EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
SUSTENTO DIGNO DO DEVEDOR
Sumário

I - O apuramento do montante razoavelmente necessário ao sustento digno do devedor (art. 239º, nº 3, b) i) do CIRE) é determinado pela valorização casuística das concretas e peculiares necessidades do devedor, actuando a cláusula do razoável e o princípio da proibição do excesso, a ideia de justa medida e de proporção.
II - O critério geral e abstracto utilizado pela lei para a determinação do montante mínimo do sustento digno do devedor (‘o razoavelmente necessário ao sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar’) tem como referencial primordial a ideia de existência condigna do insolvente, ponderando a sua concreta situação, o que aponta para as peculiaridades e singularidades de cada pessoa.
III - Tal critério geral e abstracto para determinação do montante mínimo do sustento digno do devedor deve ser harmonizado e conjugado com a ponderação efectuada pelo ordenamento jurídico quanto ao que deva ser considerado como o montante mínimo para acudir às despesas inerentes a uma existência condigna – o valor da remuneração mínima mensal garantida contém uma ponderação do ordenamento jurídico, sobre o que se deve ter por mínimo de remuneração estritamente indispensável à satisfação das necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador, sendo tida pelo ordenamento como o montante mínimo estritamente indispensável à satisfação das necessidades impostas pela sobrevivência digna do devedor.
IV - Sendo a devedora emigrante em França, onde reside, o valor do salário mínimo a ponderar, para efeitos da fixação do montante do rendimento indisponível, é o estabelecido pelas autoridades francesas.

Texto Integral

Apelação nº 2089/24.8T8STS.P1
Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Anabela Andrade Miranda
                 Lina Castro Baptista


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Acordam no Tribunal da Relação do Porto


RELATÓRIO

Apelante (credora): AA.

Apelada (devedora): BB

Juízo de comércio de Santo Tirso (lugar de provimento de Juiz 6) – T. J. da Comarca do Porto.


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Na petição com que se apresentou à insolvência, a devedora BB, emigrante em França, requereu lhe fosse concedida a exoneração do passivo restante, manifestando predispor-se a ceder o rendimento disponível que pudesse futuramente deter e executar todas as obrigações decorrentes do plasmado no art. 239º do CIRE, requerendo fosse fixado rendimento indisponível de acordo com as suas despesas – que ultrapassam o valor do seu vencimento (o que lhe impõe o recurso a ajuda de terceiros para custear integralmente as despesas em renda, electricidade, água, telecomunicações, internet, televisão, alimentação, transporte e despesas pessoais e de higiene) – e ponderando o salário mínimo nacional em França, em vista de garantir o seu sustento minimamente digno.

Declarada a insolvência, foi proferida decisão que, declarando encerramento do processo (art. 230º, nº 1, e) do CIRE) e o caracter fortuito da insolvência (art. 233º, nº 6 do CIRE), admitiu liminarmente a requerida exoneração do passivo restante e fixou no equivalente a dois (2) salários mínimos nacionais o rendimento indisponível, determinando ter a devedora obrigação de entregar à fidúcia os montantes que receba anualmente e que excedam doze vezes tal valor.

Não se conformando com o montante fixado como rendimento indisponível da devedora, e pretendendo que o mesmo seja reduzido para o valor equivalente ao de um salário mínimo nacional acrescido de ½ (ponderando os valores para o mesmo fixados na legislação nacional), apela a credora AA, extraindo das alegações as seguintes conclusões:

a) O presente Recurso de Apelação vem interposto do despacho inicial de exoneração do passivo restante, proferido em 29 de setembro de 2024, que fixou o rendimento indisponível da Insolvente em dois (2) salários mínimos nacionais;

b) A questão a analisar circunscreve-se à necessidade de se aquilatar se, no caso sub judice, dois (2) salários mínimos nacionais são o necessário para garantir a subsistência minimamente condigna da Insolvente;

c) No caso concreto, apurou-se que a Insolvente é divorciada, tem 51 anos e não tem filhos a seu cargo, sendo o seu agregado familiar composto exclusivamente pela própria, que se encontra emigrada em França auferindo um vencimento mensal na ordem dos 1.700,00€, que reside em casa arrendada, ascendendo a renda mensal a € 985,00 e que é ainda com o vencimento auferido que suporta as despesas necessárias ao seu sustento, nomeadamente alimentação, eletricidade, água, gás, produtos de higiene, medicamentos e consultas médicas não comparticipadas, vestuário, etc.;

d) O rendimento indisponível da Insolvente, correspondente a dois (2) salários mínimos nacionais, ascende, em 2024, a € 1.640,00 mensais;

e) É consabido que em França não são pagos subsídios de férias e de Natal;

f) O montante fixado a título de rendimento indisponível coincide, assim, com as despesas suportadas pela Insolvente, o que, obviamente, impedirá a satisfação integral ou parcial dos créditos reconhecidos;

g) O montante fixado a título de rendimento indisponível permitirá à Insolvente manter os gastos nos precisos termos em que o fazia antes da insolvência e que, se não foram a causa da mesma terão necessariamente contribuído para a situação financeira em que se encontra;

h) A manter-se o montante fixado a título de rendimento indisponível a Insolvente não necessitará de adaptar o seu nível de vida à situação especial em que se encontra, passando incólume ao período de cessão e podendo a final ver perdoadas as suas dividas, sem que nada tenha pago;

i) A exoneração do passivo restante não pode traduzir-se na desresponsabilização da Devedora;

j) Ao invés, deve implicar o seu empenho e sacrifício no sentido de comprimir ao máximo as suas despesas, como contrapartida do sacrifício imposto aos credores;

k) Pelo que deve o rendimento indisponível ser fixado em montante nunca superior a 1 salário mínimo mensal acrescido de ½, o que perfaz atualmente a quantia de € 1.230,00.

Contra-alega a devedora em defesa da decisão apelada e pela improcedência da apelação, concluindo:

I. Recebidas as Alegações apresentadas pela Credora a Insolvente não pode concordar com os factos aí alegados.

II. A Credora Recorrente alega que, o rendimento indisponível da Insolvente, correspondente a dois (2) salários mínimos nacionais, (€ 1.640,00) é excessivo, devendo ser reduzido a um salário e meio mínimo mensal.

III. A requerente apresenta despesas mensais numa média mensal de €1.821,98, confirmadas pelo no relatório a que alude o art.º 155º do CIRE.

IV. Contrariamente ao alegado despesas mensais da Insolvente apresentam um montante total superior ao seu vencimento.

V. A Insolvente não tem meios para custear sequer as despesas fixas mensais, uma redução do rendimento indisponível colocaria a Insolvente numa situação de precaridade não condigna.

VI. A definição do valor atribuído deve assegurar o sustento minimamente digno da insolvente, sem desconsiderar os direitos básicos mensais, ignorar que atualmente atravessamos graves problemas, a nível nacional e europeu, inerentes à inflação e custo de vida.

VII. A insolvente vive em França onde o custo de vida é muito elevado e tal condicionante tem que ser relevante e considerada, para a atribuição do seu rendimento indisponível.

VIII. O rendimento ora fixado não permite à insolvente uma vida mais confortável, como é referido pela Recorrente, permitindo-lhe sim, colmatar as suas efetivas necessidades, como se demonstrou.

IX. Conclui-se que, a fixação do rendimento indisponível, atribuído pelo Tribunal “a quo”, demonstra-se adequada aos circunstancialismos decorrentes dos presentes autos, e como tal deverá improceder o presente recurso.


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Colhidos os vistos, cumpre, decidir.

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Objecto do recurso

Considerando a decisão recorrida e as conclusões formuladas nas alegações, o objecto do recurso consiste em apreciar da justeza do montante fixado à devedora apelada para o seu sustento minimamente digno, nos termos do art. 239º, nº 3, b), subalínea i) do CIRE, a excluir dos rendimentos a entregar ao fiduciário nomeado - foi fixado o montante correspondente ao de dois salários mínimos nacionais, 12 meses no ano, e a credora apelante pretende que seja fixado em montante equivalente a uma vez e meia o salário mínimo nacional.


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FUNDAMENTAÇÃO

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Fundamentação de facto

Na decisão apelada fez-se constar como relevante, a propósito da questão, a seguinte matéria de facto:

1. A requerente apresentou-se à insolvência por petição inicial de 9.7.2024 e por sentença de 12.7.2024 veio a mesma a ser declarada.

2. Na indicada petição inicial, a requerente deduziu pedido de exoneração do passivo restante e afirmou preencher os requisitos desta, dispondo-se a observar todas as condições exigidas nos artigos 237º e seguintes do CIRE.

3. Juntou a declaração a que alude o art. 236º, n.º 3 do CIRE.

4. A requerente apresenta um passivo reconhecido pelo Sr. Administrador da Insolvência no montante global de 9 652,45€.

5. Não foram apreendidos bens para a massa insolvente.

6. A requerente é divorciada, tem 51 anos e não tem filhos a seu cargo, sendo o seu agregado familiar constituído exclusivamente pela própria.

7. A requerente encontra-se emigrada em França e aí trabalha por conta de outrem, auferindo um vencimento mensal na ordem dos 1700€.

8. A requerente reside em casa arrendada, ascendendo a renda mensal a 985,00€.

9. Com o rendimento referido em 7, a requerente suporta as despesas necessárias ao seu sustento, nomeadamente renda, alimentação, eletricidade, água, gás e suportando ainda as despesas com produtos de higiene, medicamentos e consultas médicas não comparticipadas, vestuário, etc..

10. A requerente não beneficiou da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência.

11. A requerente não forneceu, por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, com dolo ou culpa grave, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza.

12. Não constam do processo nem foram fornecidos até ao momento elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa da devedora na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do art. 186º.

13. Não resulta dos autos nem foi alegado e provado que a devedora, com dolo ou culpa grave, violou os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do CIRE, no decurso deste processo.

14. A requerente não tem antecedentes criminais registados no seu CRC relativos a crimes previstos e punidos nos artigos 227º a 229º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data.


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Fundamentação de direito

O regime da exoneração do passivo restante, instituído nos art. 235º e seguintes do CIRE, específico da insolvência das pessoas singulares, é um instituto ‘tributário da ideia de fresh start’, sendo propósito da lei ‘libertar o devedor das suas obrigações, realizar uma espécie de azzeramento da sua posição passiva, para que depois de «aprendida a lição», ele possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da sua actividade económica ou empresarial’ – o objectivo é, pois ‘dar ao sujeito a oportunidade de (re)começar do zero’[1].

Ao consagrar o instituto da exoneração do passivo restante assumiu o CIRE o propósito de conjugar inovadoramente ‘o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica.’[2]

Tributário do conceito de fresh start, o modelo da exoneração adoptado no nosso ordenamento aproxima-se, indiscutivelmente, do modelo do earned start ou da reabilitação – o modelo puro do fresh start baseia-se na ‘ideia de que a liquidação patrimonial e o pagamento das dívidas devem ter lugar no curso do processo de insolvência, sendo que uma vez concluído este, restem ou não dívidas por pagar, o devedor deverá ser libertado de forma a poder retomar, com tranquilidade, a sua vida’; o modelo da reabilitação (earned start) ‘assenta ainda no fresh start mas desenvolve um raciocínio diferente: o raciocínio de que o devedor não deve ser exonerado em quaisquer circunstâncias pois, em princípio, os contratos são para cumprir (pacta sunt servanda)’ e, assim, o ‘devedor deve passar por uma espécie de período de prova, durante o qual parte dos seus rendimentos é afectada ao pagamento das dívidas remanescentes’ e só findo esse período, demonstrado que merece (earns) a exoneração, deverá ser-lhe concedido o benefício[3].

A obtenção do benefício [libertação dos débitos não satisfeitos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste[4] – a exoneração, em rigor, qualifica-se como uma (nova) causa de extinção das obrigações, extraordinária ou avulsa relativamente ao catálogo de causas tipificado nos arts. 837º a 874º do CC[5]; o seu regime ‘implica fundamentalmente que, depois do processo de insolvência e durante algum tempo, os rendimentos do devedor sejam afectados à satisfação dos direitos de crédito remanescentes, produzindo-se, no final, a extinção dos créditos que não tenha sido possível cumprir por essa via, durante tal período’[6]] justificar-se-á se o devedor observar a conduta recta que o cumprimento dos requisitos legalmente previstos pressupõe (arts. 239º, 243º e 244º do CIRE) – tem de merecer a concessão do benefício. Efectivamente, o incidente de exoneração do passivo restante não pode redundar num ‘instrumento oportunística e habilidosamente empregue unicamente com o objectivo de se libertarem os devedores de avultadas dívidas, sem qualquer propósito mesmo de alcançar o seu regresso à actividade económica, no fundo o interesse social prosseguido’[7].

Não havendo razões para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelo devedor, o juiz proferirá despacho inicial (art. 239º nº 1 e 2 do CIRE) determinando que, durante os três anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência (o período da cessão), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, o fiduciário, para os fins do art. 241º do CIRE (ou seja, pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas, ao pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efectuadas e, por fim, distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência).

No final do período da cessão, proferir-se-á decisão sobre a concessão ou não da exoneração (art. 244º, nº 1 do CIRE) e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados (art. 245º do CIRE).

O rendimento disponível do devedor objecto da cessão ao fiduciário, nos termos do art. 239º, nº 2 do CIRE, é integrado por todos os rendimentos que ao devedor advenham, a qualquer título, no referido período, com exclusão, no que interessa à economia da presente decisão, do que seja razoavelmente necessário para o seu (e do seu agregado) sustento minimamente digno, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional (art. 239º, nº 3, b), i) do CIRE) e do que seja razoavelmente necessário para outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor (art. 239º, nº 3, b), iii) do CIRE).

Estabeleceu o legislador na exclusão prevista na subalínea i) da alínea b) do nº 3 do art. 239º do CIRE, um limite máximo por referência a um critério quantificável objectivamente – o equivalente a três salários mínimos nacionais (sendo certo que este limite máximo pode ser excedido em casos justificados, mas excepcionais) – e um limite mínimo por referência a um critério geral e abstracto – o razoavelmente necessário ao sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar –, a preencher pelo aplicador, caso a caso, conforme as circunstâncias concretas e peculiares do devedor.

O critério do ‘razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar’ é matéria de particular complexidade, visando a conciliação de dois interesses conflituantes: um, apontando no sentido da protecção dos credores dos insolventes; outro, na lógica da ‘segunda oportunidade’ concedida ao devedor, visa proporcionar-lhe condições para que se reintegre na vida económica quando emergir da insolvência, passado o período da cessão a que fica sujeito com compressão da disponibilidade dos seus rendimentos[8] - foi propósito afirmado do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, ao instituir o incidente da exoneração do passivo restante, o de conjugar inovadoramente ‘o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica’[9].

Critério (para se determinar o montante a excluir do rendimento disponível a ceder ao fiduciário – e a reservar, assim, para o sustento do devedor) conformado pela chamada ‘função interna do património, enquanto suporte de vida económica do seu titular’, referindo-se o preceito (a subalínea i) da alínea b) do nº 3 do art. 239º do CIRE), ao sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar – donde decorre a prevalência da função interna do património sobre a sua função externa (a garantia geral dos credores)[10].

A função interna do património, enquanto alicerce da existência digna das pessoas (suporte da sua vida económica) tem tradução em várias normas da legislação ordinária, designadamente em normas destinadas a conferir justo e adequado equilíbrio entre os conflituantes interesses legítimos do credor (obtenção da prestação) e do devedor (inalienável direito à manutenção de um nível de subsistência condigno), como é o caso do artigo 239º, nº 3, b), i) do CIRE.

A exclusão do rendimento a ceder ao fiduciário do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar é exigência do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de direito, afirmado no art. 1º da CRP e aludido também no artigo 59º, nº 1, a) da CRP. Reconhecimento do princípio da dignidade humana que exige do ordenamento jurídico o estabelecimento de normas que salvaguardem a todas as pessoas o mínimo julgado indispensável a uma existência condigna.

Na subalínea i), alínea b), do nº 3 do art. 239º do CIRE está em causa a garantia e salvaguarda do sustento minimamente digno das pessoas – a exclusão prevista no preceito é a ‘resposta natural, forçosa e obrigatória às necessidades e exigências que a subsistência e sustento colocam ao devedor insolvente e ao seu agregado familiar’[11].

A garantia do sustento minimamente digno das pessoas (em última análise, a defesa da dignidade humana) é o fundamento axiológico da norma – e por isso que o artigo 239º, nº 3, b), i) do CIRE consagra um inalienável direito à manutenção de um nível de subsistência condigno.

Sendo a determinação do montante razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar obtido por uma ponderação casuística por parte do intérprete das concretas e peculiares necessidades do devedor e seu agregado familiar, fazendo actuar a cláusula do razoável e o princípio da proibição do excesso[12], pode ter-se por seguro que não está em causa reservar-lhe um montante que assegure ‘apenas e tão só um mínimo de sobrevivência’ – poderá existir a ‘tendência de considerar que o requerente beneficiário da exoneração não pode pretender manter o trem de vida económico prévio à sua agora débil situação económica’, assim devendo ser-lhe ‘reservado como disponível um montante que assegure apenas e tão só um mínimo de sobrevivência, sob pena de não sentir os efeitos da sua quiçá imprudente administração’, mas ‘sustento minimamente digno’ não equivale à ‘atribuição de um mínimo pecuniário de estrita sobrevivência’, não podendo negar-se ao ‘instituto da exoneração a sua finalidade precípua de regeneração do insolvente para voltar à inclusão económica e social, expurgado de um passivo que não consegue solver’[13].

De excluir, pois – num campo onde intervém o conceito de dignidade, a ideia de subsistência digna –, interpretações punitivas, devendo erigir-se como padrão de referência ‘aquele que, sem descurar os direitos dos credores, não afecte o devedor, remetendo-o aos limites de uma sobrevivência penosa, socialmente indigna, sob pena de a proclamada intenção de o recuperar economicamente constituir uma miragem’[14].

Tem-se por correcto que o critério geral e abstracto utilizado pela lei para a determinação do montante mínimo do sustento digno do devedor (‘o razoavelmente necessário ao sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar’) tem como referencial primordial a ideia de existência condigna do insolvente, ponderando a sua concreta situação, o que aponta para as peculiaridades e singularidades de cada pessoa.

Deve aceitar-se, porém, que tal critério geral e abstracto para determinação do montante mínimo do sustento digno do devedor deve ser harmonizado e conjugado com a ponderação efectuada pelo ordenamento jurídico quanto ao que deva ser considerado como o montante mínimo para acudir às despesas inerentes a uma existência condigna – o salário mínimo nacional (remuneração mínima mensal garantida, de acordo com a actual designação legal que a estabelece no nosso ordenamento nacional – para o pretérito ano de 2024, o DL n.º 107/2023, de 17/11, fixou tal valor em 820,00€, sendo que tal valor ascende já, desde 1/01/2025, por força do DL 112/2024, de 19/12, a 870,00€) deve considerar-se como ‘o montante mínimo para acudir às despesas inerentes a uma vida que se pretende seja vivida com dignidade, tendo em conta despesas’ de sobrevivência, ‘como são as relacionadas com a habitação, alimentação, vestuário, consumos de bens essenciais (água, luz, transportes) e assistência médica’, constituindo, assim, o limite mínimo de exclusão dos rendimentos, não podendo nenhum devedor ser ‘privado de valor igual ao salário mínimo nacional, sob pena de não dispor de condições mínimas para desfrutar uma vida digna’; utilizando a lei (subalínea i), alínea b), do nº 3 do art. 239º do CIRE) como referência quantitativa o salário mínimo nacional para estabelecer o limite máximo isento da cessão do rendimento disponível, a tal referência se deve atender também para, em cada caso concreto, a partir dele, se ponderar o quantum que deve considerar-se como o razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e seu agregado familiar[15].

O valor da remuneração mínima mensal garantida contém uma ponderação do ordenamento jurídico, sobre o que se deve ter por mínimo de remuneração estritamente indispensável à satisfação das necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador[16] (uma ponderação anualmente revista e actualizada) – a remuneração mínima mensal garantida é tida pelo ordenamento como o montante mínimo estritamente indispensável à satisfação das necessidades impostas pela sobrevivência digna do devedor[17]. Assim, sem prejuízo da determinação do montante razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar dever obter-se pela valorização casuística das concretas e peculiares necessidades do devedor (e seu agregado familiar, seja esse o caso), actuando a cláusula do razoável e o princípio da proibição do excesso, a ideia de justa medida e de proporção – justa medida, cláusula do razoável e proibição do excesso que devem sempre reflectir-se na fixação do montante do rendimento indisponível do devedor em vista de prover à sua condiga existência, qual primordial referência na concreta ponderação dos interesses conflituantes (como se disse, o interesse do devedor em prover às necessidades fundamentais duma existência digna e o interesse dos credores em solver, tanto quanto possível, os seus créditos) –, deve sempre ter-se presente que a remuneração mínima mensal garantida é tido pelo ordenamento como o montante indispensável a providenciar a satisfação das necessidades impostas pela sobrevivência digna do devedor (doutra forma[18]: a remuneração mínima mensal garantida reflecte uma valorização pecuniária do nosso estado civilizacional relativamente ao conceito da dignidade do trabalho e de sobrevivência digna).

Na situação trazida em apelação surge como circunstância concreta a levar em conta o facto da devedora ser emigrante em França, onde reside e exerce actividade laboral, e por isso que o valor de remuneração mínima mensal garantida (ou de salário mínimo nacional) a atender em vista da fixação do rendimento indisponível da devedora terá de ser o estabelecido em França – sendo em França que a devedora reside, deve ser considerada a ponderação do ordenamento jurídico francês (contida na determinação do valor do salário mínimo nacional feita pelas autoridades governamentais francesas) a propósito do montante indispensável a providenciar a satisfação das necessidades impostas pela sobrevivência digna dos trabalhadores no país (consideração que se impõe, não apenas porque a pertença comum à União Europeia pressupõe que as autoridades dos estados membros reconheçam, aceitem e respeitem a mútua justeza, equilíbrio e equidade no estabelecimento de regras em defesa da dignidade humana e do que é indispensável a providenciar pela satisfação das necessidades impostas pela sobrevivência digna das pessoas em cada um dos Estados-Membros, mas ainda porque a actuação da cláusula do razoável, do princípio da proibição do excesso, da ideia de justa medida e de proporção sempre imporiam se atendesse ao que é necessário, ponderando o custo de vida em França, para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna da devedora aí emigrada e residente).

O valor fixado na decisão apelada como rendimento mensal indisponível (equivalente a dois salários mínimos nacionais – 1.620,00€ para o pretérito ano de 2024 e 1.740,00€ para o corrente ano de 2025) não alcança sequer o (fica um pouco aquém do) valor do salário mínimo mensal em França, fixado em 1.766,90€ para o ano de 2024 e em 1.801,80€ para o ano de 2025[19], não podendo assim considerar-se que padeça de prodigalidade e mereça, por isso, qualquer ajuste em baixa (redução) – qualquer redução implicaria reduzir o rendimento indisponível a nível tido por insuficiente para a satisfação das necessidades impostas pela sobrevivência digna da devedora.

Improcede, pois, a apelação, com a consequente manutenção da decisão apelada, podendo sintetizar-se os argumentos decisórios, em jeito de sumário (nº 7 do art. 663º do CPC), nas seguintes proposições:

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DECISÃO

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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar improcedente a apelação e, em consequência, em manter a decisão apelada.

Custas pela apelante.


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Porto, 11/03/2025
(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
João Ramos Lopes
Anabela Miranda
Lina Baptista
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[1] Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, 4ª edição, p. 133 e Lições de Direito da Insolvência, p. 559.
[2] Considerando nº 45 do preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE – DL 53/2004, de 18/03.
[3] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, p. 559.
[4] A exoneração do passivo restante constitui para o devedor insolvente uma libertação definitiva dos débitos não integralmente satisfeitos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao seu encerramento, nas condições previstas no incidente regulado nos art. 235º e seguintes do CIRE. ‘Daí falar-se de passivo restante’ - Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, 2015, p. 848.
[5] Catarina Serra, O Novo Regime (…), p. 135 e Lições (…), p. 561.
[6] Catarina Serra, O Novo Regime (…), p. 133 e Lições (…), pp. 558/559.
[7] Acórdão da Relação de Coimbra de 17/12/2008 (Gregório Silva Jesus), no sítio www.dgsi.pt..
Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência (…), pp. 133/134 e Lições (…), p. 560, depois de referir que o instituto da exoneração, sendo uma medida de protecção do devedor e um efeito eventual da declaração de insolvência que lhe é favorável, constituindo por isso uma verdadeira tentação para ele, adverte, a este propósito, para os efeitos perversos desencadeados pela força atractiva da exoneração: os ‘abusos de exoneração’.
[8] Acórdão do STJ de 2/02/2016 (Fonseca Ramos), no sítio www.dgsi.pt.
[9] Cfr. o considerando nº 45 do preâmbulo do DL 53/2004, de 18/03, que aprovou o CIRE.
[10] Carvalho Fernandes e João Labareda, Código (…), p. 859, na anotação 4 ao artigo 239 do CIRE.
[11] Acórdão R. Porto de 15/07/2009 (Barateiro Martins), no sítio www.dgsi.pt.
[12] Acórdão da Relação de Lisboa de 4/05/2010 (Maria José Simões), no sítio www.dgsi.pt.
[13] Acórdão do STJ de 2/02/2016 (Fonseca Ramos), no sítio www.dgsi.pt.
[14] Citado acórdão do STJ de 2/02/2016.
[15] Mais uma vez, o citado acórdão do STJ de 2/02/2016.
[16] Acórdão do TC nº 177/2002, de 23/04 (Maria dos Prazeres Beleza), processo nº 546/01, no sítio www.tribunalconstitucional.pt – reafirmando ponderação do TC já aduzida no acórdão nº 318/99, de 26/05/99 (Vítor Nunes de Almeida), processo nº 855/98, acessível no mesmo sítio.
[17] Acórdão da Relação do Porto de 12/06/2012 (Rodrigues Pires) e acórdão da Relação de Guimarães de 24/09/2015 (Jorge Teixeira), ambos no sítio www.dgsi.pt.
[18] Inspirada no acórdão da Relação do Porto de 15/09/2015 (José Igreja Matos), no sítio www.dgsi.pt.
[19] Dados retirados de página que apresenta dados demográficos, de comércio, de mercado, laborais e outros indicadores variados (https://pt.countryeconomy.com/), como os valores de salário mínimo praticados nos diferentes países do mundo (https://pt.countryeconomy.com/mercado-laboral/salario-minimo-nacional) – aí é apresentada a evolução do salário mínimo em França desde o ano de 1999 até ao presente (https://pt.countryeconomy.com/mercado-laboral/salario-minimo-nacional/franca).