HOMICÍDIO QUALIFICADO
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
MOTIVO FÚTIL
Sumário

1. No art. 132º, nº 2 do Código Penal acolhe-se um critério generalizador, fundado num especial tipo de culpa, traduzido pela ideia da «especial censurabilidade ou perversidade», combinado com a chamada técnica dos exemplos-padrão: a presença de uma das circunstâncias previstas indicia (mas não impõe) a existência daquela especial censurabilidade ou perversidade; e a ausência de qualquer de tais circunstâncias indicia (mas não impõe) a sua inexistência.
2. Motivo fútil é aquele que, de acordo com as conceções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado acentuadamente gratuito; é o motivo que não o chega a ser, no sentido em que há uma manifesta desproporção, do ponto de vista social, entre o que leva o agente a atuar e o gesto que executa, que surge assim totalmente inaceitável, de grande leviandade, incompreensível ou inexplicável segundo os critérios comuns do modo normal de agir do homem médio.
3. É o caso quando, na sequência de um choque acidental entre arguido e ofendido, aquele avança sobre este com uma quase inacreditável violência, primeiro agarrando-o e depois golpeando-o no pescoço duas vezes com um gargalo de vidro partido que tinha consigo, num gesto que objetivamente tinha tudo para causar lesões de uma enorme seriedade e até, como é manifesto e resulta das regras da experiência comum, a própria morte.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – Relatório
A. Pelo Juízo Central Criminal de Lisboa (Juiz 5) foi proferido acórdão, em 18 de setembro de 2024, que contém o seguinte dispositivo:
«Em face do exposto, decide este Tribunal Colectivo julgar a acusação deduzida pelo Ministério Público parcialmente procedente, e, em consequência:
1. Absolver o arguido, AA, da prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 14º, nº 1, 23º, 73º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, alíneas e) e h), todos do Código Penal, de que vinha acusado;
2. Condenar o arguido, AA, pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145º, nº 1, alínea a), e nº 2, do Código Penal, por referência ao art. 132º, nº 2, al. e), do mesmo diploma, na pena de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão efectiva;
3. Julgar totalmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante BB, e, em consequência, condenar o demandado, AA, a pagar-lhe a quantia de € 112,07 (cento e doze euros e sete cêntimos), acrescida de juros moratórios, à taxa legal, contados desde a data da sua notificação para contestar o pedido de indemnização civil e até integral pagamento.
(…)»
Do acórdão consta ainda, na parte final, a reapreciação do estatuto coativo em que se encontrava o Arguido, determinando-se então a manutenção do mesmo em prisão preventiva.
O Arguido recorreu, quer do acórdão condenatório, quer da decisão que o manteve em prisão preventiva.
No que respeita à medida de coação, a situação veio a ser já decidida por acórdão da 3ª Secção desta Relação, proferido em 20 de novembro de 2024, no âmbito do Apenso D), o qual determinou a revogação da decisão que mantivera a prisão preventiva e determinou que o Arguido passasse a ficar sujeito às seguintes medidas de coação:
«a) Obrigação de apresentação semanal numa esquadra policial da área de residência do arguido, a designar pelo tribunal da 1ª instância, nos termos do artigo 198.º do Código de Processo Penal.
b) Proibição de frequência de locais específicos, nos termos do artigo 200.º do Código de Processo Penal, incluindo:
- Proibição de frequência do ..., localizado na ....
- Proibição de frequência do ..., localizado na ....»
Quanto ao acórdão condenatório, formulou o Arguido as seguintes conclusões:
«I – O Recurso tem como objeto toda a matéria de facto e de direito do Acórdão proferido no dia 18/09/2024, que condenou o ora Recorrente, pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma do artigo 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código Penal, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. e) do mesmo diploma, a uma pena de 03 anos e 09 meses de prisão efectiva.
II – O Recorrente não se conforma com a condenação que lhe foi imposta, pelo que reivindica uma substancial atenuação da pena imposta e impugna a dosimetria da pena aplicada, que foi excessiva, injusta e desajustada. Para além disso, reivindica que a pena aplicada seja suspensa na execução, ainda que sujeito a regime de prova, que será religiosamente cumprido.
III - O Recorrente foi absolvido da tentativa de homicídio qualificado, conforme Acórdão proferido em 18/09/2024, mas já se encontra encarcerado preventivamente há mais de um ano.
IV – O Recorrente não tem antecedentes, pelo que ostenta um CRC limpo, não tem quaisquer outros processos pendentes, sendo certo que tem uma profissão digna e sempre trabalhou licitamente, o que torna inquestionável a sua inserção social, profissional e familiar.
V – A mera leitura da dinâmica dos factos, descrita no Acórdão, é suficiente para constatar que nunca existiu qualquer comportamento de perversidade do agente, não existe especial censurabilidade, tampouco os factos foram determinados por avidez ou por motivos torpes ou fúteis.
VI – O Acórdão afastou totalmente a existência de intenção de matar e constatou que não ocorreram 03 golpes, conforme descrito na Acusação, tendo ocorrido apenas uma única investida, com um gargalo de cerveja, objeto com apenas 2 ou 3 centímetros, após o arguido e o ofendido se agarrarem pelo colarinho.
VII – A moldura penal do crime de ofensa à integridade física qualificada, é punido no limite máximo de 4 anos. Contudo, a pena fixada, em 3 anos e 9 meses, ficou muito próxima do limite máximo da punição prevista pelo tipo penal, o que é excessivo, desajustado e injusto.
VIII – Não se compreende uma condenação muito próximo da pena máxima legalmente prevista, para um cidadão que tem um CRC limpo, não tem antecedentes, tampouco processos pendentes, uma pessoa que tem uma profissão, sempre trabalhou e tem todo o apoio familiar, conforme restou evidente pelos familiares que foram ouvidos em Tribunal.
IX – O Recorrente já está Preso Preventivamente há mais de 01 ano, período mais do que suficiente para cumprir todos os critérios de prevenção geral e específica, motivo pelo qual consideramos que já exerceu um fortíssimo carácter dissuasor.
X – Nesse sentido, a pena de prisão deve ser suspensa na sua execução, na forma do artigo 50.º do Código Penal, pois o Recorrente foi condenado a uma pena de 3 anos e 9 meses, ou seja, a condenação é inferior a 5 anos, o que possibilita a aplicação do referido instituto.
XI – O Recorrente fez prova de que tem uma família constituída, pessoas que estão dispostas a lhe acolher, conforme testemunhas que foram ouvidas em Audiência e que demonstraram total disponibilidade para ajudar no processo de reinserção social do Recorrente.
XII – O Recorrente também é uma pessoa muito religiosa, que sempre frequentou a igreja evangélica e se dedica às atividades religiosas, assim como toda a sua família, conforme restou evidente pelas testemunhas que foram ouvidas em Audiência.
XIII – O Recorrente é primário, não tem quaisquer antecedentes ou processos pendentes, reside legalmente em Portugal, sempre trabalhou dignamente, nas obras e conta com a sua família, que representa uma verdadeira rede de apoio, essencial à sua reinserção social.
XIV – Pese embora o Acórdão condenatório tenha aplicado o disposto no artigo 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código Penal, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. e) do mesmo diploma, a verdade é que não concretizou qual seria a especial censurabilidade ou perversidade do agente, tampouco pormenorizou especificamente que o comportamento tivesse sido decorrente de avidez ou por qualquer motivo torpe ou fútil.
XV – Não se provou qualquer circunstância que implicasse que o comportamento do arguido, ora Recorrente, repercutiu um perigo à vida do ofendido, tanto é assim que não foi aplicado o artigo 144.º do CP, tampouco restou demonstrada a torpeza ou a futilidade do modo de agir.
XVI – A determinação da medida da pena não atentou adequadamente em função da culpa atribuída ao agente e às exigências de prevenção geral e específica, pelo que a imposição de uma pena tão severa e de cumprimento efectivo, é desajustada e deve ser reformada.
XVII – O Acórdão deveria ter melhor valorado as condições pessoais do Recorrente, bem como a sua inserção social, profissional e familiar e a sua situação económica integrada, sendo de relevo ainda a conduta anterior, conforme o direito e que se reflete na ausência de antecedentes, inexistência de processos e CRC limpo.
XVIII – A pena deveria ficar suspensa na sua execução, ainda que sujeita a um regime de prova, conforme estipulado pelos artigos 50.°, n.º 1 e 51.°, do Código Penal, razão pela qual consideramos que foram violados ainda os artigos 70.º e 71.º do Código Penal, assim como o artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
XIX – O Recorrente não tem, nem nunca teve, predisposição criminosa, sempre pautou a sua vida pelo direito, é social, profissional e familiarmente integrado, motivo pelo qual estes atos surgem na sua vida de uma forma isolada.
XX – Ponderadas as circunstâncias concretas da atuação do Recorrente, as suas circunstâncias de vida e personalidade, a inexistência de antecedentes criminais, a falta de predisposição criminosa, nunca justificaria a concreta pena de prisão que lhe foi aplicada.
XXI – A pena imposta afigura-se atroz, desmesurada e desproporcionada contra o Recorrente, até porque a condenação jamais pode refletir um sentimento de vingança pública contra a pessoa do condenado, pelo que invocamos os critérios plasmados no artigo 71º do Código Penal.
XXII – O Recorrente é primário, está perfeitamente inserido, quer social, quer profissionalmente; as lesões e as sequelas dadas como provadas são ligeiras, não sendo graves, pelo que não demandaram internamento, tendo ocorrido a imediata alta hospitalar, no próprio dia e após ser feito um rápido curativo, pelo que não provocaram danos ou marcas permanentes, o que não aponta para um grau de gravidade elevado, mas apenas baixo ou, quando muito, moderado.
XXIII – Pese embora o Recorrente seja de modesta condição económica, de pouca instrução, sendo um trabalhador na área da construção civil, mas que tem todo apoio familiar, encontrando-se familiarmente inserido e tem hábitos de trabalho, motivo pelo qual deve ser enaltecida a finalidade reparadora, fortalecendo a finalidade da pena enquanto visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
XXIV – Quanto à suspensão da execução da pena de prisão, esta pode ser simples ou com imposição de deveres, nos termos do artigo 50.º, nos 2 e 3, do Código Penal, sendo certo que o Recorrente, não se opõe à imposição de um severo regime de prova, que será religiosamente cumprido.
TERMOS EM QUE, E, NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, DEVE SER SUBSTANCIALMENTE ATENUADA A PENA IMPOSTA AO RECORRENTE, POR SE REVELAR EXCESSIVA, INJUSTA E DESPROPORCIONAL, POR ESTAMOS DIANTE DE UM CIDADÃO COM CRC LIMPO, QUE NÃO TEM QUAISQUER OUTROS PROCESSOS PENDENTES E QUE SEMPRE ESTEVE INSERIDO SOCIAL, PROFISSIONAL E FAMILIARMENTE. PARA ALÉM DISSO, A PENA DE PRISÃO APLICADA DEVE SER SUSPENSA NA SUA EXECUÇÃO E SUJEITA À SEVERO REGIME DE PROVA, QUE SERÁ RELIGIOSAMENTE CUMPRIDO PELO RECORRENTE; FAZENDO, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA.»
O recurso do acórdão condenatório mostra-se admitido com subida imediata, nos próprios autos, com efeito suspensivo.
O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
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Chegados os autos a este Tribunal da Relação, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta lavrou parecer no sentido de acompanhar a posição que fora expressa pela Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª Instância, sustentando também a improcedência do recurso.
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Cumprido o preceituado pelo art. 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, o Arguido veio responder, reafirmando a posição que sustentara no recurso e realçando a circunstância de já não se encontrar em prisão preventiva, na sequência do acórdão proferido no Apenso D, que acolheu a ideia da evidente atenuação das exigências cautelares.
Não se mostra requerida a realização de audiência.
Proferido despacho liminar, foram colhidos os “vistos” e teve lugar a conferência.
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2 - FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Questões a tratar
É pacífico, a partir do preceituado pelo n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, que são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal de 2ª Instância, sem prejuízo do dever de apreciar as questões de conhecimento oficioso, como sejam a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, previstos no art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos arts. 379º, nº 2 e 410º, nº 3, do mesmo Código (cfr. o Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, publicado no DR I Série de 28.12.1995).
Face ao exposto, o que há a ponderar neste recurso, em síntese, é o seguinte:
i. Se os factos provados integram o tipo qualificado de ofensa à integridade física, nos termos acolhidos pela 1ª Instância;
ii. Se a medida da pena de prisão aplicada é excessiva;
iii. Se deve a pena de prisão ser suspensa na sua execução, com regime de prova.
2.2 A subsunção jurídico-penal dos factos
O acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos, que o Arguido não impugna no seu recurso:
1. No dia ... de ... de 2023, cerca das 3h15m, o ofendido CC encontrava-se na ..., a confraternizar com os seus colegas de trabalho DD, EE, FF e GG;
2. Nesse local encontrava-se também o arguido, que, ao passar pelo referido grupo, chocou com FF, despejando parte da cerveja que este tinha no copo de plástico que segurava numa das mãos;
3. Nessa sequência, o arguido retirou das mãos de FF o copo que o mesmo segurava e levou-o consigo;
4. Apercebendo-se que FF não tinha o copo de cerveja na mão, o ofendido e o seu grupo dirigiram-se ao estabelecimento denominado “...”, sito na ..., onde compraram mais cerveja, igualmente servida em copos de plástico, e regressaram à ...;
5. Dando conta que tinha no seu bolso um cartão que pertencia ao estabelecimento comercial onde trabalha, o ofendido, acompanhado de FF, regressou ao sobredito estabelecimento, para ali o deixar;
6. No trajecto até ao referido local o ofendido CC voltou a cruzar-se com o arguido, e, como este tinha consigo um copo de plástico com cerveja, disse-lhe, em tom de brincadeira, que a cerveja não era dele, fazendo um gesto como se lhe fosse retirar o copo da mão;
7. Imediatamente a seguir, o arguido agarrou a roupa do ofendido CC “pelos colarinhos”, com uma das mãos, pelo que o ofendido também segurou a roupa do arguido, na zona dos colarinhos, com o intuito de o afastar;
8. Nesse momento, o arguido retirou de um dos bolsos das calças que envergava um gargalo de vidro partido, que colocou entre os dedos;
9. De seguida, com o mesmo gargalo, o arguido desferiu dois golpes no pescoço do ofendido;
10. Em reação, e procurando afastá-lo de si, o ofendido CC desferiu-lhe um empurrão;
11. De seguida, o arguido deixou cair no chão o referido gargalo de vidro partido e fugiu do local;
12. O ofendido foi transportado ao Hospital de ..., onde recebeu os devidos cuidados médicos;
13. Em consequência direta e necessária da conduta do arguido, o ofendido sofreu, para além da alteração da sensibilidade (dor), três feridas incisas irregulares na face anterior do pescoço, com cerca de 2-3 em cada uma;
14. Tais lesões determinaram ao ofendido um período de doença de 20 dias, com 10 dias de afectação da capacidade de trabalho geral e de trabalho profissional, tendo-lhe deixado cicatrizes na face anterior do pescoço;
15. O arguido agiu com o propósito de desferir os golpes que desferiu na referida zona do corpo do ofendido, onde sabia encontrarem-se veias de grande calibre, como é a veia jugular;
16. O arguido agiu com o propósito de lesar o corpo e a saúde do ofendido CC, o que concretizou;
17. O arguido bem sabia que, ao atuar da forma supra descrita, surpreendia o ofendido, que não previu a possibilidade de ser agredido com o gargalo da garrafa de vidro em apreço, dotado de arestas vivas;
18. O arguido actuou, ao surpreender subitamente o ofendido com o objecto supra referido, de forma inesperada e gratuita;
19. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se apurou, em audiência de julgamento, e com relevo para a decisão da causa, que:
20. À data dos factos supra descritos o arguido pernoitava, desde há cerca de três semanas, na obra onde se encontrava a trabalhar, por sugestão do patrão, que lhe cedeu um espaço com condições de habitabilidade e segurança;
21. Natural do ..., o arguido é o irmão mais velho de uma fratria de três; viveu com os pais e os dois irmãos germanos, em habitação própria, numa favela no ..., não tendo o agregado enfrentado dificuldades financeiras, uma vez que os progenitores se encontravam integrados no mercado de trabalho;
22. Apresentou um desenvolvimento infanto-juvenil adequado, sem registo de ocorrências, tendo recebido dos progenitores uma educação consonante com as regras e normas sociais vigentes;
23. A dinâmica familiar do agregado onde decorreu o processo de socialização do arguido era harmoniosa e equilibrada e dotada de afectividade entre os seus elementos;
24. Aos 18 anos de idade iniciou um relacionamento amoroso com a mãe da sua filha, que perdurou por sete anos;
25. A filha do arguido tem, na actualidade, sete anos de idade e encontra-se a residir com a mãe, no ...;
26. O arguido sempre frequentou a igreja …, local onde conheceu a sua ex-mulher e estabeleceu relações de amizade com jovens da mesma faixa etária, que identifica como um grupo de pares normativo e com comportamentos adequados;
27. Aos 26 anos, e na sequência da sua separação, o arguido veio para Portugal à procura de melhores condições de vida e de trabalho, tendo integrado o agregado dos tios maternos;
28. Após a separação vivenciou um período de desorganização pessoal e profissional, tendo iniciado consumos de álcool e estupefacientes, designadamente canábis e cocaína, nunce se tendo submetido a tratamento;
29. O arguido teve um percurso escolar pautado por sucesso e motivação, tendo aos 16 anos prestado funções como … numa empresa, no âmbito de um programa público do Estado … denominado “Jovem aprendiz”; concluiu o equivalente ao 12º ano de escolaridade e prosseguiu com uma inscrição universitária, a que não deu seguimento por dificuldades financeiras;
30. Integrou o mercado de trabalho aos 18 anos, numa fábrica de …, onde esteve por cerca de três meses; posteriormente integrou uma empresa de venda de sistemas de segurança durante sete meses e, mais tarde, trabalhou como ...durante três anos;
31. Obteve a carta de condução e, antes de imigrar para Portugal, encontrava-se autónomo financeiramente, tendo iniciado a construção de uma casa;
32. Encontra-se em Portugal desde ... de ... de 2022, tendo trabalhado como ... na “...” e na ... emprego que mantinha à data dos factos supra descritos;
33. O arguido pretende reintegrar o agregado familiar dos tios maternos quando for restituído à liberdade e estes encontram-se disponíveis para o receber;
34. No Estabelecimento Prisional de ... o arguido apresenta registo de uma sanção disciplinar datada de 25/02/2024, relacionada com estupefacientes;
35. Não se encontra integrado em nenhuma atividade laboral ou formativa e dispõe de suporte familiar ao nível económico e emocional por parte da tia materna, que o visita sempre que possível;
36. Não são conhecidos, ao arguido, antecedentes criminais.
E considerou não provados os seguintes factos:
A. Na sequência do empurrão do ofendido, supra referido em 10., o arguido tenha redobrado esforços e investido de novo contra o ofendido, desferindo-lhe com a mão que segurava o gargalo de vidro partido um soco que lhe atingiu outra vez o pescoço; e que
B. O arguido pretendesse provocar no ofendido lesões idóneas a causar-lhe a morte, bem sabendo que as arestas vivas do gargalo da garrafa partida eram aptas a atingir o resultado que pretendia, o que não aconteceu por razões alheias à sua vontade.
A partir da factualidade que teve por provada, considerou então a 1ª Instância que o Arguido cometeu o crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto pelo art. 145º, nºs 1, alínea a) e 2, por referência ao art. 132º, nº 2, alínea e), ambos do Código Penal.
Fundamentou juridicamente essa solução nos seguintes termos:
«O arguido vem acusado da prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 14º, nº 1, 23º, 73º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, alíneas e) e h), todos do Código Penal.
(…)
Volvendo ao caso dos autos, considerou a acusação que o arguido, ao agir do modo descrito, teria pretendido de forma directa retirar a vida ao ofendido, o que se traduziria num dolo directo – artigo 14º, nº 1, do Código Penal -, apenas não tendo logrado tal objetivo por motivo alheio à sua vontade.
Porém, da factualidade que resultou assente verifica-se que o objetivo da actuação do arguido consistiu na lesão do corpo e da saúde do ofendido, através do emprego de um gargalo de garrafa de vidro, com o qual desferiu a este golpes no pescoço que lhe provocaram três feridas incisas e irregulares na face anterior do pescoço, com cerca de 2-3 centímetros de comprimento. Acresce que não resultou provado que as lesões que o arguido provocou no ofendido eram aptas a provocar-lhe a morte, e que este resultado apenas não se produziu por razões alheias à vontade do arguido.
Ora, em face de tais premissas, é evidente que não se mostra preenchido o tipo criminal imputado ao arguido pela acusação, verificando-se ao invés o preenchimento do tipo contido no art. 145º, nº 1, al. a), e nº 2, do Código Penal.
Na verdade, a conduta do arguido, ao desferir três golpes no pescoço do ofendido fazendo uso do gargalo de uma garrafa de vidro dotado de arestas vivas, provocando-lhe as lesões que resultaram apuradas, integra, efectivamente, a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada.
Com efeito, estabelece o art. 145º do Código Penal:
«1 – Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido:
a. Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143º;
b. Com pena de prisão de 1 a 5 anos no caso do nº 2 do art. 144º-A:
c. Com pena de prisão de 3 a 12 anos no caso do artigo 144º e do nº 1 do artigo 144º-A.
2 – São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 132º».
Por sua vez, o art. 143º, nº 1, do mesmo diploma estabelece que «quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa».
Na delimitação do tipo objectivo de crime em apreço cumpre considerar, como bem jurídico protegido pela norma incriminadora, a integridade física da pessoa humana, englobando a dupla dimensão da tutela do corpo e da saúde de outrem.
A tutela da integridade física surge, na nossa ordem jurídica, indissociavelmente ligada ao reconhecimento absoluto da dignidade da pessoa humana, valor fundamental e subordinante da razão de Estado, declarada logo no art. 1º da Constituição da República Portuguesa. Erigida em torno do valor absoluto da dignidade da pessoa humana, a nossa Lei Fundamental consagra, no seu art. 25º, nº 1, a inviolabilidade expressa da integridade física das pessoas, interditando em absoluto quaisquer formas da sua violação.
O tipo legal contido no art. 145º, do C.P., como crime de dano, abrange a produção de um determinado resultado, consistente na lesão do corpo ou da saúde de outrem. Para o seu preenchimento bastará, pois, a verificação do resultado descrito.
A conduta do arguido integra, assim, e na verdade, todos os elementos objetivos e subjetivos que constituem o tipo de ilícito constante do mencionado preceito legal.
Verifica-se, na verdade, que com a sua conduta o arguido provocou lesões no corpo do ofendido CC, e que a realização do tipo de ilícito em apreço surgiu como finalidade da conduta daquele, já que quis ofender, e ofendeu, a integridade física do ofendido, provocando-lhe as lesões que supra se consideraram assentes, querendo e conseguindo, desse modo, molestá-lo fisicamente.
Efectivamente, o arguido dirigiu directa e intencionalmente a sua vontade à realização do facto lesivo que veio a praticar sobre o ofendido, tendo este sido o fim último da conduta que empreendeu. Representou o facto que objetivamente preenche o tipo de crime do art. 145º, alínea a), do C.P., actuou com a intenção de o realizar, agindo portanto com dolo directo (art. 14º, nº 1, do C.P.).
Acontece, ainda, que se verifica preenchida a qualificativa prevista na alínea a) do nº 1 do art. 145º do Código Penal, e do nº 2 do mesmo preceito, que origina a qualificação do crime se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, sendo susceptíveis de as revelar, entre outras, as previstas no nº 2 do art. 132º do Código Penal.
Ora, neste particular, é notório que o arguido actuou animado por um motivo fútil (circunstância qualificativa agravante contemplada na já referida alínea e) do nº 2 do art. 132º do Código Penal), e que derivou do facto de o ofendido, em tom de brincadeira, lhe ter dito que a cerveja não era dele, fazendo um gesto como se lha fosse retirar da mão, sendo ainda evidente que ressaltou da sua conduta global uma especial censurabilidade e perversidade decorrentes da circunstância de, sem causa ou motivo fundado, ter usado o objecto perfurante em apreço, dirigindo-o contra o ofendido de forma gratuita e imprevisível, o que demonstra uma perversidade acima da média, sendo por isso merecedor de um juízo de censura qualificado.
Na verdade, a imprevisibilidade dos actos protagonizados pelo arguido, aliada ao uso do objecto em apreço, com um elevado potencial danoso, que dirigiu contra o ofendido da forma que resultou apurada, reclamam um desvalor jurídico globalmente acentuado, resultando da sua conduta uma exteriorização de elevada desconformidade aos valores tutelados pela norma incriminadora que demanda uma acrescida e especial censurabilidade.
Por conseguinte, impõe-se a condenação do arguido pela prática, como autor material, e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo art. 145º, nº 1, al. a), e nº 2, do Código Penal, e a sua correspectiva absolvição da prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada de que vinha acusado.»
A parte que por nossa iniciativa deixámos sublinhada é aquela em que o Tribunal de 1ª Instância justifica especificamente o emprego do art. 145º, nº 1, alínea a): considerou, em suma, que o Arguido era merecedor de um juízo de especial censurabilidade e perversidade por ter atuado nas circunstâncias conhecidas por um motivo fútil, aqui fazendo apelo ao art. 132º, nº 2, alínea e), aplicável por via do art. 145º, nº 2, todos do Código Penal.
E parece-nos inteiramente acertada a solução a que chegou.
Vejamos.
Das normas aplicáveis e já citadas resulta sumariamente o seguinte: (i) a ofensa à integridade física passa de simples a qualificada se as concretas circunstâncias do caso revelarem uma especial censurabilidade ou perversidade do agente; (ii) entre outras, constituem circunstâncias suscetíveis de revelar essa censurabilidade ou perversidade as previstas no art. 132º, nº 2; (iii) uma delas é o ter o agente atuado por motivo fútil.
Acolheu o legislador, como se sabe, um critério generalizador, fundado num especial tipo de culpa, traduzido pela ideia da «especial censurabilidade ou perversidade», combinado com a chamada técnica dos exemplos-padrão, de tal sorte que a presença de uma das circunstâncias do art. 132º, nº 2 do Código Penal indicia (mas não impõe) a existência daquela especial censurabilidade ou perversidade pressuposta pelo legislador; e a ausência de qualquer de tais circunstâncias indicia (mas não impõe) a inexistência dessa especial censurabilidade ou perversidade (Teresa Serra, Homicídio qualificado – tipo de culpa e medida da pena, Almedina, 1992, pgs. 66 e 67; Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, Parte Especial, Coimbra Editora, 1999, pgs. 25 a 28).
No caso concreto, considerou a 1ª Instância que a conduta em apreço relevava de especial censurabilidade e perversidade, em síntese, em virtude de ter o Arguido atuado por um motivo fútil (o ter derivado do facto de o ofendido, em tom de brincadeira, lhe ter dito que a cerveja não era dele, fazendo um gesto como se lha fosse retirar da mão) e por ter feito uso, de forma gratuita e imprevisível, evidenciadora de uma especial perversidade, do objeto perfurante em causa, com o seu elevado potencial danoso.
Como adiantámos já, não nos merece censura a abordagem feita pela 1ª Instância.
Motivo fútil é aquele que, de acordo com as conceções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado acentuadamente gratuito; é o motivo que não o chega a ser, no sentido em que há uma manifesta desproporção, do ponto de vista social, entre o que leva o agente a atuar e o gesto que executa, que surge assim totalmente inaceitável, de grande leviandade, incompreensível ou inexplicável segundo os critérios comuns do modo normal de agir do homem médio (Figueiredo Dias, ob. cit., pg. 32; Fernando Silva, Direito Penal Especial, Quid Juris, 2005, pg. 69; e Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Universidade Católica Editora, 2022, pg. 576).
Ora, olhando os factos, percebe-se que o que despoletou a atuação do Arguido e que o acórdão recorrido bem evidencia, foi na verdade algo de gratuito, sem sentido, totalmente destituído de um mínimo de lógica ou razoabilidade à luz dos padrões do normal agir em sociedade: num primeiro momento há um choque acidental entre os dois, que levou a que se despejasse parte da cerveja que o ofendido tinha no seu copo, situação em que o Arguido lho tirou e levou consigo; e num segundo momento ambos voltam a cruzar-se, ocasião em que o ofendido, em tom de brincadeira, diz ao Arguido que a cerveja que tem consigo não é dele, esboçando um gesto como se lhe fosse retirar o copo da mão. E é neste contexto, ocasional, acidental e até de brincadeira, que o Arguido avança sobre o ofendido com uma quase inacreditável violência, primeiro agarrando-o e depois golpeando-o no pescoço duas vezes com um gargalo de vidro partido que tinha consigo, num gesto que objetivamente tinha tudo para causar lesões de uma enorme seriedade e até, como é manifesto e resulta das regras da experiência comum, a própria morte.
Afigura-se-nos em suma que o acórdão recorrido não merece neste ponto qualquer censura: o Arguido atuou em circunstâncias que revelam da sua parte uma especial censurabilidade e perversidade.
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2.3 Da medida da pena
Em matéria de determinação da medida da pena lê-se o seguinte no acórdão recorrido:
«Estabelecido o quadro factual e o respectivo enquadramento jurídico, importa determinar a medida concreta da pena a aplicar.
O arguido praticou, em autoria material, um crime de ofensa à integridade física qualificada, punível com pena de prisão até 4 anos.
Nos termos do artigo 71º, nº 1, do C.P., a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Ora, atendendo ao disposto no art. 40º do C.P., que estabelece como fins das penas criminais a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, o escopo da lei será prosseguido na medida em que o restabelecimento da paz jurídica, afectada pela prática do crime, se concilie com as necessidades de prevenção geral e especial que o caso impõe.
Na vertente da pena como instrumento de prevenção geral, a sanção criminal destina-se, por um lado, a actuar (psiquicamente) sobre a generalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes através da ameaça penal, estatuída pela lei, da realidade da sua aplicação e da efectividade da sua execução, falando-se a este propósito de prevenção geral negativa ou de intimidação (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Questões Fundamentais – A doutrina geral do crime, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, págs. 48 e segs.).
Por outro lado, a prevenção geral positiva, ou de integração, visada pelas sanções penais, servirá para reforçar a confiança da comunidade na validade e força de vigência das normas que compõem o ordenamento jurídico-penal e que tutelam bens jurídicos.
Na sua vertente de prevenção especial, a pena constituirá um instrumento de intimidação do agente no cometimento de novos crimes (prevenção especial negativa ou de neutralização), devendo assumir ainda como propósitos a ressocialização do delinquente e a prevenção da sua reincidência (prevenção especial positiva ou de integração).
Tendo em conta estes aspectos, há ainda a considerar que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele (art. 71º, nº 2, do C.P.), não podendo em caso algum a pena ultrapassar a medida da culpa (art. 40º, nº 2).
No caso em apreço, verificam-se elevadas as necessidades de prevenção geral, pois há que acautelar o direito à integridade física e prevenir o cometimento, por parte dos cidadãos em geral, da prática de comportamentos idênticos.
Quanto às necessidades de prevenção especial que, no caso, se fazem sentir, as mesmas afiguram-se igualmente elevadas, atenta a personalidade violenta que o arguido evidenciou ao praticar o crime em apreço, sendo ainda de notar que, face ao modus operandi empreendido, que ressalta da factualidade apurada, demonstrou total desprezo pela integridade física do ofendido.
Importa considerar, ainda, que a culpa do arguido se apresenta elevada, posto que actuou com dolo directo e, por conseguinte, intenso.
A culpa do arguido, que é limite inultrapassável da pena que lhe caberá, configura-se elevada, pelo que deve o ordenamento jurídico, através da presente condenação, dissuadi-lo de levar a cabo as suas propensões criminosas.
Assim, quanto à determinação da medida concreta da pena, o Tribunal atende:
- Ao grau elevado da ilicitude dos factos;
- Ao dolo com que o arguido actuou, na modalidade de dolo directo, porquanto agiu de acordo com o conhecimento da ilicitude que possuía;
- Às consequências que, com a sua conduta, provocou no corpo do ofendido;
- À circunstância de não lhe serem conhecidos antecedentes criminais;
- Ao contexto social, familiar e económico em que o arguido se encontrava inserido, à data dos factos, bem como ao seu percurso de vida.
E, ponderadas todas estas considerações, julga-se adequada a condenação do arguido na pena de 3 (três) anos e 9 (nove) meses de prisão
Defende o Arguido que é excessiva a pena encontrada, à luz dos factos provados, e nomeadamente considerando que a sua atuação não relevou de perversidade ou especial censurabilidade; e sublinha que se encontra inserido social, profissional e familiarmente, que não tem antecedentes criminais e que o tempo que passou em prisão preventiva já satisfaz plenamente as exigências preventivas e tem sobre si um forte efeito dissuasor.
Vejamos.
Antes de mais, importa ter presente que, fixados os factos, o tribunal de recurso não decide quanto à pena como se inexistisse uma decisão de primeira instância, isto é, não é de um re-julgamento aquilo de que aqui se trata, donde resulta que pode e deve intervir-se na pena, alterando-a, quando são detetadas incorreções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância ou na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a matéria. Não decide o tribunal de recurso, destarte, como se o fizesse ex novo, não podendo assim deixar de reconhecer-se alguma margem de atuação ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar. No fundo, a medida concreta das penas apuradas em primeira instância é passível de alteração quando se mostre que foram desrespeitados os princípios gerais e as operações de determinação impostas por lei, a indicação e a consideração dos fatores de medida da pena, mas não abrangerá a definição, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada (cfr. Acs. do STJ de 14.10.2015, 12.07.2018 e 19.05.2021, relatados por Pires da Graça, Raul Borges e Ana Barata Brito, in www.dgsi.pt).
Dentro desta nossa limitada margem de atuação, e olhando o acórdão recorrido, percebe-se que este cumpre todas as exigências de fundamentação em matéria de determinação da medida da pena.
Com efeito:
(i) enuncia acertadamente as regras legais aplicáveis;
(ii) expõe e com suficiente desenvolvimento os concretos fatores a considerar, sublinhando adequadamente o que de mais relevante há a considerar em matéria de aferição do grau de ilicitude dos factos, do tipo e intensidade do dolo, do nível de culpa e das exigências de prevenção geral e especial, não se mostrando que em alguma dessas passagens tenha a primeira instância incorrido em algum relevante erro, lapso ou omissão;
(iii) e conclui quantificando o seu juízo numa medida de pena que não surge como merecedora de qualquer censura, nomeadamente na dimensão da sua proporcionalidade.
É certo que o Arguido tem em seu benefício vários aspetos favoráveis, nomeadamente os que se prendem com a circunstância de apresentar hábitos de trabalho, alguma retaguarda familiar, uma formação escolar de nível médio e ausência de antecedentes criminais.
De todo o modo, não pode dizer-se, como sustenta o Arguido no seu recurso, que o seu comportamento não revelou perversidade ou especial censurabilidade – nesse domínio, que em bom rigor respeita, na sua essência, à subsunção jurídico-penal dos factos, a conclusão a que chegámos coincide com o juízo formulado em 1ª Instância, no sentido da afirmação da presença, no caso, das aludidas especial censurabilidade ou perversidade, como já dito.
Por outro lado, os assinalados fatores de integração social, familiar e profissional, sendo em si mesmos positivos, não foram porém suficientemente estruturantes da personalidade e do modo de agir do Arguido, pois não o afastaram da prática dos graves factos aqui em causa, podendo portanto dizer-se concomitantemente que não constituem também suficiente garantia de bom comportamento no futuro.
De resto, há que notar, neste universo geral da conduta do Arguido, que os factos revelam que durante o período em que esteve em prisão preventiva, à ordem destes autos, não deixou de registar uma infração disciplinar relacionada com estupefacientes, o que nos inspira algumas reservas quanto à sua real estabilidade, dado que é sabido que vivenciou já, como os factos também revelam, uma fase anterior de desorganização que o levou a consumos de álcool e estupefacientes, designadamente canábis e cocaína, em relação aos quais nunca chegou a submeter-se a qualquer tratamento.
Acresce que não pode ignorar-se ainda que os factos não revelam qualquer sinal de arrependimento por parte do Arguido ou de empatia ou compaixão para com a vítima; ao invés, da posição que assumiu quanto aos factos resultou a tentativa de iludir o Tribunal quanto às exatas circunstâncias da sua atuação, tentando mesmo culpabilizar a vítima ao fazer menção a uma realidade que de todo a prova afastou. Recordemos esta passagem do acórdão recorrido:
«(…) Com efeito, muito embora em julgamento o arguido haja optado por não prestar declarações, afirmando reiterar tudo quanto dissera naquela diligência judicial, o certo é que, na sua essencialidade, admitiu os factos constantes da acusação aquando do primeiro interrogatório judicial a que foi submetido, tendo precisado que actuou do modo descrito porquanto foi ameaçado pelo ofendido, que o tentou golpear com uma faca de ponta e mola e pretendeu, apenas, defender-se e repelir tal agressão iminente.
Porém, tais declarações do arguido, quanto à agressão iminente que o ofendido lhe dirigiu, e à consequente necessidade que sustentou em defender-se, fazendo uso do gargalo da garrafa de vidro apreendida a fls. 9, revelaram-se totalmente inverosímeis e desconformes à verdade, tendo a convicção do tribunal sido formada com base nas declarações isentas, pormenorizadas e circunstanciadas prestadas em audiência, desde logo, pelo ofendido, CC, que de forma rigorosa relatou toda a factualidade ocorrida, e de que foi vítima, sem que em parte alguma do seu depoimento se detectasse qualquer contradição ou insegurança susceptíveis de abalar a consistência e credibilidade do seu relato. Na verdade, de forma rigorosa e detalhada, o ofendido descreveu os momentos em que nas circunstâncias supra referidas, se deparou com o ofendido [ter-se-á querido dizer arguido], e os actos que cada um levou a cabo, tendo descrito de forma isenta que, tendo sido agarrado pelo colarinho pelo arguido, tentou defender-se agarrando-o, igualmente, pelo colarinho, tendo de imediato sentido dois cortes no pescoço produzidos com o objecto que o mesmo acabou por deixar cair imediatamente antes de se colocar em fuga (a este respeito, muito embora decorra dos elementos clínicos e dos exames periciais infra aludidos que o ofendido sofreu três feridas no pescoço, a verdade é que do seu depoimento isento apenas decorreu, com segurança, ter sentido dois golpes desferidos pelo arguido fazendo uso do gargalo em apreço, resultando assim seguro que, por se tratar de objecto dotado de arestas vivas, a circunstância de terem sido três as feridas sofridas se ficou a dever à pressão exercida por essas mesmas arestas no contacto com o pescoço do ofendido). Acresce ainda que, de modo consistente e credível, o ofendido afirmou que em momento algum ameaçou o arguido ou lhe exibiu qualquer faca, que, de resto, conforme esclareceu, não trazia consigo, tendo o seu depoimento sido essencial para que, em conjugação com os demais depoimentos prestados em audiência, quanto à factualidade objecto dos autos, o tribunal formasse a sua convicção nos exactos termos que resultam do elenco supra plasmado. Na verdade, igualmente de forma isenta, rigorosa e coerente, a factualidade ocorrida foi descrita pelas testemunhas DD, EE, FF e GG, que, por se encontrarem na companhia do ofendido, presenciaram os factos em apreço, tendo-os confirmado nos precisos termos em que o fez o próprio ofendido e nos termos que resultam supra elencados como provados. De igual modo, a testemunha HH, que se encontrava nas imediações do local onde o arguido agrediu o ofendido, e que não conhecia nenhum destes, relatou de forma isenta e consistente que se apercebeu de uma discussão entre ambos, tendo visto que agarraram as roupas um do outro e, nessa sequência, de imediato, o arguido dirigir na direcção do pescoço do ofendido um objecto, que deixou cair, colocando-se em fuga de seguida.»
A pena de prisão encontrada pela 1ª Instância é objetivamente pesada – nenhuma dúvida quanto a isso; mas é-o, desde logo e essencialmente porque os factos são de uma gravidade extrema, dentro do espectro geral de ilicitude própria deste tipo legal. Podemos mesmo dizer que poucas condutas haverá que, caindo ainda no tipo legal da ofensa qualificada prevista pelo art. 145º, nº 1, alínea a) do Código Penal, sejam mais graves que a protagonizada pelo Arguido.
Decerto que a imagem global do caso e da situação da pessoa julgada que o protagoniza podem sempre, em tese, surgir-nos com tonalidades ainda mais graves; basta para isso pensar na possibilidade de o agente ter já antecedentes criminais por crimes semelhantes, por exemplo - mas aceita-se por isso mesmo que a pena não tenha sido situada em ponto ainda mais próximo do máximo legal ou que não tenha sido feita mesmo coincidir com este.
Face ao exposto e reiterando-se que à 1ª Instância deve ser reconhecida uma certa margem de autonomia na determinação da medida da pena, afigura-se-nos que não merece censura, em suma, a pena encontrada.
2.4 Da suspensão da execução da pena de prisão
Determinou o Tribunal de 1ª Instância que a pena de prisão fixada seria de cumprimento efetivo.
Lê-se a esse respeito o seguinte, no acórdão recorrido:
«Perante a pena em que o arguido vai condenado, coloca-se a questão do poder-dever de aplicação do disposto no art. 50º, nº 1 do Código Penal, nos termos do qual o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
A propósito deste instituto, escreveu-se no Ac. do STJ de 30/6/93, in BMJ 428, 353, citando Jeschek, que “na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose favorável ao agente, baseada num risco prudencial. A suspensão da pena funciona como um instituto em que se une o juízo de desvalor ético-social contido na sentença com o apelo, fortalecido pela ameaça de executar no futuro a pena, à vontade do condenado em se integrar na sociedade. O tribunal deve estar disposto a assumir um risco prudente; mas se existirem dúvidas sobre a capacidade do condenado para compreender a oportunidade de ressocialização que se oferece, a prognose deve ser negativa”.
O legislador penal traça um sistema punitivo que parte da ideia fundamental de que as penas devem ser sempre executadas com um sentido ressocializador (dando uma clara preferência, desde logo, à pena de multa, quando a mesma se encontre prevista em termos alternativos à prisão – art. 70º do Código Penal), afirmando expressamente no art. 40º do Código Penal que as penas visam a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, ou, dito de outro modo, que as penas têm por finalidade a prevenção geral (esta na perspectiva positiva de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma, enquanto estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida) e a prevenção especial.
O sistema punitivo plasmado no Código Penal português parte da ideia nuclear de que a pena tem por objectivo a ressocialização, e que, em consequência, a efectiva aplicação das medidas detentivas apenas deverá ter lugar nos casos mais gravosos, e como ultima ratio.
A suspensão da execução da pena de prisão entronca na trave mestra do pensamento legislativo, uma vez que evita o cumprimento efectivo de uma pena de prisão, fazendo sentir ao agente a forte reprovação da sociedade pelo seu comportamento, mas dando-lhe a oportunidade de, em liberdade, se ressocializar, no sentido de moldar os seus comportamentos aos comandos jurídicos, face à censura realizada e perante a ameaça do cumprimento efectivo de uma pena de prisão.
Como é óbvio, a suspensão da execução da pena não é, nem podia ser, uma medida de substituição automática da pena de prisão, apenas devendo ser aplicada nos casos em que o tribunal considere, em face da personalidade do agente, das condições de vida, da conduta anterior e posterior ao crime e das circunstâncias do crime que a simples censura do facto e a ameaça da prisão se bastam para afastar o agente da prática de novos factos criminalmente ilícitos.
Conforme refere Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, p. 342-343, tal deverá operar quando “(…) o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do agente (…)”.
Todavia, acrescenta o ilustre mestre que “(…) a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime”.
No caso em apreço, atenta a gravidade do crime praticado pelo arguido, bem como as exigências de prevenção que ao caso subjazem, entendemos não estarem reunidas as condições que possibilitam a suspensão da referida pena de prisão.
Na verdade, a gravidade e censurabilidade da conduta protagonizada pelo arguido e o evidente desvalor social e jurídico que a mesma assume, pese embora não apresente antecedentes criminais, e a personalidade violenta e irresponsável que transparece dos seus comportamentos, constituem circunstâncias que não permitem concluir que as exigências subjacentes às finalidades da punição ficassem acauteladas com o cumprimento de pena não detentiva.
Destarte, atenta a gravidade dos factos praticados e a personalidade que o arguido evidenciou ao praticá-los, entendemos não ser possível formular um juízo de prognose favorável de que o mesmo, em liberdade, conformará a sua vontade de acordo com o direito e os valores jurídicos vigentes, caso não seja sujeito ao cumprimento de sanção privativa da liberdade, em termos efectivos.
Pelo que fica dito, impõe-se a execução da pena de prisão ora aplicada ao arguido.»
Defende o Arguido, por sua vez, que a pena de prisão deve ser suspensa na sua execução; para além do que já mencionara a propósito da defesa dirigida especificamente quanto à medida da pena, sublinha agora, nesta vertente, que a prisão preventiva a que esteve sujeito, durante mais de um ano, já exerceu sobre ele um fortíssimo efeito dissuasor, que é pessoa muito religiosa, tendo sempre frequentado a ..., e que as lesões e sequelas causadas são ligeiras.
Vejamos.
Também neste domínio não nos parece que a 1ª Instância tenha errado na solução a que chegou. O acórdão recorrido contém o enunciado das condições gerais ao abrigo das quais poderia equacionar-se uma eventual suspensão da execução da pena de prisão, enunciado esse a que aderimos, e a aplicação que lhes deu no caso concreto não nos merece qualquer decisiva censura.
Recorde-se que todos os aspetos favoráveis ao Arguido, que este destaca no recurso, ligados à sua vida pessoal, social e familiar, não foram suficientemente estruturantes, como já dissemos, a ponto de o afastar da prática dos factos aqui em causa, como seria suposto se acaso se revestissem tais aspetos de um peso influenciador fulcral sobre a sua conduta. Por outro lado, nada nos factos permite ter por garantido que o período passado em prisão preventiva produza o autoproclamado efeito dissuasor sobre o comportamento futuro do Arguido; sinal que sugere isto mesmo, aliás, radica na ausência de notícia de qualquer arrependimento, empatia ou compaixão para com a vítima, evidenciada na culpabilização desta que procurou encetar quando prestou declarações, nos termos que já atrás mencionámos.
Para além do exposto, importa ainda não ignorar que o Arguido, durante o período de privação da liberdade, apresenta o registo de uma infração disciplinar relacionada com estupefacientes e já teve, no passado, problemas nesta área, como aqui já demos nota.
É certo que as lesões causadas no ofendido, não sendo de forma alguma de valor despiciendo (dor própria das feridas incisas no pescoço, vinte dias de doença, dos quais dez com incapacidade para o trabalho, e cicatrizes nas zonas afetadas), acabaram por não apresentar uma gravidade excecional. Todavia, face à dinâmica dos acontecimentos e aos gestos do Arguido, essa ausência de maior dano no ofendido resulta de uma completa álea, dado que tais gestos tinham tudo para inclusive matar o ofendido e de forma bárbara.
Não cremos, assim, que possa formular-se positivamente, com a segurança que se imporia, um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do Arguido.
Mais: ainda que eventualmente pudesse chegar-se a esse juízo de prognose favorável, certo é que daí não decorreria necessariamente a suspensão da execução da pena; esta suspensão careceria ainda da compatibilidade da suspensão com as exigências de prevenção geral que o caso suscita. E neste domínio não nos esqueçamos que falamos de um ilícito de verificação frequente e que no caso concreto contém detalhes de uma enorme gravidade, geradores, aliás, de um intenso e compreensível alarme social, ligado à perceção de (in)segurança da comunidade, em particular na noite.
Bem andou, em suma, a 1ª Instância em ter recusado a suspensão da execução da pena.
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3 - Dispositivo
Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se o douto acórdão recorrido.
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Custas pelo Arguido, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) unidades de conta [arts. 513º/1 e 3 do Código de Processo Penal, e 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a este anexa], sem prejuízo de eventual apoio judiciário de que beneficie.
Registe e notifique.
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Lisboa, 06 de março 2025
Os Juízes Desembargadores
(processado a computador pelo relator e revisto por todos os signatários; assinaturas eletrónicas)
Jorge Rosas de Castro
Manuela Trocado
Eduardo de Sousa Paiva