EXECUÇÃO PARA ENTREGA DE IMÓVEL ARRENDADO PARA HABITAÇÃO
DIFERIMENTO DE DESOCUPAÇÃO DO LOCADO HABITACIONAL
FUNDAMENTOS
PRUDENTE ARBÍTRIO DO TRIBUNAL
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
DOENÇA AGUDA
Sumário

I – Tratando-se de acções legislativas excepcionais, o Estado tem vindo a comprimir, de uma forma limitada e por razões sociais imperiosas, o direito de propriedade privada – por exemplo, o benefício do diferimento da desocupação da casa de habitação previsto nos artigos 864º e 865 do Código de Processo Civil e artigo 150º, nº 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
II – O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos: a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção; b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %;
III – Portanto, no caso de execução para entrega de coisa imóvel arrendada para habitação a lei permite que, por razões sociais imperiosas, o juiz defira para momento posterior – sendo que o diferimento, nos termos do n.º 4 do art.º 865.º não pode exceder o prazo de 5 meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder – a desocupação do imóvel – a jurisprudência vem entendendo que este incidente se circunscreve exclusivamente a situações de arrendamento para habitação e também às situações de insolvência por força da remissão operada no artigo 150º, nº 5 do CIRE para o artigo 862º;
IV – A suspensão da execução ao abrigo do art.º 863º nº 3 – o agente de execução suspende as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda – não abrange todas e quaisquer doenças graves e prolongadas, designadamente doenças crónicas, que podem ser prevenidas ou controladas. O preceito reporta-se a doença aguda que é a que se manifesta de forma súbita e inesperada, podendo conduzir a risco de vida.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral


 
I – Relatório
O Juízo de Comércio de Leiria - Juiz ..., por decisão proferida a 8.2.2024 (Apenso J) e a requerimento apresentado em juízo a 19.01.2024 pelos insolventes AA e BB - que requereram o diferimento da desocupação do imóvel onde habitam por prazo não inferior a 5 meses -, foi determinado:
“Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se pelo diferimento da desocupação do referenciado imóvel (o imóvel que constitui a casa de habitação dos insolventes – Prédio urbano composto de casa de habitação, inscrito na matriz respetiva sob o artigo ...32 e descrito na CRP ... sob o n.º ...14) apreendido no âmbito dos presentes autos pelo período de 4 (quatro) meses a contar da notificação da presente decisão.
Custas do incidente pelos ora Requerentes (por ter tirado proveito do mesmo, nos termos do art. 527º, nº 1, in fine, do CPC), com taxa de justiça que se fixa pelo mínimo legal.
Registe e notifique os ora Requerentes e a Exmª Sra. Administradora da Insolvência.
..., na data supra certificada”.
Motivou, assim, a sua decisão:
“Alegam, para o efeito, e em síntese:
- Os insolventes não dispõem de outra casa de habitação, nem têm conseguido encontrar uma outra habitação para residir.
- Estão ambos reformados.
-Às dificuldades económicas com que se deparam acrescem ainda os problemas de saúde da insolvente que apresenta antecedentes de depressão generalizada, depressão crónica, acompanhada de tentativas de suicídio, não se encontrando em condições psíquicas para se ausentar da sua residência.
*
Foi determinada a notificação da Exm.ª Sra. Administradora da Insolvência, em representação da massa insolvente, para, querendo, no prazo de 10 dias, contestar o presente incidente.
A Exm.ª Sra. Administradora da Insolvência pronunciou-se no sentido de não se opor ao requerido pelos insolventes.
*
Dos Factos
1. AA e BB foram declarados insolventes por sentença proferida a 17.12.2021, já transitada em julgado.
2. Para a massa insolvente foi apreendido, para além do mais, o imóvel que constitui a casa de habitação dos insolventes – Prédio urbano composto de casa de habitação, inscrito na matriz respetiva sob o artigo ...32 e descrito na CRP ... sob o n.º ...14.
3. Os insolventes não dispõem de outra casa de habitação, nem têm conseguido encontrar uma outra habitação para residir.
4. Estão ambos reformados.
5. A insolvente apresenta antecedentes de depressão generalizada, depressão crónica, acompanhada de tentativas de suicídio, não se encontrando em condições psíquicas para se ausentar da sua residência
***
Cumpre apreciar e decidir.
Como tem sido entendido pelos Tribunais superiores, é aplicável aos insolventes, pessoas singulares, o benefício do diferimento da desocupação da casa de habitação previsto no artigo 864.º e 865.º, por força da remissão do artigo 862.º, aplicável ex vi do artigo 150.º, n.º5, do CIRE.
O prazo de diferimento da desocupação destina-se a permitir ao requerente que se encontra em situação de particular carência ou dificuldade, e que terá necessariamente que desocupar o local, um último prazo minimamente razoável para obter um alojamento alternativo - cfr. Maria Olinda Garcia, “A Ação Executiva para Entrega de Imóvel Arrendado segundo a Lei 6/2006, de 27 de fevereiro”, 2ª ed., 2008, pág. 92.
Tal como se refere no Acórdão da Relação do Porto de 14.9.2015 (proc. 5582/12.1 TBMTS-F.P1, disponível in www.dgsi.pt.) este “prazo é determinante para estabelecer o termo da ocupação, pois uma vez atingido o seu termo o insolvente tem que proceder à entrega do local, ainda que se mantenha o seu problema de natureza pessoal. Por outro lado, sem se estabelecer um termo final não pode ser ordenada a restituição à posse do adquirente.”
(..)
No caso dos autos os insolventes habitam efetivamente no referenciado imóvel apreendido para a massa insolvente (verba 1 do auto de apreensão).
Por outro lado, é certo que a formalização da apreensão do imóvel em apreço ocorreu em março/2022 ano e que o processo já está na fase de liquidação do ativo. Todavia, tais factos, por si sós, não são de molde a retirar aos ora requerentes a possibilidade de requerer o diferimento da desocupação nos termos em que o fez.
Assim, considerando a situação pessoal dos insolventes e em particular a situação de saúde da insolvente mulher, mas não descurando que a permanência indefinida daquela em tal imóvel dificulta notoriamente a respetiva liquidação, entendemos ser de deferir a pretensão dos ora Requerentes pelo período de 4 (quatro) meses dias a contar da notificação da presente decisão, período esse que se reputa como necessário e ajustado para os ora Requerentes providenciarem por nova habitação, ainda que com recurso às entidades assistenciais competentes.)
*
Terminado o prazo que diferiu a entrega da casa de habitação dos insolventes, a Administradora de Insolvência atravessa nos autos o seguinte requerimento:
No que respeita à verba n.º 1 por douta sentença proferida em 8 de Fevereiro de 2024 (Apenso J) foi diferida a desocupação do prédio pelo período de 4 meses.
Tendo o prazo terminado em Junho de 2024 solicitou-se informação quanto à entrega do prédio, indicando que não pretendendo efectuar a entrega, os insolventes deveriam requerer o que tivessem por conveniente através de requerimento junto aos autos.
A notificação foi enviada via Citius em 12 de Agosto de 2024.
Até ao momento, não se obteve qualquer resposta.
Nessa medida,
Requer-se a V.ª Ex.ª se digne ordenar o que tiver por conveniente, designadamente, a notificação dos insolventes para responderem à notificação efectuada pela signatária.
Com a junção aos autos e ulterior tramitação aguarda-se de V.ª Ex.ª o deferimento.
..., 4 de Setembro de 2024

*
AA e BB, Insolventes nos autos à margem id. e neles melhor identificados, vêm, na sequência da notificação do despacho proferido em 19-09-2024, com a ref.ª citius 108307127, expor e requer a V. Ex.ª como segue:
1.
Os Insolventes residem no imóvel, inscrito na matriz urbana sob o artigo ...32 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...14 (verba 1 do auto de apreensão), há largos anos, sendo esse a sua casa morada de família.
2.º Os Insolventes não dispõem de outra casa de habitação, havendo sempre residido naquele local.
3.º Actualmente, os Insolventes encontram-se reformados.
4.º Os Insolventes não se opõem ao normal decurso do processo, nem a que o futuro adquirente do imóvel tome posse do mesmo.
5.ºContudo,
Apesar de os Insolventes terem encetado todos os esforços, ao seu alcance, na procura de uma habitação, que pudessem arrendar, por um valor que lhes fosse acessível, estes não têm conseguido encontrar uma habitação para residir, consequência da atual conjuntura do mercado imobiliário.
6.ºO que, atendendo ao estado do mercado de arrendamento e à pressão inflacionária se mostrou impossível, apesar de terem empregado todos os meios ao seu dispor.
7.ºTal impossibilidade é acrescida pelo facto de os senhorios, além de exigirem fiadores, exigirem a análise da situação financeira dos arrendatários, através do seu IRS, bem como o pagamento adiantado, a título de caução, de, pelo menos, duas rendas - o que como se compreende tem inviabilizado qualquer contrato de arrendamento, pela incapacidade dos Insolventes cumprirem com tão altas exigências e pela incerteza que os senhorios sentem em relação a capacidade económico-financeira dos Insolventes, atenta também a sua situação de insolvência.
8.ºSendo que face à inequívoca carência de meios económicos, os Insolventes, não têm qualquer capacidade económica e/ou financeira para abandonar o imóvel apreendido e, por decorrência, encontrarem nova habitação.
Mais,
9.ºNos últimos anos, a subsistência/sobrevivência dos Insolventes apenas é conseguida com a ajuda de familiares e amigos, sendo certo que, mesmo com o seu imenso auxílio, nenhum deles dispõe de condições para albergar, ainda que temporariamente, os Insolventes.
10ºÀs dificuldades, supra mencionadas, acrescem ainda os problemas de saúde da Insolvente (Sra. BB) que se têm agravado exponencialmente com o decorrer do processo, apresentando ansiedade generalizada, depressão crónica, acompanhada de episódios de perda de auto-estima, problemas que gravemente colocam em causa a saúde mental e física da Insolvente, não se encontrando em condições psíquicas para se ausentar da sua residência. Tudo conforme atestado médico que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos, como Documento 1, protestando juntar, se considerado necessário, relatório mais actualizado ou pormenorizado.
11.ºNitidamente é impossível aos Recorrentes abandonarem o respetivo imóvel, sem ficarem completamente desalojados, com todos os riscos que tal comporta para a saúde da Insolvente- situação, facilmente, evitável, com o diferimento da entrega do imóvel.
12.ºSó assim se respeitando o princípio da dignidade da pessoa humana e da promoção da família, enquanto núcleo estruturante da nossa sociedade, conforme consagra a Constituição da República Portuguesa.
13.ºÀ desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente os Insolvente é aplicável o disposto nos artigos 862.º e ss. do Código do Processo Civil ex vi artigo 150.º, n.º 5, do CIRE.
14.ºO n.º 1 do artigo 864.º do Código do Processo Civil estabelece que, no caso de imóvel arrendado para habitação, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas.
15.ºPor sua vez, o n.º 2 do mesmo preceito legal prescreve que, o diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas.
16.ºNeste sentido, vide o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14/06/2016, processo 277/14.4TBMCN-E.P1, disponível em www.dgsi.pt:“I. É aplicável aos insolventes singulares o benefício do diferimento da desocupação da casa de habitação previsto nos arts. 864º e 865 do Cód. do Proc. Civil, por força da remissão operada nos arts. 50º, nº 5 do CIRE e 862º do Cód. do Proc. Civil.
II - O prazo de diferimento da desocupação destina-se a permitir ao requerente que se encontra em situação de particular carência ou dificuldade, e que terá necessariamente que desocupar o local, um último prazo minimamente razoável para obter um alojamento alternativo.”
17.ºAtentas as exigências teleológicas e axiológicas dos normativos legais supra transcritos e, bem assim, a atual situação económica e financeira dos Insolventes, como o estado gravado da saúde da Insolvente, devem as diligências de desocupação e entrega do imóvel apreendido para a presente demanda serem diferidas até instalação dos Insolventes em nova habitação ou, pelo menos, pelo prazo mínimo de cinco meses - período que se estima necessário para a continuação da procura de uma nova habitação, viável, que possa acolher os Insolventes.
18.ºEm face ao exposto, deve ser concedido o deferimento de desocupação do imóvel, nos termos do disposto no artigo 864.º n.º 1 e 865.º, ambos do CPC, pois só assim se respeita o princípio da dignidade da pessoa humana e da promoção da família enquanto núcleo estruturante da nossa sociedade.
Caso assim V. Ex.ª não o entenda, por razão que por ora não se vislumbra, sem conceder, sempre se dirá que,
19.ºDando por integralmente reproduzidos os factos dispostos nos articulados numerados de 1. a 13., deverão todas as diligências de desocupação e entrega do imóvel ser de imediato suspensas nos termos do disposto no artigo 861.º n.º 6 e 863.º n.º 3 a 5, ambos do CPC, pois só assim se respeita o princípio da dignidade da pessoa humana e da promoção da família enquanto núcleo estruturante da nossa sociedade.
TERMOS EM QUE, E NO DEMAIS DE DIREITO QUE V.ª EX.ª DOUTAMENTE SUPRIRÁ,
A) DEVE SER JULGADO PROCEDENTE O DIFERIMENTO DA DESOCUPAÇÃO DO IMÓVEL, POR PRAZO NÃO INFERIOR A 5 MESES,
Caso assim V. Ex.ª não o entenda, por razão que por ora não se vislumbra, sem conceder, sempre se requer,
B) DEVEM DE IMEDIATO SER SUSPENSAS TODAS AS DILIGÊNCIAS RELATIVAS AO IMÓVEL, ATÉ OS INSOLVENTES OBTEREM NOVA HABITAÇÃO.
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A..., credora reclamante nos autos à margem identificados, habilitada no lugar do Banco 1..., tendo tido conhecimento do douto requerimento deduzido em 07/10/2024 com a referência n.º 11197972, vem expor e requerer a V.ª Exa. o seguinte:
1.º O ora requerente desde já manifesta a sua oposição veemente ao pedido de “diferimento da desocupação do imóvel, por prazo não inferior a 5 meses;”
2.º Com efeito, o ora requerente não se opõe a que os insolventes sejam constituídos fies depositários do imóvel, mormente enquanto o ocuparem;
3.º Porém a suspensão da liquidação do activo (situação que na prática se verificará porquanto são consabidas as dificuldades que existem na venda de um imóvel ocupado) tem natureza excecionalíssima, mas não deixando de ter presente os interesses dos credores.
4.º Revertendo ao caso em apreço verificamos que a pretensão dos insolventes de diferimento de entrega do imóvel não se enquadra em nenhuma das situações em que a lei a prevê.
5.ºE bem assim verificamos que apesar de ser invocada uma espécie de “razão social imperiosa” não cremos ter sido cumprido o ónus da prova em relação a tal factualidade, uma vez que não e junto qualquer documento que ateste a carência de meios e/ou as tentativas infrutíferas que foram feitas para encontrar alternativa.
6.ºNo mais, é manifestamente desproporcional o pedido temporal que é feito de 5 meses para desocupação do imóvel.
7.ºRazão pela qual deverá ser pedido indeferido e substituída a decisão sobre esta matéria ao prudente arbítrio do tribunal o qual deverá fixar um prazo razoável para desocupação do imóvel.
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No Juízo de Comércio de Leiria - Juiz ..., datada de 19.12.2024, foi proferida a seguinte decisão:
“Requerimento datado de 07.10.2024, ref.ª 11197972;
Vieram os Insolventes apresentar requerimento com vista ao diferimento da desocupação da habitação correspondente ao imóvel que constitui a verba nº 1 do auto de apreensão.
Alegam para o efeito, e em síntese, que o imóvel em causa constitui a sua casa de habitação; os insolventes não dispõem de outra casa de habitação, nem conseguiram ainda encontrar uma outra habitação para residirem; a insolvente padece de vários problemas de saúde, não se encontrando em condições psíquicas de se ausentar da sua residência.
Terminam requerendo o diferimento da desocupação do imóvel por prazo não inferior a 5 meses ou, caso assim não se entenda, serem de imediato suspensas todas as diligências de liquidação até os insolventes obterem nova habitação.
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Cumpre apreciar e decidir
Em abstrato, o pedido de diferimento da desocupação da habitação é admissível em processo de insolvência, ao abrigo do disposto no art. 865º, nº 1, interpretado a contrario sensu, ex vi do art. 862º, ambos do CPC, este último aplicável por força da remissão prevista no 150º, nº 5, do CIRE.
Dispõe o citado art. 865º, nº 1, o seguinte:
«1 - A petição de diferimento da desocupação assume caráter de urgência e é indeferida liminarmente quando:
a) Tiver sido deduzida fora do prazo;
b) O fundamento não se ajustar a algum dos referidos no artigo anterior;
c) For manifestamente improcedente.».
Ora, no caso dos autos os insolventes não lograram demonstrar qualquer factualidade que se ajuste a algum dos referidos no artigo 864º, nº 2, do CPC.
Termos em que, e ao abrigo do disposto no artigo 865º, nº 1, alíneas a) e b), do CPC, indefiro liminarmente a petição de diferimento da desocupação da habitação em apreço.
Custas do incidente pelos Requerentes, nos termos do art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC, fixando-se a taxa de justiça em 1 (uma) UC.
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Quanto ao pedido de suspensão das diligências de liquidação do imóvel em apreço, cumpre assinalar que a possibilidade de suspensão da liquidação do ativo encontra-se apenas prevista nas seguintes situações (recorrendo ao citado pelo Acórdão da Relação de Guimarães de 28/05/2020, proc. 6686/17.0T8VNF.G.G1): «-por determinação da assembleia de credores no caso de decidir encarregar o administrador de elaborar um plano de insolvência, suspensão essa que cessa se esse plano não for apresentado nos 60 dias seguintes ou se o mesmo não vier a ser admitido, aprovado ou homologado – art. 156º nº 3, nº 4; - por decisão do juiz no caso deste entender que a mesma é necessária “para não por em risco a execução de um plano de insolvência proposto”, mas a suspensão não será decretada se “envolver o perigo de prejuízos consideráveis para a massa insolvente” ou se o A.I., com o acordo da comissão de credores, se existir, ou, não existindo, da assembleia de credores, requerer o prosseguimento da liquidação e partilha – art. 206º; - se a administração da massa insolvente for entregue ao próprio devedor a liquidação inicia-se apenas quando tal administração lhe for retirada – art. 225º; - e com a oposição de embargos à sentença de declaração de insolvência e com o recurso da decisão dos embargos que mantiver tal declaração – art. 40º nº 3.»
Fora destes casos admite-se a suspensão da liquidação «(…) em cenários objetivamente avaliáveis que visem corrigir situações de clara injustiça e sempre sob a alçada do desígnio de favorecimento dos interesses da massa insolvente e dos interesses diretos no pagamento dos seus créditos», como se lê no Acórdão da Relação de Évora de 28/02/2019, disponível em www.dgsi.pt .
Termos em que, e inexistindo qualquer fundamento legal para o efeito, decide pelo indeferimento da requerida suspensão.
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Em face das questões suscitadas e que supra se decidiram, cumpre, porém, ter presente que nos termos do disposto no artigo 150.º, n. º1, do CIRE, o poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador da insolvência diligenciar, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 156.º, do Código de Processo Civil, no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário (…).
A ressalva constante deste normativo legal significa que não serão imediatamente entregues ao administrador os bens apreendidos quando se verificassem as hipóteses previstas nos números 1 e 2 do artigo 756.º do CPC. Entre tais hipóteses figura a de o bem apreendido constituir a casa de habitação efetiva do insolvente [alínea a) do n.º 2 do artigo 756.º do CPC], como sucede no caso dos autos.
Em tal situação, quem ficará depositário da casa de habitação será o(s) insolvente(s) até que se concretize a venda, muito embora tal bem se encontre apreendido para a massa insolvente. Tudo sem prejuízo de poderem vir a ser removidos desse cargo, designadamente, caso venham a ser criados obstáculos para a concretização da venda.
Notifique.
..., na data supra certificada”.
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AA e BB, Insolventes nos autos à margem id. e neles melhor identificados, vêm, na sequência da notificação do Douto Despacho, proferido em 19-12-2024, com a ref.ª citius 109339044, por não se conformarem com o teor do mesmo, interpõem o seu recurso para este Tribunal, alinhavando, assim, as suas conclusões:
(…).
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2. Do objecto do recurso
2.1 –Da nulidade por falta de fundamentação;
Neste particular, alegam os Apelantes:
“6. O despacho proferido padece de grave vício de falta de fundamentação, vício gerador da sua nulidade, o que se requer seja verificado, reconhecido e declarado.
7. E assim o é pois, o despacho ora recorrido carece de enquadramento do raciocínio lógico adoptado pelo Tribunal a quo, no que respeita à decisão de indeferimento liminar por extemporaneidade do primeiro pedido formulado.
8. Senão vejamos, do disposto no despacho, no que concerne aos fundamentos para o indeferimento liminar do primeiro pedido, consta:
“Em abstrato, o pedido de diferimento da desocupação da habitação é admissível em processo de insolvência, ao abrigo do disposto no art. 865º, nº 1, interpretado a contrario sensu, ex vi do art. 862º, ambos do CPC, este último aplicável por força da remissão prevista no 150º, nº 5, do CIRE.
Dispõe o citado art. 865º, nº 1, o seguinte:
«1 - A petição de diferimento da desocupação assume caráter de urgência e é indeferida liminarmente quando:
a) Tiver sido deduzida fora do prazo;
b) O fundamento não se ajustar a algum dos referidos no artigo anterior;
c) For manifestamente improcedente.».
Ora, no caso dos autos os insolventes não lograram demonstrar qualquer factualidade que se ajuste a algum dos referidos no artigo 864º, nº 2, do CPC.
Termos em que, e ao abrigo do disposto no artigo 865º, nº 1, alíneas a) e b), do CPC, indefiro liminarmente a petição de diferimento da desocupação da habitação em apreço.”
9. Resulta inequívoco, de uma simples leitura do teor da decisão em crise, que em momento algum o Tribunal a quo se refere à extemporaneidade do requerimento apresentado, limitando-se a invocar a norma supra citada (al. a), do n.º 1 do art.º 865.º do CPC), sem a ela dar o contexto necessário.
10. O que, s.m.o, constitui uma falta absoluta de fundamentação, pois não basta a mera menção de uma norma para cumprir o dever de fundamentação de uma decisão.
11. Neste sentido, veja-se o que afirma o Tribunal da Relação de Guimarães, no ponto primeiro do sumário do Douto Acórdão proferido no processo n.º 42/14.9TBMDB.G1, em 02-11-2017, disponível em www.dgsi.pt :
“I- Só ocorre falta de fundamentação de facto e de direito da decisão judicial, quando exista falta absoluta de motivação ou quando a mesma se revele gravemente insuficiente, em termos tais que não permitam ao respetivo destinatário a perceção das razões de facto e de direito da decisão judicial.”
(sublinhado nosso)
(…)
13. Atente-se que, em momento algum, o Tribunal a quo deu a conhecer aos requerentes, ora recorrentes, a sua motivação para decretar a extemporaneidade do requerimento que formularam.
14. Nestes termos, o despacho, ora recorrido, encontra-se absolutamente desprovido de fundamentação quanto à decisão de extemporaneidade, pelo que o Tribunal a quo violou o seu dever de fundamentação.
15. Sendo que, por força do art.º 613.º, n.º 3 do CPC que remete, inter alia, ao art.º 615.º, n.º 1, al. b) do CPC, encontra-se o despacho, ora recorrido, ferido de nulidade, o que se requer que seja por V.Ex.ªs verificado, reconhecido e declarado, com os devidos e legais efeitos.
Avaliando.
Quanto à nulidade por falta de fundamentação - a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º, do Código de Processo Civil (será o diploma a citar sem menção de origem)/aplicável aos despachos – e como é entendimento pacífico da Jurisprudência e Doutrina, só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera tal nulidade. A mera fundamentação deficiente, incompleta, não convincente, medíocre ou errada afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a sua nulidade – neste preciso sentido, por ex. A. Varela, M. Bezerra, S. Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, pág. 687-688; Acórdão do STJ de 14.12.2016, pesquisável em www.dgsi.pt.
Desde logo, como salientam quer Alberto dos Reis, quer A. Varela, não basta para que exista falta de fundamentação de facto e/ou de direito que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta ou não convincente; é preciso que haja falta absoluta ou total de fundamentação, seja de facto, seja de direito - Assim sendo, para que haja falta de fundamentação, enquanto causa de nulidade da sentença, é necessário que o juiz não concretize os factos que considera provados e os não coloque na base da decisão, quando necessários para a dcisão, ou, ainda, quanto aos fundamentos de direito, que o juiz não explicite as razões jurídicas que servem de apoio à solução por si adoptada.
Mais, a nulidade por omissão de pronúncia sancionando a violação do estatuído no nº 2 do artigo 608.º, apenas se verifica quando o tribunal deixe de conhecer questões temáticas centrais suscitadas pelos litigantes - ou de que se deva conhecer oficiosamente -, cuja resolução não esteja prejudicada pela solução dada a outras, não se considerando como tal os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocados, até porque o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
Ora, o despacho em crise configura indeferimento liminar, permitido pelas normas dos artigos 590.º - nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente – e 865.º n.º 1- A petição de diferimento da desocupação assume caráter de urgência e é indeferida liminarmente quando: a) Tiver sido deduzida fora do prazo; b) O fundamento não se ajustar a algum dos referidos no artigo anterior; c) For manifestamente improcedente.
Com estas normas, o legislador procura evitar que se pratiquem actos inúteis quando se verificam ab initio circunstâncias que impedem a viabilidade da pretensão, exigindo, no entanto, para que o processo termine desde logo, que o motivo inviabilizador do pedido seja manifesto ou evidente. Não basta, pois, que o julgador considere que, segundo os seus critérios de apreciação jurídica, a posição do requerente não tem possibilidade de ser acolhida, necessário sendo que, face às diversas perspectivas jurídicas que, com sustentação minimamente razoável, podem comandar a análise do caso, não haja dúvidas quanto à inevitabilidade da improcedência do pedido.
E, nesta perspectiva, o despacho em crise mostra-se suficiente, tem a fundamentação substancial para tal desiderato – indeferir liminarmente um procedimento urgente e excepcional -, reportando-se as demais questões invocadas ao mérito do procedimento -Os vícios da sentença elencados no artigo 615.º, 1, als. b) e c) são erros formais (errores in judicando), ou seja, falta de fundamentação da decisão que não podem, em caso algum, servir de fundamento para se ver reapreciado o julgamento de mérito.
Improcedem, pois, as alegadas nulidades.
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2.2 – Direito à habitação versus estado de insolvência;
Com interesse para esta decisão, mostram os autos que:
1. AA e BB foram declarados insolventes por sentença proferida a 17.12.2021, já transitada em julgado.
2. Para a massa insolvente foi apreendido, para além do mais, o imóvel que constitui a casa de habitação dos insolventes – Prédio urbano composto de casa de habitação, inscrito na matriz respetiva sob o artigo ...32 e descrito na CRP ... sob o n.º ...14.
3. Por decisão proferida a 8.2.2024 (Apenso J) e a requerimento apresentado em juízo a 19.01.2024 pelos insolventes AA e BB - que requereram o diferimento da desocupação do imóvel onde habitam por prazo não inferior a 5 meses -, fixou-se a seguinte matéria de facto:
4. Os insolventes não dispõem de outra casa de habitação, nem têm conseguido encontrar uma outra habitação para residir.
5. Estão ambos reformados.
6. A insolvente apresenta antecedentes de depressão generalizada, depressão crónica, acompanhada de tentativas de suicídio, não se encontrando em condições psíquicas para se ausentar da sua residência.
E foi determinado:
“Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se pelo diferimento da desocupação do referenciado imóvel (o imóvel que constitui a casa de habitação dos insolventes – Prédio urbano composto de casa de habitação, inscrito na matriz respetiva sob o artigo ...32 e descrito na CRP ... sob o n.º ...14) apreendido no âmbito dos presentes autos pelo período de 4 (quatro) meses a contar da notificação da presente decisão
*
A 1.ª parte do despacho em crise:
“Requerimento datado de 07.10.2024, ref.ª 11197972;
Vieram os Insolventes apresentar requerimento com vista ao diferimento da desocupação da habitação correspondente ao imóvel que constitui a verba nº 1 do auto de apreensão.
Alegam para o efeito, e em síntese, que o imóvel em causa constitui a sua casa de habitação; os insolventes não dispõem de outra casa de habitação, nem conseguiram ainda encontrar uma outra habitação para residirem; a insolvente padece de vários problemas de saúde, não se encontrando em condições psíquicas de se ausentar da sua residência.
Terminam requerendo o diferimento da desocupação do imóvel por prazo não inferior a 5 meses ou, caso assim não se entenda, serem de imediato suspensas todas as diligências de liquidação até os insolventes obterem nova habitação.
(…)
Ora, no caso dos autos os insolventes não lograram demonstrar qualquer factualidade que se ajuste a algum dos referidos no artigo 864º, nº 2, do CPC.
Termos em que, e ao abrigo do disposto no artigo 865º, nº 1, alíneas a) e b), do CPC, indefiro liminarmente a petição de diferimento da desocupação da habitação em apreço.
(…)”.
É certo que, de uma forma programática e alterável aos ventos ideológicos, o art.º 65.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, afirma que todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar, sem, no entanto, colocar em causa, a respeito do direito de propriedade, que a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição - art.º 62.º, n.º 1.
O direito à habitação aí previsto, além de norma programática, é incumbência do Estado e não de particulares, pelo que, sendo também a propriedade privada um direito fundamental, incube ao Estado as acções para assegurar o constitucional direito à habitação, como aliás decorre do artigo 3.º da Lei de Bases da Habitação, aprovada pela Lei n.º 83/2019, de 3 de setembro, na sua redação em vigor.
Como escrevemos no Acórdão desta Relação de Coimbra de 8.10.2024, pesquisável em www.dgsi.pt:
I - Tratando-se de acções legislativas excepcionais, o Estado tem vindo a comprimir, de uma forma limitada e por razões sociais imperiosas, o direito de propriedade privada – por exemplo, o benefício do diferimento da desocupação da casa de habitação previsto nos artigos 864º e 865 do Código de Processo Civil e artigo 150º, nº 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
II – O diferimento de desocupação do locado para habitação é decidido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, devendo o juiz ter em consideração as exigências da boa-fé, a circunstância de o arrendatário não dispor imediatamente de outra habitação, o número de pessoas que habitam com o arrendatário, a sua idade, o seu estado de saúde e, em geral, a situação económica e social das pessoas envolvidas, só podendo ser concedido desde que se verifique algum dos seguintes fundamentos: a) Que, tratando-se de resolução por não pagamento de rendas, a falta do mesmo se deve a carência de meios do arrendatário, o que se presume relativamente ao beneficiário de subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção; b) Que o arrendatário é portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60 %;
III – Portanto, no caso de execução para entrega de coisa imóvel arrendada para habitação a lei permite que, por razões sociais imperiosas, o juiz defira para momento posterior – sendo que o diferimento, nos termos do n.º 4 do art.º 865.º não pode exceder o prazo de 5 meses a contar da data do trânsito em julgado da decisão que o conceder – a desocupação do imóvel – a jurisprudência vem entendendo que este incidente se circunscreve exclusivamente a situações de arrendamento para habitação e também às situações de insolvência por força da remissão operada no artigo 150º, nº 5 do CIRE para o artigo 862º. No entanto, está vedada a sua aplicação analógica, porque regimes de excepção, a situações nele não expressamente previstas, não havendo também qualquer razão que autorize uma interpretação extensiva.
Tratando-se de acções legislativas excepcionais, o Estado tem vindo a comprimir, de uma forma limitada e por razões sociais imperiosas, o direito de propriedade privada, como o benefício do diferimento da desocupação da casa de habitação previsto nos artigos 864º e 865 e artigo 150º, nº 5, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE).
Reza, assim, a norma do artigo 150.º:
1- O poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador da insolvência diligenciar, sem prejuízo do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 756.º do Código de Processo Civil, no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário, regendo-se o depósito pelas normas gerais e, em especial, pelas que disciplinam o depósito judicial de bens penhorados.
2 - A apreensão é feita pelo próprio administrador da insolvência, assistido pela comissão de credores ou por um representante desta, se existir, e, quando conveniente, na presença do credor requerente da insolvência e do próprio insolvente.
3 - Sempre que ao administrador da insolvência não convenha fazê-lo pessoalmente, é a apreensão de bens sitos em comarca que não seja a da insolvência realizada por meio de deprecada, ficando esses bens confiados a depositário especial, mas à ordem do administrador da insolvência.
4 - A apreensão é feita mediante arrolamento, ou por entrega directa através de balanço, de harmonia com as regras seguintes:
a) Se os bens já estiverem confiados a depositário judicial, manter-se-á o respectivo depósito, embora eles passem a ficar disponíveis e à ordem exclusiva do administrador da insolvência;
b) Se encontrar dificuldades em tomar conta dos bens ou tiver dúvidas sobre quais integram o depósito, pode o administrador da insolvência requerer que o funcionário do tribunal se desloque ao local onde os bens se encontrem, a fim de, superadas as dificuldades ou esclarecidas as dúvidas, lhe ser feita a entrega efectiva;
c) Quando depare com oposição ou resistência à apreensão, o próprio administrador da insolvência pode requisitar o auxílio da força pública, sendo então lícito o arrombamento de porta ou de cofre e lavrando-se auto de ocorrência do incidente;
d) O arrolamento consiste na descrição, avaliação e depósito dos bens;
e) Quer no arrolamento, quer na entrega por balanço, é lavrado pelo administrador da insolvência, ou por seu auxiliar, o auto no qual se descrevam os bens, em verbas numeradas, como em inventário, se declare, sempre que conveniente, o valor fixado por louvado, se destaque a entrega ao administrador da insolvência ou a depositário especial e se faça menção de todas as ocorrências relevantes com interesse para o processo;
f) O auto é assinado por quem presenciou a diligência e pelo possuidor ou detentor dos valores apreendidos ou, quando este não possa ou não queira assinar, pelas duas testemunhas a que seja possível recorrer.
5 - À desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente é aplicável o disposto no artigo 862.º do Código de Processo Civil - à execução para entrega de coisa imóvel arrendada são aplicáveis as disposições anteriores do presente título, com as alterações constantes dos artigos 863º a 866º.
Desta norma, bem como da epígrafe do art.º 864º - Diferimento da desocupação de imóvel arrendado para habitação - e da redação do seu nº 1, resulta que o procedimento de diferimento da desocupação se refere a situações de arrendamento para habitação. Com efeito, nesse nº 1 estabelece-se que no caso de imóvel arrendado para habitação, dentro do prazo de oposição à execução, o executado pode requerer o diferimento da desocupação, por razões sociais imperiosas, devendo logo oferecer as provas disponíveis.
Ao remeter para este procedimento, através do nº 5 do art.º 150º atrás citado, o CIRE não está a pressupor a existência de um contrato de arrendamento, mas simplesmente a determinar que, com as devidas adaptações, se deve seguir aquele regime, numa perspetiva de salvaguarda do mínimo de dignidade humana, permitindo ao insolvente, tal como se permite, no processo executivo para entrega de coisa certa, ao arrendatário habitacional, usar de um prazo de diferimento da desocupação da casa de habitação, tendo designadamente em vista manter as condições de habitação enquanto o necessitado, num prazo definido de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, mediante a verificação de requisitos legalmente estabelecidos - como sejam os dos nºs 1 e 2 do art.º 864º -, procura novo espaço habitacional.
Ou seja, no caso de casa de habitação do insolvente, o legislador, além de o manter na posse do bem apreendido para a massa – como depositário -, atenta a remissão operada pelo artigo 150.º  n.º 5, é aplicável, ainda, aos insolventes o benefício do deferimento da desocupação da casa de habitação previsto nos artºs 864º e 865º  e ainda o regime dos nºs 3 a 5 do art.º 863º, que prevê a suspensão das diligências executórias quando a diligência puser em risco a vida de pessoas que se encontram no local por razões de doença aguda.
Mas, como é sabido, a invocação das referidas razões sociais imperiosas não vale, só por si, para obter a tutela legal, que pressupõe a verificação de pelo menos um dos fundamentos condicionantes taxativamente previstos nas als. a) e b) do preceito. Com efeito, o juiz só será chamado a apreciar as primeiras, no uso do poder discricionário que a lei lhe concede - cf. n.º 4, in fine do art.º 152.º-, se verificada uma de duas situações atinentes à pessoa do arrendatário ou, para o que aqui releva, insolvente, a saber:
 a) carência de meios, a qual se presume relativamente a beneficiário do subsídio de desemprego, de valor igual ou inferior à retribuição mínima mensal garantida, ou de rendimento social de inserção;
b) ser portador de deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60% (cf. n.º 2 do art.º 864.º).
E tais pressupostos condicionantes terão de se verificar, nos termos da lei, na pessoa do arrendatário/insolvente, irrelevando para este efeito a situação económica e social ou condições de saúde daqueles que com ele residam, razões que só poderão/deverão ser ponderadas se forem alegados e demonstrados factos que permitam subsumir a situação a alguma das referidas alíneas.
Ora, no seu requerimento, como o afirma a 1.ª instância, os requerentes apenas alegam, para o efeito, e em síntese, que o imóvel em causa constitui a sua casa de habitação; os insolventes não dispõem de outra casa de habitação, nem conseguiram ainda encontrar uma outra habitação para residirem; a insolvente padece de vários problemas de saúde, não se encontrando em condições psíquicas de se ausentar da sua residência – como já o tinham feito no incidente que correu termos no Apenso J.
Ora, considerando, o supra - referido, nomeadamente quanto à ausência de prova da deficiência com grau comprovado de incapacidade superior a 60%, teremos de concordar com a 1.ª instância quando refere que, no caso dos autos, os insolventes não lograram demonstrar qualquer factualidade que se ajuste a algum dos referidos no artigo 864º, nº 2, do CPC.
Mais, ao contrário do alegado pelos apelantes, quanto ao facto de o requerimento não ter sido considerado extemporâneo na decisão proferida no Apenso J, conferindo o diferimento de desocupação do imóvel, em condições similares às ora requeridas, diremos que tal decisão foi já cumprida e usufruída com o esgotamento do prazo concedido pelo tribunal – 4 meses. Atentando na fundamentação aí levada pelo julgador - Por outro lado, é certo que a formalização da apreensão do imóvel em apreço ocorreu em março/2022 ano e que o processo já está na fase de liquidação do ativo. Todavia, tais factos, por si sós, não são de molde a retirar aos ora requerentes a possibilidade de requerer o diferimento da desocupação nos termos em que o fez -, e o facto de esta ter sido proferida em 8.2.2024 (Apenso J), com o natural avanço da fase liquidatória, não vislumbramos qualquer impedimento para que a 1.ª instância, nestes autos, considerasse o requerimento lavrado pelos insolventes extemporâneo.
Acresce, ainda, esta outra razão processual.
A decisão proferida no Apenso J (que, considerando a situação pessoal dos insolventes e em particular a situação de saúde da insolvente mulher, lhes deferiu a pretensão do deferimento da desocupação pelo período de 4 (quatro) meses – cujo limite se fixa em cinco meses -) impede, agora, a repetição de tal pedido, sendo os mesmos requerentes, a mesma causa de pedir e, acima de tudo, o mesmo imóvel - os Apelantes, com tal decisão,já beneficiaram/esgotaram d(o) benefício concedido a título excepcional do deferimento da desocupação da casa de habitação apreendida para a insolvência.
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A 2.ª parte do despacho recorrido:
“Quanto ao pedido de suspensão das diligências de liquidação do imóvel em apreço, cumpre assinalar que a possibilidade de suspensão da liquidação do ativo encontra-se apenas prevista nas seguintes situações (recorrendo ao citado pelo Acórdão da Relação de Guimarães de 28/05/2020, proc. 6686/17.0T8VNF.G.G1): «-por determinação da assembleia de credores no caso de decidir encarregar o administrador de elaborar um plano de insolvência, suspensão essa que cessa se esse plano não for apresentado nos 60 dias seguintes ou se o mesmo não vier a ser admitido, aprovado ou homologado – art. 156º nº 3, nº 4; - por decisão do juiz no caso deste entender que a mesma é necessária “para não por em risco a execução de um plano de insolvência proposto”, mas a suspensão não será decretada se “envolver o perigo de prejuízos consideráveis para a massa insolvente” ou se o A.I., com o acordo da comissão de credores, se existir, ou, não existindo, da assembleia de credores, requerer o prosseguimento da liquidação e partilha – art. 206º; - se a administração da massa insolvente for entregue ao próprio devedor a liquidação inicia-se apenas quando tal administração lhe for retirada – art. 225º; - e com a oposição de embargos à sentença de declaração de insolvência e com o recurso da decisão dos embargos que mantiver tal declaração – art. 40º nº 3.»
Fora destes casos admite-se a suspensão da liquidação «(…) em cenários objetivamente avaliáveis que visem corrigir situações de clara injustiça e sempre sob a alçada do desígnio de favorecimento dos interesses da massa insolvente e dos interesses diretos no pagamento dos seus créditos», como se lê no Acórdão da Relação de Évora de 28/02/2019, disponível em www.dgsi.pt .
Termos em que, e inexistindo qualquer fundamento legal para o efeito, decide pelo indeferimento da requerida suspensão.
***
Notifique.
..., na data supra certificada”.
Concordamos.
Mais, a suspensão da execução ao abrigo do art.º 863º nº 3 - o agente de execução suspende as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda - não abrange todas e quaisquer doenças graves e prolongadas, designadamente doenças crónicas, que podem ser prevenidas ou controladas. O preceito reporta-se a doença aguda que é a que se manifesta de forma súbita e inesperada, podendo conduzir a risco de vida.
Por isso, tratando-se de habitação do insolvente, o administrador da insolvência só suspende as diligências destinadas à tomada de posse do imóvel, quando se mostre por atestado médico, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local por razões de saúde aguda, o que não ocorreu nestes autos.
Nas palavras do Acórdão da Relação de Évora de 30.1.2025, acessível em www.dgsi.pt:
“I.Em caso de entrega coactiva de casa que constitua a residência do executado e sua família, verificada uma situação de real dificuldade de realojamento, a lei impõe o cumprimento do disposto no n.º 6 do art.º 861.º do CPCiv., sem que, no entanto, preveja a suspensão da entrega ainda que na data designada não esteja assegurada pelos organismos competentes uma solução alternativa de alojamento.
II. A norma em causa, assim interpretada, não viola o direito constitucionalmente reconhecido a cada indivíduo a uma habitação condigna, por não ser de exigir aos particulares que se substituam ao Estado no cumprimento das obrigações que sobre este impendem em matéria de protecção do direito consagrado no artigo 65.º da CRP.
III. Sem embargo, a existência de uma situação que preencha a previsão do n.º 3 do artigo 863.º do CPCiv, verificada que seja pelo Sr. AE, dará então – e só então – lugar à suspensão das diligências executivas em curso, seguindo o incidente a tramitação prevista nos n.ºs 4 e 5”.
Mais, o benefício do diferimento da desocupação da casa de habitação, previsto no artigo 150º, nº 5, do CIRE, está previsto para a fase da apreensão de bens para a massa insolvente - para obstar à entrega do bem ao administrador - e não para a fase da liquidação dos bens - para obstar à entrega do bem ao adquirente na venda realizada na liquidação da massa insolvente -, pelo que, também por esta razão estariam inviabilizados os pedidos de deferimento e de suspensão.
Nas palavras do Acórdão da Relação de Lisboa de 12.11.2024, pesquisável em www.dgsi.pt:
“O campo de aplicação da remissão operada pelo art.º 150º, nº 5 do CIRE para o incidente de diferimento da desocupação de imóvel previsto pelo art.º 864º do CPC restringe-se à fase de apreensão dos bens para a massa insolvente, a título de oposição à entrega do imóvel solicitada pelo administrador da insolvência para concretização material/fáctica da apreensão, e apenas como impedimento excecional e precário à obtenção da sua imediata disponibilização pelo administrador da insolvência”.
Como escreve a 1.ª instância:
“Em face das questões suscitadas e que supra se decidiram, cumpre, porém, ter presente que nos termos do disposto no artigo 150.º, n. º1, do CIRE, o poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador da insolvência diligenciar, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 156.º, do Código de Processo Civil, no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário (…).
A ressalva constante deste normativo legal significa que não serão imediatamente entregues ao administrador os bens apreendidos quando se verificassem as hipóteses previstas nos números 1 e 2 do artigo 756.º do CPC. Entre tais hipóteses figura a de o bem apreendido constituir a casa de habitação efetiva do insolvente [alínea a) do n.º 2 do artigo 756.º do CPC], como sucede no caso dos autos.
Em tal situação, quem ficará depositário da casa de habitação será o(s) insolvente(s) até que se concretize a venda, muito embora tal bem se encontre apreendido para a massa insolvente. Tudo sem prejuízo de poderem vir a ser removidos desse cargo, designadamente, caso venham a ser criados obstáculos para a concretização da venda”.
Improcede, pois, o recurso.

Sumário:
(…).
*
3.Decisão
Na improcedência do recurso, mantemos a decisão proferida pelo Juízo de Comércio de Leiria - Juiz ....

Custas do incidente a cargo dos Apelantes.

Coimbra, 11 de Março de 2025

(José Avelino Gonçalves - Relator)

(Chandra Gracias – 1.ª adjunta)

(Anabela Marques Ferreira – 2.ª adjunta)