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DANO QUALIFICADO
PATRIMÓNIO COLECTIVO
EMPRESA
DIREITO PRIVADO
DANO SIMPLES
DESISTÊNCIA DA QUEIXA
Sumário
I-Tendo em conta o bem jurídico protegido pelo artigo 213º nº 1 al. c) do CP (o património coletivo), não faz qualquer sentido que uma empresa regida pelo direito privado, que atua em livre concorrência com as demais empresas do sector de transporte aéreo e que tem como fim, tal como qualquer empresa, o lucro, veja os seus bens patrimoniais merecedores de uma especial tutela penal, através de uma punição agravada para quem destruir ou danificar os seus bens patrimoniais, apenas pelo facto de essa empresa ser uma pessoa jurídica de direito privado na forma de sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos. II - Não tendo sido lesados bens jurídicos conexos com os interesses do Estado não faz qualquer sentido falar-se na qualificativa prevista no nº 1 al. c) do artigo 213º do CP.
Texto Integral
Em conferência, acordam os Juízes na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I – Relatório
Nos autos nº 7345/22.7T9LSB.L1 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Local Criminal de Lisboa, juiz 14, foi proferida sentença, datada de 13-11-2024, de cuja parte decisória consta: Pelo exposto, julgo a acusação procedente, por provada, e consequentemente, decido: Condenar o arguido AA pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217.º do Código Penal, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), perfazendo o montante global de 480,00€ (quatrocentos e oitenta euros).
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Não se conformando com essa decisão, o arguido recorreu para este Tribunal da Relação formulado as seguintes conclusões (transcrição): 1ª - Nos presentes autos, o Arguido vinha acusado pela prática de um crime de dano qualificado. 2ª - Vindo a ser condenado pela prática de um crime de burla simples. Pelo qual jamais foi acusado, e jamais cometeu. 3ª - Presumindo-se que o tribunal a quo se terá enganado na qualificação jurídica dos factos, porquanto nestes autos nunca esteve em causa a prática de um crime de burla. 4ª - E os factos em causa nos autos não integram, em qualquer medida, a prática de um crime de burla. 5ª - Pelo que deve a douta sentença recorrida ser revogada. 6ª - Por outro lado, no que respeita ao crime pelo qual o Arguido efetivamente vem acusado - dano qualificado - afirmou o mesmo, na sua contestação, o seguinte: 7ª - Relativamente aos argumentos deduzidos pelo Arguido na sua contestação, nomeadamente quanto à conclusão de que o crime de dano em causa nos autos não deve ser considerado um crime público (dano qualificado), a douta sentença recorrida conclui o seguinte: “Ora, se na redação anterior à dada pela Lei nº 59/2007, de 04/09 a norma apenas se referia a coisa destinada ao uso e utilidade públicos, considerando a jurisprudência da altura que o crime de dano apenas era qualificado nos termos desta norma quando a coisa seja de tal natureza que dela o público em geral se possa utilizar ou tirar proveito imediato, a verdade é que a nova redação dada em 2007 e agora vigente veio clarificar que basta que a coisa destinada ao uso de organismos ou serviços públicos, independentemente de a mesma ser usada ou não pelo público em geral. ” 8ª - Ora, o único facto constante dos factos provados com eventual relevância para o enquadramento da conduta do Arguido no crime de dano qualificado, é o facto 1 dos factos provados, que é o seguinte: “A TAP tem por objeto social a exploração de serviços públicos de transporte aéreo de passageiros, carga e correio, bem como a prestação de serviços e a realização das operações comerciais, industriais e financeiras relacionadas direta ou indiretamente com a referida exploração e, ainda exercer quaisquer outras atividades consideradas convenientes aos interesses empresariais. ” 9ª - Desde logo, a douta sentença recorrida não apresenta qualquer fundamentação para a prova do facto em apreço, desconhecendo-se as razões que levaram o tribunal a levá-lo em consideração. 10ª - Não existindo nos autos qualquer elemento que permite concluir pela sua verificação. 11ª - Por outro lado, e acima de tudo, veja-se que a TAP, mesmo de acordo com o teor do mencionado facto dado como provado, não presta apenas serviços públicos. 12ª - Trata-se de uma empresa sujeita ao direito privado, com fins lucrativos, exercendo atividades meramente comerciais, não configurando, nem um serviço público (na aceção do direito público vigente), nem uma entidade pública empresarial. 13ª - Pelo que, salvo melhor opinião, o mero facto de o bem em causa nos presentes autos pertencer à TAP não justifica a consideração de que o mesmo é destinado “ao uso de organismos ou serviços públicos”. 14ª - Ou seja, o facto de determinado bem pertencer à TAP, não implica necessariamente a consideração de que a sua danificação, constituindo a prática de um crime de dano, constitui a prática de um crime de dano qualificado. 15ª - E o que ora se invoca é relevante na medida em que a Queixosa TAP desistiu da queixa que originou os presentes autos, em .../.../2023, o que levaria necessariamente à consideração de que, não tendo ocorrido, pelos fundamentos expostos, a prática de um crime público, ficaria também excluída a prática de crime de dano simples (dependente de queixa). 16ª - Ou seja, deveriam os presentes autos ter sido arquivados no momento em que a TAP desistiu da queixa. 17ª - Sendo de sublinhar que, conforme resulta dos presentes autos, nomeadamente da prova testemunhal, e ainda da lei: - O Arguido pagou a reparação da cancela cujo dano lhe é imputado, no montante € 595,38; - O Arguido foi objeto de sanção disciplinar correspondente a … dias de suspensão, com perda de retribuição e antiguidade; - O Arguido, em função de eventual manutenção da condenação constante dos presentes autos, poderá ver o seu contrato de trabalho afetado, por deixar de ter acesso às áreas restritas do ... (a emissão do cartão para o efeito pode ser-lhe negada no caso de o seu registo criminal evidenciar uma condenação pelo crime de que veio acusado). - A própria entidade Queixosa desistiu de queixa. 18ª - Em conclusão, deve considerar-se que o Arguido não praticou um crime de dano qualificado, por não ter ficado demonstrado que a coisa danificada é pertencente a um organismo ou serviço público, e que em medida nenhuma o Arguido praticou um crime de burla, tal como resulta da sua condenação. Pelo que deve a douta sentença recorrida ser revogada, absolvendo-se o Arguido.
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Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 413º, do Código de Processo Penal respondeu o Ministério Público concluindo pela improcedência do recurso. (transcrição das conclusões): 1.O arguido foi condenado pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de dano qualificado, previsto e punido pelo artigo 213.º n.º 1, alínea c), do Código Penal, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), perfazendo o montante global de 480,00€ (quatrocentos e oitenta euros). 2. Nesta sequência, o arguido interpôs recurso da sentença condenatória, alegando que a conduta por si perpetrada não preenche o tipo de ilícito de dano qualificado, previsto e punido pelo artigo 213.º n.º 1, alínea c), do Código Penal. 3. Contrariamente ao alegado pelo recorrente, a conduta do arguido preenche todos os elementos do tipo objetivo e subjetivo do crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 213.º n.º 1, alínea c), do Código Penal, denotando-se que o recorrente fez uma errada interpretação do disposto no artigo 213.º n.º 1, alínea c), do Código Penal. 4. Dispõe o art.º 213.º n.º 1, alínea c), do Código Penal, na redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 04/09, que: “Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável: c) Coisa ou animal destinados ao uso e utilidade públicos ou a organismos ou serviços públicos;” 5. Como afirma Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal, 3.ª ed., 2013, p. 838) “o elenco das circunstâncias do tipo qualificado é taxativo e de funcionamento automático”. 6. Decorre de forma expressa e patente da letra da lei supra citada que o legislador pretendeu proteger e criminalizar toda a conduta que atenta diretamente contra a coisa móvel ou imóvel destinada ao uso público, quer se trate de coisa utilizada diretamente pelo público em geral, quer seja apenas utilizada por organismos ou serviços públicos (neste sentido, veja-se o Ac. do Tribunal da Relação de Évora, de 27-09-2022, processo número 48/19.1GBGDL.E1, disponível em wwww.dgsi.pt, no qual se decidiu que “o conceito de coisa destinada ao uso público, a que se refere a alínea c), inclui a coisa móvel ou imóvel caracterizada pela sua finalidade de servir a coisa pública, quer seja pela utilização do público em geral, quer seja pela utilização de organismos ou serviços públicos, podendo a coisa ser propriedade de particulares”). 7. Como afirma Paulo Pinto de Albuquerque (in Comentário do Código Penal, 3.ª ed., 2013, p. 838) “o conceito de coisa destinada ao uso público inclui a coisa móvel ou imóvel caracterizada pela sua finalidade de servir a coisa pública, quer seja pela utilização do público em geral (por exemplo, uma conduta da rede geral de abastecimento de agua, como refere o acórdão do TRP, de 14.6.1989, in BMJ, 388, 594), quer seja pela utilização de “organismos ou serviços públicos”, como as coisas cuja utilização seja restrita ao funcionamento da administração pública e de qualquer pessoa coletiva de direito público, incluindo os objetos de trabalho e os meios de transporte dos funcionários públicos ou os objetos e as janelas das celas de reclusos”. 8. Após a alteração legislativa imposta pela Lei n.º 59/2007, de 04/09, o tipo legal previsto no art.º 213.º n.º 1, alínea c), do Código Penal passou a punir também as condutas lesivas perpetradas contra coisas utilizadas pela administração pública, por pessoa coletiva de direito público ou por pessoa coletiva de direito privado que preste um serviço público. 9. De facto, antes da redação dada pela Lei n.º 59/2007, de 04/09, a norma do art.º 213.º n.º 1, alínea c), do Código Penal punia apenas os atos lesivos praticados contra coisas utilizadas direta e imediatamente pelo público. No entanto, a alteração legislativa imposta pela Lei n.º 59/2007, de 04/09, visou precisamente alagar o bem jurídico protegido pela norma penal, passando a tutelar também as coisas de uso exclusivo por “organismos ou serviços públicos”, sem qualquer utilização imediata ou direta pelo público. 10. É facto público que a TAP é a companhia aérea portuguesa, de capitais públicos, que se dedica à prestação de serviços públicos de transporte aéreo de passageiros, carga e correio, bem como à realização das operações comerciais, industriais e financeiras relacionadas direta ou indiretamente com aqueles serviços públicos. 11. Por sua vez, decorre da prova produzida nos presentes autos que a cancela de controlo de acesso a veículos de carga, localizada no ... do ... da TAP, que foi danificada pelo arguido, estava afeta ao serviço público de transporte aéreo de passageiros, carga e correio, prestado pela TAP. 12. Não restam dúvidas de que a coisa (cancela), danificada pelo arguido, servia a coisa pública, porquanto a mesma estava afeta/destinada a ser utilizada por um serviço público, concretamente o serviço público de transporte aéreo de passageiros, carga e correio prestado pela TAP. 13. Contrariamente ao alegado pelo recorrente, impunha-se ao tribunal a quo condenar o arguido pela prática de um crime de dano qualificado, uma vez que a factualidade dada como provada preenche indubitavelmente a previsão legal do artigo 213.º n.º 1, alínea c), do Código Penal. 14. Pelo exposto, bem andou o tribunal a quo ao decidir pela condenação do arguido, como autor material e na forma consumada, pela prática de um crime de dano qualificado, previsto e punido pelo artigo 213.º n.º 1, alínea c), do Código Penal, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), perfazendo o montante global de 480,00€ (quatrocentos e oitenta euros). 15. Decidindo pela forma em que o fez, o Tribunal a quo fez uma correta interpretação dos normativos citados e não violou qualquer preceito legal ou constitucional, nem incorreu em qualquer vício. Nestes termos, e face ao exposto, consideramos que deverá improceder o recurso apresentado pelo arguido, devendo assim ser mantida, nos seus precisos termos, a douta sentença recorrida.
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Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos próprios autos, e com efeito suspensivo.
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Neste Tribunal, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, o Mº. Pº emitiu parecer, aderindo aos argumentos aduzidos pelo Mº.Pº. junto da primeira instância e concluindo pela confirmação integral da decisão recorrida.
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Não foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, em virtude do MP , junto deste tribunal, não ter realizado qualquer pronúncia autónoma sobre o mérito do recurso.
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Colhidos os vistos legais foi o processo à conferência, onde se deliberou nos termos vertidos neste Acórdão.
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II - Delimitação do objeto do recurso.
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995].
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são as seguintes as questões a apreciar:
Se a sentença recorrida contém um lapso quanto ao dispositivo na parte em que condena o arguido pela prática de um crime de burla simples;
Se existem elementos nos autos para condenar o arguido pela prática do crime de dano qualificado, p.p., pelo Artº 213 nº1 al. C) do C. Penal.
Da desistência da queixa.
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Da sentença recorrida consta a seguinte matéria de facto provada e não provada (transcrição): 1. A TAP tem por objeto social a exploração de serviços públicos de transporte aéreo de passageiros, carga e correio, bem como a prestação de serviços e a realização das operações comerciais, industriais e financeiras relacionadas direta ou indiretamente com a referida exploração e, ainda exercer quaisquer outras atividades consideradas convenientes aos interesses empresariais. 2. O arguido é funcionário da TAP onde exerce as funções de …. 3. No dia ... de ... de 2022, o arguido ao entrar no ... do ... da TAP empurrou a cancela de controlo de acesso a veículos, que se encontrava fechada. 4. O arguido forçou a abertura da cancela, quando sabia que não o devia fazer para conseguir atravessá-la e dessa forma entrar no … sem utilizar o torniquete, que só abre após a passagem do cartão do funcionário. 5. Em consequência da conduta do arguido a cancela ficou danificada 6. A TAP - Transportes Aéreos Portugueses, S.A. necessitou de reparar a cancela e despendeu a quantia de 595,38€ (quinhentos e noventa e cinco euros e trinta e oito cêntimos). 7. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, ao danificar a cancela, o que fez de forma inadvertida conhecendo as consequências de forçar a sua abertura, sem utilizar o cartão, o que decidiu concretizar. 8. E bem sabia que a sua conduta lhe estava vedada e era criminalmente punida. 9. O arguido continua a trabalhar na TAP como ... sendo que em ... fará … anos que lá trabalha. 10. Aufere mensalmente 1.500,00€ líquidos. 11. Vive com a esposa e com a filha de 10 anos. 12. A esposa é … e aufere o ordenado mínimo. 13. A filha frequenta o 5.º ano de escolaridade e o ATL, despendendo o casal com este último cerca de 300,00€ mensais. 14. Vivem em casa própria, pela qual pagam ao banco cerca de 700,00€ mensais. 15. Tem o 12.º ano de escolaridade. 16. O arguido já pagou à ofendida o custo de reparação da cancela. 17. O arguido foi julgado e condenado: - no âmbito do processo n.º 325/14.8PTLRS, por sentença transitada em julgado em 25-09-2015, pela prática, em ...-...-2014, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292.º n.º 1 do Código Penal, na pena de 75 dias de multa à taxa diária de 8,00€, perfazendo o montante global de 600,00€ e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motos pelo período de 4 meses, encontrando-se a primeira extinta pelo pagamento e segunda extinta pelo cumprimento; - no âmbito do processo n.º 273/15.4T9LRS, por sentença transitada em julgado em 29-11-2017, pela prática, em ...-...-2014, de um crime de ofensa à integridade física por negligência (em acidente de viação), p. e p. pelo art. 148.º n.º 1 do Código Penal, na pena de 5 meses de risão substituída por 180 dias de multa à taxa diária de 8,00€, perfazendo o montante global de 1.400,00,00€ e na pena acessória de proibição de conduzir veículos a motos pelo período de 6 meses, encontrando-se a primeira extinta pelo pagamento e segunda extinta pelo cumprimento. 2.2 Factos não provados Com relevância para a decisão da causa ficaram por demonstrar os seguintes factos: A. Em consequência da conduta do arguido a cancela ficou inutilizável. B. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, ao destruir a cancela.
O tribunal recorrido motivou a decisão de facto pelo seguinte modo (transcrição). Deste modo, o tribunal fundou a sua convicção, atendendo aos já referidos critérios enunciados no art. 127.º do CPP, na prova documental constante dos autos, bem como nas declarações da testemunha. Efetivamente, e desde logo, encontra-se junta aos autos a gravação do sucedido, contendo a mesma a respetiva data e cujo visionamento permite identificar o arguido a dirigirse à cancela e a forçá-la para passa para o outro lado. Acresce que com a apresentação da queixa-crime, forma juntos fotogramas que mostram o estado em que ficou a cancela após a atuação do arguido, sendo visível um desnível entra os dois lados da cancela – desnível esse que já é visível no último fotograma do auto de visionamento (fls. 16 a 18) da gravação supramencionada. Por outro lado, ouvida a testemunha BB, funcionário da TAP, na altura responsável direto do arguido, esta relatou que recebeu uma chamada do segurança que estava presente quando os factos ocorreram, que lhe relatou o sucedido, tendo-se deslocado ao local. Assim, a testemunha verificou posteriormente o estado da cancela em causa, confirmando a sua localização e que a mesma se destina à passagem de veículos e materiais, confirmando ainda que a passagem de pessoas deve ser feita pelos torniquetes, com um cartão. Deste modo, a testemunha explicou que a cancela ficou deformada, com um desnível de cerca de 10/15 centímetros Mais esclareceu que, apesar de danificada e enquanto não foi reparada, a cancela continuou a ser utilizada, durante alguns meses. Foi confrontado com os fotogramas do auto de visionamento, tendo confirmado tratar-se da cancela em causa, na localização indicada, e reconhecendo o arguido a transpor a cancela. Mais confirmou o valor constante da fatura de fls. 5, indicando que foi esse o valor de reparação a cancela, tendo confirmado que tal valor foi pago voluntariamente pelo arguido. Referiu que não tem registo de qualquer comportamento semelhante por parte do arguido. Ora, esta testemunha prestou declarações de forma isenta e objetiva, sendo certo que as suas declarações são corroboradas pela demais prova junta aos autos, pelo que foi a mesma considerada credível Diga-se ainda quanto ao facto n.º 1 que o mesmo é facto notório. Quanto aos elementos subjetivos, os mesmos decorrem das regras da lógica e da experiência comum, pois se por um lado o visionamento das imagens mostra que o arguido agiu de forma livre e voluntária, por outro, tendo em conta a configuração da cancela, que é longa e só tem apoio nas extremidades exteriores, o resultado obtido ao forçar as outras extremidades era, segundo o padrão do homem médio, previsível. Por outro lado, que tal conduta é proibida por lei resulta igualmente das regras da experiência comum, pois qualquer pessoa média na sua posição sabe que a atuação descrita é proibida e constitui crime. Deste modo, conjugando toda a prova, analisada nos moldes supramencionados, ficou o tribunal convencido de que o arguido praticou os factos dos autos, pelo que os deu como provados. No que se aos antecedentes criminais do arguido, resultam os mesmos do certificado de registo criminal junto aos autos. Finalmente, quanto à suas condições pessoais e económicas, teve-se em conta as declarações do arguido, aqui credíveis. Quanto aos factos não provados, os mesmos resultam da correção e concretização efetuada em sede de alteração não substancial dos factos.
III – Fundamentação
Do lapso no dispositivo a reclamar correção nos termos do art. 380º do C.P.P.
Do dispositivo da sentença recorrida, para o que ora releva, consta o seguinte: Condenar o arguido AA pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217.º do Código Penal, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), perfazendo o montante global de 480,00€ (quatrocentos e oitenta euros).
Todavia, como resulta do relatório, fundamentação de facto, enquadramento jurídico-penal e aplicação da medida da pena que consta na sentença, estando o recorrente acusado da prática de um crime de dano previsto e punido pelo artigo 213.º n.º 1, al. c), do Código Penal, estando provados os factos descritos na acusação, feito o enquadramento quanto ao crime imputado na acusação e aplicada a medida da pena tendo em conta a moldura penal do crime p e p pelo artigo 213.º n.º 1, al. c), do Código Penal, é manifesto que a referência feita no dipositivo quanto ao crime de burla simples deve-se a lapso de escrito.
Com efeito, constitui hoje entendimento corrente que a sentença proferida em processo judicial constitui um verdadeiro ato jurídico e que quanto à sua interpretação se aplicam, com as devidas adaptações, as regras reguladoras dos negócios jurídicos, devendo a interpretação da parte decisória assentar na análise dos seus antecedentes lógicos que a tornam possível e a pressupõem, dada a sua interdependência. Neste sentido, veja-se o decidido pelo STJ nos seus acórdãos de 05 de Novembro de 2009, processo nº 4800/05.TBAMD-A, de 03 de Fevereiro de 2011, processo nº 190-A/1999, de 26 de Abril de 2012, processo n. 289/10.7TBPTB e de 20 de Março de 2014, processo nº 392/10.3TBBRG; todos acessíveis em www.dgsi.jstj.pt].
Tratando-se de manifesto lapso, ao abrigo do disposto no artigo. 380º, n.º 1, al. b) e 2 do C.P.P., procede-se à retificação do dispositivo, determinando-se que fique da mesma a constar “ de um crime de dano p e p pelo artigo 213.º n.º 1, al. c), do Código Penal” em vez “de um crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217.º do Código Penal.
O recorrente alegou, embora sem extrair qualquer consequência, que a sentença não apresenta qualquer fundamentação para a prova do facto 1, desconhecendo as razões que levaram o tribunal a levá-lo em consideração.
Quanto a este aspeto cumpre apenas dizer que o facto 1 é o que resulta do artigo 3º dos Estatutos da TAP tratando-se, como justificado na sentença recorrida, de um facto público e notório.
Do Crime de Dano Qualificado
O crime de dano, p. e p. no artigo 212º, nº 1, do CP, é cometido por quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia.
A qualificação prevista no artigo 213º, 1, c) pressupõe que a ação incida sobre coisa ou animal destinados ao uso e utilidade públicos ou a organismos ou serviços públicos.
O bem jurídico tutelado é a propriedade plena sobre a coisa danificada (cfr Prof. Costa Andrade, in Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 212).
Com afirma Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2008, p. 590, “o elenco das circunstâncias do tipo qualificado é taxativo e de funcionamento automático”, ao contrário do que sucede na técnica dos exemplos-padrão.
Ora, no caso dos autos, conforme resultou da prova produzida, o arguido, no dia ... de ... de 2022, ao entrar no ... do ... da TAP empurrou a cancela de controlo de acesso a veículos, que se encontrava fechada, danificando-a, causando uma diminuição patrimonial no valor de 595,38€.
Acresce que, conforme resulta dos autos, o arguido procedeu ao pagamento do valor em causa tendo a TAP, por requerimentos de ...-...-2023 e ...-...-2023, desistido do pedido de indemnização cível e do procedimento criminal deduzido contra o arguido.
Tendo em conta os factos dados como provados não restam dúvidas que estão preenchidos os elementos constitutivos do crime de dano.
Assim, estando preenchidos os requisitos objetivos e subjetivos do crime de dano caberá, agora, determinar, tal como invocado pelo arguido recorrente, se a conduta do arguido integra ou não a alínea c) do n.º1, do art. 213.º, do Cód. Penal, ou seja, saber se a cancela de controlo de acesso de veículos colocada no … do ..., integra o conceito de “coisa destinada ao uso e utilidade públicos ou a organismos ou serviços públicos”.
A decisão recorrida fundamentou o preenchimento da qualificativa do crime de dano pelo facto de a cancela danificada estar instalada nas instalações da TAP, empresa que explora serviços públicos, e por a lei se bastar que a coisa danificada esteja destinada ao uso de organismos ou serviços públicos, independentemente de a mesma ser usada ou não pelo público em geral.
A conclusão da decisão recorrida, em termos de suporte factual, assentou no objeto social da TAP do qual consta que a TAP tem por objeto social a exploração de serviços públicos de transporte aéreo de passageiros, carga e correio, bem como a prestação de serviços e a realização das operações comerciais, industriais e financeiras relacionadas direta ou indiretamente com a referida exploração e, ainda, exercer quaisquer outras atividades consideradas convenientes aos interesses empresariais.
Por sua vez, o recorrente alegou que a TAP é uma empresa sujeita ao direito privado, com fins lucrativos, exercendo atividades meramente comerciais, não configurando, nem um serviço público (na aceção do direito público vigente), nem uma entidade pública empresarial, pelo que o mero facto de o bem em causa nos presentes autos pertencer à TAP não justifica a consideração de que o mesmo é destinado “ao uso de organismos ou serviços públicos”.
A TAP é uma sociedade comercial, e como tal, rege-se pelo regime geral do Código das Sociedades Comerciais (CSC) e, em especial, pelos seus próprios Estatutos.
Quanto à natureza jurídica da TAP cumpre atentar no seguinte.
Através do DL 312/91, de 17 de Agosto foi alterada a natureza jurídica da ... P., transformando-a de empresa pública em pessoa coletiva de direito privado, com o estatuto de sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos.
No dia 2 de outubro de 2020, na sequência do artigo 2º do Decreto-lei nº 39-B/2020 de 16 de julho, (comunicado da TAP à CMVM e ao público em geral, nos termos da aliena c) do artigo 3.º do Regulamento da CMVM n.º 5/2008,), o Estado Português, através da Direção-Geral do Tesouro e Finanças, adquiriu participações sociais, de direitos económicos e de uma parte das prestações acessórias da Atlantic Gateway, SGPS, Lda., passando a deter controlo efetivo sobre 72,5% do capital social da TAP SGPS, sobre igual percentagem de direitos económicos na TAP SGPS e sobre determinadas prestações acessórias realizadas pela Atlantic Gateway.
Deste modo, a partir desta data, a TAP está sujeita às disposições vigentes no Regime Jurídico do Setor Público Empresarial, previsto no DL nº 133/2013, de 3 de outubro e os membros do seu Conselho de Administração encontram-se sujeitos ao Estatuto do Gestor Público, salvo as derrogações resultantes do disposto no número do artigo 2.º do 4 Decreto-Lei n.º 39-B/2020, de 16 de julho.
Com efeito, são empresas públicas as organizações empresariais constituídas sob a forma de sociedade de responsabilidade limitada nos termos da lei comercial, nas quais o Estado ou outras entidades possam exercer, isolada ou conjuntamente, de forma direta ou indireta, influência dominante. Cfr. Artigo 5º do DL nº 133/2013, de 3-10.
Sendo uma empresa de capitais maioritariamente públicos, a TAP rege-se, conforme resulta do artigo 14º nº 1 do DL nº 133/2013, de 3-10, pelo direito privado, com as especificidades decorrentes do presente decreto-lei, dos diplomas que procedam à sua criação ou constituição e dos respetivos estatutos. Para além disso, desenvolve a sua atividade nas mesmas condições e termos aplicáveis a qualquer empresa privada, e está sujeita às regras gerais da concorrência, nacionais e de direito da União Europeia.
Assim, a TAP – Transportes Aéreos Portugueses S.A. é uma sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos que se rege pela lei comercial e seus estatutos e portanto uma sociedade de direito privado, concretamente, adotando a forma de uma sociedade comercial.
A circunstância desta sociedade anónima ser de capitais exclusivamente ou maioritariamente públicos não lhe retira a qualidade de sociedade comercial e, portanto, de uma pessoa coletiva de direito privado, como todas as sociedades comerciais.
Como dispõe o nº 2 do artº 1º do Código das Sociedades Comercias «são sociedades comercias aquelas que tenham por objeto a prática de atos de comércio e adotem o tipo de sociedade em nome coletivo, de sociedade por quotas, de sociedade anónima, de sociedade em comandita simples e de sociedade em comandita por ações».
Deste modo, sendo a sociedade anónima uma típica sociedade comercial (criada e regida pela lei comercial) é a mesma uma pessoa coletiva de direito privado, não colhendo o argumento de que por ser uma sociedade de capitais maioritariamente públicos, tal a converteria em ente coletivo dotado de personalidade jurídica de direito público.
Neste sentido, veja-se Carvalho Fernandes in Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, 2ª edição, Lex, 1995, pg. 389: «Tendo em conta os aspetos determinantes do seu regime jurídico, entendemos dever situar, em geral, as empresas de capital exclusiva ou maioritariamente públicos, no elenco das pessoas coletivas privadas»
Assim sendo, a TAP SA, como as demais sociedades no mesmo sentido, não pode ser considerada como gozando de personalidade jurídica de direito público, na medida em que, apesar de prosseguir um fim público, não se trata de uma sociedade concessionária, não tem como objeto exclusivo a exploração de serviços públicos e prossegue uma finalidade lucrativa primária.
Em face do exposto, A TAP SA não é uma pessoa coletiva de direito público, pelo que, pela via residual, só lhe compete o estatuto de pessoa coletiva de direito privado.
Uma vez delineado, embora necessariamente em traços gerais, a natureza jurídica da TAP SA, é o momento de verificarmos se a TAP SA se integra, para efeitos da qualificativa prevista no nº 1 al. c) do artigo 213º do CP, entre os organismos ou serviços públicos.
Quanto à expressão “coisa destinada ao uso e utilidade públicos” cabe, antes de mais, referir que não se vislumbra nos presentes autos que a cancela de acesso ao hangar da TAP (cancela danificada) estivesse ao serviço do público em geral, maxime, os que utilizam o serviço de transporte aéreo, dado que a cancela estava apenas afeta à utilização dos colaboradores da TAP, destinada a uso interno, ao uso de um pequeno e restrito número de pessoa, ou seja, não tinha a finalidade de servir a coisa pública, não tinha como função servir a comunidade, o que faz com que, por aqui, esteja afastada a possibilidade de se verificar a qualificativa do crime de dano.
Com efeito, o que o legislador visou proteger com a referida norma qualificadora do crime de dano, são as coisas destinadas a servir o público em geral e de utilidade imediata pelo público em geral.
Nestas situações, o ofendido é a comunidade no seu todo. Nos demais casos, o ofendido é o proprietário, possuidor ou detentor legítimo da coisa danificada ou destruída.
Quanto à expressão “coisa destinada ao uso de organismos ou serviços públicos”, cumpre agora saber se a referida cancela estava destinada a servir a coisa pública pela utilização por organismos ou serviços públicos, ou seja, saber se a cancela pertencente à TAP, com o regime jurídico acima mencionado, estava destinada a ser utilizada por um organismo ou um por um serviço público. No fundo, tudo consiste em saber se o arguido ao danificar a cancela pertencente à TAP ofendeu a comunidade no seu todo ou se, pelo contrário, apenas ofendeu a própria TAP enquanto proprietária da aludida cancela.
Ora, tendo em conta a natureza jurídica da empresa TAP, não obstante ser uma SA de capitais maioritariamente públicos, não faz dela, para efeitos de proteção penal, um organismo ou um serviço público. Com efeito, devemos entender aqui por organismo ou um por um serviço público todos os órgãos ou serviços da administração pública que visam garantir, de forma regular e contínua, as necessidades coletivas impostas ao Estado pela Constituição e pela Lei.
Na verdade, tendo em conta o bem jurídico protegido (o património coletivo), não faz qualquer sentido que uma empresa regida pelo direito privado, que atua em livre concorrência com as demais empresas do sector de transporte aéreo e que tem como fim, tal como qualquer empresa, o lucro, veja os seus bens patrimoniais merecedores de uma especial tutela penal, através de uma punição agravada para quem destruir ou danificar os seus bens patrimoniais, apenas pelo facto de essa empresa ser uma pessoa jurídica de direito privado na forma de sociedade anónima de capitais maioritariamente públicos.
Em suma, não tendo sido lesados bens jurídicos conexos com os interesses do Estado não faz qualquer sentido falar-se na qualificativa prevista no nº 1 al. c) do artigo 213º do CP.
Assim, tendo em conta todo o exposto, conclui-se que o dano causado na cancela, referido nos autos, não qualifica o crime de dano e não integra o art. 213.º nº 1 al. c) do Código Penal mas apenas o crime de dano simples, p. e p. pelo art. 212.º do Código Penal, para o qual aqui convolamos.
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O referido crime de dano simples é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa e admite desistência de queixa.
Assim, e tendo em conta a desistência de queixa apresentada pela ofendida TAP e a aceitação do arguido, porque tempestiva e legal, julga-se válida e relevante tal desistência, a qual se homologa e declara-se extinto o procedimento criminal intentado contra o arguido (arts. 212.º, 116.º, n.ºs 1 e 2 e 113.º, do Cód. Penal e art. 51.º, nº 3, do C.P.P.).
IV Dispositivo
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso interposto e em consequência:
Ao abrigo do disposto no artigo. 380º, n.º 1, al. b) e 2 do C.P.P., procede-se à retificação do dispositivo da sentença recorrida, determinando-se que fique da mesma a constar “de um crime de dano p e p pelo artigo 213.º n.º 1, al. c), do Código Penal” em vez “de um crime de burla simples, previsto e punido pelo artigo 217.º do Código Penal;
O dano causado na cancela não integra o art. 213.º nº 1 al. c) do Código Penal mas apenas o crime de dano simples, p. e p. pelo art. 212.º do Código Penal, para o qual aqui convolamos.
Declara-se extinto, por desistência de queixa, o procedimento criminal intentado contra o arguido (arts. 212.º, 116.º, n.ºs 1 e 2 e 113.º, do Cód. Penal e art. 51.º, nº 3, do C.P.P.).
Sem tributação
Notifique
Lisboa, 6 de março de 2025
Ivo Nelson Caires B. Rosa
Jorge Rosas de Castro
Ama Marisa Arnedo