OBRIGATORIEDADE DE AUDIÊNCIA PRÉVIA
DESPACHO SANEADOR
CONHECIMENTO DO MÉRITO
NULIDADE
Sumário

I – A tramitação das ações declarativas comuns de valor superior a 15.000,00 €, inclui no seu curso normal, a realização de uma audiência prévia, regra que apenas comporta duas exceções: i) quando a lei assim o estabelece (als. a) e b) do art 592º); ii) nos casos de dispensa por parte do juiz (restrita aos fins indicados nas als. d), e) e f), do nº 1 do artigo 591º - artigo 593º).
II – No caso de, considerando o estado do processo, o juiz entender que tem condições para decidir de imediato o mérito da causa, a pertinência da audiência prévia vai para lá do cumprimento do contraditório, destinando-se a facultar a discussão, em audiência, entre as partes, de facto e de direito, acerca do mérito da causa.
III – O despacho saneador que conhece do mérito da causa, sem que tenha sido realizada audiência prévia nos termos do artigo 591º, nº1, al. b), CPC, encontra-se ferido de nulidade, devendo ser substituído por outro que determine a prática do ato omitido.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Relator: Maria João Areias

1º Adjunto: Chandra Gracias

2º Adjunto: Catarina Gonçalves

                                                                                               

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO

AA intenta a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB,

Alegando em síntese:

A autora viveu em união de facto com o réu desde 1995, da qual nasceram dois filhos;

nesse ano, o réu justificou por usucapião um terreno da família e, com os rendimentos de ambos, iniciaram no mesmo a construção da casa de morada de família, a qual findou em 1997, tendo o réu participado a mesma, em seu nome exclusivo;

em 31.05.2001, constituíram a sociedade BB Ldª, da qual retiravam o proveito comum para o agregado familiar, sendo que a autora também trabalhava por conta de outrem;

 com os rendimentos de ambos adquiriram um terreno no qual fizeram edificações, tendo ainda, em conjunto, adquirido o recheio da supra referida casa de morada de família.

tinham contas bancária em conjunto, faziam o IRS em conjunto, tendo a relação de coabitação terminado em 2017.

Conclui, pedindo:

a) a declaração de que a autora e réu viveram em situação análoga às dos cônjuges pelo período de 22 anos.

b) se reconheça a existência de um património imobiliário comum adquirido e edificado durante o período em que Autora e Réu viveram em união de facto, nomeadamente os prédios urbanos com as matrizes prediais ...29 e ...33 da freguesia e concelho ....

c) se reconheça à Autora o direito a metade desse património imobiliário, por ter contribuído para o mesmo, pelo desempenho de trabalho remunerado, mão- de- obra da Autora e ainda as tarefas domésticas em prol do agregado familiar durante o período em que viveram em união de facto.

d) seja reconhecido à Autora o direito a metade do recheio da casa de morada de família e dependências.

e) a condenação do Réu a reconhecer a compropriedade do aludido património mobiliário e imobiliário procedendo-se a legalização do prédio inscrevendo-a a Autora como proprietária;

ou, em alternativa,

f) a condenação do réu a restituir, sob pena de enriquecimento sem causa, o valor correspondente a metade do valor que se vier a apurar dos aludidos imoveis, móveis e demais quantias aventadas, e que se estima no valor mínimo de € 61. 698,77 atento o valor patrimonial tributário

g) a condenação do réu no pagamento de juros de mora desde até integral pagamento após citação da presente ação.

O Réu apresenta Contestação, alegando, em síntese:

autora e o réu apenas começaram a viver juntos em dezembro de 1997, depois de o réu ter terminado a construção da sua casa de habitação, tendo cada um dos seus rendimentos e cada um procedia ao pagamento de certas despesas;

não tendo a autora contribuído com qualquer quantia para a construção/aquisição dos bens imóveis e móveis aludidos na p.i., a autora não poderá ter sobre os mesmos qualquer pretensão de compropriedade;

quaisquer direitos relacionados com um eventual enriquecimento sem causa, encontram-se prescritos.

A autora apresenta requerimento, comunicando reservar para a audiência prévia a faculdade de responder à invocada exceção de prescrição no que respeita ao invocado instituto do enriquecimento sem causa.

Na sequência de tal requerimento, o juiz a quo profere o seguinte Despacho:

“Como reconhece a autora no seu requerimento 09.04.2024, na contestação apresentada é invocada a prescrição do direito à restituição por enriquecimento sem causa.

Dispõe o artº 3º nº 4 do CPC que às excepções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.

Entendemos, no entanto, que situações há em que para um melhor e mais célere andamento do processo, deve ser dada, desde logo, a possibilidade de a parte contrária exercer o direito ao contraditório relativamente à matéria da excepção, ainda antes de se encerrar a fase dos articulados, designadamente para se aferir da necessidade ou não da realização da audiência prévia e, caso esta ocorra, para melhor se disciplinarem os trabalhos, assim como para evitar decisões surpresa, seja em audiência prévia, seja em decisão a proferir por escrito.

Em face do exposto, e fazendo uso do dever de adequação formal previsto no artº 547º do CPC, notifique a autora para, no prazo de 10 dias se pronunciar, querendo, sobre a excepção invocada.”

Notificada para tal efeito, a autora vem responder, alegando que o prazo de prescrição de 3 anos só se aplica ao pedido formulado a titulo subsidiário, encontrando-se a invocada compropriedade sujeita ao prazo geral de 20 anos.


*

Seguidamente, o juiz a quo profere, de imediato, despacho/saneador, culminando com o seguinte dispositivo:

 Em face do exposto, e sem outras considerações:

I- Julga-se parcialmente o pedido formulado na ação reconhecendo que a autora e o réu viveram em situação de união de facto desde pelo menos 1997 até 2017.

II- Julgo manifestamente improcedentes os demais pedidos formulados a título principal, dos mesmos absolvendo o réu.

III- Julga-se procedente a exceção da prescrição e, consequentemente, absolvo o réu dos pedidos formulados a título subsidiário.


*

Custas pela autora, porquanto o pedido julgado procedente não foi contestado pelo réu (artº 527º nº 1 do CPC).

*

Não se conformando com tal sentença, a Autora dela interpõe recurso de Apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:

(…).


*

O Réu apresentou contra-alegações, no sentido da improcedência do recurso.

Dispensados os vistos legais, nos termos previstos no artigo 657º, nº4, in fine, do CPC, cumpre decidir do objeto do recurso.


*
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, as questões a decidir são as seguintes:
1. Nulidade da decisão sobre o mérito da causa, por omissão da realização da audiência prévia
2. Não sendo reconhecida a nulidade, se a decisão recorrida contraria as regras da união de facto e da prescrição
*
III – APRECIAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

1. Se a omissão da realização de audiência prévia acarreta a nulidade do saneador/sentença

Depois de ter determinado a notificação da autora para responder à exceção de prescrição, invocada relativamente ao pedido formulado a título subsidiário, tendo como causa de pedir o enriquecimento sem causa, o juiz a quo veio a proferir decisão final de mérito relativamente aos pedidos formulados e título principal, julgando ainda procedente a exceção de prescrição relativamente aos pedidos formulados a título subsidiário.

Ou seja, o tribunal profere decisão final, conhecendo na sua totalidade, do objeto da causa, sem antes convocar as partes para a realização de audiência prévia, e sem as advertir de que, em seu entender, os autos reuniam as condições para tal.

A Apelante insurge-se contra a circunstância de o tribunal ter proferido decisão final, porquanto:

- respeitando a exceção de prescrição unicamente ao direito formulado a título subsidiário, não podia ser dispensada a audiência prévia, por não se verificarem os pressupostos constantes das als. d), e) e f), do nº1 do artigo 591º do CPC;

- como tal, verifica-se uma nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº1, al. d), in fine, do CPC.

E conclui, requerendo a anulação da decisão e em consequência, devendo, em consequência, o tribunal recorrido proceder à realização da audiência prévia omitida, ou proferir despacho previsto no artigo 547º do CPP, convidando as partes a pronunciar-se sobre a possibilidade de dispensa dessa diligencia e sobre o mérito da causa.

Relativamente a esta questão, o Apelado nada diz nas suas contra-alegações.

Cumpre, assim, apreciar se, na situação em apreço, tencionando o juiz conhecer imediatamente, do mérito da causa, se impunha ao tribunal a convocação de audiência prévia ou, em sua alternativa, a prolação de despacho previsto no artigo 547º do CPP, convidando as partes a pronunciar-se sobre a possibilidade de dispensa dessa diligencia e sobre o mérito da causa.

No atual Código, a tramitação das ações declarativas comuns de valor superior a metade da alçada da Relação (15.000,00 €), inclui, no seu curso normal[1], a realização de uma audiência prévia, regra que apenas comporta duas exceções tipificadas:

- quando a lei assim o estabeleça (ações não contestadas ou caso de apreciação de uma exceção dilatória já debatida nos articulados – als. a) e b), do nº1 do artigo 592º);

- nos casos de dispensa por parte do juiz – dispensa que só pode ser concedida quando a audiência prévia se destine apenas aos fins indicados nas als. d), e) e f), do nº1 do artigo 591º – (artigo 593º).

Ressalvados tais casos, a audiência prévia é obrigatória, decorrendo da sua dispensa uma nulidade[2].

Como salienta Elizabeth Fernandez, nas ações de valor superior a 15.000,00 €, a lei pouca margem de manobra deixa ao juiz para o exercício do dever de gestão e adequação processual, como sucede com a audiência prévia, que tem por obrigatória[3].

Segundo o disposto no nº1 do artigo 591º do CPC, findos os articulados, e proferido despacho pré-saneador se necessário (destinada a suprir deficiências formais dos articulados), é convocada audiência prévia, destinada, entre outros fins, a:

a) realizar tentativa de conciliação, nos termos do artigo 594º;

b) facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra apreciar exceções dilatórias ou quando tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa;

c) discutir as posições das partes, com vista à delimitação dos termos do litigio, e suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição da matéria de facto que ainda subsistam ou se tornem patentes na sequência do debate;

(…).

As finalidades a que se reportam as alíneas b) e c), encontram-se intimamente ligadas ao cumprimento do princípio do contraditório previsto no artigo 3º do CPC, a assegurar ao longo do processo, e que, salvo casos de manifesta desnecessidade, impede o conhecimento de decisões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

Contudo, se essa fosse a única justificação para a sua convocação, o exercício do contraditório poderia ser assegurado por escrito, podendo haver lugar à dispensa da audiência prévia, como é o caso das exceções dilatórias, que podem ser conhecidas sem que haja lugar a audiência previa, desde que já tenham sido debatidas nos articulados (artigo 592º, nº1, al. b), do CPC).

No caso de, considerado o estado do processo, o juiz entender que tem condições para decidir de imediato do mérito da causa, a necessidade da audiência prévia vai para além do cumprimento do contraditório: “a audiência prévia será então destinada a facultar às partes uma discussão sobre as vertentes do mérito da causa que o juiz projeta decidir. É de toda a conveniência que o juiz não decida sem um debate prévio, no qual os advogados das partes tenham a oportunidade de produzir alegações orais, de facto e de direito, acerca do mérito da causa, sendo que o âmbito dessas alegações depende do caso concreto[4]”.

Paulo Pimenta[5] salienta que a pertinência da audiência prévia em tais casos, se revela a vários títulos: “Impede que as partes venham a ser confrontadas com uma decisão que, provavelmente, não esperariam fosse já proferida, isto é, evita-se uma decisão surpresa (artigo 3º, nº3). Depois, são acautelados os casos em que a anunciada intenção de conhecimento imediato do mérito da causa derive de alguma precipitação do juiz, tanto mais que não é frequente a possibilidade de, sem a produção de prova, ser proferida uma decisão final”.

Quando o tribunal se julgue habilitado a conhecer imediatamente do mérito da causa, mediante resposta total ou parcial ao pedido ou pedidos deduzidos, o juiz deve convocar a audiência prévia para esse fim. Como salienta José Lebre de Freitas[6], no anterior código excetuava-se, diferentemente do que hoje sucede e tal como para a discussão das exceções dilatórias, o caso em que os fundamentos da decisão a proferir tivessem já sido debatidos entre as partes, não havendo insuficiências ou imprecisões na exposição a corrigir e revestindo-se a apreciação da causa de manifesta simplicidade. No novo código esta exceção desapareceu: o juiz não pode julgar de mérito sem primeiro facultar a discussão, em audiência, entre as partes, salvo se os factos relevantes controvertidos só possam ser provados por documento e este não seja apresentado, sem justificação, apesar do convite feito no despacho pré-saneador ou em caso de revelia inoperante.

“Nos termos dos arts. 591º, nº1, al. b) e 593º, nº1, a audiência prévia é obrigatória sempre que o juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte do mérito da causa. Se a audiência prévia não for convocada com vista a facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que o juiz tencione conhecer imediatamente, no todo ou em parte, do mérito da causa, nem no seu decurso tal intenção for comunicada às partes, deve entender-se que tal omissão influi no exame ou decisão da causa, configurando uma nulidade processual (artigo 195º, nº1), que inquina a própria decisão proferida (saneador/sentença) e que pode ser arguida em sede de recurso a interpor da mesma[7]”.

No caso em apreço, o juiz limitou-se a cumprir o contraditório relativamente à exceção (perentória) de prescrição, invocada relativamente à causa de pedir e pedido formulados a título subsidiário, e apreciou de mérito a totalidade dos pedidos formulados pela autora a título principal – sem convocar audiência prévia, e sem advertir as partes que se propunha conhecer do mérito.

Para além de ter sido preterida a prática de um ato prescrita por lei – a realização de audiência prévia – constituiu o mesmo uma decisão surpresa, violadora do princípio do contraditório, nos termos previstos no artigo 3º nº3 do CPC.

Ao conhecer do mérito da causa sem convocar a audiência prévia nos termos do artigo 591º, nº1, al. b), CPC, e sem cumprimento do contraditório, tal decisão é, em si mesma, um ato que a lei não admite, viciação esta que pode influir no exame ou na decisão, sendo em abstrato subsumível à norma do nº1 do artigo 195º do CPC.

No entanto, a decisão assim proferida não contém apenas um error in procedendo, compreendendo igualmente um error in judicando – o tribunal decidiu mal, ao optar por conhecer de imediato sobre o mérito do pedido, naquela fase de desenvolvimento da instância, em vez de convocar primeiro as partes para a audiência prévia, nos termos do artigo 591º, nº1, al. b), do CPC.

De qualquer modo, a omissão de tal ato prévio acarretará a nulidade da sentença – quer se integre no regime das nulidades previstas nos arts. 195º e ss., seja no das nulidades da sentença previstas no artigo 615º[8] –, importando a sua invalidação e substituição pelo ato omitido.

A Apelação é, assim, de proceder, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo Apelante nas suas alegações de recurso.


*

IV – DECISÃO

 Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar procedente a Apelação, declarando-se a nulidade da decisão recorrida, por preterição da realização de audiência prévia com a finalidade prevista na al. b), do nº1 do artigo 591º, do CPC, a substituir por outra que proceda à sua convocação.

Custas a suportar pelo Apelado.                    

   Coimbra, 11 de março de 2025


V – Sumário elaborado nos termos do art. 663º, nº7 do CPC.
(…).


[1] Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, 2ª ed., Almedina, p. 257.
[2] António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I, Almedina, p.685.
[3] Elizabeth Fernandez, “Um Novo Código de Processo Civil, em busca das diferenças”, Vida Económica, p. 30.
[4] Paulo Pimenta, obra citada, p. 261, acrescentando, ainda “Assim, nessas alegações, as partes poderão fazer os considerandos que tenham por convenientes, no sentido de justificar e fundamentar as respetivas pretensões. Além disso, as alegações poderão servir também para as partes tomarem posição sobre eventuais exceções perentórias não discutidas nos articulados, mas que o juiz entenda conhecer oficiosamente. Acresce que deve ser proporcionada às partes a possibilidade de produzirem alegações quando o juiz se proponha decidir do mérito da causa num enquadramento jurídico diverso do assumido e discutido pelas partes nos articulados.
[5] Obra citada, p. 262.
[6] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2, 3ª ed., Almedina, pp. 641.
[7] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, Vol. II, 2ª ed. – 2019, Almedina, p. 212, nota 412.
[8] Para maiores desenvolvimentos quanto à integração da prolação de decisão sem cumprimento de ato processual prévio, nas nulidades da sentença, cfr., Acórdão do TRC de 02-03-2023, relatado pela também aqui relatora, disponível in www.dgsi.pt. e ainda o estudo recente de Paulo Ramos de Faria e Nuno Lemos Jorge, “Outras nulidades da sentença cível”, in Julgar Online, setembro de 2024/1, https://julgar.pt/as-outras-nulidades-da-sentenca-civel/