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NULIDADE DA SENTENÇA
COMPRA E VENDA
CONSUMO
MORA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
MORA DO CREDOR
Sumário
1 – Num contrato de compra e venda de caiaques e de outro material relativo à atividade de canoagem, cuja data de entrega foi sucessivamente protelada por acordo das partes, estabelecendo-se por último que a entrega seria até ao final do mês de março de 2023, tendo o autor solicitado uma alteração da encomenda em 03.04.2023, confirmado à ré, em 17.04.2023, que os caiaques seriam enviados para o ... e em 23.04.2023, após ter recebido da ré um vídeo de um dos caiaques, respondido que estava melhor do que pensava, não se pode concluir que em 02.05.2023, data em que o autor reclamou a devolução da quantia de € 35.570,00 que tinha entregue, se verificava o incumprimento definitivo do contrato. 2 – Com efeito, o autor não demonstrou que a prestação, não efetuada no tempo devido, já não era possível ou que, continuando materialmente possível, não tinha interesse nela. Que a prestação era materialmente possível demonstra-o o facto de a ré ter procedido posteriormente ao envio ao autor dos produtos encomendados, cuja entrega este recusou. 3 – Ao contrário do alegado, não é possível concluir que há incumprimento definitivo com fundamento em a devedora não ter intenção de cumprir, quando se demonstrou que esta, posteriormente à comunicação do credor, lhe ofereceu a sua prestação, enviando os bens encomendados. 4 – Ao recusar receber a prestação ou ao não fazer o necessário para a sua realização, o credor constitui-se em mora, ficando obrigado a indemnizar o devedor das maiores despesas que este seja obrigado a fazer com o oferecimento infrutífero da prestação e a guarda e conservação do respetivo objeto. 5 – Tendo o credor manifestado formalmente a posição de que pretendia a devolução do preço já pago e que, portanto, não pretendia a entrega dos bens, a posterior tentativa de entrega desses bens é um ato carecido de utilidade, pelo que a despesa suportada pelo devedor com a sua devolução é injustificada e, por isso, não tem direito a dela ser indemnizado.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:
I – Relatório
1.1. AA propôs ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra EMP01... – Sociedade Industrial de Plásticos Reforçados de ..., Lda.,formulando os seguintes pedidos:
«i. Ser declarado resolvido o contrato existente entre o Autor e Ré, por incumprimento expresso e definitivo por parte desta; ii. Ser a Ré condenada à devolução do valor de 35.570,00€ (trinta e cinco mil quinhentos e setenta euros), correspondente ao montante pago pelo Autor relativo aos equipamentos encomendados, supra melhor id. no ponto 11; iii. Ser a Ré condenada a pagar uma indemnização civil, num montante global a fixar pelo Tribunal segundo as regras de equidade, mas nunca em quantia inferior a 5.000,00€ (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora contados desde a data da citação da Ré para contestar a presente ação, até efectivo e integral pagamento; iv. Tudo acrescido de juros de mora a contar da data da prolação da sentença, até efectivo e integral pagamento».
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A Ré contestou, concluindo pela improcedência da ação, e reconveio, pedindo a condenação do «Reconvindo a pagar à Reconvinte a quantia de 13.989,00€ (treze mil, novecentos e oitenta e nove euros), acrescida dos juros de mora vincendos à taxa legal, contados desde a data em que se mostre efectuada a notificação da contestação/reconvenção, até integral e efectivo pagamento.»
O Autor apresentou réplica, pugnando pela improcedência da reconvenção.
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1.2. Realizada a audiência de julgamento, proferiu-se sentença a decidir:
«1. Julgar a acção integralmente improcedente e, em consequência, absolver a ré dos pedidos contra si formulados; 2. Julgar a reconvenção integralmente improcedente e, em consequência, absolver o autor do pedido contra si formulado. Considero que não ocorreu litigância de má fé porque o autor e a ré limitaram-se a sustentar a sua posição divergente quanto aos factos (art. 542º nº1 e 2 do Cód. de Processo Civil).»
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1.3. Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação daquela decisão, formulando as seguintes conclusões:
«a) Da matéria de facto:
1. O Tribunal a quo na motivação da sentença (ponto 3, pág. 7, 3.º parágrafo) refere que:
“A testemunha BB era funcionário da empresa que foi responsável pelo transporte da encomenda para o .... Esta testemunha afirmou que a encomenda foi transportada por via marítima. Nesta modalidade o transporte processa-se de forma mais lenta do que por via aérea ou terrestre. O transporte é contratado com mais antecedência, a mercadoria é recolhida também com mais antecedência e a chegada ao destino é mais demorada. A ré contratou o transporte no mês de Maio de 2023, entregou a mercadoria à transportadora no mês de Junho de 2023 e a chegada ao destino ocorreu no mês de Julho de 2023. Esta testemunha confirmou também que o autor recusou-se a receber a encomenda e que a ré foi informada que se a mercadoria continuasse na alfândega no ... seria destruída e teria de suportar o custo do armazenamento. Por este motivo, a ré diligenciou pelo retorno da encomenda para Portugal, tendo despendido a quantia de € 13.989,00.”
2. Consequentemente, considerou, e bem, o Tribunal a quo provados os factos vertidos nos pontos 24 a 26 da matéria de facto, mas omitiu da matéria de facto provada os seguintes factos: a encomenda aqui em causa foi transportada por via marítima; o transporte é contratado com mais antecedência, a mercadoria é recolhida também com mais antecedência e a chegada ao destino é mais demorada; a Ré contratou o transporte no mês de maio de 2023 e a Ré entregou a mercadoria à transportadora no mês de junho de 2023.
3. Estes factos instrumentais que resultaram da instrução da causa são complementares e concretizadores dos factos alegados pelas partes, e têm interesse para a boa decisão da causa, impondo-se a sua inclusão na matéria de facto provada.
4. Atenta a prova junta aos autos e produzida em sede de audiência de julgamento, os factos vertidos no ponto 22 matéria de facto provada não resultaram provados.
5. Do teor deste ponto 22, conjugado com o ponto 21 da matéria de facto provada, a alegada resposta do Recorrido terá sido dada no dia 09 de maio de 2023.
6. Conforme consta da douta sentença, o Tribunal a quo “(…) fundou a sua convicção no depoimento de parte do legal representante da ré, nas declarações de parte do autor, no depoimento das testemunhas ouvidas e nos documentos juntos aos autos.”, acrescentando-se que “Todavia, os factos e as datas que o tribunal considerou provados constam das mensagens e correspondem ao que foi afirmado pelo autor e pela testemunha CC.”;
7. Ora, assim sendo, em caso algum, a factualidade vertida no ponto 22 poderia ter sido dada como provada.
8. E isto porque, decorre do documento 18 junto com a réplica, que a resposta do Recorrido no indicado dia 09 de maio de 2023, pelas 09:21 horas foi a seguinte: “Tem de falar com o advogado, ele está a tratar da encomenda.”
9. Pelo que, deve ser eliminado o ponto 22 da matéria de facto provada, uma vez que não resultaram provados os factos aí referidos.
Para além disso,
10. A inclusão desta factualidade na matéria provada, nomeadamente a segunda parte do ponto 22, onde se refere a ausência de autorização para envio da encomenda, implica a absoluta e injustificada desconsideração do que, a respeito desta factualidade, foi, clara e declaradamente, afirmado pela testemunha CC (minuto 00:33:02 a 00:33:05; minuto 00:33:19 a 00:34:13, minuto 01:04:48 a 00:05:30).
11. Recorde-se que o Tribunal a quo fundou a sua convicção no depoimento de parte do legal representante da ré, nas declarações de parte do autor, no depoimento das testemunhas ouvidas e nos documentos juntos aos autos.
12. Do depoimento da testemunha CC resulta provado que, após a recepção da carta do mandatário do Recorrido, datada de 02 de maio de 2023, e porque a mesma não correspondia ao comportamento anterior do Recorrido, a Recorrente solicitou-lhe que enviasse um email a dizer que não queria que a encomenda fosse enviada, email que o Recorrido nunca enviou à Recorrente. (minuto 00:33:02 a 00:33:05; minuto 00:33:19 a 00:34:13, minuto 01:04:48 a 00:05:30).
13. Ora, a mensagem a que o mandatário do Recorrido alude, e que constitui o documento 17 da réplica, foi enviada pelo Recorrido a 22 de julho de 2023 (conforme o Recorrido assim o admite no artigo 47º da réplica) ou seja, depois do material ter sido enviado para o ..., tal como foi confirmado pela testemunha CC.
14. Assim, apenas a 22 de julho de 2023, quando a encomenda já se encontrava em trânsito, com destino ao ... (recorde-se que, tal como decorre do ponto 23 dos factos provados, a encomenda chegou ao ... no dia 28 de julho de 2023), o Recorrido mandou uma mensagem à Recorrente a dizer é melhor falar com o advogado e que não deu autorização para nada.
15. A única pessoa que refere que não existiu autorização para o envio da encomenda é o Recorrido, nas suas declarações de parte, sendo certo que não existe mais nenhum elemento de prova, testemunhal ou documental, que corrobore tal alegação.
16. O Tribunal a quo tinha de ponderar o teor das declarações do Recorrido com a demais prova produzida, conforme se extrai do douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/04/2022, processo n.º 63725/20.8YIPRT.C1, disponível in https://www.dgsi.pt.
17. Como tem sido recorrentemente sublinhado pela doutrina e jurisprudência, a valoração das declarações de parte há de ser feita com cuidado já que são declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na ação.
18. E isto porque, seria de todo insensato que, sem mais, nomeadamente sem o auxílio de outros meios probatórios (documentais ou testemunhais), o Tribunal desse como provados os factos alegados pela própria parte e, tão só, por ela admitidos.
19. Ora, conforme referido no indicado acórdão, a credibilidade das declarações da parte tem de ser apreciada em concreto, numa perspetiva crítica, com vista à descoberta da verdade material.
20. Acontece que, nos presentes autos ficou clara a má-fé processual do Recorrido, uma vez que na petição inicial veio alegar a existência de um sócio na EMP02..., o qual teria investido 17.500,00€, e que este sócio já tinha perdido o interesse na prossecução do negócio (artigo 36º), acrescentando, ainda, que tinha perdido esse sócio (artigos 38º, 54º e 69º), e que tal perda teve um tremendo reflexo no seu estado emocional, causando-lhe uma elevada ansiedade (artigo 69º).
21. Acontece que do teor dos artigos 32º e 37º da réplica extrai-se que nunca existiu um sócio, circunstância que o Requerido admitiu nas suas declarações (minuto 00:49:51 a 00:49:56).
22. Pelo que, o Recorrido ao alegar estes factos, que bem sabia que eram falsos, teve uma conduta contrária à boa fé processual, o que indubitavelmente comprometeu a credibilidade das suas declarações.
23. O Tribunal a quo não apreciou a conduta do Recorrido, no quadro da litigância de má fé, o que poderia oficiosamente fazer, contanto que, observasse o princípio do contraditório, sob pena de, não o fazendo, ser violado o princípio do contraditório, na vertente da proibição de decisão surpresa.
24. Mais grave que isso, tendo conhecimento que o Recorrido já tinha invocado no processo factos que sabia serem falsos, ainda assim, valorou o seu depoimento em detrimento de prova documental e testemunhal, sem qualquer justificação.
25. É que, conforme inequivocamente resulta do depoimento prestado pela testemunha CC, ficou, sem margem para dúvidas, provado que após a recepção da carta do mandatário do Recorrido, datada de 02 de maio de 2023, a Recorrente solicitou ao Recorrido que enviasse um email a dizer que não queria que a encomenda fosse enviada, email esse que o Recorrido nunca enviou.
26. Depoimento este, devidamente corroborado pelo documento 17 junto com a réplica, bem como pelo teor do artigo 47º da réplica.
27. Provado igualmente que apenas a 22 de julho de 2023, o Recorrido mandou uma mensagem à Recorrente a dizer é melhor falar com o advogado e que não deu autorização para nada.
Acresce ainda que,
28. Do depoimento desta testemunha CC (minuto 00:34:13 a 00:34:54), com corroboração do Recorrido nas suas declarações de parte (minuto 01:04:16 a 01:04:30), resultou provado que no valor pago pelo Recorrido já estava incluído o valor do transporte da mercadoria de Portugal para o ....
29. Assim, atento tudo o vindo de referir, o Tribunal recorrido incorreu em manifesto erro na apreciação da prova.
30. Deverá, pois, o ponto 22 da matéria de facto provada ter-se por não provado, e, como tal, excluído da matéria de facto, e, ainda, considerados provados os factos seguintes, e por essenciais à boa decisão da causa, incluídos na factualidade provada:
-após a recepção da carta do mandatário do Autor, datada de 02 de maio de 2023, a Ré solicitou ao Autor que enviasse um email a dizer que não queria que a encomenda fosse enviada;
-o Autor nunca enviou esse email à Ré;
-a encomenda aqui em causa foi transportada por via marítima;
-o transporte por via marítima é contratado com mais antecedência, a mercadoria é recolhida também com mais antecedência e a chegada ao destino é mais demorada;
-a Ré contratou o transporte no mês de maio de 2023;
-a Ré entregou a mercadoria à transportadora no mês de junho de 2023;
-apenas a 22 de julho de 2023, o Autor mandou uma mensagem à Ré a dizer que era melhor falar com o advogado e que não deu autorização para nada,
-no valor de 35.570,00€ pago pelo Autor à Ré estava incluído o custo do transporte marítimo da encomenda de Portugal para o ....
b) Do direito
31. Na decisão recorrida, o Tribunal a quo considerou aplicável ao presente caso o disposto no artigo 570º do Código Civil, que prevê que, quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, aplica-se um princípio de auto-responsabilização, devendo o tribunal imputar os danos aos próprios lesados.
32. A previsão do artigo 570.º do Código Civil, de redução ou de exclusão da obrigação de indemnizar, constitui uma das exceções ao critério geral de “teoria da diferença”, enunciado no n.º 1 do artigo 566.º do mesmo código, expressamente ressalvadas no n.º 2 da citada disposição legal.
33. A lei exige para a verificação do condicionalismo enunciado no artigo 570.º do Código Civil, que o dano seja causado, tanto por facto praticado pelo lesante como por facto praticado pelo lesado, sendo um e outro causa adequada do dano, havendo assim um nexo de concausalidade.
34. Ora, esta concausalidade verifica-se sempre que o facto do agente concorre com um facto culposo da vítima, afastando a lei todos os atos do lesado que, embora constituindo concausa do dano, não mereçam um juízo de reprovação ou censura.
35. É que, conforme resulta da factualidade provada em sede de julgamento, e acima exposta, a Recorrente após ter recebido a carta datada de 02 de maio de 2023, contactou o Recorrido para que este esclarecesse se pretendia que a encomenda fosse enviada, tendo, inclusive, solicitado que lhe enviasse um email a dizer que não queria a encomenda, sendo que face à ausência de resposta do Recorrido, a Recorrente acabou por enviar a encomenda, até porque o transporte já estava contratado e pago.
36. Efetivamente, a conduta do Recorrido (pontos 17 a 19 dos factos provados) não fazia prever que este iria recusar a encomenda no ..., sendo que, face à inesperada e estranha carta de 02 de maio de 2023, a Recorrente teve um comportamento cauteloso e diligente solicitando que o Recorrido lhe comunicasse por escrito que não pretendia a encomenda.
37. O Recorrido ao nada dizer, criou a séria convicção na Recorrente de que tudo estava bem e que a encomenda poderia seguir, o que sucedeu, tendo a Ré entregue a mercadoria à transportadora no mês de junho de 2023.
38. A Recorrente não agiu, assim, de modo temerário, nem de má-fé, sendo que a aplicação do n.º 1 do artigo 570º do Código Civil pressupõe que o lesado tenha praticado um ato que foi concausa do dano sofrido, ou, que tenha contribuído para agravar o dano e que esse ato tenha sido culposo.
39. E, para haver culpa co-responsabilizante do lesado, e ser afastada a teoria da diferença, importará a evidência de uma conduta culposa do lesado violadora das regras da boa-fé e que essa conduta – omissiva ou negligente – seja causa adequada do dano ou do seu agravamento.
40. Ora, os factos provados nos presentes autos evidenciam que não houve qualquer facto culposo da Recorrente a concorrer para a produção dos danos peticionados nos autos, não estando reunidos os pressupostos cumulativos da situação de concausalidade ou concorrência causal prevista no referido artigo 570º do Código Civil.
41. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, violando o disposto no artigo 570º do Código Civil.
42. Conforme inequivocamente resulta dos factos provados nos presentes autos, foi em consequência da atuação do Recorrido, que, de forma consciente e injustificada se recusou a receber a encomenda, que a Recorrente teve o dano cujo ressarcimento requereu no seu pedido reconvencional.
43. A conduta do Recorrido enquadra-se no disposto nos artigos 813º e seguintes do Código Civil.
44. A mora do credor pressupõe, portanto, a verificação de dois requisitos cumulativos, a recusa do credor ou a não realização pelo mesmo da colaboração necessária para o cumprimento da prestação, e a ausência de motivo justificado para essa recusa ou omissão.
45. Todavia, para que tal mora seja relevante não basta uma qualquer recusa ou omissão, sendo, antes, de exigir que os atos não praticados pelo credor, ou por ele voluntariamente omitidos, sejam atos de cooperação essenciais-neste sentido o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.01.2014, processo n.º 511/11.2TBPVL.G1.S1, disponível in www.dgsi.pt.
46. Ora, estando o Recorrido noutro país, para o qual solicitou à Recorrida que fosse enviada a encomenda, facilmente se alcança que o recebimento da mesma pelo Recorrido constitui um ato de cooperação essencial.
47. Resulta da factualidade provada que: i) o Recorrido recusou-se a receber a encomenda; ii) a Recorrente foi informada que se a mercadoria continuasse na alfândega no ... seria destruída e teria de suportar o custo do armazenamento; iii) por este motivo, a Recorrente diligenciou pelo retorno da encomenda para Portugal, tendo despendido a quantia de € 13.989,00.
48. Assim, se por um lado, a aceitação da encomenda no ... constituía um ato de cooperação essencial do Recorrido, por outro, este não tinha qualquer justificação para recusar a referida encomenda.
49. E, tanto assim é, que foi decidido nos autos, a ilicitude da resolução do contrato por parte do Autor.
50. Contrariamente ao que acontece quanto à mora do devedor, a mora do credor, a que alude o artigo 813º do Código Civil, não depende de existência de culpa, ou seja, não se exige que a sua não aceitação da prestação ou a omissão da sua colaboração sejam censuráveis.
51. A mora do credor surge como um facto que gera um impedimento ao cumprimento por parte do devedor: o devedor não cumpre a prestação a que se encontra adstrito, mas esse não cumprimento é determinado pela não aceitação da prestação ou pela circunstância de o credor não praticar os actos indispensáveis para que o cumprimento possa verificar-se.
52. Sob o credor impende o ónus de aceitar a prestação e de cooperar no que se mostrar essencial para permitir o cumprimento pelo devedor e fica sujeito aos efeitos desfavoráveis que a lei associa à sua mora, como inobservância desse ónus.
53. A doutrina tem sido consensual ao considerar que existe motivo justificado quando o credor recusa a prestação ou omite a colaboração com base em razões objetivas atinentes ao objeto, ao conteúdo, ao tempo ou ao lugar da prestação. Ou seja, se se tratar de prestação parcial, de prestação defeituosa, de prestação antes do vencimento (com prazo a favor do credor), de prestação a ser realizada em lugar diferente do acordado, de prestação infungível a ser realizada por terceiro.
54. O que, conforme decorre da factualidade provada, não ocorreu.
55. A mora do credor tem como efeitos a obrigação de indemnização por parte do credor, a atenuação da responsabilidade do devedor, e a inversão do risco pela perda ou deterioração da coisa.
56. Desta forma, o credor está obrigado a indemnizar o devedor das maiores despesas que ele seja obrigado a fazer com o oferecimento infrutífero da prestação e a guarda do respectivo objecto (artigo 816º do Código Civil), estando em causa uma responsabilidade por acto lícito ou pelo sacrifício de interesses do devedor, sujeitando-o a maiores despesas do que aquelas que se vinculou a suportar ao assumir a obrigação.
57. No caso em apreço, e conforme resulta dos factos provados, a Recorrente, face à recusa injustificada do Recorrido, foi obrigada a diligenciar pelo retorno da encomenda para Portugal, tendo despendido a quantia de 13.989,00€.
58. A Recorrente tem, assim, direito a ser reembolsada deste valor, acrescido de juros de mora desde o seu pagamento, ao abrigo dos referidos artigos 813º e 816º do Código Civil.
59. Ao não ter decidido neste sentido, o Tribunal a quo violou a interpretação e aplicação dos artigos 813.º a 816.º do Código Civil.
60. Pelo que a douta sentença recorrida não se poderá manter na parte em que, julgando a reconvenção integralmente improcedente, absolveu o Recorrido do pedido contra si formulado.
61. Impor-se-á, em suma, a total procedência do pedido reconvencional deduzido pela Recorrente.»
*
1.4. Igualmente o Autor interpôs recurso de apelação da sentença, formulando as conclusões que a seguir se transcrevem:
«i. Por Sentença datada de 04 de Novembro de 2024, viu o ora Recorrente, ali Autor, ser proferida pelo douto Tribunal a quo, brevatatis causa e para o que lhe interessa, a seguinte decisão:
“1. Julgar a acção integralmente improcedente e, em consequência, absolver a ré dos pedidos contra si formulados;
2. Julgar a reconvenção integralmente improcedente e, em consequência, absolver o autor do pedido contra si formulado.”
ii. Inconformado com a douta sentença, outra alternativa não restou à recorrente do que se socorrer desse Venerando Tribunal, no que tange – apenas e só – à improcedência da acção e consequente absolvição da ré da acção.
iii. Isto porque, não obstante o esforço salomónico de repartição de responsabilidades e in extremis de manter intocável um negócio incumprido e que impõe decisão diferente.
iv. Quando na verdade, não se alcança qual o caminho percorrido pelo decisor, quando nos apresenta factualidade tão esgotada de sentido e alcance, quando refere que “O autor e a testemunha CC confirmaram a factualidade que foi considerada provada. A sua divergência não era tanto quanto aos factos que ocorreram, mas às razões e à interpretação da conduta de cada um.” (Página 6 da sentença. Destacado nosso)
v. Considera o Recorrente que a decisão recorrida enferma de:
Da nulidade por falta de fundamentação da sentença (607.º, n.º4 do CPC);
Do erro notório da apreciação da prova – quanto à prova documental e testemunhal;
Da errada subsunção dos factos ao direito.
- DA NULIDADE POR FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA
vi. O Recorrente não poderia censurar mais sentença Recorrida por vício de nulidade nos termos do art. 615º, nº 1, alínea b) e d) do CPC, por omissa na referência às razões que, à luz dos princípios legais aplicáveis, justificam a improcedência da acção.
vii. Na realidade, embora o julgador aprecie livremente as provas produzidas segundo a sua prudente convicção, não está desonerado de fundamentar as razões pelas quais se convenceu da veracidade de determinados factos, ou da desconsideração de outra factualidade, de modo a permitir o controlo, quer pelas partes quer pelos tribunais superiores, do acerto da respetiva fundamentação, bem como, possibilitando às partes a arguição de eventuais nulidades resultantes da eventual oposição entre os fundamentos e a decisão ou de omissão da especificação desses fundamentos.
viii. Atente-se, desde logo à delimitação do conhecimento do legal representante da Ré:
“O legal representante da ré não sabia verdadeiramente o que tinha sido acordado com o autor porque era o responsável pela área de produção. No seu depoimento de parte limitou-se a descrever como eram fabricados os caiaques e as dificuldades que a ré teve com o fornecimento de algumas matérias que eram necessárias para a sua construção.
Também descreveu as dificuldades com o fabrico dos caiaques que foram encomendados pelo autor porque a encomenda estava sempre a ser alterada.” (ponto 3, pág. 5 da sentença recorrida)
ix. Ora, atento a tal contradição, impõe-se a questão: Se o legal representante estava alocado apenas à produção e não sabia verdadeiramente o que tinha sido acordado com o autor, como poderia saber que a encomenda estava sempre a ser alterada?
x. Não decifrando a sentença recorrida tal enigma, dá-nos, contudo, uma certeza:
“Os contactos com a ré foram estabelecidos entre o autor e a testemunha CC. Esta testemunha era o filho do legal representante da ré e o responsável pela área comercial.” (pág. 6 da sentença recorrida)
“O autor e a testemunha CC confirmaram a factualidade que foi considerada provada. A sua divergência não era tanto quanto aos factos que ocorreram, mas às razões e à interpretação da conduta de cada um.” (pág. 6 da sentença recorrida)
xi. Emergindo, imediatamente, nova questão: Qual divergência? Qual interpretação? Sobre que concretos factos?
xii. Ora, se Autor/recorrente e testemunha/filho do legal representante, disseram coisas contrárias como pode o Tribunal a quo dar os factos como provados?
xiii. Qual o fundamento para que o tribunal fosse crer mais numa ou noutra versão, se por um lado as mensagens não tinham relevância e, por outro, autor e ré juntaram apenas parte das mensagens que era mais conveniente?
xiv. E como o Tribunal a quo deu como provados factos contraditórios entre si?
xv. Está ausente e manifestamente omisso o caminho percorrido pelo douto Tribunal a quo para que alcançasse tal decisão, contribuindo assim para a nulidade da sentença recorrida, por falta de fundamentação.
- DO ERRO NOTÓRIO DE APRECIAÇÃO DA PROVA
xvi. O erro na apreciação da prova, constitui um vício da decisão judicial que se distingue do erro de julgamento, porquanto no erro de julgamento o enfoque é a aplicação incorreta do direito ou a má interpretação da lei, o erro na apreciação da prova centra-se na incorreta valoração ou análise das provas apresentadas.
xvii. Eis a razão da discórdia – Factos provados 10, 11, 13, 14, 17
xviii. Os factos que supra se enumeram, dão a aparente realidade de que expressões como “melhor assim” e “estou a ficar mais entusiasmado”, estava o Autor anuir ao adiamento da entrega da encomenda. NADA MAIS FALSO!
xix. Importa desde logo referir que a encomenda era para ter sido entregue a até final do mês de Outubro de 2022 (facto 9), sucede, porém, que foram muitas e variadas as desculpas que o filho do legal representante da Ré dava, para alimentar a tolerância do recorrente.
xx. Entre elas – o que foi absolutamente ignorado pelo Tribunal a quo – foi a que tais encomendas poderiam ser alteradas 15.08.2022 (cfr. doc. 11 junto com a PI), como, de resto, chegou tal testemunha a usar o argumento de que o seu pai (o legal representante da Ré) poderia ter um colapso caso soubesse do atraso na entrega: “muito mau para nós (…) o meu pai está com acesso aos e-mail´s e ele está com problemas cardíacos, não pode ver esses emails” (Cfr. doc. 17 junto com a PI)
xxi. Nada disto mereceu atenção do decisor a quo.
xxii. Dando como provado o entusiasmo do Autor, aqui recorrente, quando o mesmo mais de 5 meses depois, mostrou satisfação por finalmente haver avanços na encomenda.
xxiii. o alegado entusiasmo do recorrente não é, nem nunca foi sinónimo de concordância com os sucessivos atrasos na entrega, mas antes a manifestação de uma exaustiva espera.
xxiv. Deu o tribunal a quo como provado que:
10. A ré não entregou os caiaques até esta data porque teve problemas relacionados com o fornecimento de algumas matérias que eram necessárias para a sua construção;
xxv. Nada deste facto foi provado em sede de audiência de julgamento.
xxvi. A ré não demonstrou a mais ténue dificuldade em obter tais matérias-primas, mas sobretudo foi a própria testemunha CC que admitiu não ter referido tal justificação ao recorrente para gerar o atraso nas encomendas.
xxvii. Mais, como poderia o recorrente saber de tal impossibilidade, quando em NENHUMAS das inúmeras mensagens juntas aos autos, refere o CC tal dificuldade na obtenção dos materiais?
xxviii. Devendo facto 10 passar a não provado e em sua substituição, vigorar o seguinte:
“A ré não informou o Autor que o atraso na entrega da encomenda se deveu a atrasos no fornecimento de algumas matérias que eram necessárias para a sua construção”
xxix. Dando-se ainda como não provados os factos 14 e 11 na parte final “(…) tendo o autor respondido melhor assim”.
- DA ERRADA SUBSUNÇÃO DOS FACTOS AO DIREITO
xxx. Refere assim – no ponto 4., página 8 – a decisão recorrida:
“O autor e a ré celebraram um contrato de compra e venda definido como aquele em que uma das partes se obriga a transmitir à outra a propriedade de uma coisa ou outro direito, mediante a entrega de um preço (art. 874º do Cód. Civil).
(…)
Nas situações em que a coisa tem de ser fabricada pelo vendedor, o contrato deve ser qualificado como de compra e venda quando o que tem prevalência é a obrigação de dare correspondente à entrega da coisa ao comprador e não a obrigação de facere que correspondente ao fabrico da coisa. Cremos que foi isto que ocorreu entre o autor e a ré. O autor sabia que os caiaques tinham de ser fabricados pela ré, mas não tinha qualquer interesse relativamente ao processo de fabrico. O seu interesse era apenas que fossem entregues de acordo com a sua encomenda.” (destacado nosso). Ora,
xxxi. Com o mais elevado respeito, muito surpreende tal estirada, uma vez que um dos factos dados como provados é justamente:
“15. No dia 13 de Fevereiro de 2023, o autor solicitou à ré que alguns caiaques tivessem a referência a uma marca para publicidade; “
xxxii. Mais, como poderia o recorrente saber de tal impossibilidade, quando em NENHUMAS das inúmeras mensagens juntas aos autos, refere o CC tal dificuldade na obtenção dos materiais?
xxxiii. Ou se quisermos (ainda que se tenha visado que tal facto deveria passar a não provado):
“11. No dia 19 de Novembro de 2022, a ré informou ao autor que o fabrico dos caiaques estava atrasado e apenas seriam entregues no ano de 2023, tendo o autor respondido melhor assim; “, não é suficiente para demonstrar que o processo de fabrico era verdadeiramente importante para o Autor/recorrente? Naturalmente que sim.
xxxiv. É evidente de que tal relação comercial, sempre teve como pano de fundo a compra e venda, mas não na modalidade que afasta o consumo.
xxxv. Segundo o art. 804.º, n.º 2 do CCl, considera-se estar o devedor constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido.
xxxvi. Tal demora na prestação, converte-se em incumprimento definitivo na hipótese de o credor perder o interesse na prestação, em consequência da mora, ou se a prestação não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado por aquele (Art.º 808.º, n.º 1 do CC). O que sucedeu in casu!
xxxvii. Durante longos e penosos meses, o recorrente aguardou por uma encomenda que não lhe foi entregue no tempo devido, nem em tempo razoável.
xxxviii. A mora pressupõe ter sido ultrapassado um termo essencial, estabelecido no contrato, ou posteriormente, e só se transforma em incumprimento definitivo se o devedor não cumpre no prazo suplementar e peremptório que o credor razoavelmente lhe concede.
xxxix. Ao longo de meses, o recorrente aceitou e estabeleceu vários prazos de entrega, todos eles falhados pela Ré.
xl. Mas mesmo que não se entenda estarem reunidos os pressupostos da interpelação admonitória, sempre se podia analisar de outro prisma e conceder que há incumprimento definitivo quando o devedor não demonstra intenção de cumprir.
xli. Ao longo de meses a ré ludibriou, omitiu, adulterou circunstância e factos, tudo através do seu funcionário CC, para protelar a entrega dos caiaques.
xlii. Usando mesmo o estado de saúde do pai, o legal representante da Ré, para criar uma tal sensibilidade no recorrente que lhe permitisse ganhar tempo, afastando aquele do real conhecimento do que se passava.
xliii. Actuando sem boa-fé, e poluindo uma relação marcada pela forte confiança que o recorrente tinha na sociedade Ré.
xliv. Em nenhum momento, fosse pelo decurso do tempo, fosse pelas justificações usadas e vertidas em cada uma das mensagens escritas pelo funcionário da Ré, CC, este a Ré de boa-fé.
xlv. Razão pela qual o recorrente perdeu definitivamente o interesse.
xlvi. Havendo incumprimento definitivo.
xlvii. Originando por consequência a extinção a relação obrigacional, devendo a Ré ser obrigada à devolução do montante pago.»
*
A Ré apresentou contra-alegações relativamente ao recurso interposto pelo Autor.
Os recursos foram admitidos.
*
1.4. Questões a decidir
Atentas as conclusões dos dois recursos, as quais delimitam o seu objeto (artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, incumbe apreciar as seguintes questões:
i) Nulidade da sentença por falta de fundamentação;
ii) Erro de julgamento da matéria de facto;
iii) Compra e venda de consumo (conclusão xxxiv do recurso do Autor);
iv) Conversão da mora em incumprimento definitivo da Ré (conclusões xxxv a xlvii do recurso do Autor);
v) Mora do credor e reparação dos danos causados pela mora à Reconvinte (conclusões 31 a 61 do recurso da Reconvinte).
***
II – Fundamentos
2.1. Fundamentação de facto 2.1.1. Na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
«1. A ré dedica-se ao desenho, construção e comercialização de caiaques;
2. O autor reside no ... e pretendia ser o representante da ré e dedicar-se à comercialização de caiaques naquele país;
3. No dia 19 de Abril de 2022, o autor contactou a ré com esta finalidade através de uma mensagem de correio electrónico;
4. Os contactos posteriores entre o autor e a ré foram estabelecidos através de mensagens de correio electrónico e Whatsapp;
5. No dia 20 de Maio de 2022, o autor acordou com a ré no fornecimento de caiaques e diverso equipamento relacionado com esta actividade, no valor de € 12.570,00;
6. No dia 26 de Abril de 2022, o autor informou a ré que a encomenda devia ser entregue em ..., ..., On, ..., no ..., ...;
7. No dia 12 de Julho de 2022, o autor acordou com a ré na alteração da encomenda, tendo sido acrescentados mais caiaques e o valor passado a ser de € 41.400,00;
8. O autor entregou à ré a quantia de € 35.570,00;
9. Ficou acordado que os caiaques seriam entregues até ao final do mês de Outubro de 2022;
10. A ré não entregou os caiaques até esta data porque teve problemas relacionados com o fornecimento de algumas matérias que eram necessárias para a sua construção;
11. No dia 19 de Novembro de 2022, a ré informou ao autor que o fabrico dos caiaques estava atrasado e apenas seriam entregues no ano de 2023, tendo o autor respondido melhor assim;
12. No dia 27 de Dezembro de 2022, o autor solicitou uma alteração da encomenda;
13. No dia 9 de Fevereiro de 2023, a ré informou ao autor que os caiaques estariam prontos até ao final de Março de 2023 e que já tinha marcado o transporte;
14. O autor respondeu dizendo estou a ficar mais entusiasmado;
15. No dia 13 de Fevereiro de 2023, o autor solicitou à ré que alguns caiaques tivessem a referência a uma marca para publicidade;
16. No dia 27 de Fevereiro de 2023, o autor enviou à ré uma mensagem de correio electrónico com o seguinte conteúdo:
Venho por este meio solicitar o cancelamento da minha encomenda.
Fiz uma encomenda no valor de € 35.570,00 que deveria estar pronta no final de Outubro, o que não foi cumprido. Depois fui informado que só estaria pronta em Dezembro, o que não foi cumprido. Estamos a chegar a Março e continuo sem a certeza de quando vou receber a encomenda. Com todos estes atrasos perdi interessados compradores que estão a fazer pre order com a EMP03... e a EMP04....
Com tudo isto venho pedir o cancelamento e o reembolso do valor acima mencionado.
17. No dia 3 de Abril de 2023, o autor solicitou à ré uma alteração da encomenda;
18. No dia 17 de Abril de 2023, o autor confirmou com a ré os caiaques que seriam enviados para o ...;
19. No dia 23 de Abril de 2023, a ré enviou ao autor um vídeo relativo a um caiaque que tinha uma pintura personalizada e o autor respondeu está melhor do que pensava;
20. No dia 2 de Maio de 2023, o autor, através do seu mandatário, enviou à ré uma carta registada a reclamar a devolução da quantia de € 35.570,00 que tinha sido entregue;
21. No dia 9 de Maio de 2023, a ré contactou o autor para saber se no ... a encomenda seria levada para a morada da entrega através de uma transportadora ou o autor procedia ao levantamento;
22. O autor respondeu que a ré devia falar com o seu advogado e que não tinha dado autorização para que a encomenda fosse enviada;
23. No dia 28 de Julho de 2023, a encomenda chegou ao ...;
24. O autor recusou-se a receber a encomenda;
25. A ré foi informada que se a mercadoria continuasse na alfândega no ... seria destruída e teria de suportar o custo do armazenamento;
26. Por este motivo, a ré diligenciou pelo retorno da encomenda para Portugal, tendo despendido a quantia de € 13.989,00.»
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2.1.2. Matéria de facto não provada
O Tribunal a quo julgou não provados os seguintes factos:
«1. O autor tinha um sócio que desistiu de participar na representação e comercialização dos produtos da ré no ...; 2. O autor teve despesas com armazéns que serviriam para guardar a encomenda no ...; 3. O autor perdeu clientes para aquisição de caiaques no ....»
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2.2. Do objeto do recurso 2.2.1. Nulidade da sentença
Sustenta o Recorrente DD que a sentença é nula «por omissa na referência às razões que, à luz dos princípios legais aplicáveis, justificam a improcedência da acção.»
Alega que o julgador «não está desonerado de fundamentar as razões pelas quais se convenceu da veracidade de determinados factos, ou da desconsideração de outra factualidade, de modo a permitir o controlo, quer pelas partes quer pelos tribunais superiores, do acerto da respetiva fundamentação, bem como, possibilitando às partes a arguição de eventuais nulidades resultantes da eventual oposição entre os fundamentos e a decisão ou de omissão da especificação desses fundamentos.»
Estando invocada a nulidade da sentença por falta de fundamentação, cumpre apreciar tal fundamento do recurso.
Nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea b), do CPC, a sentença é nula quando «não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão».
O artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra o dever de fundamentação das decisões dos tribunais, o qual mostra-se concretizado, quanto ao processo civil, no artigo 154º, nº 1, do CPC, e constitui um corolário do processo equitativo (art. 20º, nº 4, da CRP), «dado que dá a perceber as razões do deferimento ou do indeferimento do requerimento ou da procedência ou improcedência da ação e permite controlar o iter decisório, nomeadamente por um tribunal de recurso»[1].
Segundo Alberto dos Reis[2], «há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto». Como referem, igualmente, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[3], «para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito».
Por conseguinte, enquanto vício da sentença, ou seja, como fundamento da sua nulidade, apenas releva a ausência de qualquer fundamentação e não quaisquer outras patologias. Na previsão da alínea b) só está incluída a falta absoluta de fundamentação e não a insuficiente, errada, incompleta ou deficiente. No nosso entendimento, ainda constitui falta de fundamentação uma motivação impercetível, sem relação compreensível com o objeto discutido, enquanto vício paralelo à ininteligibilidade do objeto do processo como motivo de ineptidão da petição inicial[4].
Analisada a decisão recorrida, constata-se que contém tanto os fundamentos de facto como a fundamentação de direito.
A diretriz sobre a fundamentação de direito consta do artigo 607º, nº 3, do CPC, na parte em que se estabelece que o juiz deve «indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes». Verifica-se que o Tribunal recorrido cumpriu tal imposição nas páginas 8 a 16 da sentença, onde indicou, interpretou e aplicou as normas jurídicas que considerou relevantes. É uma fundamentação suficientemente explícita e que justifica a aplicação do regime jurídico que alicerçou o dispositivo.
Quanto à fundamentação de facto, impõe o mesmo artigo 607º, nº 4, do CPC, que, «na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção».
O Mmo. Juiz a quo cumpriu a referida diretriz sobre a especificação factual, pois, descreveu os factos provados e os não provados, conforme se pode ver nas páginas 2 a 5 da sentença. Também motivou a decisão sobre a matéria de facto, o que fez nas páginas 5 a 8 da sentença; se o fez bem ou mal, é questão diferente, a qual será abordada aquando da apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto. A errada, deficiente ou medíocre motivação da decisão sobre a matéria de facto não é causa de nulidade da sentença, pois apenas o é a falta de fundamentação no sentido já exposto. O mesmo se diga da insuficiência ou incompletude da motivação, relativamente às quais, tal como no que concerne ao erro em matéria de facto em geral, a lei consagra um meio processual específico de reação, que é a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, suscetível de conduzir à revogação ou anulação da sentença em recurso, mas que não produz a sua nulidade.
Portanto, ao contrário do afirmado nas conclusões das alegações, seguramente a sentença não é nula por falta de especificação dos fundamentos de facto ou de direito que justificam a decisão, nem padece de falta de fundamentação.
Mais, o Sr. Juiz abordou todas as questões cujo conhecimento lhe era imposto, sem qualquer contradição argumentativa ou, muito menos, entre os fundamentos invocados.
Termos em que improcedem as conclusões formuladas sobre esta questão.
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2.2.2. Impugnação da decisão da matéria de facto
Segundo indica na conclusão xvii das suas alegações, o Autor impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância no que concerne aos pontos 10, 11, 13, 14 e 17 dos factos provados.
Por sua vez, a impugnação da Ré respeita ao ponto 22 dos factos provados e aos factos cujo aditamento preconiza na conclusão 30 das suas alegações.
Com vista a poder apreciar as impugnações da decisão da matéria de facto, procedemos à audição da gravação da audiência final e à análise de tudo quanto consta do processo, designadamente dos documentos.
Na apreciação dos fundamentos do recurso relativamente aos pontos de facto objeto das impugnações, seguiremos a sistematização dos Recorrentes, ou seja, a ordem pela qual expõem os argumentos nas suas alegações, começando pela impugnação do Autor.
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2.2.2.1. Ponto 10 dos factos provados
Na sentença julgou-se provado: «10. A ré não entregou os caiaques até esta data porque teve problemas relacionados com o fornecimento de algumas matérias que eram necessárias para a sua construção».
O Recorrente sustenta que «[n]ada deste facto foi provado em sede de audiência de julgamento» e que a «ré não demonstrou a mais ténue dificuldade em obter tais matérias-primas, mas sobretudo foi a própria testemunha CC que admitiu não ter referido tal justificação ao recorrente para gerar o atraso nas encomendas.»
Reapreciada a prova produzida, verifica-se, desde logo no documento nº 17 junto com a petição inicial, que a testemunha CC, trabalhador da Ré, em mensagem dirigida ao Autor, referiu expressamente que «tivemos mts problemas com matérias primas, muitas a comprar ao dobro do preço.» Também em mensagem de 22.03.2023 se referiu ao «atraso de matéria-prima». Igualmente em mensagem que consta do documento nº 17 (da p.i.) a Ré refere ao Autor que «tivemos problemas com matérias com a guerra que não chegaram e tivemos que arranjar alternativas» e «tudo atrasou».
Esses atrasos foram ainda abordados no depoimento da testemunha CC, como resulta das passagens da gravação dos minutos 09:26 a 09:40 e de 10:44 a 11:09. Também o legal representante da Ré se referiu a tal matéria, como se pode ouvir no segmento da gravação do seu depoimento de parte entre os minutos 10:45 e 11:24.
Por isso, o facto foi dado como provado com suporte probatório, pelo que se desatende a impugnação.
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2.2.2.2. Ponto 11 dos factos provados
No ponto 11 o Tribunal a quo considerou provado: «No dia 19 de Novembro de 2022, a ré informou ao autor que o fabrico dos caiaques estava atrasado e apenas seriam entregues no ano de 2023, tendo o autor respondido melhor assim».
O Recorrente pretende que se dê como não provada a parte deste ponto de facto onde se refere «tendo o autor respondido melhor assim».
Sucede que o aludido segmento factual resulta da comunicação que o Recorrente dirigiu à Recorrida, na pessoa de CC, no dia 19.11.2022, em resposta a comunicação desta do mesmo dia, onde informava que «os barcos estão atrasados, vão com data 2023, para que quando cheguem sejam com o ano da chegada». O Autor respondeu textualmente «melhor assim», conforme se constata no documento nº 13 junto com a petição inicial.
Por isso, o que o Tribunal a quo deu como demonstrado está em inteira consonância com o resultado probatório emergente do mencionado documento.
Termos em que improcede a impugnação relativamente a esta questão factual.
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2.2.2.3. Ponto 13 dos factos provados
Este ponto de facto tem o seguinte teor: «13. No dia 9 de Fevereiro de 2023, a ré informou ao autor que os caiaques estariam prontos até ao final de Março de 2023 e que já tinha marcado o transporte».
O Recorrente especifica que impugna o decidido quanto ao ponto 13 dos factos provados (conclusão xvii das suas alegações), mas não aduz um argumento ou indica um meio de prova que imponha decisão diversa da recorrida. Mais, não especifica a decisão que deve ser proferida sobre tal questão factual.
Portanto, não se mostra cumprido o ónus imposto no artigo 640º, nº 1, als. b) e c) do CPC, o que conduz necessariamente à rejeição da impugnação sobre esta matéria.
Em todo o caso, sempre se dirá que o facto resulta provado em face do teor do documento nº 15 junto com a p.i., o qual demonstra a informação prestada pela Ré ao Autor no dia 09.02.2023.
Assim, o ponto nº 13 dos factos provados mantém-se nos seus precisos termos.
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2.2.2.4. Ponto 14 dos factos provados
Está agora em causa o seguinte ponto de facto provado: «14. O autor respondeu dizendo estou a ficar mais entusiasmado».
Neste ponto de facto o Tribunal a quo fez constar a resposta que o Autor deu à comunicação da Ré mencionada no ponto nº 13 dos factos provados.
E essa resposta, como bem resulta do documento nº 15 junto com a petição inicial, foi exatamente assim: «Ok, estou a ficar mais entusiasmado», seguida de dois emojis com um sorriso (smileys).
Por isso, o que consta do ponto nº 14 corresponde à realidade, improcedendo a impugnação quanto a esta matéria.
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2.2.2.5. Ponto 17 dos factos provados
Este ponto de facto tem o seguinte teor: «17. No dia 3 de Abril de 2023, o autor solicitou à ré uma alteração da encomenda».
Apesar de o Recorrente especificar a sua «discórdia» (conclusão xvii das suas alegações) quanto a este ponto de facto, não indica o meio de prova que impunha decisão diversa da recorrida, nem menciona a decisão que deve ser proferida sobre tal questão factual.
Portanto, não se mostra cumprido o ónus estabelecido no artigo 640º, nº 1, als. b) e c) do CPC, a cargo do Recorrente, que tem como consequência legal a rejeição da impugnação sobre o aludido ponto de facto.
Não obstante, o facto corresponde à realidade. O documento nº 3 junto com a contestação demonstra que no dia 03.04.2023 o Autor ainda solicitou à Ré uma alteração da encomenda. Fê-lo através das seguintes mensagens: «O EE 4 estrelas da para trocar por m ou L pk vou ter muitos modelos iguais»; «Veja se tem algu. Pronto»; «O ousado tente trocar por um k1»; «E so 1 thunder kid o reste preciso de sacos e algum material»; «Só troque 1 thunder kid por materiais».
Pelo exposto, desatende-se a impugnação quanto ao ponto nº 17 dos factos provados.
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2.2.2.6. Ponto 22 dos factos provados
Sob o ponto 22, o Tribunal recorrido julgou provado que «o autor respondeu que a ré devia falar com o seu advogado e que não tinha dado autorização para que a encomenda fosse enviada». A aludida resposta reporta-se à questão factual constante do ponto 21, onde se deu como provado que «no dia 9 de Maio de 2023, a ré contactou o autor para saber se no ... a encomenda seria levada para a morada da entrega através de uma transportadora ou o autor procedia ao levantamento».
A questão ora em apreciação consiste em saber se o Autor produziu a referida resposta.
Consultadas as mensagens trocadas entre o Autor e a Ré, na pessoa do seu empregado CC (filho do legal representante da Ré), verifica-se que no dia 09.05.2023, depois de lhe ser perguntado o que consta do ponto nº 21, o Autor respondeu (v. doc. nº 18 junto com a réplica): «Tem de falar com o advogado, ele está a tratar da encomenda.» Aliás, na mensagem anterior o Autor já havia dito ao referido empregado: «Como já sabe a EMP01... foi contactada na semana passada pelo meu advogado aí em Portugal. Qualquer dúvida ou questão tem de o contactar a partir de agora».
Portanto, é inequívoco que o Autor respondeu que «a ré devia falar com o seu advogado». Esta parte corresponde à verdade, tal como surge evidenciada no documento nº 18 junto com a réplica.
Não corresponde à realidade que o Autor tenha ainda respondido, em 09.05.2023,que «não tinha dado autorização para que a encomenda fosse enviada».
Desde logo, no dia 09.05.2023, a encomenda ainda não tinha sido enviada, pois só o foi muito posteriormente, tendo chegado ao ... a 28.07.2023. Por isso, seria incongruente que no âmbito de uma diligência prévia ao envio, no sentido de a Ré saber se a encomenda seria levada para a morada da entrega através de uma transportadora ou se o Autor procederia ao levantamento, o Autor respondesse como se a encomenda já tivesse sido enviada, dizendo «que não tinha dado autorização para que a encomenda fosse enviada».
Por outro lado, como bem resulta do documento nº 17 junto com a réplica, só em 22.07.2023 é que o Autor produziu a afirmação «eu não dei autorização para nada…» e não foi em resposta à pergunta que consta do ponto nº 21.
Mais, não resulta das declarações do Autor ou do depoimento de CC que aquele tenha respondido à questão que lhe foi colocado em 09.05.2023 nos termos que constam da segunda parte do ponto de facto nº 22.
Assim sendo, na parcial procedência da impugnação, decide-se alterar a redação do ponto 22 dos factos provados, eliminando-se a sua segunda parte[5], o qual passa a ter o seguinte teor:
«22. O Autor respondeu que a Ré devia falar com o seu advogado.»
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2.2.2.7. Aditamento de factos – conclusão 30 do recurso da Ré
Pretende a Ré/Recorrente que aos factos provados sejam aditados os seguintes factos:
«-após a recepção da carta do mandatário do Autor, datada de 02 de maio de 2023, a Ré solicitou ao Autor que enviasse um email a dizer que não queria que a encomenda fosse enviada; -o Autor nunca enviou esse email à Ré; -a encomenda aqui em causa foi transportada por via marítima; -o transporte por via marítima é contratado com mais antecedência, a mercadoria é recolhida também com mais antecedência e a chegada ao destino é mais demorada; -a Ré contratou o transporte no mês de maio de 2023; -a Ré entregou a mercadoria à transportadora no mês de junho de 2023; -apenas a 22 de julho de 2023, o Autor mandou uma mensagem à Ré a dizer que era melhor falar com o advogado e que não deu autorização para nada, -no valor de 35.570,00€ pago pelo Autor à Ré estava incluído o custo do transporte marítimo da encomenda de Portugal para o ....»
Analisados os fundamentos alegados, concluímos pela improcedência da impugnação nesta parte.
Em primeiro lugar, a Recorrente alega que «estes factos instrumentais que resultaram da instrução da causa são complementares e concretizadores dos factos alegados pelas partes, e têm interesse para a boa decisão da causa, impondo-se a sua inclusão na matéria de facto provada.»
Os aludidos factos não podem ser simultaneamente instrumentais e complementares/concretizadores. Ou são uma coisa ou outra: ou são instrumentais, servindo para alicerçar a formulação duma presunção judicial, ou são complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa.
A Recorrente não individualiza quais os concretos factos essenciais – factos que integram a causa de pedir ou o fundamento de exceção – que os factos a aditar indiciam (factos instrumentais) ou que se destinam a complementar ou concretizar (factos complementares ou concretizadores). Por isso, é uma alegação imotivada, não demonstrando a necessidade do aditamento e a existência de um erro de julgamento.
Em segundo lugar, do elenco dos pontos cujo aditamento a Ré/Reconvinte preconiza não consta qualquer facto essencial, pois não integram a causa de pedir da reconvenção e o Reconvindo não opôs ao pedido reconvencional qualquer exceção. Também os aludidos factos não servem de base a qualquer exceção deduzida pela Ré na contestação.
Não alicerçando qualquer exceção nem sendo factos constitutivos, impeditivos, modificativos ou extintivos dos direitos alegados por Autor e Ré, resta concluir pela sua impertinência. Aliás, se fossem factos relevantes teriam sido alegados pela Ré, seja na contestação ou na reconvenção, mas não o foram.
Em terceiro lugar, a posição do Autor estava definida desde que o seu mandatário enviou à Ré a carta datada de 02 de maio de 2023, pelo que os únicos factos relevantes, posteriores àquela comunicação, são os enunciados nos pontos 22 a 26 da matéria assente. Quanto aos factos anteriores, a matéria de facto não padece de qualquer insuficiência.
Termos em que se julga improcedente a impugnação relativamente aos apontados factos.
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2.2.3. Reapreciação de direito
2.2.3.1. Do recurso do Autor
Tendo sido pedido na petição inicial que fosse declarada judicialmente a resolução do contrato celebrado pelas partes e a Ré condenada a restituir o valor de € 35.570,00 que o Autor lhe havia pago, bem como no pagamento de uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 5.000,00, o Tribunal a quo julgou a ação improcedente com fundamento na inexistência de incumprimento definitivo por parte da Ré.
O Recorrente não questiona a qualificação do contrato como de compra e venda (art. 874º do CCiv), enquadramento jurídico que damos por assente. O contrato celebrado referia-se à venda pela Ré ao Autor de caiaques e diverso equipamento destinado à atividade de canoagem.
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A primeira questão suscitada no recurso respeita ao afastamento que se fez na sentença da existência de uma relação de consumo.
A este propósito, o Recorrente produziu a conclusão xxxiv, na qual alega que «[é] evidente de que tal relação comercial, sempre teve como pano de fundo a compra e venda, mas não na modalidade que afasta o consumo.»
Essa conclusão não surge alicerçada em qualquer fundamento aduzido no corpo das alegações. Por isso, é uma proposição não sustentada.
Sendo perfeitamente pacífico que entre as partes foi celebrado um contrato de compra e venda, apenas importa determinar, enquanto condição de aplicabilidade do regime estabelecido no Decreto-Lei nº 84/2021, de 18 de outubro (entrou em vigor em 01.01.2022 – v. art. 55º), se é uma relação de consumo.
Nos termos do seu artigo 3º, nº 1, al. a) [6], o regime estabelecido no Decreto-Lei nº 84/2021 é aplicável «aos contratos de compra e venda celebrados entre consumidores e profissionais, incluindo os contratos celebrados para o fornecimento de bens a fabricar ou a produzir».
Segundo o artigo 2º, als. g), o) e p), “consumidor” é «uma pessoa singular que, no que respeita aos contratos abrangidos pelo presente decreto-lei, atue com fins que não se incluam no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional» (g), “profissional” é «uma pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, que atue, inclusivamente através de qualquer outra pessoa em seu nome ou por sua conta, para fins relacionados com a sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional, no que respeita aos contratos abrangidos pelo presente decreto-lei» (o) e “produtor” é «o fabricante de bens, conteúdos ou serviços digitais, o importador de bens na União Europeia ou qualquer outra pessoa que se apresente como produtor, através da indicação, nos bens, do seu nome, marca ou outro sinal distintivo».
Nenhuma dúvida havendo, em face da matéria de facto apurada nestes autos, sobre o facto de a Ré ter vendido os bens no âmbito da sua atividade profissional, o que importa saber é se o Autor, no âmbito daquele contrato, pode ser qualificado como “consumidor”.
Embora a qualificação como consumidor seja matéria de direito, tal noção assenta em factos, que carecem de ser demonstrados, ou seja, tem de existir um suporte factual que permita qualificar como consumidor aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos direitos. Como bem salienta Jorge Morais de Carvalho, «[o] ónus da alegação dos factos que consubstanciam a noção de consumidor, nos casos em que o consumidor pretende exercer os seus direitos enquanto tal, é seu, por se tratar de factos que o direito material consagra como constitutivos do direito que pretende fazer valer»[7]. Alerta aquele autor que «relativamente ao ónus da prova, este cabe ao consumidor relativamente aos elementos indicados, que sustentam a qualificação como consumidor, nomeadamente o “uso não profissional”»[8].
Por conseguinte, se o comprador pretender fazer valer um direito previsto no Decreto-Lei nº 84/2021, de 18 de outubro, cabe-lhe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, em conformidade com o disposto no artigo 342º, nº 1, do CCiv, sendo que o elemento estruturante é a qualidade de consumidor, sem o qual nenhum direito pode ser reconhecido. Esse é o pressuposto fundamental da aplicação do regime do Decreto-Lei nº 67/2003, de 08 de abril. Como refere Micael Martins Teixeira, «segundo o critério da distribuição dinâmica do ónus da prova,este deverá impender sobre o consumidor relativamente aos factos que implicam a verificação dos elementos subjetivo, objetivo e teológico da noção de consumidor e sobre o (suposto) profissional quanto aos factos que implicam a verificação do elemento relacional da mesma noção»[9].
No caso vertente, desde logo, na petição inicial o Autor não fundou os direitos que invoca numa relação de consumo.
Depois, em lado algum o Autor ou a Ré invocaram que se tratava de uma relação de consumo. Nem o Autor alegou a qualidade de consumidor nem ela resulta de qualquer dos elementos dos autos.
Mais, o Autor não mostrou sequer interesse em demonstrar factos suscetíveis de sustentar a qualificação como consumidor, designadamente o uso não profissional dos bens adquiridos.
Finalmente, resultou provado que o Autor, residente no ..., «pretendia ser o representante da ré e dedicar-se à comercialização de caiaques naquele país» (ponto 2 dos factos provados).
Por isso, não se está perante uma relação de consumo e não tem aplicação o regime resultante do Decreto-Lei nº 84/2021, de 18 de outubro.
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A questão essencial do recurso interposto pelo Autor respeita à alegação de que a Ré incumpriu definitivamente o contrato de compra e venda entre ambos celebrado.
Sustenta o Recorrente que estavam «reunidos os pressupostos da interpelação admonitória» e que, em todo o caso, «sempre se podia analisar de outro prisma e conceder que há incumprimento definitivo quando o devedor não demonstra intenção de cumprir», situação que considera verificada. Sustenta que, devido ao comportamento da Ré, perdeu o interesse na prestação desta, pelo que se deve considerar definitivamente incumprido o contrato.
Analisada a situação, verifica-se que o Tribunal a quo retirou a conclusão jurídica que se impunha em face dos factos provados. Nenhum erro sobre a previsão normativa (na qualificação[10] ou na subsunção) ou na estatuição[11] se deteta.
Na base do dissídio está a circunstância de as partes terem começado por acordar que os caiaques seriam entregues até ao final do mês de outubro de 2022 e de essa entrega ter sido sucessivamente protelada. Sabe-se que a Ré não cumpriu o primeiro prazo estabelecido «porque teve problemas relacionados com o fornecimento de algumas matérias que eram necessárias para a sua construção» (ponto 10). Resulta dos factos provados que o Autor consentiu no adiamento da entrega dos bens e que fez alterações à encomenda, acabando por acordar numa alteração do prazo para a entrega dos caiaques que passava a ser até ao final do mês de março de 2023. O próprio Recorrente reconhece na conclusão xxxix que ao «longo de meses, o recorrente aceitou e estabeleceu vários prazos de entrega, todos eles falhados pela Ré.»
Apesar de em 27.02.2023, quando a Ré ainda não se encontrava em mora (por anteriormente ter sido acordada a entrega até ao final de março de 2023), o Autor ter informado a Ré de que pretendia cancelar a encomenda, as posteriores comunicações evidenciam que o contrato se mantinha nos termos acordados e que o credor da entrega continuava a ter interesse na prestação da devedora, uma vez que posteriormente, em 03.04.2023, solicitou à Ré uma alteração da encomenda (p. 17), confirmou com esta, em 17.04.2023, que os caiaques seriam enviados para o ... (p. 18) e quando, em 23.04.2023, recebeu um vídeo relativo a um caiaque que tinha uma pintura personalizada respondeu que estava melhor do que pensava (p. 19).
É de notar que o Autor não defendeu na petição inicial, assim como não defende no recurso, que a comunicação de 27.02.2023 operou a extinção do contrato, seja através de revogação unilateral ou de resolução. Apenas sustentou (art. 33º da p.i.) que «solicitou o reembolso imediato dos valores pagos pela encomenda efetuada». Portanto, inequivocamente, o contrato subsistiu e não se extinguiu.
Era esta a situação quando em 02.05.2023 o Autor, através do seu mandatário, enviou à Ré uma carta registada a reclamar a devolução da quantia de € 35.570,00 que lhe tinha sido entregue.
Será que se pode considerar o contrato incumprido definitivamente?
Nos termos do artigo 804º, nº 2, do CCiv, o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efetuada no tempo devido.
Por sua vez, o artigo 808º, nº 1, do CCiv dispõe: «Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a prestação.» Nos termos do nº 2 desse preceito, a perda do interesse na prestação é apreciada objetivamente.
Nenhum facto permite afirmar que a prestação, não efetuada no tempo devido, já não era possível ou que, continuando materialmente possível, o credor não tinha interesse nela. Que a prestação era materialmente possível demonstra-o o facto de a Ré ter procedido posteriormente ao envio ao Autor dos produtos encomendados, cuja entrega este recusou. Também nenhum facto provado demonstra a perda do interesse do credor na prestação da Ré.
Mais, ao contrário do que sustenta o Recorrente na conclusão xl das suas alegações, não se pode considerar que há incumprimento definitivo por a devedora não demonstrar intenção de cumprir. Essa asserção é infirmada pelo facto de a Ré ter enviado os bens encomendados ao Autor. Se não tivesse intenção de cumprir, não lhos tinha enviado.
Portanto, não estamos perante uma situação de não realização definitiva da prestação – incumprimento definitivo do devedor.
Não estando provada a perda do interesse (que levaria a considerar que a obrigação da Ré se tinha definitivamente por não cumprida com aplicação do regime respetivo), a lei dá ao credor a faculdade de lhe fixar um prazo razoável para sair dela mediante a realização da prestação a que está obrigado. Se o devedor não cumprir no prazo fixado, a mora considera-se convertida em não cumprimento definitivo, com os inerentes direitos do credor. Nesse caso, seria lícita a resolução do contrato, na medida em que existiria fundamento legal para o efeito (art. 801º, nº 2, do CCiv) perante o incumprimento definitivo do contrato.
No caso vertente, o Autor não alegou, e muito menos demonstrou, a realização dessa interpelação admonitória.
Por isso, inexiste fundamento para a resolução do contrato e a restituição do que prestou, bem como para ser indemnizado por danos não patrimoniais, os quais, em todo o caso, também não resultam dos factos apurados nos autos.
Pelo exposto, improcede a apelação do Autor.
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2.2.3.2. Do recurso da Ré/Reconvinte
A Ré deduziu reconvenção pedindo que o Autor seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 13.989,00, correspondente ao valor que despendeu com o transporte da mercadoria para Portugal e com a taxa de armazenagem (arts. 91º e 92º da reconvenção). Alegou ter enviado os caiaques para o ..., como havia sido acordado, e que o Autor recusou receber a encomenda, pelo que teve que diligenciar pela sua devolução.
Na sentença julgou-se improcedente o pedido reconvencional.
A Recorrente insurge-se contra a sentença, alegando que «a conduta do Recorrido (pontos 17 a 19 dos factos provados) não fazia prever que este iria recusar a encomenda no ..., sendo que, face à inesperada e estranha carta de 02 de maio de 2023, a Recorrente teve um comportamento cauteloso e diligente solicitando que o Recorrido lhe comunicasse por escrito que não pretendia a encomenda» (c. 36). Mais alega que o «Recorrido ao nada dizer, criou a séria convicção na Recorrente de que tudo estava bem e que a encomenda poderia seguir, o que sucedeu, tendo a Ré entregue a mercadoria à transportadora no mês de junho de 2023» (c. 37).
No seu entender, o dano cujo ressarcimento requereu no seu pedido reconvencional resulta de o Recorrido, de forma consciente e injustificada, se ter recusado a receber a encomenda, pelo que a sua conduta «enquadra-se no disposto nos artigos 813º e seguintes do Código Civil.»
No fundo, sustenta que existe mora do credor e que a prestação só não foi realizada por este a ter recusado, não realizando a colaboração necessária para o cumprimento da prestação, o que fez sem motivo justificado.
Dispõe o artigo 813º do CCiv que o credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os atos necessários ao cumprimento da obrigação.
Na norma estão previstas duas situações de mora creditória:
a) Quando o credor não aceita o cumprimento ou o oferecimento pontual sem que tenha motivo justificativo para a recusa;
b) Quando o credor não realiza, sem justificação atendível, os atos necessários para que o devedor realize a prestação.
Como salienta Inocêncio Galvão Telles[12], «o credor não tem a obrigação propriamente dita de aceitar a prestação ou, duma maneira geral, de praticar os actos necessários ao cumprimento. Não é devedor desses actos. Se o fosse, a sua mora seria simultaneamente mora creditoris e mora debitoris. O credor, deixando de receber a prestação ou de fazer o mais necessário de seu lado, não viola uma obrigação, desrespeita um ónus. E por isso se sujeita aos efeitos desfavoráveis que a lei associa à sua mora, como inobservância desse ónus.»
Nos termos do artigo 816º do CCiv, o credor em mora indemnizará o devedor das maiores despesas que este seja obrigado a fazer com o oferecimento infrutífero da prestação e a guarda e conservação do respetivo objeto.
Por conseguinte, a mora do credor deixa de pé o vínculo obrigacional, mas obriga-o a indemnizar o devedor das maiores despesas que tenha de fazer.
É de notar que o credor não está obrigado a indemnizar todos os danos que tenham sido causados, pois a obrigação de indemnização circunscreve-se, na expressa previsão da lei, às «maiores despesas que este [devedor] seja obrigado a fazer com o oferecimento infrutífero da prestação e a guarda e conservação do respetivo objeto».
No caso em apreciação, a Ré despendeu a quantia de € 13.989,00 (p. 26) com o retorno da mercadoria para Portugal.
Porém, essa é uma despesa que temos por injustificada.
Com efeito, a posição do Autor foi transmitida pelo seu mandatário à Ré, mediante carta de 02.05.2023. Nessa carta, imputa à Ré «um incumprimento contratual definitivo» pelas razões que aí expõe, e exige-lhe a «devolução do valor de 35.570,00€ (…) no prazo máximo de 15 dias a partir da recepção desta missiva». Em conformidade com o disposto no artigo 236º, nº 1, do CCiv, um declaratário normal, colocado na posição da Ré, interpretaria a declaração do Autor, ainda para mais produzida por um advogado, como não pretendendo a entrega dos bens, mas sim a devolução do que lhe pagou.
É a todos os títulos destituída de sentido a qualificação que a Recorrente faz da aludida carta do Mandatário do Autor como sendo «inesperada e estranha», num quadro em que a execução da prestação por parte da Ré se atrasou longos meses e nunca conseguiu cumprir um prazo de entrega acordado. A Ré, de forma que consideramos totalmente injustificada, não levou essa carta a sério e contactou o Autor «para saber se no ... a encomenda seria levada para a morada da entrega através de uma transportadora ou o autor procedia ao levantamento» (p. 21). O Autor limitou-se a encaminhar a Ré para o seu advogado (p. 21: «O Autor respondeu que a Ré devia falar com o seu advogado»). Mais uma vez, a Ré não fez caso, sustentando queo «Recorrido ao nada dizer, criou a séria convicção na Recorrente de que tudo estava bem e que a encomenda poderia seguir, o que sucedeu, tendo a Ré entregue a mercadoria à transportadora no mês de junho de 2023», tendo a mercadoria chegado efetivamente ao ... em 28.07.2023.
Por conseguinte, estando a posição do Autor perfeitamente definida na carta formal do seu Advogado, a atuação da Ré de desatender a respetiva declaração e de enviar os produtos para o ... foi insensata e irrazoável. Traduziu-se na realização de um ato carecido de utilidade, pois já sabia que o Autor não pretendia a entrega dos bens encomendados, mas sim a devolução do que havia pago.
Por isso, o Autor não está obrigado a indemnizar a Ré por uma despesa desnecessária. Como bem se refere na sentença, a Ré não podia «enviar a encomenda para o ... como se nada se tivesse passado e esperar que o autor a recebesse. A quantia que a ré despendeu com o retorno da encomenda para Portugal não foi uma consequência de o autor se ter recusado a recebê-la, mas de ter procedido ao envio pese embora soubesse antecipadamente que tal iria acontecer.»
Pelo exposto, improcede a apelação da Ré/Reconvinte.
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III – Decisão
Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente ambos os recursos, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a suportar pelo respetivo recorrente.
Joaquim Boavida
Maria Luísa Duarte Ramos
Ana Cristina Duarte
[1] Miguel Teixeira de Sousa, CPC Online, in Blog do IPPC, em anotação ao artigo 154º do CPC. [2]Código de Processo Civil Anotado, vol. V, (Reimp.), Coimbra Editora, pág. 140. [3]Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Coimbra Editora, págs. 670-672. [4] Ou seja, uma fundamentação disparatada ou absurda, sem qualquer relação com o que se discute, ou ininteligível, no sentido de que a generalidade das pessoas não a consegue compreender. [5] Trata-se de matéria não alegada, pelo que não deve ser levada aos factos não provados. [6] Pertencem ao Decreto-Lei nº 84/2021, de 18 de outubro, as disposições que se citarem de ora em diante sem indicação da respetiva proveniência. [7]Manual de Direito do Consumo, 5ª edição, Almedina, pág. 35. [8]Ob. cit., pág. 36. [9]A Prova no Direito do Consumo: Uma Abordagem Tópica, in I Congresso de Direito do Consumo, Almedina,2016, pág. 149. [10] Não escolheu as normas erradas para enquadrar o caso concreto. [11] Erro respeitante à aplicação ao caso concreto da consequência jurídica definida pela norma – Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, pág. 435. [12]Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra Editora, pág. 281.