I - O conhecimento de mérito no despacho saneador apenas deve ter lugar quando o processo fornecer já em tal fase processual, antecipadamente relativamente à normal - a da sentença -, todos os elementos de facto necessários à decisão do caso segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito.
II - Assim, e pela negativa, nunca é legitimo ao julgador enveredar, antecipadamente, pela sua solução definitiva do litígio, sem que garantida esteja a presença de todos os factos necessários a que as outras visões possíveis possam, também, ser, logo, sustentadas.
III - E controvertida estando matéria relevante para efetuar a subsunção jurídica do caso, nunca pode ser considerado consolidado estado dos autos que permita ao juiz antecipar a decisão, com o adiantar da solução por si perfilhada, pois que necessária se torna (após instrução) a condensação - como provados e não provados - dos factos que permitam, na interpretação, concatenação e ponderação de todos eles, adotar justa solução que se desenhe no leque das possíveis.
IV - E deve o juiz proceder à recolha dos factos da causa (cfr. art. 5º, do CPC) que se mostrem dotados de relevância jurídica, garantindo a condensação de todos, por forma a acautelar anulações de julgamento.
Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto: Des. Jorge Martins Ribeiro
2º Adjunto: Des. Manuel Fernandes
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto
Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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Recorrente: “Citizens´Voice – Consumer Advocacy Association”
Recorrida: “A..., S.A.”
“Citizens´Voice – Consumer Advocacy Association” instaurou ação popular contra “A..., S.A.” pedindo que seja declarado que a ré:
A. teve o comportamento descrito no §3;
B. violou as seguintes normas: 1. artigo 35 (1, c), do decreto lei 28/84; 2. artigos 6, 10, 11 (1), 12, do decreto lei 330/90; 3. artigo 311 (1, a, e), do decreto lei 110/2018; 4. artigos 4, 5 (1), 6 (b), 7 (1, b, d), 9 (1, a), do decreto lei 57/2008; 5. artigos 3 (a) (d) (e) (f), 4, 7 (4) e 8 (1, a, c, d) (2), da lei 24/96; 6. do artigo 11, da lei 19/2012; 7. artigos 6, 7 (1) (2) e 8, da diretiva 2005/29/CE; 8. artigo 3, da diretiva 2006/114/CE; 9. artigos 2 (a) (b), 4 (1), da diretiva 98/6/CE; 10. artigo 102, do TFUE;
C. especulou nos preços das embalagens de peras rocha do ..., 1 Kg na sua sucursal, localizada em Centro Comercial ..., Praceta ..., Vila Nova de Gaia, ..., ..., Portugal;
D. publicitou enganosamente o preço das embalagens de peras rocha do ..., 1 Kg, na sua sucursal localizada em Centro Comercial ..., Praceta ..., Vila Nova de Gaia, ...,..., Portugal;
E. teve o comportamento supra descrito em qualquer um dos pedidos anteriores e que o mesmo é ilícito e doloso ou, pelo menos, grosseiramente negligente;
F. agiu com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos suprarreferidos, com os autores populares;
G. com a totalidade ou parte desses comportamentos lesou gravemente os interesses dos autores populares, nomeadamente os seus interesses económicos e sociais, designadamente os seus direitos enquanto consumidores;
H. causou e causa danos aos interesses difusos de proteção do consumo de bens e serviços, sendo a ré condenada a reconhecê-lo.
Devendo a ré, em consequência de qualquer um dos referidos pedidos, ser condenada a:
I. a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados por estas práticas ilícitas, no que respeita ao sobrepreço, seja a título doloso ou negligente, em montante global: 1. a determinar nos termos do artigo 609 (2), do CPC; 2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço; 3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
J. subsidiariamente ao ponto anterior, ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que resultou do sobrepreço causado pelas práticas ilícitas, em montante global: 1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC, determinado em 0,20 euros por cada embalagem de peras rocha do ..., 1 Kg, respetivamente vendida na sua sucursal, com estabelecimento localizado em Centro Comercial ..., Praceta ..., Vila Nova de Gaia, ..., ..., Portugal, desde 27.06.2023, às 08h00, até, pelo menos, 04.07.2023, às 21h00 [a indicação dos dias e horas dever-se-á a lapso de escrita, considerando o que resulta da causa de pedir]; 2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço; 3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
K. ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos morais causado pelas práticas ilícitas, em montante global: 1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4), do CC, mas nunca inferior a 0,20 euros por autor popular; 2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos morais; 3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
L. ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares, in casu, todos os consumidores em geral, medidos por agregados familiares privativos, pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência, e montante global: 1. nos termos do artigo 9 (2), da lei 23/2018, ou por outra medida, justa e equitativa, que o tribunal considere adequada, mas nunca menos que 0,20 euros por autor popular, in casu, agregados familiares privativos; 2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência; 3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
M. ser a ré condenada a pagar todos os encargos que a autora representante da classe tiver ou venha ainda a ter com o processo e com eventual incidente de liquidação de sentença, nomeadamente, mas não exclusivamente, com os honorários advocatícios, pareceres jurídicos de professores universitários, pareceres e assessoria necessária à interpretação da vária matéria técnica [tanto ao abrigo do artigo 480 (3), do CPC, como fora do mesmo preceito], que compreende uma área de conhecimento jurídico-económico complexa e que importa traduzir e transmitir com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para os autores e seu mandatário, de modo a que possam assim (e só assim) exercer eficazmente os seus direitos, nomeadamente de contraditório, e assim como os custos com o financiamento do litígio (litigation funding) que venha a ser obtido pela autora representante da classe;
N. porque o artigo 22 (2), da lei 83/95, estatui, de forma inequívoca e taxativa, que deve ser fixada uma indemnização global pela violação de interesses dos titulares ao individualmente identificados, mas por outro lado é omissa sobre quem deve administrar a quantia a ser paga, nomeadamente quem deve proceder à sua distribuição pelos autores representados na ação popular, vêm os autores interveniente requerer que declare que CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, agindo como autora representante da classe neste processo e em representação dos restantes autores populares, têm legitimidade para exigir o pagamento das supras aludidas indemnizações, incluindo requerer a liquidação judicial nos termos do artigo 609 (2), do CPC e, caso a sentença não seja voluntariamente cumprida, executar a mesma, sem prejuízo do requerido nos pontos seguintes;
subsidiariamente, e nos termos do §4 (m):
O. o comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, subsidiariamente, para o caso de não se aplicar nenhum dos casos supra, deve ser considerado mediante o instituto do enriquecimento sem causa e os autores populares indemnizados pelo sobrepreço cobrado, tal como sustentando em § 4 (m).
em qualquer caso, deve:
P. o comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, sempre deve ser considerado com abuso de direito e, em consequência, paralisado e os autores populares indemnizados por todos os danos que tal comportamento lhes causou;
Requer, ainda, que se:
Q. decida relativamente à responsabilidade civil subjetiva conforme § 15, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido;
R. decida relativamente ao recebimento e distribuição da indemnização global nos termos do § 16, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95 sem necessidade de entrar no pedido;
S. seja publicada a decisão transitadas em julgado, a expensas da ré e sob pena de desobediência, com menção do trânsito em julgado, em dois dos jornais presumivelmente lidos pelo universo dos interessados, apesar de tal decorrer expressamente do artigo 19 (2), da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido, e com o aviso da cominação em multa de € 100.000 (cem mil euros) por dia de atraso no cumprimento da sentença a esse respeito;
T. declare que a autora representante da classe tem legitimidade para representar os consumidores lesados na cobrança das quantias que a ré venha a ser condenada, nomeadamente, mas não exclusivamente, por intermédio da liquidação judicial das quantias e execução judicial de sentença;
U. declare, sem prejuízo do pedido imediatamente anterior, que a ré deve proceder ao pagamento da indemnização global a favor dos consumidores lesados diretamente à entidade designada pelo tribunal para proceder à administração da mesma tal como requerido em infra em §16, fixando uma sanção pecuniária compulsória adequada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) por cada dia de incumprimento após o trânsito em julgado de sentença que condene a ré nesse pagamento;
V. declare uma remuneração, com uma taxa anual de 5 % sobre o montante total da indemnização global administrada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) nos termos do requerido infra em §16, a favor da entidade que o tribunal designar para administrar as quantias que a ré for condenada a pagar;
W. declare que a autora representante da classe tem direito a uma quantia a liquidar em execução de sentença, a título de procuradoria, relativamente a todos os custos que teve com a presente ação, incluindo honorários com todos os serviços prestados, tanto de advogados, como de técnicos especialistas, como com a obtenção e produção de documentação e custos de financiamento e respetivo imposto de valor acrescentado nos termos dos artigos 21 e 22 (5), da lei 83/95, sendo tais valores pagos exclusivamente daquilo que resultarem dos montantes prescritos nos termos do artigo 22 (4) e (5), da lei 83/95.
X. declare a autora representante da classe isenta de custas;
Y. condene a ré em custas.
Alega, para o efeito, que a ré se dedica à distribuição alimentar, por intermédio da venda ao público no mercado nacional de distribuição retalhista de base alimentar, comercializando produtos alimentares e não alimentares na sua loja de venda ao público localizada no Centro Comercial ..., sito na Praceta ..., em Vila Nova de Gaia, que nesta “sucursal” a ré vendeu embalagens de pera rocha do ..., 1 kg, por preço superior ao que constava dos letreiros elaborados por si: por intermédio de um letreiro afixado junto das referidas embalagens, colocou o preço de 1,99 euros respetivamente e por embalagem, mas no momento do pagamento cobrava 2,19 euros por embalagem, que tais letreiros de preços estiveram afixados (para alguns produtos), pelo menos, desde 20 de agosto de 2023, às 8 horas, e até, pelo menos, 30 de agosto de 2023, às 21 horas, tendo a ré, nesse período de tempo, cobrado aos consumidores um preço superior ao que anunciava nos letreiros com o preço por si elaborados e afixados junto aos respetivos produtos, comportamento confinado e decidido pela aludida “sucursal, que os autores populares que não se aperceberam que o preço cobrado no momento do pagamento era superior ao anunciado no letreiro e que fundamentou a sua escolha, acabaram por pagar um sobrepreço que, em alguns dos produtos, chegou mesmo a 0,20 euros por cada embalagem, que em resultado de tal comportamento, verificam-se erros na formação da vontade do consumidor médio, erros provocados pela publicidade enganosa, que se formam da seguinte maneira:
- O consumidor que, olhando para o preço, escolhe o produto mais barato entre os produtos substitutos disponíveis pelo mesmo distribuidor, no caso, a ré;
- Ou o consumidor que, fixado no preço, continua a escolher o produto mais barato entre os disponíveis noutros concorrentes;
- Ou o consumidor que, atento às denominações de casa produto, opta por aquele que, em face da denominação publicitada e atento aos costumes e experiência comum, considera ser o mais barato;
- Ou o consumidor que, atento às denominações de casa produto, opta por aquele que, em face da denominação publicitada e atento aos costumes e experiência comum, considera o melhor;
- O consumidor que procura qualidade vai optar pelo produto que apresenta o preço mais elevado, face à suposição comum de que os preços são bons indicadores de qualidade, principalmente quando os produtos são oferecidos no mesmo local e pelo mesmo distribuidor;
- No entanto, esse consumidor, apesar de estar a pagar um preço mais elevado pelo produto, está na realidade a adquirir, contra aquilo que esperava, um produto com qualidade inferior ou pelo menos igual a outro mais barato também disponível no mesmo distribuidor ou noutro distribuidor;
- Este foi o erro induzido nos autores populares que, procurando um produto com melhor qualidade e não sabendo distinguir as diferenças, optaram pelo produto com o preço mais elevado, convencidos que estariam, por essa via, a adquirir o de melhor qualidade disponibilizado pela ré na sua loja;
- Tal erro, comum aos demais autores populares, verifica-se e manifesta-se de igual forma relativamente à oferta e publicidade das supra aludidas embalagens, em comparação com outros produtos substitutos porque estariam a preço mais barato do que o normal (numa aparente promoção);
- Os consumidores que procuram um preço mais baixo vão optar pelo produto que anuncia o preço mais baixo;
- Os consumidores que procuram melhor qualidade vão optar pelo produto que anuncia o preço mais elevado;
- Todos os consumidores, os que procuram qualidade ou o preço mais baixo, deparam-se com uma dissonância cognitiva provocada pelo facto de não ser esperado que um produto de melhor qualidade seja mais barato que um seu substituto de pior qualidade;
- Os consumidores nesta situação, os aqui autores populares, são levados a aceitar que as embalagens suprarreferidas eram mais baratas que os produtos substitutos de pior qualidade, são também de pior qualidade ou, então, estão numa grande promoção, para conseguirem acomodar essa dissonância;
- Estes foram os erros induzidos aos autores populares, erros induzidos pela publicidade enganosa da ré a toda a massa de consumidores.
Em consequência dos comportamentos descritos os autores populares sofreram três tipos de danos (o sobrepreço, os danos morais e a distorção da equidade das condições de concorrência e, concomitantemente, danos para os consumidores em geral, onde se incluem os autores populares).
CONCLUSÕES:
“1. Os autores interpõem recurso de apelação nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 644 (1,a) e 647 (1), todos do CPC, por terem legitimidade para tal e estarem em tempo de o fazer (cf. artigo 638, do CPC), por não se conformarem com a decisão proferida e ora recorrida e com a mesma discordarem.
2. Da sentença o tribunal a quo:
a. condenar a representante da classe em custas de ½ das devidas ao abrigo do artigo 20 (3) da lei 83/95, norma que se encontra revogada, em articulação com os artigos 4 e 5 do decreto lei 34/2008;
b. verificar a exceção dilatória inominada de falta de verificação dos pressupostos da ação popular quanto ao tipo de interesses em que a autora fundamenta a sua pretensão por entender que o facto de haver consumidores que se terão apercebido da diferença entre o preço anunciado e o preço cobrado não terão sofrido qualquer prejuízo (estando na sua disponibilidade continuar ou não a fazer compras na loja) e que existirão consumidores que sempre teriam optado por comprar pelo preço de 2,19 euros e com isso considerar que [o]s interesses em causa, para além de estarem circunscritos nos termos descritos, são também diferenciados, não existindo um interesse homogéneo entre os potenciais representados pela representante da classe, acabando com esse fundamento por absolver a ré da instância nesta parte – ou seja, entendeu o tribunal a quo que não estão em causa, pelo que se depreende, interesses individuais homogéneos, apesar de inequivocamente os interesses em causa terem todos eles uma génese comum e os titulares desses interesses perfeitamente identificados, não obstante não estarem individualizados.
3. Os factos que para a boa apreciação da causa interessam, são os que consta no §3 supra, que por questão de proficiência se dão aqui reproduzidos.
4. Quanto à condenação em custas (referido em 2.a destas conclusões):
a. a aplicação do artigo 20 (3), da lei 83/95 pela sentença recorrida é indevida pois norma foi revogada pela disposição revogatória do artigo 25 (1), do decreto-lei 34/2008, constitui um erro na aplicação da lei, devendo ser corrigido;
b. o regime atual de custas processuais na ação popular está claramente definido no decreto-lei 34/2008, especificamente no artigo 4 (1, b), que confere isenção de custas, salvo a exceção do (5) do mesmo artigo que impõe custas apenas se o pedido for julgado manifestamente improcedente.
c. a sentença recorrida errou ao condenar os autores em custas com base numa interpretação de que os pedidos foram ineptos ou de que não se tratavam de interesses individuais homogéneos, condições que não enquadram o caso em discussão como manifestamente improcedente.
d. Importante distinção deve ser feita entre “totalmente improcedente” e “manifestamente improcedente”, conforme elucidado nos acórdãos do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa e do Colendo Supremo Tribunal de Justiça supra referidos, sendo a segunda condição uma forma agravada de improcedência que não se verifica no presente caso e nem o tribunal a quo o declarou.
e. O entendimento de que a manifesta improcedência requer uma evidência clara da falta de fundamento dos pedidos, não foi demonstrada pela decisão recorrida, falhando assim em justificar a condenação em custas sob o artigo 4 (5), do RCP.
f. Os autos contêm argumentos e pedidos fundamentados que, mesmo não obtendo provimento total, não se enquadram na categoria de manifestamente improcedentes, pois não derivam de atitudes claramente abusivas do processo ou desprovidas de qualquer fundamento lícito e razoável.
5. Quanto aos interesses em causa serem homogéneos (referido em 2.b destas conclusões):
a. O direito de ação popular, expressamente previsto no artigo 52(3) da CRP, assegura às associações de defesa dos consumidores a capacidade de promover a defesa de interesses difusos ou coletivos, incluindo a proteção dos direitos dos consumidores, como está em causa neste processo.
b. Os autores populares, nesta ação, estão a defender direitos dos consumidores, especificamente contra práticas de cobrança de sobrepreço em violação dos direitos dos consumidores, um interesse claramente abrangido tanto pela CRP quanto pela legislação ordinária sobre ações populares.
c. A definição de interesses coletivos e individuais homogêneos não exige a identificação individual de todos os lesados no momento inicial da ação, sendo suficiente a determinação de uma situação comum que afete todos os membros do grupo representado, como é o caso dos consumidores que pagaram um sobrepreço pelos produtos da ré no período especificado e num determinado estabelecimento comercial da ré.
d. A jurisprudência e a doutrina predominantes reforçam que a ação popular é adequada mesmo quando os danos individuais possam variar em quantia, desde que haja uma base comum de prejuízos decorrentes de uma prática ilícita uniformemente aplicada aos consumidores, como ocorre no presente caso.
e. Como se recorta da petição inicial, os autores são apenas os consumidores prejudicados pelo comportamento ilícito da ré, portanto aqueles que pagaram um sobrepreço pelas Peras Rocha do ... entre 20/08/2023 e 30/08/2023 no estabelecimento A... do Centro Comercial ... – sendo que os consumidores que não pagaram o sobrepreço, devido a devoluções ou correções pela ré após reclamações, não são parte desta ação.
f. Sendo então titulares dos interesses aqueles que cumulativamente: i. São consumidores; ii. Compraram Peras Rocha do ..., 1 Kg; iii. Entre 20/08/2023, às 08h00, e 30/08/2023, às 21h00; iv. No A... do Centro Comercial ... em Vila Nova de Gaia; v. Pagaram 2,19 euros em vez de 1,99 euros por Kg.
g. Quanto ao pedido na ação, importa sublinhar que as alíneas A) a H) do petitório são pedidos declarativos meramente instrumentais, enquanto requisitos jurídicos necessários para o pedido principal, que visa a condenação da ré, pois o que a ação pretende é que a ré seja condenada a indemnizar integralmente os autores pelos danos causados pelo sobrepreço cobrado.
h. A causa de pedir está claramente baseada no comportamento da ré, que anunciou um preço de 1,99 euros mas cobrou 2,19 euros, resultando num sobrepreço de 0,20 euros por embalagem no período especificado.
i. Ou seja, a identificação clara dos titulares dos interesses em causa e a formulação precisa da causa de pedir e do pedido asseguram a legitimidade e homogeneidade dos direitos individuais e coletivos em questão.
j. A ação popular serve precisamente para permitir que consumidores, cujos danos individuais poderiam não justificar ações judiciais isoladas devido a custos e complexidades, possam buscar justiça coletivamente, fortalecendo o princípio de acesso à justiça e eficácia processual.
k. Entendimento dos Tribunais Superiores em Casos Análogos: Os argumentos contra a admissibilidade da ação nos termos em que decidiu o tribunal a quo, ou até mesmo a diferença que eventualmente pudesse existir nos preços durante esse período ou no próprio anúncio (fixação) dos mesmos – o que por acaso não se verificou – não sustentam a inadmissibilidade da ação popular, porquanto o que está em causa é o sobrepreço que resultou para os autores populares devido à prática ilícita da ré e que é indiferente se existem outros consumidores (que não são autores populares) que não se deixaram enganar e por isso não pagaram esse sobrepreço, ou que mesmo os que foram enganados, em circunstâncias normais, sem a ação enganosa, aceitariam ainda assim comprar aquele produto ao preço que a ré acabou por cobrar. O entendimento dos tribunais superiores, incluindo o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa e o Colendo Supremo Tribunal de Justiça, tem consistentemente rejeitado essa perspetiva. Em especial, no caso processado sob o número 5555/22.6T8VNG.L1, foi reconhecida a admissibilidade da ação popular mesmo com possíveis variações nos danos individuais, pois o que prevalece é a ilegalidade comum da conduta da ré contra um grupo de consumidores.
l. Entendimento Específico do Tribunal da Relação de Lisboa: A decisão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa destacou que a diferença no apuramento de danos entre os autores não compromete a homogeneidade dos interesses subjacentes à pretensão. Este entendimento reflete a prática judicial de priorizar a natureza coletiva dos direitos em disputa sobre as particularidades individuais que podem ser e devem ser abstraídas, o que reforça a viabilidade da ação popular como mecanismo de defesa de direitos coletivos e individuais homogéneos.
m. Entendimento do Supremo Tribunal de Justiça: O Colendo Supremo Tribunal de Justiça tem enfatizado que a tutela de interesses coletivos permite a proteção de situações individuais dos titulares até o limite em que a análise coletiva é viável, sem necessariamente dispensar uma avaliação individualizada. Este princípio apoia a legitimidade da ação popular para procurar reparação em casos onde existe um padrão de prejuízos causados por uma conduta ilícita comum (a causa tem a mesma génese comum), mesmo que os impactos específicos variem entre os consumidores afetados.
n. Doutrina: A doutrina suporta fortemente a aplicação da ação popular em casos de interesses individuais homogéneos que surgem de uma origem comum ilícita, mesmo quando há variação quantitativa nos danos ou particularidades individualizáveis, mas que podem ser abstraídas. Este entendimento é crucial para garantir que as ações populares possam ser utilizadas eficazmente para proteger os consumidores em situações de massificação de danos decorrentes de práticas ilícitas generalizadas.
o. Baseado nos argumentos apresentados supra e nos princípios jurídicos vigentes, é claro que a ação popular é um instrumento adequado para a defesa dos direitos dos consumidores neste caso. As eventuais particulares entre autores populares não devem impedir a procura de uma justiça coletiva, dada a natureza comum dos interesses em causa que assenta na conduta da ré ao aplicar um sobrepreço aos produtos comprados pelos aqui autores populares.
6. Com o devido respeito, parece-nos que a decisão ora decorrida, apesar do cuidado que teve em fundamentar cada ponto da sua decisão, diverge da melhor jurisprudência que tem sido produzido nos últimos tempos sobre interesses homogéneos nas ações populares e daquilo que muito bem ensina a doutrina mais autorizada.
7. As melhores publicações conhecida sobre estes temas, do mui ilustre Professor Doutor José Lebre de Freitas, “Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil” e o mais recente “Novos Estudos Sobre Direito Civil e Processo Civil”, são um baluarte das melhores interpretações de direito a extrair nestas temáticas e que vão exatamente no sentido defendido neste recurso – e alinhadas com a melhor jurisprudência e restante doutrina.
CONCLUSÕES:
I. A Recorrida entende que a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância não merece qualquer censura ou reparo, devendo ser mantida pelo Tribunal da Relação do Porto, in totum, uma vez que não estão verificados os pressupostos da acção popular.
II. Alega a Recorrente que se verificam os pressupostos da acção popular.
III. Invoca por isso a Recorrente que, na presente acção, está a defender direitos dos consumidores, especificamente, contra a prática de cobrança de um alegado sobrepreço de pêras rochas do ..., vendidas na A... de Vila Nova de Gaia entre o dia 20.08.2023 e o dia 30.08.2023.
IV. Os interesses cuja tutela é pretendida pela Recorrente, através da presente acção popular, não configuram interesses difusos ou interesses homogéneos que pudessem vir a ser apreciados, de forma indiferenciada, no âmbito da presente acção, o que é essencial para que a acção pudesse ser apreciada.
V. Conforme refere MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[2], que citamos "(…) a acção popular não é admissível quando o demandado possa invocar contra algum ou alguns dos representados uma defesa pessoal, isto é, quando possa utilizar fundamentos de defesa específicos contra alguns desses representados (…)", sublinhado nosso.
VI. No mesmo sentido, pode ler-se no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.05.2022, relativo ao processo n.º 26412/16.0T8LSB.L2-2, consultável em www.dgsi.pt no qual foi dito e citamos:
“(…) O objeto natural e próprio da ação popular e que pressupõe o alargamento da legitimidade próprio do autor popular é uma tutela coletiva que impõe a abstração de algumas particularidades respeitantes a cada um dos titulares lesados.
II. O autor popular não tem legitimidade para apresentar em juízo pedidos de providência jurisdicional próprios da clássica ação individual, norteada pela tutela do interesse individual de cada um dos consumidores concretamente lesados (…)”.
VII. Na presente acção, os interesses em discussão são individuais, em concreto, os putativos prejuízos que os alegados consumidores das pêras rocha DOP vendidas pela Recorrida teriam tido pelo sobrepreço alegado, inclusivamente danos morais, e não um interesse colectivo.
VIII. A Recorrente, sob as vestes de uma acção popular, pretende fazer direitos próprios e individuais, ainda que sem qualquer fundamento legal e factual.
IX. Conforme referiu, e bem, o tribunal a quo e que pela relevância e clareza se transcreve:
“(…) Contudo, o alegado pela autora não é suficiente para que os interesses individuais possam ser tutelados através da acção popular. Para o efeito, seria necessário que, considerados no seu conjunto, esses interesses assumissem uma importância na ordem pública que excedesse a mera soma ou agregação de um conjunto de interesses individuais pertencentes a uma mesma classe e que, ao mesmo tempo, fossem partilhados de forma homogénea e uniforme pelos membros da classe representada (…)”.
X. Também foi decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 14.09.2023, relativo ao processo n.º 8334/21.4T8VNG.S1, em que era Recorrente AA (directamente ligado à Recorrente neste autos e em que também era Recorrida a A...), acção essa que foi julgada totalmente improcedente e cujos ensinamentos se aplicam ao presente processo e que por isso se cita:
“(…) Ora, em face do concretamente peticionado nos termos supra aludidos, entende-se que, efectivamente, não estamos perante a defesa de interesses difusos ou supra individuais passíveis de serem invocados numa acção popular.
Na verdade, o que está fundamentalmente em causa é o interesse individual do A., indissociável do invocado cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por si celebrado com a 1.ª R., pretendendo o A., com aqueles pedidos, repor a conformidade da sua situação jurídica.
Repare-se que, face ao objecto da acção, é indesmentível concluir-se que, no caso, as relações contratuais dos clientes da 1.ª R. podem não ser idênticas entre si, não sendo possível, face aos concretos pedidos formulados, abstrair das especificidades de cada uma das situações individuais de cada um dos eventuais titulares do interesse invocado na acção relativo à qualidade de um bem de consumo, sublinhado nosso.
XI. Alumiados pela legalidade aplicada e pelos acórdãos supracitados, concluímos que no presente processo estamos perante interesses concretos e individuais.
XII. Tanto assim é que, que na eventualidade da ora Recorrente ser demandada pelos alegados clientes lesados pela compra da pêra rocha DOP, poderia, em sede de defesa, apresentar defesas diversas, consoante o caso concreto e a relação jurídica contratual encetada entre as Partes, com todas as circunstâncias do caso concreto.
XIII. Poderia existir acções que seriam julgadas improcedentes por se verificar, a título meramente exemplificativo, excepções dilatórias ou peremptórias, com a subsequente improcedência da acção, excepções essa alicerçadas, entre outros, nos seguintes institutos jurídicos: vi. Culpa do lesado; vii. Mora do devedor; viii. Abuso de direito; ix. Prescrição; x. Caducidade;
XIV. Cada relação contratual é concreta e individualizada, o que poderia levar a que os alegados consumidores lesados, comprassem as pêras rochas, mesmo que estas passassem na caixa de pagamento a um preço superior ao anunciado (o que não se verificou e por mera hipótese hipotética se refere).
XV. Na mesma linha de entendimento da fundamentação acima aduzida, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07.06.2023 relativo ao processo: n.º26412/16.0T8LSB.L2.S1, disponível em www.dgsi.pt, que se cita: “(…) A acção popular não é admissível quando o demandado possa utilizar fundamentos de defesa específicos contra alguns dos representados pelo autor (…)”.
XVI. Com a mesma argumentação, atende-se ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08.09.2016, relativo ao processo n.º 7617/15.T8PRT.S1, disponível em www.dgsi.pt, que pela sua clareza se cita:
“(…) IV - Posto que a ação popular não é admissível quando o demandado possa invocar diferentes defesas contra os vários representados, deve-se atentar na posição por este assumida, assumindo-se assim aquela possibilidade como um critério prático para discutir a sua admissibilidade (…)”.
XVII. O mesmo se verifica no que concerne aos danos morais invocados pela Recorrente.
XVIII. Na fixação da indemnização, deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, sendo certo que o respectivo montante será estabelecido, equitativamente, pelo Tribunal, em conformidade com o preceituado pelos artigos 496.º, nº.s 1 e 3, e 494.º, ambos do Código Civil.
XIX. Concluímos, deste modo, que o montante da indemnização a título de danos morais é fixado equitativamente pelo Tribunal, através de adequado e equilibrado critério de justiça material, atendendo à circunstâncias do caso concreto, pelo que não é possível, em sede de acção popular, fixar-se, de forma geral, uma indemnização a atribuir a todos os alegados lesados pela compras das pêras rochas em discussão nestes autos.
XX. Por toda a fundamentação acima exposta, deve a decisão proferida pelo Tribunal a quo manter-se por ser acertada e adequada e não merecer qualquer reparo ou censura”.
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.
Assim, a questão a decidir é a seguinte:
- Se os autos devem prosseguir, por se mostrarem controvertidos factos relevantes para a decisão, segundo as soluções plausíveis da questão de direito
1. FACTOS PROVADOS
Foram, apenas, os seguintes os factos considerados provados pelo tribunal de 1ª instância com relevância para a decisão (transcrição):
a) A autora “Citizens´Voice – Consumer Advocacy Association” foi constituída a 14 de dezembro de 2021, nos termos que constam do documento n.º 1, junto com a petição inicial, cujo teor se dá aqui por reproduzido;
b) Nos termos do artigo 2º do referido documento, “A associação tem como fim Defesa dos consumidores na União Europeia, seus associados, e dos consumidores em geral que sejam cidadãos da União Europeia ou que sejam cidadãos de Estados terceiros residentes na União Europeia.”;
c) A ré é uma pessoa coletiva que exerce, com carácter profissional, por intermédio de venda ao público no mercado nacional de distribuição retalhista de base alimentar;
d) A ré comercializa produtos alimentares na loja de venda ao público sita no Centro Comercial ..., na Praceta ..., Vila Nova de Gaia.
- Da necessidade de os autos prosseguirem, para ulterior decisão, após produção de prova à matéria de facto controvertida, por forma a que a sentença (momento, em regra, oportuno e normal de decisão de uma causa) possa contemplar, dentro do leque das soluções plausíveis da questão de direito, todas as que possam ser configuradas como possíveis.
Entendeu a decisão recorrida não preenchidos os pressupostos da ação popular e julgou a ação improcedente afirmando “cremos poder concluir pela inviabilidade da presente acção popular, por se entender que, à luz da causa de pedir (e dos pedidos formulados), não se configuram na acção interesses que pudessem justificar o tratamento conjunto ou indiferenciado dos interesses de cada consumidor (acima identificados)”.
Absolveu a Ré dos pedidos considerando:
“O fundamento da acção não é a circunstância de a ré, na referida loja, vender embalagens de Peras Rocha do ..., 1 kg, de qualidade inferior à anunciada ou efectivamente existente, inexistindo qualquer facto, concreto, que tenha sido alegado pela autora nesse sentido (constituindo o alegado no ponto 9 do artigo 43º da petição inicial uma mera conclusão).
Nada permitiria concluir que as peras em causa fossem de melhor ou de pior qualidade do que outras peras à venda na mesma loja e no mesmo período de tempo (se é que existiam). Nada permitiria concluir que o preço anunciado para as embalagens de Peras Rocha do ..., 1 kg, fosse mais barato do que outras embalagens de peras (de pior qualidade) à venda na mesma loja e no mesmo período de tempo (se é que existiam).
… o que resulta do alegado pela autora é que alguns consumidores se terão apercebido da diferença entre o preço anunciado e o preço cobrado e não terão sofrido qualquer prejuízo (estando na sua disponibilidade continuar ou não a fazer compras na loja) e que existirão consumidores que sempre teriam optado por comprar pelo preço de 2,19 euros.
Os interesses em causa, para além de estarem circunscritos nos termos descritos, são também diferenciados, não existindo um interesse homogéneo entre os potenciais representados pela autora. Não está em causa um conjunto de interesses materiais solidariamente comuns aos membros de uma comunidade, mas antes eventuais direitos ou interesses individuais pertencentes a alguns consumidores, aqueles que, na loja identificada nos autos, compraram embalagens de Peras Rocha do ..., 1 kg, por preço superior ao anunciado e que não o teriam efectuado caso o preço anunciado fosse de 2,19 euros, em vez de 1,99 euros” (negrito e sublinhado nossos).
Ora, assim se não considera, como bem sustenta a Autora/Recorrente, não fornecendo, ainda, os autos os elementos necessários à decisão, tendo os mesmos de prosseguir. Bem resulta, da petição inicial, a alegação da diferença entre o preço anunciado e o cobrado aos consumidores e o interesse homogéneo destes.
Não pode a ação ser, desde já, apreciada, pois que, na verdade, como resulta da lei e da interpretação que dela vem sendo efetuada quer pela doutrina quer pela jurisprudência, designadamente pela deste Tribunal em Acórdãos em que a ora relatora foi relatora e em Acórdãos em que foi adjunta, “O tribunal em questões de insuficiência de alegação de matéria de facto, hoje em dia, está vinculado, face à nova redação do nº 2 do art. 590º do CPC, ao convite às partes para aperfeiçoamento do articulado em que tais deficiências se verifiquem, não podendo avançar no processo sem previamente ter cumprido este comando legal”[3], e com a amplitude necessária, e, por outro lado, “o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito, não se devendo ter em vista apenas a visão partilhada pelo juiz da causa.” [4] [5].
Com efeito, bem se analisa naquele Acórdão que “na versão actual do CPC, no âmbito dos poderes de gestão inicial do processo (art. 590º do CPC), onde antes se dizia “pode o juiz”, determina-se agora que “incumbe ao juiz”, numa clara assunção de que o convite ao aperfeiçoamento deixou de constituir uma simples possibilidade, um poder, para se assumir como um dever, como um acto vinculado a ser praticado.
Assim, se ao juiz se afigurar que a petição ou a contestação padecem de insuficiência/imprecisão na alegação da matéria de facto, tem de convidar as partes ao seu aperfeiçoamento, sob pena de incorrer, como referimos, em nulidade pela inobservância de um acto prescrito na lei, que se repercutirá no exame e decisão da causa, como é característica das insuficiências da matéria de facto (art. 195º nº 1 CPC).
No caso concreto, temos que as AA. apresentaram – como o próprio tribunal recorrido logo salientou ao ponto de mencionar que se poderia eventualmente configurar uma situação de falta de causa de pedir – um articulado deficiente – deficiências que o tribunal também logo evidenciou.
O que está subjacente ao convite ao aperfeiçoamento, para além do espírito de cooperação, é a garantia a uma tutela jurisdicional efectiva, a prevalência das decisões de mérito sobre as decisões de forma, ou seja, o princípio pro actione, e a justa composição do litígio (art. 7º, nº 1 do CPC).
Perante articulados deficientes, designadamente no tocante a “insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada” (art. 590º nº 4 CPC) que sejam sanáveis[6], a lei impõe ao juiz que ordene o respectivo aperfeiçoamento, por forma a que a acção possa vir a alcançar o seu objectivo, que é o conhecimento do mérito.
Já vimos que esse convite não foi feito e, atentas as diversas finalidades que o legislador previu, a omissão do convite plasmado no art. 590º nº 4 CPC poderá constituir também, como já referimos, uma nulidade processual (art. 195º do CPC).
Mas como o convite ao aperfeiçoamento só se justifica perante deficiências sanáveis (até pela proibição de prática de actos inúteis, art. 130º CPC), resta ainda averiguar se era aqui o caso, pois doutra forma não ocorre a nulidade do art. 195º CPC.
A nossa lei consagra a teoria da substanciação (cf. arts. 552º nº 1 al. d) e 581º nº 4 do CPC), isto é, impõe-se a alegação dos factos que integram a causa de pedir e fundamentam o pedido, formando-se caso julgado sobre a situação da vida assim delimitada.
Como é sabido, a causa de pedir consiste no acto ou facto jurídico de que emerge o direito que o Autor se propõe fazer valer ou no “(…) núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido (…)”[7].
Ora, dado que a previsão legal de direito material, a estatuição normativa, é formulada abstractamente, torna-se necessário alegar os factos concretos, as ocorrências da vida que, no caso, integram o núcleo essencial da previsão da norma e permitem identificar o referido “facto jurídico”.
Ou seja, é preciso não confundir a identidade de factos naturalísticos ou materiais com identidade de factos jurídicos.
Quanto à falta de causa de pedir, é consensual o entendimento de que não é a simples deficiência de alegação que acarreta a nulidade por ineptidão, mas a sua falta total. Esta é insanável, enquanto que aquela pode ser suprida.
O não estarem alegados todos os factos que integram a estatuição das normas de direito material que se invoca como causa de pedir é questão que ultrapassa a esfera da ineptidão da petição inicial para se situar no domínio da procedência/improcedência da acção.
Olhada a petição inicial, podemos concluir que manifestamente não estamos perante um caso de omissão total de factos.
Concluímos, no entanto, tal como, aliás, o tribunal recorrido concluiu, que os articulados apresentados não são exemplos de clareza e objectividade, merecendo, sem dúvida, um convite ao seu aperfeiçoamento - no sentido já por mais de uma vez salientado.
Importa dizer, de qualquer forma, que, não obstante isso, a Ré apresentou contestação e da análise da sua peça pode-se depreender ter ela interpretado a petição em termos de poder articular uma defesa eficaz.
Nestas circunstâncias, as deficiências que os articulados apresentados pelas AA. apresentam são sanáveis.
Os vícios de insuficiência/inteligibilidade de alegação são exactamente o campo de actuação do convite ao aperfeiçoamento.
A omissão de tal convite influi claramente no exame e decisão da causa, já que a parte fica coarctada da possibilidade de suprir as deficiências …”.
No caso, face, desde logo, à subsunção jurídica que a apelante efetua (ou outras), diversa, plausível, pode resultar vir a ser a solução do litígio e “o conhecimento do mérito da causa, total ou parcialmente, só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não tendo em vista apenas a (visão) partilhada pelo juiz da causa[8].
Assim, a exemplo do que sucedia no anterior art. 511º, do CPC, o juiz, ao identificar o objecto do litígio e ao fixar os temas da prova (art. 596º do CPC), deve (continuar a seleccionar para a matéria de facto (para os temas da prova), aquela que seja relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis de direito.
Nesta conformidade, “…o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito: ao despacho saneador não cabe antecipar qualquer solução jurídica e, muito menos, desconsiderar quaisquer factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objecto da acção. De maneira que se os elementos fornecidos pelo processo não justificarem essa antecipação, o processo deve prosseguir para a fase da instrução, realizando-se a apreciação do mérito na sentença final”[9].
Na verdade, “… quando o juiz coloca a si próprio a questão de saber se tem, efectivamente, condições para conhecer do mérito da causa, no despacho saneador, o mais frequente é ser duvidoso o sentido da resposta. Quer dizer, poucos serão os processos em que, na fase intermédia, o juiz pode, claramente, concluir que todos os factos alegados estão provados ou não provados… Por outro lado, esta dificuldade é agravada pela perspectiva de a questão de direito poder ter mais do que uma solução, implicando que o relevo dos referidos factos (ainda que controvertidos) varie em função desta ou daquela solução jurídica…”[10].
Assim, por uma questão de cautela, e para esse efeito, o Juiz deverá usar um critério objectivo, isto é, tomando como referência indicadores que não se cinjam à sua própria convicção acerca da solução jurídica do problema[11]”.
Aí bem se considerou que “o Tribunal Recorrido, apelando a uma interpretação própria e opinativa da factualidade[12], entendeu que, para esse efeito, era irrelevante apurar toda esta factualidade, considerando que o processo continha já todos os elementos necessários a proferir uma decisão de mérito conscienciosa (impedindo, nessa medida, que … pudessem produzir prova sobre essa factualidade que, como se acaba de referir, se mantém controvertida).
Daí que se nos afigure que o Tribunal Recorrido não podia, desde já, proferir tal decisão, porque desconsiderou o aludido comando legal de se dever atender à necessidade de ponderar a factualidade de acordo com (todas) as soluções igualmente plausíveis da questão de direito.
Com efeito, tendo em conta o aludido critério de atender às várias soluções plausíveis de Direito, impõe-se, no caso concreto, que a decisão a proferir, em sede de mérito, deva aguardar a produção dos meios de prova oferecidos ou que venham a ser produzidos pelas partes, seja em sede da fase instrutória do processo, seja em sede da Audiência Final, no que concerne à aludida factualidade … que ainda se mostra controvertida.
Na verdade, o conhecimento imediato do mérito só se realiza no despacho saneador se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito”.
Destarte, bem sendo esta a solução consagrada na lei e a interpretação que dela é efetuada pela Doutrina e Jurisprudência, nunca podem ser desconsiderados factos alegados que possam ser relevantes, segundo outros enquadramentos jurídicos, possíveis, de mérito, e enveredar, antecipadamente, por uma solução do pleito. Se não completamente concretizados os factos e cabalmente esclarecida a situação, sempre compete ao juiz, no âmbito dos seus poderes de gestão processual, determinar a sua especificada concretização, ou seja, efetuado o esclarecimento.
No caso concreto, e perante os factos essenciais e as posições das partes assumidas nos autos, outras soluções jurídicas da questão de direito se podem configurar como possíveis como resulta do alegado pela apelante a da posição da Jurisprudência e da Doutrina, designadamente da citada pela recorrente.
Para que outras soluções jurídicas, igualmente plausíveis, da questão de direito possam ser adotadas, necessária é a presença de toda a matéria de facto alegada pela Autora e a consideração, ainda, do carreado para os autos pela Ré e do adquirido para o processo.
Está em causa a alegação e a tutela que se pretende para uma situação de preço cobrado pela Ré, no momento do pagamento, superior ao anunciado, a originar pagamento, por consumidores, de “um sobrepreço que “chegou mesmo” a 0,20 euros por cada embalagem”. Alega a autora uma conduta da Ré - cobrança de um preço superior ao anunciado - que afetou um grupo de pessoas. E o alegado, que resultar provado, pode ser considerado suficiente para obter tutela de interesses reclamados através da presente ação popular, bem podendo, mesmo, vir a ser considerado assumirem os interesses aludidos na petição inicial importância na ordem pública, serem interesses de ordem pública, supra individuais, a “excedesse a mera soma ou agregação de um conjunto de interesses individuais pertencentes a uma mesma classe” e serem os mesmos “partilhados de forma homogénea e uniforme pelos membros da classe representada”.
Havendo factos controvertidos, relevantes para a decisão da causa segundo as várias soluções possíveis da questão de direito, têm os autos de prosseguir, podendo, mesmo, como vimos, o Tribunal a quo, determinar aperfeiçoamento.
E é garantida ampla liberdade, em sede de instrução, no sentido de permitir que, na produção de meios de prova sejam averiguados os factos circunstanciais ou instrumentais, designadamente aqueles que possam servir de base à posterior formulação de presunções judiciais, sendo que a instrução da causa “deve ter como critério delimitador o que seja determinado pelos temas da prova erigidos e deve ter como objetivo final habilitar o juiz a expor na sentença os factos que relevam para a decisão da causa, de acordo com as diversas soluções plausíveis da questão de direito”[13].
Não há, pois, “cristalização da matéria de facto na fase intermédia do processo, ficando relegada para a sentença, isto é, para depois de concluída a instrução, a definição do quadro fáctico da lide, o que é, aliás, uma decorrência do dever de o juiz considerar na decisão os factos complementares ou concretizadores que resultem da instrução (art. 5º, nº2, al. b))”[14], consagrando este preceito todos os factos a expor na decisão da matéria de facto (cfr. nº1, 2 e 3, de tal artigo) .
E importa referir, ainda, que mesmo a “maleabilidade ou plasticidade que a enunciação dos temas da prova confere à instrução não dispensa o juiz de, no momento em que proceder ao julgamento da matéria de facto, indicar com precisão os factos provados e não provados”[15], em obediência ao estatuído no nº 4, do art. 607º.
E na exposição dos factos, quer dos provados quer dos não provados “o juiz não deve orientar-se por uma preconcebida solução jurídica do caso, antes deve assegurar a recolha de todos os factos que se mostrem relevantes em função das diversas soluções plausíveis da questão de direito” pois “não é de excluir que, apesar de o concreto juiz entender que basta um determinado enunciado de factos provados ou não provados para que a ação proceda ou improceda, o tribunal superior, em sede de recurso, divirja daquela perspetiva e considere outras soluções dependentes do apuramento de outros factos. Em tais circunstâncias, melhor será que o juiz, de forma previdente, use um critério mais amplo, inscrevendo na matéria de facto provada e não provada todos os elementos que possam ter relevo jurídico, evitando ou reduzindo as anulações de julgamento decretadas ao abrigo do art. 662º, nº2, al. c), in fine[16].
Têm, pois, de ser analisados, para efeitos de serem considerados provados ou não provados, os factos alegados pelas partes, nos articulados da causa para, após, e com a necessária segurança e ponderação se encontrar a justa solução jurídica do caso.
Devem, assim, os autos prosseguir os seus ulteriores termos processuais para apreciação do pedido, com as, devidas identificação do objeto do litígio e enunciação dos respetivos temas da prova.
Destarte, procedendo a apelação, cumpre anular a decisão recorrida dado terem os autos de prosseguir termos para ser tida em consideração a matéria de facto, por relevante para a decisão da causa, segundo as várias soluções plausíveis para a questão de direito, em cumprimento do estatuído nos arts. 595º a 597º, do CPC.
Procedem, por conseguinte, as conclusões da apelação, devendo, por isso, a decisão recorrida ser anulada.
Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação procedente e, em consequência, anulam a decisão recorrida e ordenam o prosseguimento dos ulteriores termos do processo (com a identificação de objeto do litígio e a enunciação dos temas da prova).
Porto, 10 de março de 2025