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IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
FACTOS NOVOS
EMPREITADA
INCUMPRIMENTO
DEVERES ACESSÓRIOS
Sumário
I – Do princípio da boa fé no cumprimento das obrigações decorre, para o devedor, variados deveres acessórios e secundários, impondo-se-lhe, que omita todos os actos que possam pôr em causa um comportamento pontual e que empreenda todos os comportamentos que se mostrem necessários para que aquele tenha lugar. II - Por conseguinte, o não cumprimento ou cumprimento defeituoso dos contratos pode resultar não só do não cumprimento de deveres principais ou essenciais, mas também de deveres acessórios e secundários. III - O contrato de empreitada pressupõe, com particular acuidade, a existência de uma relação de confiança, por força da qual podem emergir deveres de esclarecimento, de conselho, de cuidado, de segurança, etc. IV – Tais deveres advêm do facto de o empreiteiro, sendo um técnico na matéria, conhecer as consequências e a melhor forma de obter o resultado pretendido.
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. Relatório
Condomínio do prédio sito no Bairro ..., ...
intentou a presente acção declarativa com processo comum contra EMP01... Unipessoal, Lda,
pedindo:
a) que seja reconhecida a existência dos defeitos da execução da empreitada do edifício identificado no artigo 1º, da petição inicial, defeituosamente levada a cabo pela ré;
b) que a ré seja condenada a proceder às reparações necessárias para eliminação dos defeitos, suportando a ré todos os custos inerentes à respectiva reparação ou, e caso se venha a recusar, a serem realizadas e executadas por terceiro a expensas da ré, nos montantes a apurar em sede de prova pericial ou a liquidar posteriormente.
Alegou, para tanto e em síntese, ter acordado com a ré a realização de obras no seu prédio (que identifica no artigo 1º, da petição inicial), pelo preço de € 9.580,00, acrescido de IVA; que, após a conclusão dos trabalhos, foi comunicado à ré que a obra apresentava os seguintes defeitos: telas deslocadas/despendidas no murete, caleira danificada, peças de remate do murete soltas, peças metálicas oxidadas e rufos mal vedados e infiltrações de água nos últimos andares (3º direito e esquerdo); que o legal representante da ré confirmou a existência de tais deficiências e comprometeu a corrigir os defeitos verificados; e que apenas corrigiu as deficiências apresentadas na cobertura da fracção do 3º esquerdo.
Devidamente citada para o efeito, a ré contestou, por impugnação e por excepção, invocando a caducidade dos direitos do autor, acrescentando ainda que o trabalho encomendado pelo autor, que se resumiu tão só ao identificado no artigo 1º, da petição inicial, foi executado sem qualquer defeito ou vício; que as obras do prédio ao lado danificaram a zona da cobertura onde a ré executou a obra bem como outras zonas onde a ré não executou trabalho algum e que na zona em que a obra foi executada ocorreu a formação de fenómenos de condensação e consequente infiltração de água.
Notificada, a autora respondeu à excepção de caducidade invocada, pugnando pela improcedência da mesma.
Foi dispensada a realização da audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador, no âmbito do qual foi julgada improcedente a excepção de caducidade, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.
Produzida a prova pericial foi realizada a audiência final, na sequência da qual foi prolatada sentença que, julgando a acção procedente, condenou a ré a proceder à reparação imediata, a suas expensas, da obra que levou a cabo no edifício do autor eliminando os seus defeitos.
Inconformada, veio a ré recorrer da sentença, tendo concluído as suas alegações nos seguintes termos:
“A.
DO RELATÓRIO PERICIAL CONCLUI-SE QUE:
1. - Não se apercebeu de caleira danificada, admitindo que possa estar pontualmente furada (danificada).
2. - Lamentavelmente a não substituição de rufos e caleiras que, embora não previstos em orçamento, salvo melhor opinião, se justificariam como garantia do bom desempenho do todo.
3. - Erros de execução nos remates e, provavelmente associados à não substituição dos rufos e caleiros, estes não previstos em orçamento.
4. - Uma garantida e eficaz solução implica:
a)- Levantamento das placas de painel para posterior recolocação.
b)- Colocação de caleiras e rufos novos.
Assim sendo,
5. - Não pode a Ré/Recorrente ser responsabilizada por danos decorrentes de faltas que são apenas da responsabilidade do próprio Autor.
B.
1. - Decorrendo do Orçamento que foi contratado entre o Autor e a Ré, apenas a colocação de uma membrana na zona da cobertura do imóvel, que não a colocação de rufes periféricos e caleiros,
2. - Dado por provado que entre o Autor e a Ré apenas foi contratada a colocação de uma membrana nos rufes periféricos e caleiros,
3. - Dizendo-se no Relatório Pericial:
- “Da visita efectuada à cobertura, não me apercebendo de caleira danificada, mas que admite-se que possa estar pontualmente furada (danificada), de um modo geral as restantes deficiências são notórias.
- “lamentavelmente a não substituição de rufos e caleiras que, embora não previstos em orçamento, salvo melhor opinião, se justificariam como garantia do bom desempenho do todo.”
4. - Impõe se conclua que não podia o Tribunal Recorrido dar por provado que a causa das infiltrações ocorridas dentro do imóvel, é da deficiente realização das obras pela Recorrente.
C. Do depoimento da testemunha AA, acima transcrito a fls. 12,
Resulta que:
1. - A causa das infiltrações, foi a falta de rufos,
2. - Cujo fornecimento e colocação não foi contratada entre as partes.
D.
Do depoimento da testemunha BB, Administrador do imóvel à data das obras, acima transcrito a fls. 12, 13 e 14,
Resulta que:
1. - A causa das infiltrações, foi terem mantido os mesmos rufos, não pondo novos,
2. - Cujo fornecimento e colocação não foi contratada entre as partes.
E.
Do depoimento da testemunha CC, Engenheira, acima transcrito a fls. 14 e 15,
Resulta que havia necessidade da substituição das caleiras porque estas apresentavam problemas construtivos.
F
Do depoimento da testemunha DD, empreiteiro, acima transcrito a fls. 15, 16 e 17,
Resulta que:
1.- Não fizeram as caleiras.
2.- Deviam ter sido feitas caleiras novas, paredes, platibandas, capacetes, chaminés.
Fazer o telhado integral, completo.
3.- Se tivesse sido feito isto tudo, na altura, em percentagem, as obras teriam custado mais uns 20 ou 30%.
G.
TENDO EM CONTA:
1.- Os trabalhos e serviços, concretamente contratados entre o Autor e a Ré,
2.- O teor do Relatório Pericial.
3.- Os depoimentos das testemunhas – todas arroladas pelo próprio Réu – acima transcritos,
4.- Mormente do seu então Administrador do Condomínio, Sr. BB (11:07 – 11:15), que disse – fls. 13 e 14:
Mantiveram os mesmos rufos.
Quando tiraram o fibrocimento meteram painel e mantiveram os mesmos rufos e não puseram os novos.
E podia haver ali o problema.
DEVE SER ALTERADA A REDAÇÃO DO PONTO 7, dos factos provados, o qual deve passar a ter a seguinte:
- “As obras realizadas pela R. na referida cobertura apresentavam vários defeitos, nomeadamente má execução dos remates, essencialmente ao nível das telas e membranas”.
H.
TENDO EM CONTA TAL PROVA PRODUZIDA,
DEVEM ser aditados à matéria de facto dada por provada, os seguintes factos:
Facto 12:- “No contrato celebrado entre o Autor e a Ré, não foi contratada o fornecimento e a colocação de novos caleiros e de novos rufos.”
Facto 13:- “ O custo do fornecimento e de colocação de novos caleiros e de novos rufos, importariam, para o Autor, um custo superior, da ordem de 20% ou 30% a mais, do que o orçamentado e acordados pelas partes”.
Facto 14. “Os factos dados por provados em 7, associados ao facto 12, provocaram infiltrações nos andares inferiores (quer no 3º andar direito, principalmente neste, quer no 3º andar esquerdo).
I.
TENDO EM CONTA TAL PROVA PRODUZIDA,
DEVE SER RETIRADA DA MATÉRIA DE FACTO DADA POR NÃO PROVADA,
aquela que refere:- “O trabalho encomendado pelo A. à Ré foi executado sem qualquer defeito ou vício”,
J.
1.- Ao contrário do entendimento da douta sentença recorrida, a Ré não incumpriu as obrigações assumidas perante o Autor, nem feriu direitos/interesses deste - arts. 398º, nº 1, 406º, nº 1, 762º, 798º e 799º, nº 1, todos do C. Civil.
2.- A Recorrente incumpriu uma pequena parte da prestação a que estava vinculada, não cumpriu, culposamente, a sua obrigação, já que tal incumprimento não foi causa, por si só, das infiltrações.
3.- A condenação ora declarada implica que o valor a gastar pela Ré na aquisição do material necessário ao cumprimento da sentença recorrida, acrescido do valor da mão-de- obra, vai ser necessariamente bem superior ao valor da empreitada em causa,
5.- Valor de condenação pelo qual a Ré, atenta a prova – documental e testemunhal – existente nos autos - não pode ser responsabilizada, por excessivamente onerosa e desproporcional - art. 566º, nº 1, do C. Civil.
6.- Os efeitos económicos e financeiros, decorrentes da sentença recorrida, atentam contra os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, sancionando um verdadeiro abuso de direito, que aqui expressamente se invoca,
7.- Reclamando-se, na actuação do julgador no momento da decisão, a conjugação/interferência dos factores de ponderação de bom senso e equilíbrio na busca da justa medida, que permita estabelecer a melhor composição dos interesses conflituantes.
8.- No contexto dos autos tem de imperar o princípio do abuso de direito, consagrado no artº 334º do C. Civil, consubstanciado, “in casu”, na desproporcionalidade entre a vantagem auferida pela Autora e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem.
9.- Ao contrário do entendimento da douta sentença recorrida, a Ré não incumpriu as obrigações assumidas perante o Autor, nem feriu direitos/interesses deste - arts. 398º, nº 1, 406º, nº 1, 762º, 798º e 799º, nº 1, todos do C. Civil.
10.- A Recorrente incumpriu uma pequena parte da prestação a que estava vinculada, não cumpriu, culposamente, a sua obrigação, já que tal incumprimento não foi causa, por si só, das infiltrações em causa.
L.
1.- Ao não ter em conta a prova documental, pericial e testemunhal existente nos autos, a sentença recorrida cometeu erro de julgamento, decidiu contra lei expressa, contra os factos apurados,
2.- Não correspondendo o decidido à realidade ontológica e normativa, ocorrendo erro quanto à apreciação das provas e, consequentemente, na fixação dos factos materiais da causa,
3.- Ocorrendo, com todo o respeito, violação do disposto nos artºsº 334º, 398º, nº 1, 406º, nº 1, art. 566º, nº 1, 762º, 798º e 799º, nº 1, todos do C. Civil, assim como nos artºs 607º, nºs 3, 4 e 5, e artº 615º do CPC.”
O recorrido apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da sentença proferida.
Colhidos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
*
*
II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º, nº 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).
*
As questões a decidir, tendo em conta o acima exposto e o teor das conclusões formuladas pela recorrente, são as seguintes:
a) do erro no julgamento da matéria de facto; e
b) consequentemente, do erro na aplicação do direito, designadamente, por:
- não ter ficado demonstrado qualquer incumprimento (pelo menos relevante) pela ré das obrigações assumidas perante o autor;
- o valor da reparação em que a ré foi condenada ser excessivamente oneroso; e
- os efeitos económicos e financeiros, decorrentes da sentença recorrida, atentam contra os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, sancionando um verdadeiro abuso de direito.
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*
III. Fundamentação
3.1.Fundamentação de facto
O Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
«1. O A. solicitou à R. um orçamento para a realização de obras a realizar no Prédio sito no Bairro ..., ..., ..., nomeadamente:
(…) “Fornecimento de mão-de-obra para deslocação de chapa de fibrocimento, incluindo, comunicação ao ACT, seu vazadouro; Fornecimento e colocação de chapas de painel de cobertura de 50mm de espessura, tapa juntas; Fornecimento e colocação de ..., de remates para claraboia, e de 4 girandolas em inox para cobertura; Fornecimento e colocação de membrana, para colocar em rufes periféricos e caleiros existente; Fornecimento e colocação parafusos de cobertura, consumíveis e remates, silicones, etc. Fornecimento de grua para elevação de materiais para a cobertura; (…) Valor estimado para esta obra: 9.580,00€. A este valor tem de acrescentar a taxa legal em vigor 23%”
(…)
2. O orçamento apresentado pela R. foi aceite pelo A. mediante deliberação aprovada em assembleia de condomínio realizada em 24 de outubro de 2016.
3. O A. aceitou os valores propostos pela R. para a realização de todas as obras mencionadas supra pelo que a Ré deu início no mês de maio de 2017 aos trabalhos contratualizados.
4. Os trabalhos foram iniciados em maio de 2017 e terminaram em junho de 2017, tendo sido emitidas as faturas n.º ...17 e ...17.
5. O A. procedeu ao pagamento dos valores que constam das referidas faturas.
6. As obras realizadas pela R. e supra referidas foram tratadas entre a administração do A. e o Sr. EE, representante legal da R., que acompanhou as obras e a quem foram, uma vez concluídas, comunicadas as suas deficiências/defeitos de execução.
7. As obras realizadas pela R. na referida cobertura apresentavam vários defeitos notórios, nomeadamente má execução dos remates, essencialmente ao nível das telas e membranas, o que provocou infiltrações nos andares inferiores (quer no 3º andar direito, principalmente neste, quer no 3º andar esquerdo).
8. A reparação desses defeitos terá um custo total (por referência a 11.01.2022, data da perícia) avaliado entre os € 8.000,00 e os € 10.000,00.
9. A 12 de dezembro de 2017, em Assembleia de Condóminos do A., foram apresentadas reclamações das obras realizadas, nomeadamente que continuava a cair água na claraboia.
10. A R. procedeu à reparação de alguns dos defeitos das obras (nomeadamente, as deficiências apresentadas na cobertura da fração do 3º andar esquerdo) mas não de outros.
11. O A. enviou à R. carta registada com aviso de receção, a 13 de setembro de 2018, a comunicar as irregularidades na execução da obra do telhado no Condomínio ..., e a conceder prazo até 31 de Outubro de 2018 para regularizar as deficiências.”
E considerou não provados os seguintes:
“. O trabalho encomendado pelo A. e pela R. foi executado sem qualquer defeito ou vício.
. As obras do prédio ao lado danificaram a zona da cobertura onde a R. executou a obra bem como outras zonas onde a R. não executou trabalho algum.
. Tenham existido na zona em que a obra foi executada formação de fenómenos de condensação e consequente infiltração de água.”.
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3.2. Fundamentação de direito
3.2.1. Do erro de julgamento na decisão de facto
Conforme decorre do acima exposto, a recorrente começa as suas alegações de recurso por invocar que o tribunal recorrido, deveria ter incluído na sua decisão de facto que: [1] no contrato celebrado entre o autor e a ré, não foi contratada o fornecimento e a colocação de novos caleiros e de novos rufos; [2] o custo do fornecimento e de colocação de novos caleiros e de novos rufos, importariam, para o autor, um custo superior, da ordem de 20% ou 30% a mais, do que o orçamentado e acordados pelas partes; e [3] a má execução dos remates, aliada ao facto de não ter sido contratada a colocação de novos caleiros e novos rufos, provocou infiltrações nos andares inferiores (quer no 3º andar direito, principalmente neste, quer no 3º andar esquerdo.
E nessa conformidade, pugna ainda pela alteração conferida ao ponto 7 do elenco dos factos provados [devendo nele passar a constar: “As obras realizadas pela R. na referida cobertura apresentavam vários defeitos notórios, nomeadamente má execução dos remates, essencialmente ao nível das telas e membranas, o que provocou infiltrações nos andares inferiores (quer no 3º andar direito, principalmente neste, quer no 3º andar esquerdo)”] e pela eliminação da matéria de facto dada por não provada aquela que refere: “O trabalho encomendado pelo A. à Ré foi executado sem qualquer defeito ou vício”.
Vejamos.
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto está expressamente consagrada e regulada no código de processo civil actualmente vigente, nomeadamente nos seus art.ºs 640º e 662º.
O art.º 662º, nº 1, do NCPC, preceitua que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Por sua vez, o art.º 640º, nº 1, do mesmo compêndio legal, dispõe que o recorrente que pretenda impugnar a matéria de facto deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes, conforme preceitua a al. a), do nº 2, do mesmo artigo.
As normas destes art.ºs 640º e 662º concretizam o papel que o legislador pretendeu atribuir aos tribunais de segunda instância no âmbito da reapreciação da matéria de facto, assumindo-a como uma função normal da Relação, por contraste com a excepcionalidade que, no passado, a caracterizava, mas rejeitando soluções maximalistas que a transformassem numa repetição do julgamento, rejeitando igualmente a possibilidade de interposição de recursos genéricos e de manifestações inconsequentes de inconformismo sobre a matéria facto.
Assim se compreendem os ónus impostos ao recorrente que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, previstos no nº 1, do art.º 640º, do NCPC, cujas exigências devem ser interpretadas à luz do aludido papel.
Acresce dizer, com interesse para o caso que nos ocupa, que conforme se referiu no ac. do STJ de 19.10.2021 (processo nº 4750/18.7T8BRG.G1.S1, in www.dgsi.pt), “[a]inda que não constitua uma impugnação de matéria de facto, no sentido típico, pode o recorrente entender que a matéria de facto provada e não provada não está completa, para a boa decisão da causa, invocando essa desconformidade em recurso. Com essa pretensão o recorrente quer ver incluídos factos alegados e sobre os quais versou o julgamento na matéria de facto, a partir de alegações e meios de prova, o que significa que o tribunal de recurso carece de ter elementos concretos sobre a indicada pretensão – quais os factos a aditar e porquê; quais os meios de prova que sustentam o aditamento.”.
Assim, quando o recorrente pretende a ampliação da matéria de facto, importa também que o mesmo se reporte aos factos constantes dos articulados que pretende aditar à matéria de facto dada como provada, o porquê desse aditamento e quais os meios de prova que, no seu entender, permitem tal aditamento.
Isto porque, o nosso ordenamento processual só admite a atendibilidade, na decisão da causa, de matéria não alegada pelas partes quando não consubstancie factualidade essencial (que identifique ou individualize a causa de pedir e/ou a excepção alegadas).
Com efeito, porque reservada às partes a alegação dos factos essenciais identificadores ou individualizadores da causa de pedir e/ou excepções alegadas (factos essenciais nucleares), não pode o juiz considerar, na decisão, factos essenciais diversos dos alegados pelas partes, podendo somente ser atendidos e integrados na fundamentação de facto da decisão da causa (além dos notórios e daqueles que o tribunal conheça por virtude do exercício das suas funções – al. c) do nº 2 do art.º 5º do NCPC), os factos que, não desempenhando tal função individualizadora ou identificadora da causa de pedir e/ou excepções alegadas, se revelem imprescindíveis à procedência da acção ou da excepção, por também constitutivos do direito invocado ou excepção arguida (factos essenciais complementares), assim como os factos instrumentais (aqueles que permitem a afirmação, por indução, de factos de cuja prova depende o reconhecimento do direito ou da excepção).
Ademais, a consideração dos novos (novos no sentido de não alegados nos articulados) factos complementares ou concretizadores exige, face ao disposto na parte final do art.º 5º, nº 2, al. b) do NCPC, que o tribunal se pronuncie expressamente sobre a possibilidade de ampliar a matéria de facto com o facto em causa, disso dando conhecimento às partes antes do encerramento da discussão.
E, se assim é, por maioria de razão não pode o tribunal de recurso reapreciar a prova produzida com vista a aquilatar a demonstração de factos essenciais que apenas venham a ser alegados no recurso e não no momento processual adequado.Cfr. neste sentido o ac. STJ de 15.09.2021, nº de processo 559/18.6T8VIS.C1.S1 in www.dgsi.pt.
Ou seja, os factos novos ou questões novas antes não suscitadas nem apreciadas pelo tribunal a quo nos termos do art.º 608º, nº 2 do NCPC, não podem pelo tribunal de recurso ser consideradas [vide, entre outros, ac. da RC de 14.01.14, processo nº 154/12.3TBMGR.C1; ac. da RP de 16.10.2017, processo nº 379/16.2T8PVZ.P1; ac. da RG de 08.11.2018, processo nº 212/16.5T8PTL.G1; ac. da RP de 10.02.2020, processo nº 22441/16.1T8PRT-A.P1, todos acessíveis in www.dgsi.pt].
Não obstante tudo o que deixamos dito, o tribunal de recurso não só pode, como deve sanar oficiosamente e quando para tal tenha todos os elementos, os vícios de deficiência, obscuridade ou contradição da factualidade enunciada, tal como decorre do disposto no art.º 662º, nº 2, al. c) do NCPC.
Com efeito, na reapreciação da matéria de facto – vide nº 1 do art.º 662º do NCPC - a modificação da decisão de facto é um dever para a Relação, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente impuser diversa decisão, levando, para tanto, em consideração, sem dependência da iniciativa da parte, os factos admitidos por acordo, os provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito por força do disposto no art.º 607º, nº 4 do NCPC (norma que define as regras de elaboração da sentença) ex vi art.º 663º do NCPC (norma que define as regras de elaboração do acórdão e que para o disposto nos art.ºs 607º a 612º do NCPC remete, na parte aplicável).
Tendo presentes estes considerandos e revertendo ao caso concreto, e no que concerne à factualidade que a recorrente pretende introduzir relativa ao custo do fornecimento e colocação de novos rufos e caleiros, verifica-se que a mesma não foi aportada oportunamente aos autos.
Com efeito, e conforme decorre do exposto no relatório deste acórdão, a ora recorrente, na sua contestação, limitou-se a referir que os trabalhos que lhe foram encomendados, que se limitavam aos orçamentados, não apresentavam defeitos e a apontar outras causas para o surgimento das deficiências verificadas no prédio do autor.
Por conseguinte, a consideração dos aludidos factos agora, importaria violação do princípio do dispositivo, previsto no art.º 5º, nº 1, do NCPC, o que não pode ser atendido.
Note-se que a ré pretende ver introduzida tal factualidade, concluindo daí ocorrer excessiva onerosidade da reconstituição natural.
Estamos, pois, perante matéria de excepção, pelo que competia ao sujeito da obrigação de reparação a alegação e prova respectiva (cfr. art.º 342º, nº 2, do CC) – cfr. ac. desta Relação de Guimarães de 1.07.2021, processo nº 1135/20.9T8VCT.G1 e acessível in www.dgsi.pt.
Não tendo a ré/recorrente alegado oportunamente os factos susceptíveis de integrar a excepção ora invocada, é manifesta a improcedência da pretensão recursória neste segmento.
Por outro lado, e ainda que por motivos diversos, afigura-se-nos já ser de acolher a pretensão da recorrente quanto à eliminação da matéria de facto não provada o seguinte “O trabalho encomendado pelo A. à Ré foi executado sem qualquer defeito ou vício”.
Com efeito, julgamos ser de toda a evidência que se trata de factualidade meramente conclusiva.
Como é sabido, em sede de fundamentação de facto (traduzida na exposição descritivo-narrativa tanto da factualidade assente, quer por efeito legal da admissão por acordo, quer da eficácia probatória plena de confissão ou de documentos, como dos factos provados durante a instrução), a enunciação da matéria de facto deve ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas ou de excessos de adjectivação.
É certo que vem sendo entendido que tal enunciação pode conter referência quer a situações jurídicas consolidadas, desde que não hajam sido postas em causa, isto é, desde que sejam usadas sem representar uma aplicação do direito à hipótese controvertida (quando se trate de elementos adquiridos sobre os quais não vai incidir um esforço de apreciação normativa); quer a termos jurídicos portadores de alcance semântico socialmente consensual (portadores de uma significação na linguagem corrente) desde que não sejam objeto de disputa entre as partes e não requeiram um esforço de interpretação jurídica, devendo ser tomados na sua acepção corrente ou mesmo jurídica, se for coincidente, ou estiver já consolidada como tal na linguagem comum.
Todavia, no caso em apreço, em que a execução defeituosa da obra assume um papel estratégico no quadro do litígio, o contexto retratado sob o referido item do elenco dos factos não provados – “O trabalho encomendado pelo A. à Ré foi executado sem qualquer defeito ou vício” - não assume natureza meramente referencial de situações consolidadas e sem papel estratégico no quadro do litígio. Na verdade, ao invés, integra o essencial do objecto de disputa entre as partes, pelo que não pode ser utilizado na enunciação dos factos, já que versa sobre a solução jurídica a dar ao pleito. Cfr. a este propósito o ac. do STJ de 12.01.2021, relatado por Pedro Lima Gonçalves e acessível in www.dgsi.pt.
Deste modo, tal enunciado valorativo nunca poderia constar dos factos provados ou sequer dos não provados, devendo ser eliminado.
Passando agora a aferir da restante impugnação da matéria de facto, e que se prende com as causas das infiltrações, afigura-se-nos que a ré/recorrente tem razão.
Com efeito, e desde logo resulta dos factos provados - e alegados pelo próprio autor - não ter sido contratado o fornecimento de caleiros e rufos. Com efeito, para tanto basta afrontar os trabalhos que se encontram discriminados no ponto 1. do elenco dos factos provados.
Por outro lado, analisada a prova pericial e testemunhal indicada pela ré recorrente, bem como a fundamentação da decisão de facto expendida pelo tribunal recorrido, resulta absolutamente inequívoco que os erros de execução nos remates em que a ré empreiteira incorreu estão associados à não substituição dos rufos e caleiros, estes, como vimos, não previstos em orçamento.
Assim concluiu o perito no relatório pericial, bem como todas as testemunhas que foram ouvidas em sede de audiência final. Ou seja, a prova produzida a este propósito revelou-se não só inequívoca, como inteiramente unívoca.
Deste modo, e tendo também presente que parte das deficiências invocadas pelo autor incidiam precisamente sobre as caleiras e rufos, afigura-se-nos dever atender, ainda que não nos exactos termos, à impugnação dirigida pela ré à decisão da matéria de facto, neste concreto segmento, afigurando-se-nos ser suficiente alterar a redacção conferida ao ponto 7. do elenco dos factos provados nos seguintes termos: “7. As obras realizadas pela R. na referida cobertura apresentavam má execução dos remates, essencialmente ao nível das telas e membranas, o que associado à não substituição de rufos e caleiros (estes não previstos no orçamento), provocou infiltrações nos andares inferiores (quer no 3º andar direito, principalmente neste, quer no 3º andar esquerdo).”.
*
3.2. Do erro na decisão de mérito da acção
Importa agora apreciar se se deve manter ou alterar a decisão jurídica da causa.
Defende primordialmente a recorrente não ter incorrido em incumprimento das obrigações a que se vinculou ou que o incumprimento a si imputável é insignificante.
Vejamos.
Entre o autor e a ré foi celebrado um contrato de empreitada, o qual é legalmente definido como “o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante um preço.” - cfr. art.º 1207º do CC.
Na execução da obra o empreiteiro deve executá-la em conformidade com o que foi convencionado e sem vícios que excluam ou reduzam o valor dela, ou a sua aptidão para o uso ordinário ou previsto no contrato – cfr. art.º 1208º do CC.
O empreiteiro está, pois, adstrito a realizar uma obra, a obter certo resultado em conformidade com o convencionado e sem vícios. Em suma, o contrato deve ser cumprido pontualmente (art.º 406º do CC) e de boa fé (art.º 762º, nº 2 do CC) [cfr. Pedro Romano Martinez, in Direito das Obrigações (Parte Especial) Contratos, Almedina, 2ª ed., p. 380).
Actuar de boa fé no cumprimento da obrigação significa, pois, agir com o maior empenho, lealdade e correcção na realização da prestação a que o devedor se encontra adstrito.
Ocorrerá, porém, uma situação de cumprimento defeituoso sempre que o empreiteiro entregue uma obra que não tenha sido realizada nos termos devidos; isto é, quando o cumprimento efetuado não corresponda à conduta devida. Ora, na empreitada, o cumprimento ter-se-á por defeituoso quando a obra tenha sido realizada com deformidades ou com vícios [cfr. Pedro Romano Martinez, ob. cit., p. 468].
Neste ponto impõe-se atentar no disposto no art.º 799º, nº 1 do CC, onde se diz que “incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.”.
Assim, baseando-se a responsabilidade do empreiteiro na culpa, haverá que ter em consideração a presunção de negligência do devedor, contida no citado art.º 799º, nº 1, de tal forma que provado o defeito e a sua gravidade, prova que incumbe ao dono da obra (art.º 342º, nº 1 do CC), presume-se que o cumprimento defeituoso é imputável ao empreiteiro [cfr. Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, vol. III, 5ª ed., p. 543 e Pedro Romano Martinez, ob. cit., p. 472].
Conforme escreve Cura Mariano [in, A Responsabilidade Contratual do Empreiteiro pelos Defeitos da Obra, Almedina, 7ª ed., p. 70], “o estabelecimento desta presunção resulta do facto de, sendo a culpa, segundo as regras da experiência, normalmente inerente ao incumprimento contratual, deve competir ao devedor provar a verificação da situação anormal da ausência de culpa. Além disso, sendo o devedor quem controla e dirige a execução da prestação tem maior facilidade de conhecer e demonstrar as causas de verificação do incumprimento.”.
Por seu turno, Pires de Lima e Antunes Varela [in Código Civil Anotado”, vol. III, 3ª ed., p. 55] escrevem que “só o devedor está, por via de regra, em condições de fazer a prova das razões do seu comportamento em face do credor, bem como os motivos que o levaram a não efectuar a prestação a que estava vinculado.”.
Neste contexto, cabe concluir que ao dono da obra basta alegar e provar a existência do defeito, mesmo sem ter que provar a sua causa, ficando o empreiteiro com o ónus de alegar e provar que o cumprimento defeituoso não procede de culpa sua para afastar a responsabilidade [assim, ac. da RL de 23.11.2023 (processo nº 25892/21.6T8LSB-A.L1), acs. da RP de 28.04.2020 (processo nº 2710/18.7T8PRT.P1) e de 5.02.2018 (processo nº 5720/09.1TBVNG.P3), e ac. do STJ de 22.02.2022 (processo nº 5688/17.0T8GMR.G1.S1), todos disponíveis in www.dgsi.pt].
Regressando ao caso dos autos, ficou demonstrado que as infiltrações de água, que originaram danos no interior das fracções dos últimos andares do prédio do autor, são consequência da má execução dos remates da cobertura, associada à não substituição dos caleiros e dos rufos, estes não contratados.
Ou seja, parte substancial dos defeitos reclamados pelo autor decorre do facto das caleiras e dos rufos não terem sido objecto de qualquer intervenção por parte da ré, apesar da renovação da cobertura do prédio em questão.
Sucede, porém, que ainda que assim seja, tal constatação não afasta, a nosso ver, a responsabilidade da empreiteira.
Com efeito, derivados do princípio da boa fé que deve presidir, como vimos, ao cumprimento do contrato, podem detectar-se certos deveres laterais que impendem sobre o empreiteiro.
Assim, o vínculo obrigacional é uma realidade composta ou complexa, que não se reconduz ao mero dever de prestar a cargo do devedor, englobando deveres acessórios de conduta, baseados na boa fé: deveres de lealdade, de esclarecimento, de colaboração, de protecção [cfr. ac. do STJ de 12.06.2003, processo nº 03B573.dgsi.net, citado in Abílio Neto, Código Civil Anotado, 20ª Edição, Ediforum, p. 768].
Resulta, pois, que da boa fé no cumprimento decorrem, para o devedor, variados deveres acessórios e secundários, impondo-se-lhe, que omita todos os actos que possam por em causa um comportamento pontual e que empreenda todos os comportamentos que se mostrem necessários para que aquele tenha lugar [cfr. Ana Prata, Código Civil Anotado, volume I, 2017, Almedina, p. 960].
Por conseguinte, o não cumprimento ou cumprimento defeituoso dos contratos pode resultar não só do não cumprimento de deveres principais ou essenciais, mas também de deveres acessórios e secundários [cfr. ac. da RP de 8.02.2021, processo nº 274/17.8T8AVR.P1, acessível in www.dgsi.pt e a doutrina ali citada].
O contrato de empreitada pressupõe, com particular acuidade, a existência de uma relação de confiança, por força da qual podem emergir deveres de esclarecimento, de conselho, de cuidado, de segurança, etc.
Os deveres de esclarecimento e de conselho, que variam substancialmente em função das circunstâncias, advêm do facto de o empreiteiro, sendo um técnico na matéria, conhecer as consequências e a melhor forma de obter o resultado pretendido [cfr. Pedro Romano Martinez, ob. cit., p. 385 e 386].
Por conseguinte, ainda que não tenham sido objecto da empreitada a substituição das caleiras e dos rufos, impor-se-ia que a ré, como empreiteira, advertisse o autor quanto à necessidade da sua realização, decorrendo esta advertência daquele dever lateral de boa fé que sempre impende sobre o empreiteiro nas suas relações com o dono da obra.
Aliás, se a intervenção se concretiza, em larga medida, no telhado/cobertura do edifício o seu objectivo fundamental seria o de evitar a entrada da chuva, de tal modo que a obra se revelaria como manifestamente inútil se esse telhado não lograsse impedir tal entrada.
A advertência do empreiteiro no sentido da substituição das caleiras e dos rufos era, por isso, indispensável para o cumprimento da sua obrigação.
Só que a realização dessa advertência não se mostra comprovada, nem sequer alegada.
Assim, é violadora de obrigação expressamente assumida e do princípio da boa fé no cumprimento das obrigações a actuação da empreiteira que omite a realização de todos os trabalhos necessários impostos à boa execução da obra contratada e não adverte a dona da obra da necessidade de realização dos mesmos para atingir o resultado a que obrigou.
Por conseguinte, nenhuma culpa do autor existe na falta do resultado prometido e a da empreiteira, como vimos, presume-se.
Atendendo a todo o contexto fáctico, era a ré empreiteira, que tinha de estar dotada dos conhecimentos técnicos para a adequada realização da prestação, que cabia dotar-se dos meios necessários à sua realização.
Não o tendo feito, como decorre dos factos provados, é inteiramente responsável pela reparação das deficiências na obra.
Passa depois a recorrente a defender que a reparação em que foi condenada é excessivamente onerosa.
Esta é, como já acima afloramos, uma questão nova que não foi e deveria ter sido suscitada na contestação, onde toda a defesa deve ser deduzida (exceptuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado). Depois da contestação só podem ser deduzidas as excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente (art.º 573º, nº 1 e 2, do NCPC).
Não podia a apelante invocar esta questão apenas nesta sede de recurso.
Na verdade, e como muito bem explica Elisabeth Fernandez (“Princípio do Dispositivo e Objecto de Decisão de Recurso”, in As Recentes Reformas na Acção Executiva e nos Recursos, Coimbra Editora, 2010, p. 334 a 337), o princípio do dispositivo vigente no processo cognitivo da primeira instância tem igual aplicação no âmbito das instâncias impugnatórias, desde logo quanto ao seu objecto – o objecto originário do processo configura uma espécie de limite máximo para o funcionamento do efeito devolutivo do processo. “Quer isto significar que, de um modo geral, o tribunal de recurso não pode aceitar novos contributos das partes, no que concerne a pretensões, actos ou provas, pois o tribunal de recurso não leva a cabo o reexame da controvérsia, mas antes e tão só a reponderação da decisão recorrida. Na verdade, porque o objecto do recurso, segundo este modelo, não é a questão controvertida mas a decisão impugnada, é óbvio que a sindicância desta decisão só pode lograr-se mantendo incólumes os elementos fácticos e probatórios do processo, pelo que o ponto de partida dos poderes cognitivos do tribunal da relação não pode, por via de regra, extravasar aqueles que o tribunal a quo detinha quando julgou a causa e emitiu a decisão impugnada.”.
É certo que os recursos “destinam-se a permitir que um tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação da decisão recorrida” (vide, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, p. 23) e “não a conhecer de questões novas, salvo se estas forem de conhecimento oficioso e não estiverem já resolvidas por decisão transitada em julgado” (cfr. ainda Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª edição, p. 566).
Com efeito, “as questões novas não podem ser apreciadas, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos” (Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3ª edição, p. 98), os quais constituem, assim, um instrumento processual para reapreciar questões concretas, de facto ou de direito, que se consideram mal decididas, e não para conhecer questões não apreciadas e discutidas no tribunal a quo (art.º 627º, nº1 do NCPC) sem prejuízo das que são de conhecimento oficioso.
Como se refere no ac. do STJ de 7.07.2016, relatado por Gonçalves Rocha, in www.dgsi.pt, “Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.”.
De facto, no nosso direito adjectivo a função do recurso ordinário tem como desiderato a reapreciação de uma decisão recorrida, sendo o respectivo modelo adoptado o da reponderação e não o do reexame (Cfr. Armindo Ribeiro Mendes, in Recursos em Processo Civil, Reforma de 2007, Coimbra Editora, 2009, p. 81), o que equivale a dizer que o nosso sistema de recursos inclina-se para a solução que defende que o objecto do recurso é a decisão recorrida, e não a questão sobre que incidiu a decisão recorrida, impondo-se tão só ao tribunal ad quem apreciar se é ela aquela que ex lege devia ter sido proferida.
Dito de outra forma, e como efectivo meio impugnatório de decisões judiciais, a interposição do recurso apenas vai desencadear a reapreciação do decidido (o tribunal de recurso vai reponderar a decisão tal como foi proferida), não comportando ele o ius novarum, ou seja, a criação de decisão sobre matéria que não tenha sido submetida (no momento e lugar adequado) à apreciação do tribunal a quo (nova, portanto).
Ora, quando um recorrente, como no caso, vem colocar perante o tribunal superior questão que não foi abordada nos articulados, não foi incluída nas questões a resolver, nem foi tratada na sentença recorrida, estamos indubitavelmente perante uma questão nova.
E não sendo a mesma de conhecimento oficioso, não pode este tribunal ad quem apreciá-la.
Ainda a este propósito, veja-se o ac. desta Relação de Guimarães de 8.11.2018, relatado por Afonso Cabral Andrade (que subscreve o presente acórdão como adjunto) e disponível in www.dgsi.pt.
No caso em apreço, é inegável que só nas alegações de recurso é que a ré e ora apelante veio suscitar a excepção da excessiva onerosidade.
Trata-se, obviamente de uma questão que não é de conhecimento oficioso, razão pela qual, não tendo a mesma sido suscitada atempadamente, não pode este Tribunal apreciá-la.
Defende, por fim, a recorrente ocorrer abuso de direito, consagrado no art.º 334º do CC, consubstanciado, no caso, na desproporcionalidade entre a vantagem conferida ao autor e o sacrifício imposto pelo exercício do seu direito à ré.
Face ao supra exposto, desde já se pode concluir que não assiste qualquer razão à recorrente, mas perante a sua posição e argumentação, impõe-se ainda assim equacionar do recurso ao instituto jurídico do abuso de direito, tanto mais que, este sim, é do conhecimento oficioso.
Tal instituto, como é sabido, encontra-se legalmente consagrado no nosso ordenamento jurídico no art.º 334º do CC, o qual preceitua que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Verifica-se, pois, “abuso sempre que o exercício de um direito se mostre em desconformidade com a teleologia desse mesmo direito, com o seu fundamento.(…) Pelo que se pode dizer que o exercício de um direito é abusivo quando choque com os princípios normativos do direito enquanto direito” (cfr. Mafalda Miranda Barbosa, Liberdade vs. Responsabilidade - A precaução como fundamento da responsabilidade delitual?, Almedina, 2006, p. 322).
Entre as manifestações típicas do chamado exercício inadmissível de posições jurídicas, como o são a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegabilidades formais, a supressio e a surrectio, o tu quoque e o exercício em desequilíbrio, seria este último o que, no caso, poderia estar em causa.
Mas sempre teria de estar verificada uma situação que configurasse um qualquer excesso que violentasse a consciência jurídica.
Relativamente a esta modalidade, Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos assinalam que se trata de “um caso de exercício danoso do direito. O formalismo positivista conduz por vezes as pessoas juridicamente menos preparadas a pensar que a titularidade do direito lhes permite exercê-lo de qualquer modo, causando quaisquer danos a outrem e que os danos que assim causar são lícitos porque causados no exercício de um direito (qui jure suo utitur neminem laedit). É um grave erro. O exercício do direito deve ser feito de modo a causar o mínimo dano a outrem – princípio do mínimo dano. Quem exerce um seu direito deve, ao fazê-lo, usar da cautela e do cuidado necessários para que não ofenda direitos alheios ou cause danos a outrem. (…) São quatro as principais situações em que o exercício danoso é abusivo: - Exercício emulativo – é abusivo o exercício do direito quando o titular é movido pela intenção exclusiva de prejudicar ou de fazer mal a outrem (caso da chaminé de Colmar); - Exercício danoso inútil ou injustificado: é abusivo o exercício do direito que não represente qualquer vantagem para o seu titular, enquanto dele resulte para outrem um sacrifício injusto; - Exigência de algo que deva ser imediatamente restituído (dolo agit quei petit quod statim redditurus est): é abusivo o exercício do direito sempre que a vantagem dele resultante para o titular é mínima e desproporcionada com um sacrifício severo de outrem” (in, Teoria Geral do Direito Civil, 8.ª edição, 2015, p. 248-249).
Como refere o ac. de 5.02.2013 (relatado no processo nº 1235/07.0TVPRT.P1.S1 e disponível em www.dgsi.pt): “Entre os campos de aplicação relevantes do abuso de direito, englobam-se as situações de desequilíbrio no exercício de posições jurídicas (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português I – Parte Geral, Tomo I, 1999, p 221-212), que este Autor desdobra em três sub-hipóteses: a de exercício danoso inútil, a de exigir o que de seguida se deve restituir e a de desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto pelo exercício a outrem, equacionando-as nos seguintes termos: Trata-se duma fórmula antiga e intuitiva de abuso do direito: mercê de conjunções extraordinárias, ocorre um exercício jurídico, aparentemente regular, mas que desencadeia resultados totalmente alheios ao que o sistema poderia admitir, em consequência do exercício e acrescentando que a redução dogmática do desequilíbrio faz apelo, consoante as circunstâncias, ora ao princípio da confiança, ora ao da primazia da materialidade subjacente. O primeiro dá cobertura a actuações anormais e inesperadas, que se tornam danosas por apanhar desprevenidas as pessoas que contavam (justificadamente) com uma actuação mais comedida. O segundo reporta-se a exercício de puro equilíbrio objectivo. A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção, bastando que a actuação do abusante, objectivamente, contrarie aqueles valores. Em suma, o direito não pode ser exercido de forma arbitrária, exacerbada ou desmesurada, mas antes de um modo equilibrado, moderado, lógico e racional.”.
No mesmo sentido, veja-se ainda o recentíssimo ac. do STJ 13.02.2025, prolatado no processo nº 15475/21.6T8PRT.P1.S1 e também acessível no mesmo sítio da internet.
Ora, conforme já adiantamos, nada na factualidade apurada nos permite vislumbrar uma conduta caracterizável como abusiva, excessiva ou injusta imputável ao autor, o qual, perante o cumprimento defeituoso do contrato celebrado com a ré, unicamente imputável a esta, se limitou a exercitar o direito que a própria lei lhe confere em primeira linha – reparação dos defeitos da obra.
Tendo a ré cumprido de forma grave e defeituosa a sua obrigação – de execução de trabalhos na cobertura do prédio do autor -, nos termos supra expostos, é legitimo ao autor exigir que a mesma proceda à reparação da obra, não excedendo o exercício desse direito manifestamente os limites impostos pela boa fé, bons costumes ou fim social ou económico.
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Improcedem, por conseguinte, as conclusões da apelação quanto à decisão de direito, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante.
Deste modo e não obstante as alterações introduzidas à decisão da matéria de facto, a decisão recorrida deve ser mantida.
As custas do recurso são, pois, da responsabilidade da recorrente (art.º 527º, nºs 1 e 2 do NCPC).
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
As custas do presente recurso são da responsabilidade da recorrente.
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Guimarães, 13.03.2025 Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária
Juíza Desembargadora Relatora: Dra. Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
1º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. Afonso Cabral de Andrade
2º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. António Beça Pereira