PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO PROCESSUAL
PODERES-DEVERES DO JUIZ
INQUISITÓRIO
PRINCÍPIO DA AUTORESPONSABILIDADE DAS PARTES
Sumário

I – O princípio da cooperação, na perspetiva da colaboração do tribunal com as partes, consagra para o juiz o poder-dever de auxiliar qualquer das partes na remoção ou ultrapassagem de obstáculos que razoavelmente as impeçam de atuar eficazmente no processo, comprometendo o êxito da ação ou da defesa, e que não possam ser imputadas à parte por eles afetada.
II – Porém, de acordo com o disposto no art. 7º, nº 4 do Cód. Proc. Civil, a parte que pretenda obter a cooperação do tribunal terá que alegar, de forma justificada, que tem dificuldade séria em obter o documento ou a informação de que depende a eficácia da sua atuação processual.
III - Os poderes-deveres que o juiz tem no âmbito do princípio da cooperação devem ser conjugados com os princípios da autorresponsabilidade e da igualdade das partes, de modo a que uma das partes, que, por inércia ou imprevidência, tenha ignorado o ónus da prova que lhe incumbia, não possa ser injustificadamente favorecida em detrimento de outra.

Texto Integral

Proc. nº 132527/23.4YIPRT.P1

Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 2

Apelação

Recorrente: “A..., Lda.”

Recorrido: “B..., S.A.”

Relator: Eduardo Rodrigues Pires

Adjuntos: Desembargadores Anabela Andrade Miranda e Pinto dos Santos

Acordam na secção cível do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO

A autora “A..., Lda.”, com sede na Rua ..., ..., Vila Nova de Gaia, apresentou requerimento de injunção contra a ré “B..., S.A.”, com sede na Rua ..., ... - ..., Vila Nova de Gaia, pedindo que esta seja condenada no pagamento de 9.201,81€, quantia acrescida dos correspondentes juros de mora, vencidos no montante de 1.487,04€, e vincendos.

Para o efeito, alegou que, a pedido da ré, realizou obra de construção civil, tendo emitido a respetiva fatura, que não foi paga na totalidade.

A ré apresentou oposição, alegando que já pagou a totalidade dos serviços prestados, inexistindo justificação para o remanescente do preço que agora a autora reclama.

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento com observância das formalidades legais.

Por fim, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu a ré do pedido formulado.

Inconformada com o decidido, interpôs recurso a autora, tendo finalizado as suas alegações com as seguintes conclusões:

a) A matéria dada como provada não corresponde à prova produzida nos autos.

b) A conjugação da matéria alegada pelas partes, com os documentos juntos aos autos, as declarações das testemunhas apresentadas e a experiência normal de vida de um homem medianamente informado, teria que ter levado a uma conclusão diferente quanto à matéria dada como provada e não provada.

c) Ficou provado que a A. realizou as obras constantes do orçamento junto aos autos, orçamento esse que serviu de base à fatura emitida pela A: e cujo pagamento não foi integralmente realizado pela Ré.

d) A fatura global final foi emitida pela A: a pedido da Ré, para que esta se pudesse candidatar a fundos comunitários.

e) A A. emitiu nota de crédito para as faturas emitidas anteriormente cujo pagamento já havia sido efetuado pela Ré.

f) A Ré nunca negou que a A. realizou as obras constantes do orçamento junto pela A.

g) A Ré nunca negou que rececionou a fatura em crise nos autos e o orçamento que lhe serviu de base.

h) A Ré não devolveu a fatura aquando da sua receção.

i) A Ré nunca comunicou à A. que não aceitava a fatura emitida, ou o valor dela constante.

j) A A. emitiu a fatura de acordo com o orçamento e os autos de medição de obra realizados e comunicados à Ré.

k) Ficou provado pela prova produzida nos autos que a obra realizada pela autora a pedido da ré corresponde aos trabalhos descritos no orçamento datado de 27/09/2016.

l) Ficou provado que o preço acordado entre as partes para a obra era o constante do orçamento junto aos autos, ou seja, de €49.201,81.

Sem prescindir

m) O Tribunal Ad quo violou o princípio da cooperação.

n) O Tribunal Ad quo considerava essencial para a decisão da causa a junção aos autos dos autos de medição teria que, em respeito pelo princípio, notificar a parte (o A.) para juntar tais documentos aos autos.

o) O Tribunal Ad quo não pugnou pela descoberta da verdade e boa decisão da causa.

p) É obrigação de todos os intervenientes processuais pugnarem pela descoberta da verdade material.

q) Tal obrigação não se cinge apenas às partes, mas também ao Juiz do processo.

r) O Tribunal Ad quo deveria ter convidado o A. a juntar aos autos os autos de medição da obra.

s) Devem os autos baixar à Primeira Instância para nova produção de prova, devendo produzir-se as diligências necessárias para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa.

Pretende assim que seja revogada a sentença proferida, que deverá ser substituída por outra que, quanto à matéria de facto dê como provado que a obra realizada pela autora a pedido da ré corresponde aos trabalhos descritos no orçamento datado de 27.9.2016 e que o preço acordado entre as partes para a obra foi de 49.201,81€, e que, em conformidade, condene a ré a pagar à autora a quantia de 9.201,81€, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos até ao efetivo e integral pagamento.

Sem prescindir, deve ser considerado que ocorreu violação do princípio da cooperação e, em conformidade, deve ser ordenada a baixa do processo à primeira Instância para nova produção de prova, ordenando-se as diligências necessárias para a descoberta da verdade e para a boa decisão da causa.

A ré apresentou resposta, na qual se pronunciou pela confirmação do decidido.

Formulou as seguintes conclusões:

1. Alega a recorrente que a matéria dada como provada não corresponde à prova produzida nos autos;

2. Considera a Recorrente que a matéria alegada pelas partes, com os documentos juntos aos autos, as declarações das testemunhas apresentadas e a experiência normal de vida de um homem medianamente informado, teria de ter levado a uma conclusão diferente quanto à matéria dada como provada e não provada.

Ora,

3. A Recorrente não conseguiu demonstrar, como lhe competia nos termos do artigo 342.º do Código Civil, que os trabalhos descritos no Resumo de Orçamentos enviado à Recorrida foram efetivamente realizados, e que o valor acordado para a empreitada era superior a 40.000€;

4. Das declarações da testemunha arrolada pela recorrente é possível concluir que o mesmo não acompanhou o processo da obra em si, nem sequer elaborou os orçamentos constantes do resumo de orçamento enviado à Recorrida, limitando-se o seu trabalho à compilação dos orçamentos elaborados pela equipa de engenheiros;

5. A fatura emitida pela Recorrente, no valor de 49.201,81€, carece de suporte que justifique o valor nela discriminado;

6. Nomeadamente por nunca terem sido juntos ao processo os autos de medição que alegadamente terão servido de base à elaboração dos orçamentos.

7. Ao contrário do que alega a Recorrente, o depoimento da testemunha AA foi devidamente considerado pelo Tribunal a quo, que corretamente reconheceu que, não obstante aquilo que foi dito pela testemunha, a ausência dos autos de medição por ela mencionados, comprometeu a força probatória do seu depoimento, não permitindo confirmar a realização dos trabalhos nem o valor alegado.

8. Pelo que, a sentença recorrida não padece de qualquer erro de julgamento, atenta a sua adequada fundamentação.

9. A invocação da violação do princípio da cooperação é desprovida de fundamento, uma vez que cabia à Recorrente juntar aos autos os elementos necessários à demonstração do seu direito, o que não fez.

10. O princípio da cooperação, consagrado no artigo 7.º do CPC, não pode ser invocado para suprir a inércia da parte que não cumpre com o seu ónus, vigorando, em todo o caso, um princípio de auto-responsabilidade das partes.

11. Não tendo a Recorrente sequer solicitado, em momento algum, a intervenção judicial para a obtenção dos autos de medição, nomeadamente, por dificuldade em conseguir esses documentos, não pode agora o Tribunal a quo ser censurado por essa omissão.

12. Nestes termos carece de fundamento a alegada violação do Princípio da Cooperação alegada pela Recorrente.

O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

Cumpre então apreciar e decidir.


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FUNDAMENTAÇÃO

O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.


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As questões a decidir são as seguintes:

I – Apurar se deve ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto no tocante aos factos não provados;

II – Apurar se o tribunal recorrido deveria ter notificado o autor/recorrente para juntar ao processo os autos de medição, sendo que ao não o fazer violou o princípio da cooperação.


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É a seguinte a matéria de facto dada como provada na sentença recorrida:

1. A autora é uma empresa que se dedica à actividade de construção civil e obras públicas.

2. No exercício da sua actividade, a autora prestou à ré, a pedido desta, serviços e trabalhos de construção civil numa obra situada em ....

3. O preço acordado entre as partes para a obra foi de, pelo menos, €40.000,00.

4. A ré pagou à autora a quantia global de €40.000,00 em prestações.

5. A ré concluiu a obra.

6. A autora emitiu a factura ..., com o valor de €49.201,81.


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Os factos não provados são os seguintes:

6. A obra realizada pela autora a pedido da ré corresponde aos trabalhos descritos no orçamento datado de 27/09/2016.

7. O preço acordado entre as partes para a obra foi de €49.201,81.


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Passemos à apreciação do mérito do recurso.

I – Apurar se deve ser alterada a decisão proferida sobre a matéria de facto no tocante aos factos não provados

1. A autora/recorrente, na primeira parte do seu recurso, insurge-se essencialmente contra a matéria de facto não provada, pois entende ter demonstrado que a obra por si realizada a pedido da ré corresponde aos trabalhos descritos no orçamento datado de 27.9.2016 e que o preço acordado entre as partes para essa obra era o constante do orçamento junto aos autos, ou seja, de 49.201,81€.

Em suma, pretende que os factos não provados sejam considerados como assentes.

Nesse sentido indicou o depoimento da testemunha AA, de que especificou várias passagens com referência a marcos horários, e que considera não ter sido devidamente valorado pelo tribunal recorrido.

Indicou também o resumo de orçamentos e a fatura por si emitida no valor de 49.201,81€, documentos estes juntos em audiência.

2. Uma vez que consideramos observados, num patamar mínimo, os ónus previstos no art. 640º do Cód. Proc. Civil, procedemos à audição do referido depoimento.

AA trabalha no departamento financeiro da autora desde 2013 e só teve contacto com a ré através de mails. Disse que não acompanhou processo da obra em si, mas sim o processo de faturação e emissão de orçamentos. Referiu que para a ré foram feitos vários orçamentos e vários trabalhos, tendo havido muitos extras. No fim, fizeram um resumo global de todos os orçamentos e de todos os trabalhos efetuados e daí resultou o valor de 49.201,81€. Disse também que a ré inicialmente começou a fazer pagamentos com base nos autos de medição que emitiram. A ré solicitou ainda a emissão de uma fatura global final, relativa a todos os trabalhos, de modo a poder candidatar-se a fundos comunitários. Os orçamentos foram elaborados pela equipa de engenheiros e depois compilados pela testemunha. Na emissão da fatura tem também em atenção o que resulta dos autos de medição.

Este depoimento terá que ser conjugado com o teor da documentação junta em audiência, composta por um resumo de orçamentos e faturação.

3. A Mmª Juíza “a quo”, em sede de motivação dos factos não provados, escreveu o seguinte na sentença recorrida:

“Na audiência de 18 de Setembro de 2024, foi junto um documento elaborado pela autora, intitulado “Resumo Orçamentos”, que descreve trabalhos de construção civil com indicação dos respectivos valores. Somados os mesmos, o valor global corresponde a €49.201,81, aí se consignando que ao valor dos trabalhos acresce IVA à taxa legal em vigor. Tal documento não se mostra assinado pelas partes, mormente por representante da ré, não sendo possível concluir nem que os respectivos valores foram por esta aceites nem que os trabalhos ali descritos correspondem aos trabalhos efectivamente realizados para a ré.

Não obstante a testemunha AA, funcionário da autora que trabalha no seu departamento financeiro desde 2013, ter afirmado que elaborou a factura junta ao processo com base nos autos de medição elaborados, os mesmos não foram juntos ao processo, impedindo a conclusão de que todos aqueles trabalhos foram realizados e que o valor nela consignado é o devido.

A testemunha BB, funcionário da ré desde 2014 como comercial, agora responsável pelas compras, nada evidenciou saber também a este propósito.”

4. O art. 662º, nº 1 do Cód. Proc. Civil estabelece que «[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»

Ora, do depoimento produzido pela testemunha AA apenas decorre que foi solicitada à autora uma fatura global final relativa a todos os trabalhos, o que este fez. Dele não flui que os trabalhos incluídos no “resumo orçamentos” tenham sido efetivamente realizados.

Com efeito, tal como refere a Mmª Juíza “a quo”, este documento não se mostra assinado pelas partes, em particular por representante da ré, donde não é possível concluir nem pela aceitação dos valores dele constantes, nem pela efetiva realização dos trabalhos nele descritos.

De resto, a testemunha AA foi bem elucidativa ao afirmar no seu depoimento que não acompanhou o processo da obra em si, mas tão-somente o processo de faturação e emissão de orçamentos, tendo, porém, salientado que os orçamentos foram elaborados pela equipa de engenheiros e só depois compilados por si.

Constata-se, pois, que a testemunha não participou nem na negociação do contrato, nem na elaboração dos orçamentos, tal como também não acompanhou a obra, o que, naturalmente, desvaloriza o seu depoimento.

É certo que neste depoimento referiu que na emissão da fatura teve em atenção o que resultava dos autos de medição, mas estes não foram juntos ao processo pela autora/recorrente, sendo certo que o ónus da prova dos factos ora impugnados lhe cabia, nos termos do art. 342º, nº 1 do Cód. Civil, por serem constitutivos do direito por si invocado.

Neste contexto, embora conste do processo a fatura ..., com o valor de 49.201,81€, o que se mostra assente sob o nº 6, esta e o depoimento da testemunha AA não são bastantes, só por si, para se ter como demonstrada a realização dos trabalhos referidos naquela fatura e que o preço total acordado para a obra pelas partes ascendeu à importância nela inscrita, no que se concorda com a posição assumida pela 1ª Instância.

Como tal, nesta parte - conclusões a) a l) –, improcede o recurso interposto.


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II – Apurar se o tribunal recorrido deveria ter notificado o autor/recorrente para juntar ao processo os autos de medição, sendo que ao não o fazer violou o princípio da cooperação

1. A autora, na segunda parte do seu recurso, veio sustentar que se o tribunal considerava essencial para a decisão da causa a junção dos autos de medição deveria tê-la notificado para esse efeito.

Não o tendo feito, foi violado o princípio da cooperação, devendo os autos baixar à 1ª Instância, para nova produção de prova, com efetivação das diligências necessárias à boa decisão da causa.

Vejamos então.

2. No art. 7º do Cód. Proc. Civil, sob a epígrafe «princípio da cooperação», estatui-se no seu nº 1 que «[n]a condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, concorrendo para se obter, com brevidade e eficácia, a justa composição do litígio

A cooperação é uma responsabilidade conjunta de todos os intervenientes processuais, com destaque para o juiz e para os mandatários das partes, cumprindo ao juiz proceder à análise detalhada das faltas supríveis, das quais possam resultar prejuízos para as partes. Cada parte deve encarar o processo como um simples instrumento necessário à busca da solução justa, com reflexos na ilegitimidade de formulação de pretensões ou argumentos inconsistentes, dedução de incidentes ou oposições sem fundamento razoável ou iniciativas tomadas com o mero objetivo de dilatar a conclusão do processo.[1]

O princípio da cooperação - bem como outros que lhe são conexos, como o da direção do processo e o incremento da inquisitoriedade judicial – o que vem restringir é a passividade do juiz, afastando a velha ideia liberal que encarava o processo como uma luta entre as partes, meramente arbitrada pelo julgador. Ao juiz deve incumbir procurar ativamente – com respeito pela autonomia da vontade das partes, expressa nos princípios dispositivo e da autorresponsabilidade – que cada processo consiga alcançar o seu fim: compor o litígio segundo as regras de direito material aplicáveis e após indagação, tanto quanto possível exaustiva, sobre a matéria de facto controvertida.[2]

O princípio da cooperação envolve duas vertentes: i) a cooperação das partes com o tribunal; ii) a cooperação do tribunal com as partes.

Ora, como concretização da cooperação do tribunal com as partes é de referir a consagração para o juiz do poder-dever de auxiliar qualquer das partes na remoção ou ultrapassagem de obstáculos que razoavelmente as impeçam de atuar eficazmente no processo, comprometendo o êxito da ação ou da defesa, e que não possam ser imputadas à parte por eles afetada.[3]

3. O princípio da cooperação, consagrado no referido art. 7º do Cód. Proc. Civil, deve também ser articulado com o princípio do inquisitório, aflorado no art. 411º do mesmo diploma, onde se estatui o seguinte:

«Incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer

Contudo, na linha do que já atrás se referiu, os princípios da cooperação e do inquisitório coexistem com outros, como sejam os do dispositivo, da preclusão, da autorresponsabilidade das partes, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, de modo que não poderão ser invocados para, de forma automática, superar eventuais falhas de instrução que sejam de imputar a alguma das partes, designadamente quando esteja precludida a apresentação de meios de prova.[4]

O princípio dispositivo significa que as partes dispõem do processo, como da relação jurídica material. O processo é coisa ou negócio das partes. É uma luta, um duelo entre as partes, em que o juiz arbitra a pugna, controlando a observância das normas processuais e assinalando e proclamando o resultado. Donde a inércia e a passividade do juiz em contraste com a atividade das partes.[5]

Contraposto a este princípio surge o princípio inquisitório ou da oficialidade, em que o seu enunciado e a determinação das suas consequências se obtêm por inversão da formulação do princípio dispositivo.

Acontece que o nosso sistema processual que é de matriz dispositiva tempera este modelo com diversas medidas de natureza inquisitória, onde se salienta o referido art. 411º do Cód. de Proc. Civil.

O princípio da autorresponsabilidade das partes significa que são as partes que conduzem o processo a seu próprio risco. Elas é que têm de deduzir e fazer valer os meios de ataque e de defesa que lhes correspondam, incluindo as provas, suportando uma decisão adversa, caso omitam algum. A negligência ou inépcia das partes redunda inevitavelmente em prejuízo delas, porque não pode ser suprida por iniciativa e atividade do juiz.[6]

O princípio da preclusão exprime a ideia de que há ciclos processuais rígidos, cada um com a sua finalidade própria e formando compartimentos estanques. Por isso, os atos, onde se englobam as alegações de factos ou os meios de prova, que não tenham lugar no ciclo próprio ficam precludidos.[7]

O princípio da igualdade das partes consiste em as partes serem colocadas no processo em perfeita paridade de condições, desfrutando de idênticas possibilidades de obter a justiça que lhes seja devida.[8]

4. Regressando ao caso concreto, o que se verifica é que a autora teve oportunidade de juntar ao processo os autos de medição, tal como o fez relativamente ao denominado “resumo de orçamentos” e à fatura ....

Concluída a produção de prova, a autora, através do seu mandatário, também nada disse ou requereu em relação a esses autos de medição aos quais a testemunha AA havia aludido no seu depoimento.

Apenas em sede de recurso vem sustentar que a Mmª Juíza “a quo”, com apoio no princípio da cooperação, a deveria ter notificado, no decurso da audiência, face à importância que tal teria para a decisão da causa, para juntar aos autos essa documentação.

Ou seja, a autora, sem nada ter dito nesse sentido, pretendia que o julgador a auxiliasse e a advertisse para o efeito negativo da sua inércia quanto à não junção dos autos de medição.

Só que se a Mmª Juíza “a quo” assim tivesse agido estaria a violar o princípio da autorresponsabilidade das partes e também o princípio da igualdade das partes no processo, colocando-se numa posição em que eventualmente viria a favorecer uma parte e, em simultâneo, desfavoreceria a outra.[9]

E se a autora chama em apoio da sua pretensão o princípio da cooperação consagrado no art. 7º do Cód. Proc. Civil, não se pode ignorar aqui o seu nº 4 onde se preceitua o seguinte:

«Sempre que alguma das partes alegue justificadamente dificuldade séria em obter documento ou informação que condicione o eficaz exercício de faculdade ou o cumprimento de ónus ou dever processual, deve o juiz, sempre que possível, providenciar pela remoção do obstáculo

Sucede que este normativo pode mostrar-se especialmente relevante em situações em que a parte esteja impedida de aceder a determinados dados de natureza administrativa[10], o que não é o presente caso.

Pressupõe, de qualquer modo, que a parte alegue, de forma justificada, que tem dificuldade em obter o documento ou informação em causa, o que a autora/recorrente manifestamente não fez.

Foi apenas depois de conhecida a sentença da 1ª Instância, que julgou a ação improcedente, que a autora, já em fase de recurso, veio sustentar, apelando ao princípio da cooperação, que a Mmª Juíza “a quo” a deveria ter notificado para juntar ao processo os autos de medição, dada a essencialidade dessa documentação para a decisão da causa.

Afigura-se-nos de meridiana clareza que esta pretensão da recorrente não pode ser acolhida.

É que se agora fossemos determinar que os autos regressassem à 1ª Instância, a fim de que a autora pudesse juntar os autos de medição, o que esta não fizera em momento processualmente adequado, estaríamos a violar, de forma grave, os princípios da autorresponsabilidade e da igualdade das partes.

Estar-se-ia a admitir que, pese embora a inércia da autora e a sua imprevidência ao não juntar os autos de medição ao processo, nada tendo dito sobre essa não junção, pudesse agora depois de concluída a produção de prova e conhecida a sentença, que não acolheu a sua posição, fazer que o processo regressasse à 1ª Instância a fim de proceder a essa junção, o que sempre fora ignorado pela autora até ao momento em que interpôs recurso.

Haveria um claro favor concedido à autora, que descurara a junção dos autos de medição, apesar da prova dos factos constitutivos do seu direito lhe caber, em detrimento da ré que, em função do funcionamento das regras do ónus probatório, lograra ganho de causa.

Para além disso, haverá ainda a salientar que a aplicação do disposto no art. 7º do Cód. Proc. Civil, sempre implicará, por força do seu nº 4, que a parte alegue justificadamente dificuldade séria na obtenção dos documentos, o que, neste caso, nunca se poderia verificar, uma vez que estamos perante documentação que a própria autora deveria ter em arquivo e à qual acederia sem qualquer dificuldade.

Por conseguinte, também nesta parte – conclusões m) a s) -, improcede o recurso interposto.[11]


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Sumário (da responsabilidade do relator – art. 663º, nº 7 do Cód. Proc. Civil):

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DECISÃO

Nos termos expostos, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pela autora “A..., Lda.” e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.


Porto, 11.3.2025
Rodrigues Pires
Anabela Miranda
Pinto dos Santos
___________________
[1] Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., pág. 36.
[2] Cfr. LOPES DO REGO, “Comentários ao Código de Processo Civil”, 2ª ed., pág. 266.
[3] Cfr. LOPES DO REGO, ob. cit., págs. 266 a 268.
[4] Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, ob. cit., pág. 503 e Ac. Rel. Coimbra de 12.3.2019, proc. 141/16.2 T8PBL-A.C1, relator ALBERTO RUÇO, disponível in www.dgsi.pt.
[5] Cfr. MANUEL DE ANDRADE, “Noções Elementares de Processo Civil”, 1979, págs. 373/374.
[6] Cfr. MANUEL DE ANDRADE, ob. cit., pág. 378.
[7] Cfr. MANUEL DE ANDRADE, ob. cit., pág. 382.
[8] Cfr. MANUEL DE ANDRADE, ob. cit., pág. 380.
[9] Cfr. o já referido Ac. Rel. Coimbra de 12.3.2019, proc. 141/16.2 T8PBL-A.C1, relator ALBERTO RUÇO, disponível in www.dgsi.pt.
[10] Cfr. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA e PIRES DE SOUSA, ob. cit., pág. 37.
[11] Sobre esta matéria cfr. também Acs. Rel. Porto de 22.6.2020, p. 110/18.8 T8VLG-B.P1 (RITA ROMEIRA) e de 19.11.2024, p. 81/23.9 T8VLC.P1, do presente relator, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.