e Nascente com Caminho e do Poente com MM, inscrito na respectiva matriz sob o Art.º ...77.
6. O preço acordado para a venda foi de € 11.000,00.
7. A Cláusula Quarta do contrato tem o seguinte teor: “Os Primeiros Outorgantes dão desde já autorização ao Segundo Outorgante para legalizar o imóvel pela forma jurídica que entender”.
8. A Cláusula Nona do contrato tem o seguinte teor: “No caso de incumprimento do presente contrato, o Outorgante não faltoso pode, em alternativa, requerer a execução especifica do presente contrato, nos termos do artigo 830º do Código Civil”.
9. Os promitentes vendedores receberam logo no dia da outorga do contrato de promessa a totalidade do preço, do qual deram quitação.
10. Após a outorga do contrato o Réu começou a usufruir do prédio. 11. O referido prédio havia vindo à posse da Autora e dos restantes herdeiros por herança aberta por morte do pai destes, e consequente partilha em inventário que correu termos na ... Secção do Tribunal Judicial de Vila Real com o n.º 37/1975.
12. O pai da Autora, EE faleceu em ../../1974 e a mãe da Autora, FF faleceu em ../../1990.
13. Após a outorga do referido contrato de promessa a Autora perdeu o interesse no negócio por se ter arrependido de o ter celebrado.
14. Durante as negociações do referido contrato surgiram dificuldades registrais com a titularidade do imóvel.
15. Para as ultrapassar os promitentes vendedores autorizaram o Réu a outorgar escritura de justificação notarial do prédio prometido vender.
16. Tanto a Autora e os seus irmãos como os Réus usufruem do prédio, de forma pública, pacífica e de boa fé, há mais de 40 anos, na convicção de serem os seus legítimos proprietários e de não lesarem direitos de propriedade alheios.
17. Com o contrato celebrado os promitentes vendedores pretendiam vender definitivamente ao Réu o referido prédio.
18. Através da Cláusula Quarta do contrato os promitentes vendedores pretendiam autorizar o Réu a outorgar escritura de justificação notarial do prédio prometido vender.
19. Os promitentes vendedores não pretendiam ter encargos nem custos com vista a ultrapassar as dificuldades registrais, nomeadamente, inscrever o prédio a seu favor, razão pela qual consagraram a Cláusula Quarta do contrato.
20. Foi a Autora BB que encetou com o Réu as negociações para a celebração do contrato de promessa e convenceu os irmãos (restantes promitente vendedores) a celebrar o sobredito contrato.
Inversamente, foi dado como não provado o seguinte circunstancialismo fáctico:
a) O prédio justificado ficou a pertencer a CC e DD, em meados de mil novecentos e noventa e nove, por compra verbal, efectuada a EE e mulher, FF.
b) Que desde então eles têm usufruído o dito prédio, cultivando-o, fazendo lenha, podando as árvores, lavrando o terreno, colhendo os correspondentes frutos e defendendo as suas estremas, gozando todas as utilidades por ele proporcionadas, pagando os respectivos impostos, com o animo de quem exercita direito próprio, sendo reconhecidos como seus donos por toda a gente, fazendo-o de boa fé, por ignorarem lesar direito alheio, pacificamente, porque sem violência, continua e publicamente, à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém – e tudo isto por lapso de tempo superior a vinte anos
A Senhora Juiz a quo fundamentou a decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos:
“A presente acção consiste numa apreciação negativa do direito arrogado pelos Réus CC e esposa DD numa escritura de justificação notarial, na qual aqueles se entendem possuidores e adquirentes de um prédio rústico por via da usucapião. Veio tal escritura de justificação notarial, leia-se, o teor das suas declarações, a ser impugnada pelos Autores por via da presente acção, na qual se pediu que fosse tal escritura declarada nula e de nenhum efeito. Competia, pois, aos Réus, face à regra prevista no artigo 343º, n.º 1 do C.C., o ónus de prova dos factos constitutivos do direito que se arrogam, sendo unanimemente considerado na jurisprudência que a impugnação da justificação notarial consiste em acção de simples apreciação negativa. O que significa dever a contestação apresentada pelos Réus, mais do que mera resposta ao já alegado pelos Autores, constituir verdadeiro petitório, onde invoquem o direito arrogado e aleguem os factos de onde decorre tal efeito jurídico. Ou seja, deve o conteúdo da escritura de justificação ser reafirmado em sede de uma contestação assumida como articulado fundador da acção. Nos termos do disposto no artigo 607º, n.º 5, do Código de Processo Civil, “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”. O juízo sobre a valoração da prova tem vários níveis. Num primeiro aspecto tem em conta a credibilidade da prova e depende substancialmente da imediação, onde intervêm elementos não racionais explicáveis. Num segundo nível, inerente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir de factos probatórios e, agora, já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão “regras da experiência”. Dir-se-á, ainda, que a credibilidade que o julgador atribuiu ao depoimento de cada testemunha assenta no contacto directo que estabelece dialecticamente com as testemunhas em que, para além da razão da ciência e da expressão verbalizada, traduzida nas respostas dadas a cada pergunta, intervêm um conjunto de outros elementos físicos e psicológicos inerentes à postura mantida em audiência por cada testemunha ao longo do seu depoimento e que no seu conjunto integram o que se designa por “linguagem silenciosa do comportamento”. Partindo de tais premissas, dir-se-á que no caso dos autos a convicção do tribunal ao dar as respostas que antecedem fundou-se na análise crítica e conjugada das declarações de parte, dos depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento e dos documentos juntos aos autos, análise essa feita norteada pelo princípio da livre apreciação da prova (artigo 396º do Código Civil), tendo como pano de fundo as normas legais de repartição do ónus da prova e as regras da experiência comum e normalidade das coisas. Particularizando a convicção dir-se-á que: Os factos constantes sob os pontos 5), 6) e 9) foram considerados provados em face do acordo das partes, nos termos do artigo 574º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Por sua vez, os factos 1), 2), 3) e 4) resultaram da escritura de justificação notarial, junta com a petição inicial como Doc. 5 (referência citius 2695355). Importa ter presente que tal documento consubstancia um documento autêntico, nos termos dos artigos 369º e 371º do Código Civil, o que se afigura relevante na medida em que tais factos apenas podem ser provados por documento autêntico. Já os factos 7) e 8) atinentes ao contrato de promessa de compra e venda celebrado entre a Autora e seus irmãos e os Réus, encontram paralelo no teor do documento junto aos autos com a petição inicial como Doc. 4. O falecimento dos pais da Autora BB e a respectiva data (facto 12) mostram-se atestados nos assentos de óbito de EE e FF, junto aos autos com a petição inicial como Docs. 6 e 7. No que tange ao facto de o prédio justificado ter vindo à posse da Autora e dos restantes herdeiros por herança aberta por morte do pai destes, e subsequente partilha (facto 11), resulta do Doc. 2 junto com a petição inicial, cujo teor se atém ao inventário que correu termos por morte de EE, do qual se extrai que o prédio foi aí arrolado como verba 8, e em sede de conferência de interessados adjudicado a todos os filhos do inventariado, conjugado com o Doc. 3, certidão predial do prédio justificado, do qual se extrai a inscrição registral do prédio a favor de EE, por aquisição, em 30.05.1955. Quanto à circunstância de, após a outorga do contrato de promessa, o Réu ter começado logo a usufruir do prédio (facto 10) o Tribunal louvou-se do depoimento testemunha EE, irmão da Autora BB, que através de depoimento escorreito, objectivo e distanciado, descreveu circunstanciadamente ao Tribunal o processo negocial que levou à celebração do contrato de promessa entre ele e os irmãos e o Réu CC e a razão porque o Réu começou a usufruir do prédio justificado logo aquando da celebração do contrato de promessa (mormente porque o negócio acordado com o Réu foi a venda do prédio, e o contrato de promessa de compra e venda serviu para concretizar tal venda, daí terem recebido logo a totalidade do preço da venda, sendo que era a vontade da testemunha e os irmãos que a partir da celebração do contrato de promessa o Réu fosse o “dono” do prédio”, tendo nesse seguimento todos os promitentes vendedores, isto é, ele e os irmãos concordado com a outorga pelo Réu da escritura de justificação notarial, e com a entrega da fruição a partir da celebração do contrato de promessa). Para dar como provado que após a outorga do referido contrato de promessa a Autora perdeu o interesse no negócio por se ter arrependido de o ter celebrado (facto 13), o Tribunal recorreu à presunção judicial prevista no artigo 349º do Código Civil. Com efeito, tal facto vinha alegado na petição inicial e, pese embora não tivesse sido confirmado pela Autora nas suas declarações de parte, o tribunal presume que, se a Autora celebrou o contrato de promessa de compra e venda com o Réu com vista à venda do prédio justificado conforme se alega na petição inicial, e agora vem impugnar judicialmente a escritura de justificação notarial celebrada pelo Réu tendo como objecto tal prédio, presumimos que é porque se arrependeu de ter celebrado tal contrato com o Réu. Neste tocante importa ter presente que, da leitura da petição inicial dos Autores se retira (porque alegado) que a Autora e os irmãos celebraram um contrato de promessa de compra e venda, através do qual prometeram vender o prédio denominado ... pelo preço de € 11.000,00. Mais se alega que tal imóvel sempre esteve na posse dos herdeiros das heranças indivisas abertas por óbito daqueles, sendo que, apenas em 2019 os Réus celebraram com os herdeiros dos falecidos EE e esposa FF um contrato de promessa de compra e venda do dito imóvel e apenas nessa data entraram na posse do mesmo, pese embora ainda não tenha sido celebrado o contrato prometido, sendo que na data da outorga do contrato o Réu pagou aos promitentes vendedores a totalidade do preço, em vários cheques (um por cada promitente vendedor), mas a Autora não procedeu ao seu desconto por ter perdido o interesse no negócio. No entanto, a versão relatada pela Autora BB nas suas declarações de parte foi totalmente dissonante com a versão alegada no articulado inicial. Esta, numa versão que não logrou convencer o Tribunal, asseverou que os irmãos lhe transmitiram, para a convencer a assinar o contrato de promessa em crise nos autos, que tal contrato (que seria assinado num escritório de advogados) serviria para averbar registralmente o prédio em nome dela e dos irmãos, sendo que só se apercebeu que havia sido enganada pelos irmãos depois de assinar o contrato, pois que no dia da outorga não leu o contrato porque não tinha óculos de ler, o que só veio a fazer posteriormente, e a advogada que se encontrava presente não explicou o conteúdo do contrato. Mais assegurou que apenas conhecia o Réu de “vista”, e que não percebeu porque é que no dia da outorga do contrato recebeu um cheque, sendo que relatou não saber a razão porque os irmãos “a enganaram”, pois que nunca pretendeu vender o prédio. E não logrou convencer o Tribunal porque tal versão foi desmentida pelas testemunhas GG e EE, irmãos da Autora que asseveraram de forma condizente, e por isso, credível, que quem iniciou o processo negocial para a celebração da venda do prédio rústico justificado foi a Autora (que conhecia o promitente comprador), tendo dito aos irmãos que havia encontrado um comprador interessado em adquirir o prédio que aqueles haviam recebido de herança, tendo nessa sequência convencido todos os irmãos a concordarem com a venda do prédio ao Réu, pelo preço de € 11.000,00 (€ 1.000,00 a cada um, sendo que um dos irmãos havia comprado a parte de outros dois irmãos), sendo que a outorga do contrato visava vender o prédio ao Réu, e depois o Réu poria o prédio “em nome dele”. Ademais, a testemunha GG ainda assegurou que quando interveio na escritura de justificação estava convicta de que se tratava da escritura de venda do prédio e, a testemunha EE também salientou que foi a Autora que “agilizou” toda a documentação necessária para a outorga do contrato e que quando celebraram o contrato estavam (os promitentes vendedores) todos de acordo em vender o prédio, tendo a advogada que redigiu o contrato explicado o seu teor a todos os outorgantes, mormente que com aquele contrato estavam a vender o prédio, que posteriormente seria registado em nome do Réu através de uma escritura de justificação notarial. O depoente explicou também que a Autora transmitiu a proposta de venda em 2018, mas apenas em 2019 se veio a concretizar, por apenas em 2019 ter sido possível reunir todos os irmãos, promitentes vendedores. Do confronto de ambas as versões afigurou-se-nos mais credível a versão das testemunhas GG e EE, no sentido de que a ideia de vender o prédio foi da Autora, desde logo porque nenhum dos irmãos reside no concelho ..., sendo uns emigrantes no estrangeiro e outros residentes noutras localidades (PP reside em Lisboa e QQ reside em ...). Ademais, se, por um lado, a Autora tentou perpassar a ideia de que os irmãos “a enganaram” com vista a conseguirem vender o prédio, por outro lado, foi incapaz de especificar o irmão que em concreto o fez. Acresce que, a versão por si relatada é contraditória com as regras da experiência comum, pois que, se a Autora asseverou que acreditava que com a outorga daquele contrato ela e os irmãos “estavam a pôr o prédio em nome deles”, em compensação não foi capaz de aventar uma razão para ter recebido um cheque pela outorga do contrato, não parecendo credível que um cidadão comum acreditasse que receberia dinheiro por registrar um prédio no seu próprio nome (o acto de averbar propriedade em nome de alguém no registo predial implica custos e não lucros!). Adicionalmente, diga-se que resultou demonstrado que o contrato foi celebrado no escritório de uma advogada que explicou aos outorgantes o teor do contrato (conforme atestaram as testemunhas GG e EE, cujos depoimentos foram corroborados pelo depoimento da testemunha HH – advogada que redigiu o contrato). Salienta-se, neste tocante, que a testemunha HH explicou que o prédio justificado ainda se encontrava registado em nome dos pais dos promitentes vendedores e, estes, pretendendo vender mas não pretendendo ter gastos com a venda do prédio (nomeadamente com emolumentos e impostos), decidiram não registrar o prédio a seu favor e, ao invés, celebrar o contrato de promessa referido nos autos, concedendo ao Réu autorização para registrar o prédio a seu favor através de uma escritura de justificação notarial, razão pela qual foi consignada a cláusula quarta do contrato (factos 14,15, 18 e 19). Ademais, interessa reter que a única questão onde ambas as versões foram condizentes, foi no facto de o prédio justificado ter sido usufruído pela Autora e pelos irmãos, desde a data da adjudicação do mesmo em sede de partilha em inventário (1975) até 2019, data em que outorgaram o contrato de promessa e o Réu passou a usufruir do prédio, não se ignorando nesta matéria o depoimento das testemunhas RR, SS, TT e UU (facto 16). Por tudo isto, mormente por não ter apresentado uma versão credível nas suas declarações, suportada em outros meios de prova que a corroborassem, e porque as suas declarações são infirmadas pelas regras da experiência comum, é que o Tribunal não conferiu credibilidade à versão da Autora e conferiu credibilidade à versão das testemunhas GG e EE (corroborada pela testemunha HH), a qual se revelou em consonância com a posição dos Réus (corporizada na respectiva contestação), razão pela qual se deu como provados os factos consignados nos pontos 14 a 20. Atendendo ao teor da contestação dos Réus, os quais não contestam que não adquiriram o prédio justificado aos pais dos Autores (EE e FF) em 1999, conforme declararam na escritura de justificação notarial, nem contestam que não começaram a usufruir do prédio naquele ano de 1999, resulta a falta de alegação parcial do direito justificado e, a sua consequente não prova [alíneas a) e b) dos factos não provados], impondo-se assim dar como não provada a veracidade parcial das declarações prestadas pelos justificantes VV e DD na escritura de justificação no Cartório Notarial ... de II, em 19 de Agosto de 2020, e exarada a fls. 86 a 88 verso do Livro de Escritura Diversas n.º ..., na parte que se atém à aquisição do prédio pelos Réus, em 1999, a EE e FF e o inicio da fruição do prédio em 1999”.
O direito
Sustentam os recorrentes que a julgadora da primeira instância incorreu em erro de julgamento da matéria de facto, pugnando, em conformidade, pela alteração da redacção de três pontos do elenco dos factos provados (5º, 9º e 16º) e pela eliminação de outros dois pontos do mesmo elenco (17º e 18º).
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do Código de Processo Civil (doravante CPC), segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
Por sua vez, estatui o n.º 1 do artigo 662º do mesmo diploma legal que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Incumbe à Relação, como se pode ler no acórdão deste Tribunal de 07/04/2016, disponível, tal como os demais citados ao longo desta peça, em www.dgsi.pt, “enquanto tribunal de segunda instância, reapreciar, não só se a convicção do tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os outros elementos constantes dos autos revelam, mas também avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto”.
Apesar disso, não se pode olvidar que o juiz da 1ª instância, perante o qual a prova é produzida, está em posição privilegiada para a avaliar, surpreendendo no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos depoimentos que frequentemente não transparecem da gravação, pelo que, como pertinentemente se observou no acórdão desta Relação de 19/12/2023, proferido no processo n.º 1526/22.0T8VRL.G1 e relatado por Maria João Matos, “em caso de dúvida (face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida), deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova”.
No caso vertente, os recorrentes cumpriram satisfatoriamente os ónus impugnatórios que sobre si recaíam, fundamentando a sua discordância quanto à decisão dos pontos de facto impugnados na circunstância de não traduzirem fielmente a factualidade admitida por acordo ou serem contraditórios com outros que constam do elenco dos factos provados e com o próprio teor do contrato promessa celebrado e, finalmente, na inadmissibilidade da prova por testemunhas do pretenso negócio dissimulado sob aquele contrato e do sentido atribuído à respectiva cláusula quarta.
A apreciação da última razão enunciada, atinente à admissibilidade da prova por testemunhas relativamente à matéria vertida nos pontos 17º e 18º do elenco dos factos provados precede, logicamente, a do erro de julgamento propriamente dito, embora seja esta a sede própria para o efeito.
Os recorrentes invocam em seu abono a disciplina constante dos artigos 393º e 394º do Código Civil, designadamente nos segmentos em que neles se proíbe a prova por testemunhas quando o facto estiver plenamente provado por documento ou por outro meio com força probatória plena, bem como relativamente às convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo desses documentos, estendendo essa proibição ao acordo simulatório e ao negócio dissimulado, quando invocados pelos simuladores.
Sucede, porém, que a matéria vertida nos pontos 17º e 18º do elenco dos factos provados não é contrariada pelo teor do denominado contrato promessa celebrado, antes constitui mera interpretação do clausulado deste, mormente da respectiva cláusula quarta e suas implicações, desiderato que é expressamente permitido pelo n.º 3 do citado artigo 393º, segundo o qual “as regras dos números anteriores não são aplicáveis à simples interpretação do contexto do documento”.
Com efeito, apesar do “nomen iuris” que lhe foi atribuído, o próprio teor do referido contrato, celebrado entre a autora e seus irmãos, enquanto promitentes vendedores, e o réu, enquanto promitente comprador, indicia que o negócio que as partes realmente quiseram celebrar foi uma compra e venda, visto que aqueles receberam integralmente o preço estipulado e autorizaram este a legalizar o imóvel pela “forma jurídica” que entendesse, fórmula que, manifestamente, nada tem a ver com a fisionomia típica duma verdadeira promessa.
Não se trata, por conseguinte, de uma simulação relativa, tal como regulada nos artigos 240º e 241º do Código Civil (nem, tão pouco, se verificam os respectivos requisitos, entre os quais avultam o acordo simulatório e a intenção de enganar terceiros), sendo certo que, ainda que assim fosse, o próprio contrato promessa forneceria um princípio de prova por escrito.
Ora, não obstante a formulação irrestrita dos números 1 e 2 do artigo 394º do Código Civil, constitui entendimento pacífico na doutrina e na jurisprudência, na esteira do que era defendido por Vaz Serra, que é admissível prova por testemunhas de convenção contrária ao conteúdo de documento autêntico ou de documento particular, na parte em que este tem força probatória plena, quando, além do mais, exista um princípio de prova por escrito, porquanto, nesse caso, inexistem os perigos que se quiseram esconjurar mediante a proibição da prova testemunhal.
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela no seu “Código Civil Anotado”, volume I, 4ª edição, página 344, sintetizando a lição daquele Ilustre Professor, será admissível prova por testemunhas “quando exista um começo ou princípio de prova por escrito; quando se demonstre ter sido moral ou materialmente impossível a obtenção de uma prova escrita; e ainda em caso de perda não culposa do documento que fornecia a prova”.
Entendemos, por conseguinte, que era admissível prova por testemunhas relativamente aos dois indicados pontos de facto.
Questão diversa é a do erro de julgamento propriamente dito, decorrente da valoração que foi feita dos depoimentos prestados, esta concretamente subtraída à cognição deste Tribunal, visto que os depoimentos em causa não foram impugnados, e dos demais vícios invocados pelos recorrentes.
Invertendo a ordem pela qual foi deduzida a impugnação, diremos que não surpreendemos qualquer contradição entre os preditos pontos de facto e a versão plasmada na contestação apresentada pelos réus, onde encontram respaldo nos artigos 7º, 21º a 23º e 32º, nem com o teor do contrato promessa e os demais pontos da matéria de facto provada, designadamente os 5º, 8º e 9º.
De resto, a matéria vertida no ponto 18º coincide genericamente com a vertida no ponto 15º do mesmo elenco, não impugnado pelos recorrentes, do qual também decorre a prova da matéria vertida no ponto precedente àquele (17º), porquanto é evidente que o réu nunca poderia justificar outra posse senão a sua própria e fazendo-o, como fez, ficava, naturalmente, prejudicada a celebração da escritura pública correspondente ao contrato prometido.
Com efeito, obtida, por via da justificação da posse, a primeira inscrição do imóvel em nome dos justificantes no registo predial e, consequentemente, a titularidade do direito inscrito, ter-se-ia cumprido a finalidade que presidira à celebração do contrato promessa.
Mantêm-se, por isso, inalterados os dois referidos pontos de facto.
Advogam ainda os recorrentes a alteração dos pontos 5º e 9º do elenco dos factos provados, o primeiro por não traduzir fielmente o teor do contrato promessa e o segundo a matéria vertida no artigo 6º-A da petição inicial, que se encontra admitida por acordo, nos termos do artigo 574º, n.º 2 do CPC.
E, efectivamente, esses pontos de facto padecem da imprecisão/incompletude que lhes são correspondentemente apontadas, pelo que determinamos a sua alteração, apesar de inócua para a economia da decisão, conforme propugnado pelos recorrentes, nos termos a seguir explicitados:
Ponto 5º - Por acordo celebrado em ../../2019, a autora BB e os seus irmãos JJ, EE, NN, GG, OO e KK Autores prometeram vender ao réu CC, que, por sua vez, prometeu comprar àqueles, o prédio rústico composto por macieiras, mato, terra de cultivo e vinha do Douro, com a área de 10.200 m2, sito em ... (ou ...), União de Freguesias ... e ... de ..., concelho ..., a confrontar de Norte com LL, de Sul e Nascente com Caminho e do Poente com MM, inscrito na respectiva matriz sob o Art.º ...77.
Ponto 9º - Os promitentes vendedores receberam logo no dia da outorga do contrato de promessa, através de cheques de €1.000,00, um a cada promitente vendedor, a totalidade do preço, do qual deram quitação, sendo certo que a autora nunca chegou a levantar o cheque que lhe correspondia, por entretanto ter perdido o interesse no contrato.
Deixamos deliberadamente para final a impugnação da matéria vertida no ponto 16º do elenco dos factos provados.
Recorda-se o seu teor:
“Tanto a Autora e os seus irmãos como os Réus usufruem do prédio, de forma pública, pacífica e de boa fé, há mais de 40 anos, na convicção de serem os seus legítimos proprietários e de não lesarem direitos de propriedade alheios”.
Preliminarmente, porém, importa desfazer vários equívocos em que, salvo o devido respeito, os recorrentes incorrem – alguns por não terem prestado a devida atenção ao teor da sentença recorrida – e em que, atipicamente, fundam a sua discordância relativamente ao ponto de facto em apreço, embora respeitem a matéria de direito.
O primeiro é o de que, havendo tradição da coisa, o promitente comprador é, por força da natureza do contrato promessa, sempre um mero detentor ou possuidor em nome alheio.
Com efeito, sendo essa a regra, a jurisprudência, sensível à realidade da vida, tem vindo a aceitar que o contrato promessa ou, mais propriamente, “as circunstâncias que o rodearam e as vicissitudes que se seguiram à sua celebração”, pode dar lugar a uma posse em nome próprio, nomeadamente quando, havendo tradição da coisa, o promitente comprador proceda ao pagamento da totalidade do preço ou as partes tenham o propósito de não realizar a escritura pública correspondente ao contrato prometido e a coisa foi entregue em definitivo ao promitente comprador, como se dele já fosse – nesse sentido pronunciaram-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14/02/2017 e de 11/03/2021, o primeiro relatado por José Rainho (processo n.º 724/09.7TBAMT.P2.S1) e o segundo, a que pertence o excerto acima transcrito, por Rosa Tshing (processo n.º 3944/16.4T8BRG.G1.S1), o acórdão da Relação de Lisboa de 08/05/2008, relatado por José Eduardo Sapateiro (processo n.º 1331/2008-6), o acórdão da Relação do Porto de 10/11/2022, relatado por Judite Pires (processo n.º 1813/20.2T8AVR-E.P1), e, finalmente, o acórdão desta Relação de 22/03/2011, relatado por Antero Veiga (processo n.º 126/2001.G1).
Entroncando neste último, importa ainda esclarecer que, contrariamente ao sustentado pelos recorrentes, a posse de um bem imóvel adquirida por via de um contrato de compra e venda verbal “dissimulado” sob um contrato promessa, embora formalmente inválida e, como tal, não titulada, será de boa fé, na medida em que o promitente comprador ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, mostrando-se, portanto, ilidida a presunção, “iuris tantum”, consagrada no n.º 2 do artigo 1260º do Código Civil.
O derradeiro é o de que a acessão na posse pressupõe, inexoravelmente, que aquele que pretende somar à sua a posse do antecessor, adquirida por título diverso da sucessão por morte, disponha de um título formalmente válido de transmissão do direito real correspondente.
É que, mais uma vez, sendo essa a orientação doutrinária e jurisprudencial tradicional, na esteira do entendimento seguido por Pires de Lima e Antunes Varela, não é a única legalmente admissível, existindo uma outra, que, embora ainda minoritária, tem vindo a impor-se àquela, quer na doutrina, quer na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, mormente do Supremo Tribunal de Justiça, segundo a qual a acessão pode também ser invocada por quem não tenha justo título de aquisição da posse, bastando que o possuidor actual tenha adquirido a posse derivada do antecessor através da entrega ou tradição da coisa, sem que seja de exigir que a posse seja titulada ou causal – nesse sentido, veja-se acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/12/2014 (processo n.º 94/07.8TBSCD.C1.S1), relatado por Garcia Calejo, e, mais recentemente, o acórdão do mesmo Tribunal de 17/01/2023 (processo n.º 1202/18.9T8CBR.C2-S1), relatado por Jorge Dias, bem como a profusão de referências doutrinárias neles citadas.
Ora, independentemente da posição que se adopte, em sede de fundamentação jurídica, sobre a admissibilidade da acessão, os factos que relevam para que o possuidor actual dela se possa prevalecer, consubstanciados na sucessão de posses, eventualmente de natureza diferente, como permite o n.º 2 do artigo 1256º do Código Civil, têm, forçosamente, de ter tradução nos factos provados, sem que isso represente qualquer ilegalidade.
Aqui chegados, vejamos então se foi incorrectamente julgado o ajuizado ponto de facto.
A julgadora da 1ª instância fundamentou a sua convicção a esse respeito nos seguintes termos: “Ademais, interessa reter que a única questão onde ambas as versões foram condizentes, foi no facto de o prédio justificado ter sido usufruído pela Autora e pelos irmãos, desde a data da adjudicação do mesmo em sede de partilha em inventário (1975) até 2019, data em que outorgaram o contrato de promessa e o Réu passou a usufruir do prédio, não se ignorando nesta matéria o depoimento das testemunhas RR, SS, TT e UU (facto 16). Por tudo isto, mormente por não ter apresentado uma versão credível nas suas declarações, suportada em outros meios de prova que a corroborassem, e porque as suas declarações são infirmadas pelas regras da experiência comum, é que o Tribunal não conferiu credibilidade à versão da Autora e conferiu credibilidade à versão das testemunhas GG e EE (corroborada pela testemunha HH), a qual se revelou em consonância com a posição dos Réus (corporizada na respectiva contestação), razão pela qual se deu como provados os factos consignados nos pontos 14 a 20” (sublinhado nosso).
Os recorrentes discordam, sintetizando, nas conclusões 9ª a 19º, os argumentos que, na sua óptica, impunham decisão diversa.
São eles:
“9ª - Para assim o decidir, a Meritíssima Juiz fundamentou-se nos depoimentos de testemunhas. 10ª - Contudo, no que se refere ao decurso temporal (40 anos) da fruição do prédio pelos Réus, o facto 16 está em contradição com o facto 10, o qual refere que "após a outorga do contrato[-promessa] (ocorrida em ../../2019 - vide facto 5) o Réu começou a usufruir do prédio". 11ª - Os factos 10 e 5 estão provados com fundamento em documento particular com força probatória legal plena. 12ª - Ora, desde a outorga do contrato promessa até à propositura da acção (estabilidade da instância) nem 2 anos decorreram, pelo que dizer "mais de 40" é um perfeito absurdo, se não um equívoco. 13ª - Caso a Meritíssima juiz, misturando a questão de facto com a questão de direito (repare-se que, na fundamentação de direito da sentença, a Meritíssima Juiz começa por defender a tese jurídico-legal da soma da "posse" dos Réus à "posse" dos Autores), tenha desde logo querido fazer na matéria de facto essa soma jurídica, assim adiantando nos factos a solução jurídica a dar ao litigio, tal decisão é ilegal. 14ª - Também quanto às características da posse dos Réus enunciadas no facto 16, a decisão está errada, desde logo no que se refere "à convicção de serem (os Réus) seus legítimos proprietários e não lesarem direitos alheios". 15ª - Desde logo, tal facto, nesta parte, está em contradição com os factos provados em 5º (promessa de compra e venda), 8º (execução específica para o caso de incumprimento) e 19 ("a Clª 4 do contrato promessa estabelecia que o Réu ficava com o encargo de custear o registo). 16ª - Por outro lado, o contrato promessa de compra e venda, com entrega, ao promitente comprador, da coisa prometida vender é, por natureza, incompatível com a posse em nome próprio, sendo essa entrega considerada, sempre, como posse em nome alheio ou simples detentor da coisa (Ac. RC de 20.4.82, in BMJ nº 318 - 487). 17ª - Do contrato-promessa apenas resulta a obrigação de contratar, ou seja, a obrigação de celebrar o contrato prometido. Do contrato promessa não resulta, só por si, a transferência da posse da coisa prometida vender para o promitente comprador (Ac. do STJ de 7.2.91, in AJ nº 15º/16º - 28). 18ª - E, mesmo que, por hipótese, o contrato-promessa consubstanciasse uma simulação de uma compra e venda verbal (tal como foi entendido pela Meritíssima juiz a quo), tal simulação, porque contemporânea da outorga do documento escrito do contrato-promessa, nunca poderia ser provada por testemunhas, nos termos do art. 394º do CC. 19ª - O facto 16º, tal como está redigido, é em si mesmo um absurdo, por impossível, pois a posse dos Autores é incompatível com a posse dos Réus, isto é, tratando-se de posses sucessivas, nunca poderiam Autores e Réus, simultaneamente, usufruírem o imóvel há mais de 40 anos na convicção de serem ambos seus legítimos proprietários”.
E, na conclusão subsequente à anterior, pugnam pela alteração do aludido ponto de facto, propondo que o mesmo passe a ter a seguinte redacção: “A Autora e os seus irmãos usufruem do prédio, de forma pública, pacífica e de boa fé, há mais de 40 anos, na convicção de serem os seus legítimos proprietários e de não lesarem direitos de propriedade alheios”.
Pois bem.
Arredados, nos termos anteriormente explicitados, os argumentos jurídicos que, segundo os recorrentes, impediam que se desse como provada uma posse em nome próprio por parte do réu, correspondente ao exercício do direito de propriedade, bem como que essa posse era de boa fé, temos de reconhecer que a redacção dada pelo tribunal ao ponto de facto em apreço não é a melhor, porquanto, ao invés da sucessão de posses, sugere uma posse simultânea por parte da autora e seus irmãos e os réus.
Todavia, resulta inequivocamente dos demais factos dados como provados, mormente do vertido no ponto 10º, e da fundamentação acima transcrita, nomeadamente no segmento que sublinhamos, que a posse da autora e seus irmãos precedeu a posse do réu, por este a ter adquirido daqueles (artigo 1263º, alínea b), do Código Civil), na sequência da outorga do denominado contrato promessa, estando-se, portanto, perante uma sucessão de posses.
Mostra-se, por conseguinte, absolutamente infundada, por – essa sim – ser contraditória com os demais factos assentes, a redacção proposta pelos recorrentes para o ajuizado ponto de facto, antes se impondo a sua alteração, como permite o artigo 662º, números 1 e 2, alínea c)[1], nos seguintes termos:
- A autora e os seus irmãos, desde há mais de quarenta anos e até ../../2019, e os réus a partir desta data usufruíram e usufruem, respectivamente, o referido prédio, de forma pública, pacífica e de boa fé, na convicção de serem os seus legítimos proprietários e de não lesarem direitos de propriedade alheios.
Improcedendo o núcleo essencial da modificação factual propugnada pelos recorrentes (como já tivemos oportunidade de referir, as alterações introduzidas a pedido daqueles são inócuas para a economia da decisão), mostra-se prejudicada a apreciação do erro de direito que a tinha como pressuposto, de harmonia com o disposto, conjugadamente, nos artigos 608º, n.º 2 e 663, n.º 2 do CPC, remetendo-se para a fundamentação, aliás exemplar, da sentença recorrida, onde se trataram, desenvolvidamente, as várias vias alternativas de resolução do litígio[2], todas conducentes ao mesmo resultado: a total improcedência da acção.
Diremos apenas, a propósito da última questão enunciada, que o autor marido intentou a acção conjuntamente com a mulher, com a qual é casado segundo o regime da comunhão geral de bens, e que, embora outorgado apenas por esta, o denominado contrato promessa de compra e venda implicou o recebimento da quantia correspondente à contrapartida pecuniária ajustada em proveito comum do casal[3] e, correlativamente, a tradição do prédio que dele foi objecto a favor do réu, operada, evidentemente, por ambos (desiderato que, aliás, procuraram escamotear no artigo 13º da petição inicial, invocando falsamente uma posse actual do prédio), pelo que não faz qualquer sentido, no plano jurídico, distinguir a actuação de um e de outro, quer para efeito do abuso de direito, quer da litigância de má-fé.
Precisa-se ainda, porque os recorrentes insistem nessa ideia apesar de convincentemente refutada pela Senhora Juiz a quo, que não assiste à autora o direito ao arrependimento e, consequentemente, à desvinculação unilateral do contrato celebrado.
Abstraindo do negócio que os contraentes terão querido celebrar, consta do próprio contrato promessa formalmente celebrado a cláusula de execução específica, pelo que não assistia à autora o direito ao arrependimento, assumindo a quantia que lhe foi entregue carácter de sinal confirmatório (reforço dos vínculos emergentes do contrato e meio de coerção ao cumprimento) e não penitencial e podendo o réu optar entre exigir o dobro do sinal passado ou obter uma sentença que produzisse os efeitos da declaração negocial dos faltosos, nos termos previstos nos artigos 442º, n.º 2 e 830º do Código Civil, respectivamente.
Como se pode ler no sumário do acórdão da Relação de Lisboa de 14/11/2013, relatado por Carla Mendes e proferido no processo n.º 1937/07.1TBMFR.L1-8, “I) O sinal pode ter carácter penitencial, comportando reserva de um direito ao arrependimento de que constitui contrapartida, no caso de as partes expressamente convencionarem a faculdade de arrependimento. II) Não fornecendo a lei uma noção de sinal, é pressuposto do regime do artigo 442.º/2 do CC a sua natureza confirmatória, funcionando como meio de coerção ao cumprimento e pré-fixação de indemnização pelo incumprimento da obrigação de celebrar o contrato.”
Improcede, pois, a apelação.
De acordo com a regra geral inscrita no artigo 527º do CPC, os recorrentes, como parte vencida, suportarão as custas do recurso.
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IV. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.
Guimarães, 06 de Março de 2025
João Peres Coelho
Relator
José Alberto Moreira Dias
1º Adjunto
Maria Gorete Morais
2ª Adjunta
[1] Nesse sentido, acórdão desta Relação de 21/11/2019, relatado por Sandra Melo e proferido no processo números 381/18.0T8VRL.G1, em cujo sumário se pode ler “Contendo os autos todos os elementos necessários para suprir estas deficiências da matéria de facto fixada na primeira instância, pode o tribunal da Relação colmatar as imprecisões, retirar as contradições e expurgar as conclusões da matéria de facto fixada pela 1ª Instância, sem ter que a devolver a esta para efetuar tal sanação, com vista a obter uma decisão mais célere, solução que é apontada pela primeira parte da alínea c) do nº 2 do artigo 662º do Código de Processo Civil”. [2] Sendo de salientar que, seguindo, no que concerne à acessão na posse, a orientação a que anteriormente fizemos referência, o que, só por si, ditaria a improcedência da acção, a julgadora da 1ª instância não deixou de equacionar o afastamento daquele instituto à luz da doutrina tradicional e perspectivar a questão sob o prisma do abuso de direito invocado pelos réus, também ele a impor a neutralização do eventual direito dos autores. [3] Sendo indiferente que a autora não tenha procedido ao levantamento do cheque que titulava o pagamento.