CONDUÇÃO SOB INFLUÊNCIA DE PRODUTOS ESTUPEFACIENTES
Sumário

Para a verificação do tipo legal do nº2 do artigo 292 do CP, não basta a presença de substância psicotrópica no organismo, sendo necessário que a mesma torne o condutor incapaz de conduzir em segurança.
II- A falta de condições para o exercício da condução em segurança não resulta automaticamente do consumo de estupefacientes.
III- O legislador distinguiu as situações em que o condutor conduz sob o efeito de estupefacientes (que será, pelo menos, ilícito de contraordenação), daquelas em que o consumo das substâncias leva a que a condução não possa ser realizada em segurança, que configuram a prática de um ilícito criminal.
IV- A comunidade científica tem demonstrado dificuldade em encontrar um valor mínimo de concentração de estupefacientes no sangue, a partir do qual se possa considerar que não é possível conduzir em segurança para efeitos penais, na medida em que tal depende de variantes, nomeadamente do grau de tolerância a substâncias estupefacientes e psicotrópicas de cada organismo.
V- Se a prova do consumo resulta da perícia realizada, já a prova de que tal consumo impede o agente de conduzir em segurança, resulta da totalidade da prova produzida, nomeadamente da prova testemunhal.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
A)- Relatório:
No âmbito do PCS nº119/20.1SPLSB do Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 1, por sentença datada de 18.9.2024, foi proferida a seguinte decisão:
I-Absolver o arguido AA da prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário [p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 69.º n.º 1 al. a), 202.º al. a) e 291.º n.º 1 al. a), todos do Código Penal], em concurso aparente com um crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas [p. e p. nos termos do artigo 291.º n.º 1 do Código Penal, em conjugação com a tabela I-B, anexa ao do D.L. nº 15/93 de 22/01, revisto pela Lei n.º 38/2009 de 20.07].
II. Condenar o arguido pela prática de um crime de condução sem habilitação legal [p. e p. nos termos do artigo 3.º números 1 e 2 do D.L. n.º 2/98, de 3 de janeiro, com referência aos artigos 121.º n.º 1, 122.º e 123.º, todos do Código da Estrada] numa pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz um global de € 520,00 (quinhentos e vinte euros).
III. Condenar o arguido nas custas processuais que se fixam em 2 U.C., sendo a taxa de justiça reduzida a metade”.
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Inconformado com a decisão veio o Ministério Público interpor o presente recurso.
Apresenta as seguintes conclusões:
“a) É o presente recurso interposto da douta sentença que absolveu o arguido AA da prática de um crime de condução sob a influência de estupefacientes, previsto e punido pelo art.º 292º, n.º 2, do Código Penal, de que vinha acusado (em concurso aparente com a prática de um crime de condução perigosa, previsto e punido pelo art.º 291º, do Código Penal).
b) A sentença proferida padece de nulidade, nos termos do art.º 410º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal, por contradição insanável no que tange à indicação da matéria de facto provada e não provada e desta no que se refere à motivação da matéria de facto, podendo o recurso ser interposto, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum.
c) A circunstância de não se poder afirmar com a necessária certeza que a condução empreendida pelo arguido causou o acidente, ainda que de modo negligente, não admite, por si só, a conclusão de que a sua condução, nas condições em que o fazia, não comportava um risco sabido, definível e real, por não estar em condições de conduzir em segurança, mercê dos seus consumos tóxicos - a que se alia a circunstância de não ter carta de condução, de ser de noite (22h00) e da estrada estar molhada por força da chuva e sem iluminação - conclusão a que se opõem as regras da experiência, tanto mais que este tipo legal é unanimemente entendido como crime de perigo abstracto.
d) A decisão em recurso não poderia dar como provada a factualidade transcrita nos pontos 2 e 9 (e isto sem falar dos pontos 1, 3, 11 e 12, que se referem à ausência de habilitação legal e estado da via) e a factualidade constante da alínea b) da matéria de facto não provada, ou seja, não poderia dar-se simultaneamente como provado que o arguido conduzia depois de consumir cocaína, na dosagem constante do relatório pericial, de modo deliberado, livre e consciente, sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e, simultaneamente, considerar como não provado que o arguido não se encontrava em condições de conduzir em segurança, em virtude do consumo de estupefacientes.
e) E se esta foi a decisão, no que se reporta à matéria de facto assente, competiria depois, em sede de motivação da matéria de facto, esclarecer de modo claro por que é que o confessado consumo de cocaína momentos antes do exercício da condução e naquela concentração não se traduziu numa efectiva diminuição das condições de segurança que devem rodear o exercício da condução - sendo que o bem jurídico protegido com as incriminações contidas no art.º 292º, do Código Penal, é a segurança na circulação rodoviária.
f) O arguido tinha cocaína no sangue e admitiu que a tinha acabado de ingerir antes de empreender a condução (veja-se a motivação da matéria de facto), não se tratando de meros vestígios de estupefaciente que permanecem no organismo dias depois do consumo. Mais admitiu que agiu de modo deliberado, livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida pela lei penal, apenas negando a sua responsabilidade na produção do acidente, que atribui a causas mecânicas, não admitindo, igualmente que, não obstante o consumo prévio, não estivesse em condições de conduzir em segurança.
g) Face a estas premissas, conjugadas com o relatório pericial (que qualifica e quantifica a substância) importava esclarecer se a segurança com que o arguido empreendeu a sua condução ficou ou não prejudicada por tal consumo, como sustentado na acusação, questão que não logramos ver esclarecida na motivação da matéria de facto assente, o que torna difícil compaginar o ponto b) da matéria de facto não provada com a factualidade inserta nos pontos 2 e 9 da matéria de facto provada, gerando a contradição que temos por insanável.
h) Face à matéria em apreço, que importa questões de ordem científica, não bastava a mera declaração do arguido de que não sentiu minimamente diminuídas as suas capacidades para conduzir (cfr. motivação da matéria de facto), para afastar a imputação de que não reunia as condições de segurança exigidas na condução.
i) Um dos efeitos associados ao consumo de álcool e estupefacientes é uma sensação de euforia, descontracção e voluntarismo, que leva as pessoas a tomarem atitudes ou assumirem riscos que habitualmente, que em estados não alterados, não tomariam ou não assumiriam.
j) E é consabido que a ingestão de álcool e estupefacientes tem efeitos negativos na segurança da condução, por diminuição da destreza motora, diminuição do tempo de reacção, alterações do campo visual e alteração das próprias percepções do condutor.
k) Se o senso comum e as regras da experiência o permitem afirmar com alguma certeza, não se compreende, da motivação da matéria de facto, como é que, sem outros elementos que não as declarações do arguido, se ultrapassam tais regras para concluir que naquele caso concreto assim não sucedeu.
l) O julgador incorreu num erro de raciocínio, não se mostrando correcto fazer equivaler a segurança da condução empreendida pelo arguido ao facto de este não ter provocado o acidente, sendo tipos legais distintos, o previsto no art.º 291º, do Código Penal, crime de perigo concreto, e os previstos no n.º 1 e n.º 2, do art.º 292º, do Código Penal, ambos crimes de perigo abstracto. m) Os crimes do art.º 292º, do Código Penal, têm por base uma acção perigosa que justifica a sua criminalização. Conduzir depois de ingerir álcool ou de consumir substâncias psicotrópicas agrava as condições e o risco da circulação rodoviária dita normal, o mesmo acontecendo, por exemplo, com a falta de habilitação para conduzir.
n) O perigo que tais condicionantes (a influência de álcool, substâncias psicotrópicas, a falta de habilitação legal para conduzir) comportam é de tal forma acentuado que justifica, por si só, a criminalização da conduta, independentemente de se ter criado um perigo concreto. E com essa criminalização visa-se, precisamente, obstar a um incremento inadequado do risco, pretende-se obstar a que se traga para a circulação rodoviária um risco acrescido, desnecessário e evitável - alcançado pela abstenção dos comportamentos de risco acima apontados.
o) A valoração se o confessado consumo, com a concentração que consta do relatório pericial impedia, ou não, o arguido de exercer a condução em segurança, é algo que transcende a mera perícia médica, exigindo ao julgador uma valoração probatória global, aferindo as circunstâncias do caso concreto e ponderando as regras da lógica, do senso comum e da experiência.
p) Se a prova da influência do consumo de estupefacientes sobre o condutor terá de resultar da perícia médica, já a demonstração de que tal consumo o impedia de conduzir com segurança pode e deve ser logrado com todos os elementos de prova que o julgador disponha, numa valoração probatória responsável, ponderando o caso concreto e apoiando-se, como em toda a actividade jurisdicional, no conhecimento adquirido por via das regras da experiência, da razoabilidade das coisas, da normalidade da vida.
q) E caso se considerasse que a prova produzida e examinada em julgamento não permitia uma decisão segura, sempre podiam terem sido solicitados os pertinentes esclarecimentos a perito de toxicologia.
r) Se o julgador face à prova produzida não consegue concluir quanto ao grau de segurança para a condução no caso concreto, o que se admite, poderia e deveria ter solicitado os necessários esclarecimentos complementares a perito de toxicologia do Laboratório do INML, onde o exame foi feito, o que o apetrecharia de conhecimentos mais precisos para uma decisão mais esclarecida, para além da dúvida razoável a que alude.
s) Não ignorando que o processo penal tem uma matriz acusatória, com uma clara distinção entre a entidade que acusa e a entidade que julga, cabendo ao Ministério Público deduzir acusação, indicar os necessários meios de prova que a sustentem e fazer prova da factualidade constante da acusação em sede de julgamento, a verdade é que é objectivo tanto do Ministério Público como do decisor o apuramento da verdade dos factos, de acordo com os princípios e normas vigentes no nosso ordenamento.
t) Em suma, a decisão em recurso não deveria ter dado como provada a factualidade constante dos pontos 2 e 9 e como não provado o ponto b) quando não logra, em sede de motivação, esclarecer por que motivo não considerou que o arguido não reunia as condições para conduzir em segurança.
u) Não sendo declarada nula a sentença, deverá ser dado como provado o ponto b) da matéria de facto não provada, sendo tal factualidade suficiente para integrar a prática do crime previsto no art.º 292º, n.º 2, do Código Penal, pelo qual o arguido deverá também ser condenado.
v) Mostram-se, assim, violados, na decisão em recurso, o art.º 292º, n.º 2, do Código Penal, e o art.º 410º, n.º 2, al. b), do Código Penal”.
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Por despacho datado de 30.10.2024 foi o recurso admitido, a subir nos próprios autos e com efeitos suspensivos.
O arguido veio responder ao recurso, pugnando pela sua improcedência.
Apresenta as seguintes conclusões:
“A. O presente Recurso vem interposto pelo Ministério Público, aqui Recorrente, o qual invoca uma Nulidade na Douta Sentença, nos termos do art.º 410º, n.º 2, al. b), do CPP, por contradição insanável no que tange à indicação da matéria de facto provada e não provada e desta no que se refere à motivação da matéria de facto, bem como vem impugnar a factualidade constante dos 2.º e 9.º Pontos de Facto Provados e no Ponto de Facto b) como Não Provado;
B. O Recorrido entende que a sua Absolvição quanto ao Crime de Condução Perigosa de Veículo Rodoviário e a sua Condenação quanto ao Crime de Condução Sem Habilitação Legal já Transitaram em Julgado, porque a Douta Sentença quanto a estes crimes não foi objecto de Recurso;
C. O Recorrente afirma que, “Não obstante concordarmos que não resultou provado, de forma inequívoca, que foi a condução do arguido que deu origem ao seu próprio despiste, que teve gravíssimas consequências para terceiros - daí que não nos insurjamos quanto à sua absolvição da prática do crime de condução perigosa, entendemos que esta circunstância não equivale a sustentar, simultaneamente, que o mesmo estava em condições de conduzir em segurança”;
D. O Recorrido entende, s.m.o., que o requisito legal “conduzir veículo, com ou em motor, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança”, é necessário e essencial para o preenchimento dos tipos legais previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 291.º e do n.º 2 do artigo 292.º, ambos do CP;
E. O Recorrente contradiz-se nas alegações que verte no Recurso, parecendo até ter contornos de falta de lógica, dado que não se insurge quanto à Absolvição do Arguido no Crime de Condução Perigosa de Veículo Rodoviário, tendo esta Decisão transitado em julgado, mas insurge-se quanto à Absolvição do Arguido no Crime de Condução de Veículo sob a Influência de Estupefacientes ou Substâncias Psicotrópicas, o que se consubstancia apenas na divergência entre a convicção pessoal do Recorrente sobre a prova produzida em Audiência e a convicção que o Tribunal a quo firmou sobre os factos, questões essas do âmbito da livre apreciação da prova – princípio inscrito no artigo 127.º do CPP. –, sendo que, traduzir-se-ia em querer impugnar a convicção do Tribunal esquecendo a citada regra;
F. Sem Prescindir,
G. A Nulidade invocada pelo Recorrente, de que existe contradição insanável quanto à indicação da matéria de facto provada e à matéria de facto não provada e desta no que se refere à motivação da matéria de facto na Sentença, desde já se afirma que a Douta Sentença é bastante clara, objectiva, correcta e Justa, não sendo merecedora de qualquer sindicância, muito menos com os fundamentos vertidos na Interposição de Recurso a que se responde, desde logo, porque o vício invocado não resulta do texto da Sentença Recorrida, seja por si só ou conjugado com as Regras da Experiência Comum;
H. Segundo o Recorrente, “a decisão em recurso não poderia dar como provada a factualidade acima transcrita nos pontos 2 e 9 (e isto sem falar dos pontos 1, 3, 11 e 12, que se referem à ausência de habilitação legal e estado da via) e a factualidade constante da alínea b) da matéria de facto não provada, ou seja, não poderia dar-se simultaneamente como provado que o arguido conduzia depois de consumir cocaína, na dosagem constante do relatório pericial, de modo deliberado, livre e consciente, sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e, simultaneamente, considerar como não provado que o arguido não se encontrava em condições de conduzir em segurança, em virtude do consumo de estupefacientes”, sendo de lembrar que o Recorrente está onerado a identificar clara e precisamente a factualidade em que se materializa a contradição que invoca;
I. O Recorrido não pode estar em maior desacordo com esse entendimento do Recorrente e, consequentemente, de maior acordo com os fundamentos e a Decisão proferida na Douta Sentença, passando a demonstrar ponto a ponto indicado pelo Recorrente;
J. Os 1.º e 9.º Pontos de Facto Provados são determinantes para confirmar a conduta respeitante ao Crime de Condução Sem Habilitação Legal, sendo irrelevantes para determinar a prática do Crime de Condução de Veículo sob a Influência de Estupefacientes ou Substâncias Psicotrópicas, bem como para demonstrar a invocada Nulidade de eventual contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
K. Os 3.º, 11º e 12.º Pontos de Facto Provados poderiam concorrer para consubstanciar a conduta do Arguido como agente do Crime de Condução Perigosa de Veículo Rodoviário, no entanto, mostra-se fundamentado na Douta Sentença elaborada pela Mma. Juiz a quo que, após concatenar toda a prova produzida ao longo do Julgamento, entendeu que não havia prova suficiente para considerar apurados qual ou quais os verdadeiros motivos causadores da perda de controlo do veículo conduzido pelo Arguido e o levou a sofrer um despiste;
L. O 2.º Ponto de Facto Provado mostra-se fundamentado pelo facto de as declarações do Arguido serem “compatíveis com a prova documental junta aos autos, designadamente, (…) com a prova pericial, porquanto o relatório, junto a fls. 38 a 40, dá nota da natureza e quantidade de estupefacientes presentes no sangue do arguido, na ocasião acima descrita”;
M. A Mma, Juiz a quo entendeu não dar como provado que o consumo de estupefacientes pelo Arguido o impedia de conduzir com segurança, devido à ponderação que fez de todos os elementos de prova que disponha, numa valoração probatória responsável, ponderando o caso concreto e apoiando-se, como em toda a actividade Jurisdicional, no conhecimento adquirido por via das regras de experiência, da razoabilidade das coisas e da normalidade da vida;
N. O teor do Ponto de Facto contido na alínea b) dos Factos Não Provados resulta de que ao Tribunal a quo não se pode bastar com a Prova Pericial para decidir que o Arguido conduzia sob a influência de estupefacientes, tal como o fez, pois por ser fundamental que fique também provado que essa influência era de tal forma intromissiva que lhe afectaria as suas condições perceptivas necessárias ao acto de conduzir e também que ficasse provado que, por isso mesmo, não estava em condições de conduzir com segurança;
O. A Mma. Juiz a quo concluiu que não foi produzida prova suficiente de que a quantidade de estupefaciente consumido pelo Arguido lhe provocou efeitos suficientemente influenciadores para determinar o resultado de perigo concreto - despiste seguido de acidente de viação - sendo que essa concreta falta de prova, consequentemente, levou à Decisão constante do 3.º Ponto de Facto Provado, concretamente, “por motivos concretamente não apurados” e determinou, correctamente, a Absolvição do Arguido quanto à prática do Crime de Condução Perigosa de Veículo Rodoviário e também do Crime de Condução de Veículo sob a Influência de Estupefacientes ou Substâncias Psicotrópicas, em face de ter dado o Ponto de Facto contido na alínea b) como Facto Não Provado, sendo que o teor deste Ponto de Facto é um dos requisitos essenciais e necessários para o preenchimento do tipo legal de ambos os referidos Crimes de Condução Perigosa de Veículo Rodoviário e de Condução de Veículo sob a Influência de Estupefacientes ou Substâncias Psicotrópicas;
P. Ao ter sido dado como Não Provado que o ora Recorrido, “Nas circunstâncias supra descritas, o arguido não se encontrava em condições de conduzir em segurança, em virtude do consumo de estupefacientes”, ficaram por preencher ambos os tipos legais dos Crimes de Condução Perigosa de Veículo Rodoviário e de Condução de Veículo sob a Influência de Estupefacientes ou Substâncias Psicotrópicas, não restando outra Decisão possível que a Decisão Legal e Justa que efectivamente foi proferida, a Absolvição do Arguido pela prática desses dois crimes;
Q. O Recorrido não vislumbra, mesmo que de forma muito ténue, que assista razão ao Recorrente, sendo certo que na sua opinião não existe qualquer contradição, muito menos insanável, da fundamentação ou entre a fundamentação e a Decisão, pelo que, deverão V.as Ex.as Venerandos Desembargadores proferir Decisão de Improcedência do presente Recurso quanto à invocada Nulidade, devendo confirmar a Douta Sentença Recorrida;
R. Sem prescindir;
S. Que bom seria que V.as Ex.as considerassem o 9.º Ponto de Facto Provado como Não Provado, tal como o Recorrente alega, pois tal, certamente, levaria à Absolvição do Recorrido do Crime de Condução sem Habilitação Legal;
T. O Recorrente alega que a Douta Sentença “em recurso não deveria ter dado como provada a factualidade constante dos pontos 2 e 9 e como não provado o ponto b) quando não logra, em sede de motivação, esclarecer por que motivo não considerou que o arguido não reunia as condições para conduzir em segurança”, discutindo a apreciação da prova por entender ter sido manifestamente errada;
U. Impende sobre o Recorrente um especial Dever de Especificação, o qual é consequência lógica da natureza e objecto do Recurso previsto na Lei, sendo o Recurso uma “intervenção cirúrgica” do Tribunal da Relação no sentido de indagar se houve erro de julgamento, corrigindo-o;
V. É claro que a Especificação dos Concretos Pontos de Facto se assume como elemento fundamental na delimitação do objecto do Recurso;
W. O Recorrente deve assim identificar os Concretos Pontos de Facto que considera incorrectamente julgados, de modo claro e completo, dando cumprimento, como está onerado, ao disposto na al. a) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP;
X. O Recorrente deve ainda especificar as concretas provas que impõem Decisão diversa da recorrida, identificando as Testemunhas cujos depoimentos, no seu entendimento, e relativamente ao Concreto Ponto de Facto em questão, impõem Decisão diversa, indicando concretamente as passagens dos depoimentos dessas Testemunhas em que se funda a impugnação, conforme dispõe o artigo 412.º, n.º 4 do CPP;
Y. Ao Recorrido, s.m.o., parece que o Recorrente não deu cumprimento a estas especificações que a Lei lhe impõe, acrescendo que lhe cabia o Ónus de Acusar e de Provar os factos vertidos no Despacho de Acusação;
Z. O Recorrente ao não ter arrolado ou indicado um Perito em Toxicologia no Despacho de Acusação, tal omissão, em face do referido Ónus que impende exclusivamente sobre si, apenas ao próprio deve ser imputada essa falta de promoção durante a fase de Inquérito e de Julgamento, contrariamente ao que o mesmo tenta agora fazer demonstrar que caberia ao Tribunal a quo;
AA. O Ministério Público durante a realização do Julgamento, ao abrigo do artigo 340.º do CPP, teve a possibilidade de requerer que fosse chamado Perito em Toxicologia para o mesmo esclarecer o que tivesse por conveniente, o que o mesmo não fez, não podendo agora, após o encerramento do Julgamento;
BB. Volta-se a referenciar o supra referido, concretamente, de que as posições alegadas e vertidas pelo Recorrente no Recurso que interpôs são manifestamente contraditórias entre si e parecendo até ter contornos de falta de lógica;
CC. O Recorrido entende por Boa a Decisão tomada pelo Tribunal a quo, quer a ter dado como Não Provado que “Nas circunstâncias supra descritas, o arguido não se encontrava em condições de conduzir em segurança, em virtude do consumo de estupefacientes”, quer porque ficaram por preencher ambos o tipos legais dos Crimes pelos quais foi Absolvido”.
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Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma Procuradora Geral Adjunta, emitiu parecer nos seguintes termos:
Considerando o tipo penal em causa cuja previsão consta do artigo 292 n.º 2 do Código Penal, estamos em presença de um tipo de crime de perigo abstracto- concreto e de mera actividade, ou seja, o tipo só inclui as condutas que sejam aptas, numa perspectiva ex ante, de prognose póstuma, a criar perigo para o bem jurídico protegido pela norma, devendo ser feita prova pelo tribunal da potencialidade de a acção concreta causar a lesão.(sublinhado nosso)
No ilícito previsto no n.º 2 do artigo 292º do Código Penal a expressão «não estando em condições de o fazer em segurança» tem o significado de exigir a aptidão da conduta para criar perigo para o bem jurídico protegido pela norma.
Ou seja, o preenchimento deste elemento do tipo objectivo basta-se com a falta de aptidão do agente para efectuar uma condução segura.
“A falta de aptidão afere-se, numa perspectiva ex ante, de prognose póstuma , devendo ser feita a prova pelo tribunal da potencialidade da acção causar a lesão.”
A falta de aptidão afere-se por esse juízo de prognose póstuma, o que equivale a olhar para a acção e avaliá-la de acordo com as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente, critérios que presidem à avaliação probatória decorrente do disposto no artigo 127º do CPP.
No caso concreto, consta do elenco dos factos provados que “ o arguido conduzia o referido veículo com estupefacientes no sangue: cocaína, éster metílico da ecgonina (69 ng/mL) e benzoilecgonina (235 ng/mL).” (vide facto 2)
Mais resulta da sentença recorrida que o arguido havia consumido cocaína momentos antes de iniciar a condução.
Competiria ao tribunal averiguar quais os efeitos normais decorrentes do consumo da cocaína sobre o consumidor, nomeadamente através da literatura cientifica, a fim de poder aferir se do consumo, momentos antes de iniciar a condução, seria previsível a conclusão de que o exercício da condução não seria feita com a segurança exigida a um condutor diligente (conforme impõe o tipo penal).
Resulta da literatura científica que: “Imediatamente após o consumo de cocaína observam-se efeitos como a euforia aumentada, a sensação de bem-estar, a autoconfiança intensificada, o aumento da frequência cardíaca, da pressão arterial e analgesia. No entanto, o consumo continuado desta substância desenvolve patologias que podem estar relacionadas com as vias de administração utilizadas ou diretamente ligadas ao mecanismo de ação da substância. A maioria destas patologias ocorre devido à ação anestésica local e à estimulação contínua dos neurónios promovidas pela cocaína (Boghdadi & Henning, 1997; Goldstein et al., 2009; Isenschmid, 2010; White & Lambe, 2003).”
Ou seja, é efeito natural imediato do consumo desta substância estupefaciente, a euforia aumentada, a sensação de bem-estar, a autoconfiança intensificada, o aumento da frequência cardíaca, da pressão arterial e analgesia.
Estes efeitos, de per si, colocam o condutor numa situação de não estar em condições de efectuar a actividade de condução em segurança, em virtude de, nomeadamente, estar num estado que não lhe permite uma leitura realista das circunstâncias que o rodeiam.
O preenchimento do tipo objectivo, está verificado com a circunstância de o arguido ter iniciado a marcha do veiculo estando sob o efeito do consumo de cocaína, éster metílico da ecgonina (69 ng/mL) e benzoilecgonina (235 ng/mL), considerando os efeitos normais decorrentes do consumo daquela substância.
O que significa que, o arguido mercê do tipo de estupefaciente consumido, momentos antes de iniciar a condução, não se encontrava em condições de efetuar esta actividade em segurança.
Ou seja resulta demonstrada a potencialidade da acção para causar a lesão do bem jurídico protegido pela norma, no caso concreto, a segurança rodoviária.
Consideramos assim, dever o recurso proceder e o arguido ser condenado pelo crime previsto e punido pelo artigo 292 n.º 2 do Código Penal”.
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Foi cumprido o artigo 417, nº2 do CPP.
O arguido veio responder ao parecer da Senhora Procuradora Geral Adjunta.
Colhidos os vistos legais foi o processo submetido à conferência.
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Da decisão recorrida:
“3. Fundamentação
3.1. Fundamentação de facto
3.1.1. Factos provados
Com relevância para a boa decisão da causa, resultaram provados os factos expostos infra.
Da acusação pública
1. No dia ... de ... de 2020, pelas 22h00, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..-..-UT, na ..., em …, sem que para o efeito fosse titular de carta de condução válida, ou de qualquer outro documento que o habilitasse a conduzir tal veículo.
2. Nas mesmas circunstâncias de tempo e de lugar, o arguido conduzia o referido veículo com estupefacientes no sangue: cocaína, éster metílico da ecgonina (69 ng/mL) e benzoilecgonina (235 ng/mL).
3. Então, ao chegar ao quilómetro 3.900, o arguido, por motivos concretamente não apurados, perdeu o controle do veículo que conduzia e sofreu um despiste, acabando por se imobilizar junto ao rail do lado direito da via, no sentido em que seguia (...).
4. Em resultado de tal despiste, ficaram na referida via destroços do veículo conduzido pelo arguido.
5. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, seguiam na mesma via os seguintes veículos: de matrícula ..-GQ-.., conduzido por BB, de matrícula AD-..-HM, conduzido por CC, de matrícula ..-ZM-.., conduzido por DD, de matrícula ..-RE-.., conduzido por EE, de matrícula FF, conduzido por GG e de matrícula ..-GE-.., conduzido por HH.
6. Tais condutores, ao aperceberem da existência dos destroços do veículo conduzido pelo arguido na via em que seguiam, tentaram evitar embater nos mesmos com os seus veículos.
7. Por tal motivo, os referidos veículos acabaram por colidir entre si, sofrendo danos não concretamente apurados.
8. O valor comercial do veículo de matrícula ..-GQ-.., era de € 8.500,00, o de matrícula ..-RE-.. era de cerca de € 7.000,00, o de matrícula AD-..-HM era de € 60.000,00.
9. O arguido agiu ciente de que não era titular de carta de condução, bem sabendo que só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito.
10. O arguido agiu sempre deliberada, livre e conscientemente, sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
Da audiência de julgamento, resultou ainda que:
11. Nas circunstâncias acima descritas, a via onde seguia o arguido encontrava-se molhada devido à chuva.
12. A iluminação elétrica encontrava-se desligada e o meio circundante estava escuro.
13. Foi elaborado relatório social pela Direção Geral da Reinserção Social e Serviços Prisionais, constando no mesmo as seguintes conclusões concernentes ao arguido:
«[…] apresenta uma baixa escolaridade e início precoce de atividade laboral junto do pai, na …, sendo nesta área que tem desenvolvido maioritariamente o seu percurso laboral, quer junto do pai quer em .... AA evidência desde a adolescência comportamento ilícito, de condução de veículos sem habilitação legal, revelando os pais, uma atitude de fraca supervisão e ausência de assertividade no controlo dos comportamentos do filho, enquanto figuras educativas. No que respeita ao comportamento delituoso AA, aparentemente apresenta algumas capacidades reflexivas, no entanto quando colocado perante situações abstratas similares às descritas nos autos, o arguido manifesta parca consciência crítica e deficiente pensamento sequencial, adotando uma atitude de desculpabilização. Não obstante tal posicionamento, AA, em caso de condenação, verbaliza encontrar-se disponível para o cumprimento do que vier a ser determinado pelo Tribunal. Recentemente o arguido inscreveu-se numa escola de condução, cuja licença de aprendizagem apresenta a validade de ...-...-2023 até ...-...-2025, tendo iniciado as aulas teóricas a ...-...-2023.».
14. Atualmente, o arguido trabalha na …, auferindo cerca de € 850,00 mensais.
15. Tem um filho com 16 anos, que reside com a respetiva mãe, desembolsando, a título de alimentos, entre € 100,00 e € 200,00.
16. Não constam averbadas condenações no Certificado do Registo Criminal do arguido.
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3.1.2. Factos não provados
a. Valor comercial das viaturas de matrícula FF, de matrícula ..-GE-.., e de matrícula ..-GE-...
b. Nas circunstâncias supra descritas, o arguido não se encontrava em condições de conduzir em segurança, em virtude do consumo de estupefacientes.
c. O arguido não desconhecia que poderia causar acidente de viação, em consequência de não se encontrar em condições de conduzir em segurança em virtude de ter consumido produtos estupefacientes e que, por força do mesmo, colocava em perigo, como colocou, bens patrimoniais, alheios, de valor elevado.
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Quanto ao que demais conste da acusação deduzida pelo Ministério Público que não esteja vertido no elenco dos factos supra consignado, tem-se por conclusivo, por matéria de Direito, podendo ainda aí não constar por constituir meios de prova ou por ser irrelevante para a boa decisão da causa.
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3.1.3. Motivação de facto
O Tribunal formou a sua convicção através da análise crítica do conjunto da prova carreada para os autos e produzida em sede de audiência de julgamento, a qual foi apreciada de acordo com o princípio da livre apreciação (cf. artigo 127.º, do Código de Processo Penal), conjugado com as regras da lógica, da razão e da experiência comum.
Deste modo, foram apreciadas as declarações do arguido e analisados os depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento e, bem assim, toda a prova documental carreada para os autos.
Cumpre sublinhar que as declarações, depoimentos e esclarecimentos prestados em sede de audiência de julgamento se encontram registados por sistema de gravação digital, estando disponíveis na aplicação informática em uso, tornando-se, deste modo, possível a sua posterior reprodução, circunstância que dispensa o relato detalhado e exaustivo daqueles meios de prova.
Vejamos com maior detalhe.
O arguido esteve presente em audiência de julgamento, tendo prestado declarações. Com sustento nas suas declarações e na prova documental junta aos autos, o Tribunal deu por provados os factos 1. e 2 como provados.
Com efeito, confrontado com tal factualidade, o arguido anuiu-a, esclarecendo que, efetivamente não era titular de carta de condução e que consumira estupefacientes (cocaína) momentos antes de iniciar a condução. Quanto a tal, as suas declarações são compatíveis com a prova documental junta aos autos, designadamente, o print do IMTT, de fls. 28 e a informação do IMTT, de fls. 31 (no que respeita à ausência de habilitação para a condução) e com a prova pericial, porquanto o relatório, junto a fls. 38 a 40, dá nota da natureza e quantidade de estupefacientes presentes no sangue do arguido, na ocasião acima descrita.
A prova dos factos 3., 4. e 5., respeitante ao despiste sofrido pelo arguido, acidente de viação dele resultante e seus intervenientes, resultou da análise concatenada das declarações do arguido, com os depoimentos das testemunhas II
O arguido referiu ainda que, nas circunstâncias acima referidas, se despistou, não por se encontrar sob o efeito de estupefacientes, mas sim porquanto, no momento em que se encontrava a fazer uma ultrapassagem, deu conta que a roda do lado direito rebentou (crê que o eixo de direção partiu), tendo deixado de conseguir controlar a viatura, vindo a embater. Negou ter conhecimento dos prejuízos causados, uma vez que, quando saiu do carro, perdeu os sentidos.
Indo ao encontro do explanado pelo arguido, a testemunha DD, motorista de TVDE que, nas circunstâncias acima descritas, seguia a conduzir a viatura com a matrícula ..-ZM-.., relatou, descrevendo o que se recordava, que o arguido seguia a conduzir atrás de si e, quando o ultrapassou pela via da esquerda, deu uma «guinada» para a direita, atravessando-se repentinamente à sua frente, vindo a embater contra os separadores da via. Referiu que foi um embate forte, que fez, inclusivamente, com que o motor da viatura saltasse. Com relevância para a descoberta da verdade material, a testemunha referiu que o que viu naquele momento, fê-lo recordar de uma situação parecida que lhe havia acontecido em tempos, em que o eixo de direção do seu carro partiu e deixou de conseguir controlar a sua viatura.
Por seu turno, a testemunha BB, prestou depoimento acerca do acidente de viação de que foi interveniente nas circunstâncias acima referidas, mencionando, com relevância, que, nas circunstâncias de tempo e lugar em causa nos presentes autos, seguia a conduzir o seu veículo (matrícula ..-GQ-..) quando bateu num objeto que não soube identificar existente na via, vindo a embater noutra viatura. Prestou ainda depoimento quanto ao valor comercial da sua viatura à data dos factos, que avaliou em € 8.500,00.
A testemunha CC, interveniente no acidente, descreveu que, naquela ocasião, apercebeu-se de um acidente a acontecer à sua frente, ainda à distância, tendo visto um carro - que mais tarde soube ser o de BB -, despistar-se, descontrolando-se e vindo a embater no seu carro. Referiu que não viu o impacto inicial. Prestou ainda depoimento acerca do valor comercial da sua viatura à data dos factos, que avaliou em € 60.000, explanando que sabia o montante exato, porquanto o havia comprado há quinze dias.
A testemunha EE, apenas recordou que, naquela ocasião, seguia a conduzir um carro de marca dacia, de matrícula ..-RE-.., quando embateu num motor que se encontrava na via.
Por fim, a testemunha II, agente da P.S.P. chamado ao local acima identificado, após a ocorrência do acidente supra descrito, prestou o seu depoimento acerca do que percecionou, de modo direto, no momento em que chegou ao local. Com relevância, referiu que viu o rasto do acidente e os destroços existentes na via, contactou e identificou os diversos condutores e viaturas intervenientes, fazendo constar tal informação do expediente por si lavrado, designadamente no croqui que se encontra junto aos autos.
De salientar que as testemunhas acima identificadas prestaram o seu depoimento com objetividade e isenção em relação ao objeto do processo, não lhes tendo sido denotado qualquer tendência em prejudicar ou beneficiar o arguido, que referiram não conhecer. Sendo, ademais, os seus depoimentos congruentes entre si, o Tribunal não ficou com dúvidas de que prestaram depoimento sobre factos que efetivamente presenciaram e vivenciaram. Por isso, foram os depoimentos expostos, ponderados.
De modo congruente, as testemunhas referiram que, naquela ocasião, a via não se encontrava iluminada (os postes elétricos encontravam-se desligados), estava escuro e o chão estava escorregadio devido à chuva. Por ser relevante para a boa decisão da causa, o Tribunal, com sustento nos apontados depoimentos, deu os factos 11 e 12 como provados.
A ausência de antecedentes criminais extrai-se do C.R.C. junto aos autos (facto 16.) e as circunstâncias pessoais, sociais e económicas do arguido, do relatório social elaborado pela DGRSP, cujo teor foi sustentado pelas suas declarações e pelo depoimento da testemunha abonatória, JJ, mãe do arguido (factos 13., 14. e 15.), que verteu as suas declarações acerca do comportamento do arguido, relatando que, desde o acidente acima descrito, o arguido mudou de postura, mantendo um comportamento adequado.
A factualidade não provada resultou enquanto tal, da falta de elementos probatórios que a corroborassem.
Assim, no que respeita ao facto a., o Tribunal deu-o como não provado, porquanto as testemunhas que poderiam comprovar o valor da respetiva viatura ou não sabiam o valor (o caso da testemunha EE) ou não compareceram em audiência de julgamento, não tendo prestado depoimento.
Por seu turno, no que respeita aos factos b. e c., cumpre referir que o Tribunal não se convenceu, além da dúvida razoável, ante a prova produzida, da veracidade dos mesmos. Os elementos probatórios produzidos em audiência não permitiram ao Tribunal concluir que o arguido não se encontrava em condições de conduzir em segurança, em virtude do consumo de estupefacientes e que foi, fruto desta conduta, que o acidente e respetivas consequências tiveram lugar.
Para aferir se um dado condutor sob o efeito de estupefacientes está em condições de o fazer em segurança, não basta comprovar a presença deste produto no sangue (o que se bem entende, considerados os plúrimos e diversos efeitos desencadeados pelos distintos tipos de droga). Conforme ensina o Tribunal da Relação de Évora, em acórdão de 22.02.2022, processo n.º 668/16.6GASSB.E1, o Tribunal deverá aferir se o condutor não estava em condições de fazer uma condução segura e «[p]ara tanto avaliar, o juiz deverá servir-se e ponderar os sinais percecionados ou colhidos no local e momento próprios (se o condutor cambaleava, se tinha as pupilas dilatadas, a respiração afogueada, se dava sinais de algum tipo de descontrolo, se vinha fazendo uma condução bizarra, grosseiramente imprudente, etc.). E só quando conclui positivamente poderá julgar o mesmo provado […]».
Ora, no presente caso, nada do exposto ficou demonstrado e, conforme acima salientamos, as testemunhas inquiridas referiram que as condições climatéricas e de visibilidade eram adversas a um exercício seguro da condução, tendo, inclusivamente, o arguido dado uma justificação plausível (vd. o supra vertido, versão que foi acompanhada pela testemunha DD), para ter perdido o controlo da viatura.
Razão pela qual, não ficou demonstrada tal circunstância.
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3.2. Fundamentação de Direito
(…)
3.2.3. Crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas
Importa, pois, ante o decaimento do crime de condução perigosa, aquilatar se o comportamento do arguido preenche os elementos típicos do crime de crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas [p. e p. nos termos do artigo 291.º n.º 1 do Código Penal, em conjugação com a tabela I-B, anexa ao do D.L. nº 15/93 de 22/01, revisto pela Lei n.º 38/2009 de 20.07].
Sendo o concurso aparente um concurso de normas, deve o Tribunal, ante a exclusão do preenchimento do crime prevalecente ou mais grave, na relação de subsidiariedade existente entre tais normativos, ponderar a verificação segundo tipo penal que renasce, ante o afastamento do primeiro [acerca do concurso aparente, em particular, acerca da relação de subsidiariedade, vd. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10.10.1996, processo n.º 96P392].
De acordo com o artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal que, «1- quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - Na mesma pena incorre quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.».
O crime de condução de veículo sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas é um crime de perigo abstrato (que não exige a demonstração da existência de um perigo concreto para os bens jurídicos protegidos), cujo bem jurídico protegido é a segurança rodoviária, embora se destine igualmente, de forma indireta, à proteção de outros bens jurídicos, como a vida ou a integridade física, face aos perigos para estes, decorrentes da circulação de veículos.
Os elementos constitutivos do tipo objetivo de ilícito são: i) a condução de veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada; ii) não estando em condições de o fazer com segurança; iii) por se encontrar sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica. A condução de veículo consiste, no essencial, na execução dos mecanismos de direção do veículo, de modo a colocá-lo em circulação, movendo-o de um local para outro.
No que se refere à via pública, diz-nos o artigo 1.º, alínea v) do Código da Estrada que a mesma constitui uma «via de comunicação terrestre afeta ao trânsito público», estendendo-se tal conceito, por força da alínea u) do mesmo preceito legal, a vias do domínio privado, quando abertas ao trânsito público.
No que respeita à deteção de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas no sangue de uma pessoa (contrariamente ao que sucede com a condução em estado de embriaguez), a lei não fixa nenhum valor a partir do qual considera ser crime apenas exigindo, adicionalmente à deteção de uma das substâncias previstas, que essa circunstância impeça o exercício da condução em segurança.
No que respeita ao tipo subjetivo, o mesmo preenche-se tanto a título de dolo, em todas as suas vertentes (cf. artigo 14.º do Código Penal), como a título de negligência.
Olhando à decisão da matéria de facto, constata-se que não ficou demonstrado nas circunstâncias supra descritas, o arguido não se encontrava em condições de conduzir em segurança, em virtude do consumo de estupefacientes. Assim, ante a não verificação de um elemento típico, deve o arguido ser absolvido da prática do mesmo”.
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B)-Fundamentação:
Impõe-se determinar quais são as questões a decidir em sede de recurso.
“É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões(…)”], sem prejuízo da eventual necessidade de conhecer oficiosamente da ocorrência de qualquer dos vícios a que alude o artigo 410º, do Código de Processo Penal nas decisões finais (conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão nº 7/95, do STJ, in DR, I série-A, de 28/12/95- O objeto do recurso está limitado às conclusões apresentadas pelo recorrente -cfr. Ac. do STJ, de 15/04/2010:).
Assim, o conhecimento do recurso está limitado às suas conclusões, sem prejuízo das questões/vício de conhecimento oficioso.
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Questões a decidir:
- Da nulidade da sentença;
- Dos vícios do 410 do CPP.
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Da nulidade da sentença:
Alega o MP a nulidade da sentença.
A nulidade da sentença está prevista no artigo 379 do CP.
Dispõe o artigo 379 do CPP que é nula a sentença:
“a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F;
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Preceitua o artigo 374, nº2 do CPP que: “ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
A fundamentação da sentença encontra-se consagrada na CRP, no seu artigo 205, nº1.
“Tal princípio, relativamente à sentença penal concretiza-se, porém, mediante uma fundamentação reforçada, que visa, por um lado, a total transparência da decisão, para que os seus destinatários (…) possam apreender e compreender claramente os juízos de valoração e da apreciação da prova” (Oliveira Mendes, in CPP comentado, pag 1168).
Como sumariado no acórdão desta Relação de 8.1.2020, in base de dados do IGFEJ “O que importa para satisfazer a exigência legal do exame crítico das provas imposta, sob pena de nulidade, pelas disposições conjugadas dos arts. 379º nº 1 al. a) do CPP é que a fundamentação da decisão de facto expresse, com clareza, quais as regras de experiência comum, os critérios de razoabilidade e de lógica, ou os conhecimentos técnicos e científicos utilizados para conferir credibilidade a determinados meios de prova e não a outros e em que medida os meios de prova produzidos oferecem informação esclarecedora e convincente que permite considerar provados os factos ou, pelo contrário, não oferecem segurança para alicerçar uma conclusão positiva acerca da verificação de determinados factos e, por isso, se justifica a sua inclusão, nos factos não provados”. Em sentido idêntico também o ac. desta Relação de 26.4.2023, na mesma base de dados: “O exame crítico deve consistir na explicitação coerente, lógica e racional do processo de formação da convicção do julgador, devendo traduzir-se na indicação das razões que levaram à formação da sua convicção, isto é, dos motivos pelos quais as diferentes provas foram, ou não, valoradas e em que sentido, nele se explanando ainda os fundamentos que levaram o Tribunal a considerar, ou não, idóneos e credíveis os meios de prova produzidos”.
O Tribunal dá cumprimento ao artigo 374, nº2 quando “ao identificar as provas que foram produzidas ou examinadas em audiência de julgamento e ao expor as razões de forma objetiva e precisa porque é que determinadas provas serviram para alicerçar a convicção e por que é que outras não serviram” ( Ex. Senhor Dr. Sérgio Poças na revista julgar , 3, pag.37).
“O Tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento de facto provado ou não provado” (Teixeira de Sousa, in estudos, pág. 348).
No caso concreto o Tribunal a quo deu como provados determinados factos, que constam da sentença, e na motivação descreveu os elementos de prova que levaram a tal decisão.
O Tribunal recorrido identificou os meios de prova, nomeadamente os depoimentos nos quais se baseou para a prova positiva e negativa desses factos, fazendo uma análise crítica dos mesmos.
O Ministério Público, com todo o respeito, confunde a nulidade da sentença com os vícios do artigo 410 do CPP, quando refere que a sentença padece de nulidade, nos termos do art.º 410º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal.
Na verdade, os vícios do artigo 410º, nº2 do CPP, quando não é possível decidir da causa, não levam à nulidade da sentença, mas ao reenvio dos autos nos termos do artigo 426º do CPP.
Pelo exposto, inexiste qualquer nulidade da sentença recorrida.
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Dos vícios do 410 do CPP:
Alega o MP que a sentença padece de contradição insanável no que tange à sua fundamentação, concretamente no que se refere à contraposição entre a matéria de facto provada e não provada e desta relativamente à motivação.
Para tal menciona que: “a decisão em recurso não poderia dar como provada a factualidade acima transcrita nos pontos 2 e 9 (e isto sem falar dos pontos 1, 3, 11 e 12, que se referem à ausência de habilitação legal e estado da via) e a factualidade constante da alínea b) da matéria de facto não provada, ou seja, não poderia dar-se simultaneamente como provado que o arguido conduzia depois de consumir cocaína, na dosagem constante do relatório pericial, de modo deliberado, livre e consciente, sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal e, simultaneamente, considerar como não provado que o arguido não se encontrava em condições de conduzir em segurança, em virtude do consumo de estupefacientes não se logrando depois, em sede de motivação da matéria de facto, esclarecer de modo sustentado por que é que o confessado consumo de cocaína antes do exercício da condução, momentos antes, e naquela concentração, não se traduziu numa diminuição das condições de segurança com que cada condutor deve exercer a condução - sendo que o bem que o bem jurídico que está protegido com as incriminações contidas no art.º 292º, do Código Penal, é exactamente a segurança na circulação rodoviária”.
Dispõe o artigo 410 do CPP que:
“(…)
2- Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão constituem vícios da decisão previstos no art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP.
Tais vícios são de conhecimento oficioso.
“I – A al. b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP abrange dois vícios distintos, que são:
- A contradição insanável da fundamentação; e
- A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão.
II – No primeiro caso incluem-se as situações em que a fundamentação desenvolvida pelo julgador evidencia premissas antagónicas ou manifestamente inconciliáveis. Ocorre, por exemplo, quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados ou quando o mesmo facto é considerado como provado e como não provado.
III – Quanto à segunda situação, abrange as circunstâncias em que os factos provados ou não provados colidem com a fundamentação da decisão. É o vício que se verifica, por exemplo, quando a decisão assenta em premissas distintas das que se tiveram como provadas” (sumário do ac. da RC de 13.5.2020, em que é relator o Senhor Desembargador Jorge Jacob, in base de dados do igfej).
Só existe contradição quando a mesma não é sanável.
Na situação concreta, procedendo a uma leitura cuidada da sentença facilmente se conclui que inexiste qualquer contradição.
Não se verifica qualquer contradição entre dois factos provados e também não ocorre que o mesmo facto foi dado como provado e não provado.
Inexiste qualquer contradição factual quando se dá como provado que “o arguido conduzia depois de consumir cocaína” e como não provado que “o arguido não se encontrava em condições de conduzir em segurança, em virtude do consumo de estupefacientes”. Estamos perante dois factos distintos, tendo um sido dado como provado e, o outro, como não provado.
Contudo, o Ministério Público, não obstante alegar a contradição factual, alega igualmente o erro de raciocínio.
O erro notório na apreciação da prova encontra-se previsto no art. 410.º n.º 2, al. c), do CPP.
Como se extrai da letra da lei, erro tem de ser notório, ou seja, é aquele que resulta de forma evidente da leitura do texto, quer só por si, quer conjugado com as regras da experiência. Contudo, “basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha de ser devidamente escrutinada-ainda que para além das perceções do homem comum- e sopesado à luz das regras da experiência. Ponto é que, no final, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique deviamente demonstrada pelo Tribunal ad quem” (Codigo Processo Penal anotado, Pereira Madeira, pág. 1359).
“I -As anomalias, os vícios da decisão elencados no n.° 2 do art. 410.° do CPP têm de emergir, resultar do próprio texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão, como peça autónoma; esses vícios têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos estranhos à peça decisória, que lhe sejam externos, constando do processo em outros locais, como documentos juntos ou depoimentos colhidos ao longo do processo.
II - Trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei -vícios da decisão, não do julgamento.
III - Os vícios previstos no artigo 410.°, n.° 2, do CPP, nomeadamente, o erro notório na apreciação da prova, não podem ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova, princípio inscrito no art. 127.° do CPP.
IV - Não podendo, neste tipo de análise, prevalecer-se de prova documentada nem se encontrando perante prova legal ou tarifada, não pode o tribunal superior sindicar a boa ou má valoração daquela, e querer discutir, nessas condições, a valoração da prova produzida; é, afinal, querer impugnar a convicção do tribunal, olvidando a citada regra.
V - Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do art. 410.°, n.° 2, do CPP, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.
VI - O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação.
VII - No caso de impugnação da matéria de facto nos termos dos n.°s 3 e 4 do art. 412.° do CPP a apreciação pelo tribunal superior já não se restringe ao texto da decisão, mas abrange a análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.°s 3 e 4 do art. 412.° do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.°, al. b), do CPP” ( sumário do ac. do STJ de 15-07-2009 proc. n.º 103/09 -3.ª Secção , sendo relator o Senhor Conselheiro Fernando Fróis).
Transcrevendo ainda o sumário do ac. desta Relação de 6.2.2024, em que é relator o Senhor Desembargador Manuel José Ramos da Fonseca (in base de dados do igfej):
“1-O vício de erro notório na apreciação da prova (art. 410.º/2c)CPP), não se confunde com a divergência entre aquela que é a convicção pessoal - próxima da justiça por mão própria em que o recorrente forma a sua – sempre indissociável - subjetiva convicção sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o Tribunal a quo firmou sobre os factos no âmbito do respeito pelas regras de apreciação da prova e dentre estas na livre apreciação da prova, como princípio inscrito no art. 127.ºCPP.
2-Tal erro notório na apreciação da prova também não se confunde com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida, pois que, tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências.
3-A forma de descortinar o erro de julgamento não passa pela mera alegação da discordância, antes tem que passar pela demonstração inequívoca – nos mesmos moldes de fundamentação que se exige ao julgador - de que o Tribunal desdizeu as exigidas regras da experiência e afrontou princípios basilares do direito probatório”.
Como referido, há erro notório na apreciação da prova quando da sentença ou do acórdão constam como provados factos que nunca se poderiam ter verificado, em face das regras da experiência, ou que são contraditados por documentos autênticos, o que terá de resultar da leitura do texto da decisão.
Na situação concreta o erro de raciocínio, segundo o MP, ocorreu pelo facto do Tribunal a quo ter dado como não provado que o arguido não se encontrava em condições de conduzir em segurança, sendo tal violador das regras da experiência.
Resulta dos factos que o arguido, sujeito a exame para quantificação de substâncias psicotrópicas no sangue por GC/MS, acusou éster metílico da ecgonina (EME) 99 ± 30 ng/mL, Benzoilecgonina 337 ± 102 ng/mL, valores com os quais exercia a condução.
Ora, para apreciarmos esta questão, temos de tecer algumas considerações sobre o tipo legal em causa.
Estipula o artigo 292 do CP:
“1- Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - Na mesma pena incorre quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica”.
São elementos do tipo do crime em causa:
a) a condução de veículo, com ou sem motor, na via pública ou equiparada;
b) que o condutor se encontre sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica;
c) que devido à influência de tais estupefacientes, substâncias ou produtos, o condutor não esteja em condições de fazer com segurança tal condução; e
d) que o agente tenha atuado pelo menos com negligência.
Para a verificação do tipo legal do nº2 do artigo 292 do CP, ao contrário do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, não basta a presença de substância psicotrópica no corpo, sendo necessário que a mesma influencie e torne o condutor incapaz de conduzir em segurança.
Como tal, e sendo um elemento do tipo, tem de constar quer da acusação, quer dos factos provados, para que possa existir condenação.
A falta de condições para o exercício da condução em segurança não resulta automaticamente do consumo de estupefacientes e daí, o tipo do nº2 do artigo 292 do CP, ao contrário do nº1, exigir a verificação do mencionado elemento objetivo.
Como se escreve no ac. da RE de 10.11.2020: “Por oposição ao nº 1 do artº 292º do C.P. – relativo à condução sob o efeito de álcool – não basta, para o preenchimento do crime do nº 2 do mesmo preceito legal, que o condutor se encontre sob a influência de estupefacientes ou psicotrópicas, sendo necessário provar que isso o impede de exercer a condução com segurança.”
Foi precisamente a dificuldade em estabelecer o nexo de causalidade entre o consumo de estupefacientes e a falta de segurança em exercer a condução, que levou, a que, por despacho (n.º 9543/2019), de 22 de outubro, publicado do DR, fosse criado um grupo de trabalho com a missão: “de estudar as alterações legislativas necessárias com vista a uma maior eficácia e simplificação da fiscalização e do sancionamento da condução sob influência de substâncias psicotrópicas”.
Consta desse despacho que:
“Com efeito, a condução sob influência de substâncias psicoativas é um dos comportamentos que compromete a segurança rodoviária. O projeto DRUID (Driving Under the Influence of Drugs, Alcohol, and Medicines), estudo realizado em ambiente rodoviário sobre a prevalência de droga, álcool e alguns medicamentos em condutores de veículos da União Europeia, concluiu que Portugal apresenta a quarta maior prevalência de qualquer substância psicoativa, superior à média dos condutores dos 13 países europeus incluídos no estudo, que é de 7,4 %.
A influência dessas substâncias nas capacidades para conduzir veículos motorizados, como fatores causais ou que contribuam para a ocorrência de acidentes rodoviários, tem suscitado grande número de estudos clínicos. Vários estudos mostram que conduzir sob o efeito de substâncias psicoativas ilícitas pode afetar a condução de várias maneiras: tempos de reação mais lentos, comportamento errático e agressivo, fadiga, dificuldades de concentração e até quadros mais graves como crises de pânico, tremores, tonturas ou paranoia. Os efeitos das substâncias psicoativas ao nível do sistema nervoso central levam à diminuição de capacidades essenciais para uma condução segura. Provocam também alterações no comportamento dos condutores que os levam a correr mais riscos na estrada. De acordo com dados do projeto DRUID, o risco de morte ou ferimento grave é 1 a 30 vezes maior em condutores sob a influência de drogas, comparativamente a condutores que não consumiram qualquer substância. Este risco pode aumentar até 200 vezes no caso de consumo combinado de drogas com álcool.
A legislação atual qualifica como contraordenação a condução de veículo sob influência de substâncias psicotrópicas e como crime a condução de veículo, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica. Para efeitos contraordenacionais basta que o exame de confirmação revele resultado positivo para uma ou mais das substâncias avaliadas, enquanto que no crime se exige a verificação de que aquela ou aquelas substâncias no organismo perturbaram as aptidões do condutor impedindo-o de conduzir com segurança. Em qualquer um dos ilícitos não releva a quantidade da substância, ou substâncias, encontrada no organismo.
Em vários países da Europa procedeu-se à consagração legal de valores limite a partir dos quais se qualificam os ilícitos, sejam de natureza contraordenacional, sejam de natureza penal, à semelhança do que sucede com os ilícitos decorrentes da condução sob influência do álcool, no pressuposto de que a partir de determinada quantidade de uma ou mais substâncias psicoativas no organismo se verifica inaptidão para a condução e que esta se mostra variável em função da substância e quantidade consumidas. Perante a prática adotada nesses países, considera-se oportuno rever o regime jurídico vigente da condução sob influência de substâncias psicotrópicas”.
Como referido no mencionado despacho, a prática do crime não se basta com o exame de confirmação do resultado positivo, exigindo-se a verificação de que aquela ou aquelas substâncias detetadas perturbaram as aptidões do condutor, impedindo-o de conduzir com segurança.
Aliás, de acordo com o artigo 81 do CE:
1 - É proibido conduzir sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas.
(…)
5 - Considera-se sob influência de substâncias psicotrópicas o condutor que, após exame realizado nos termos do presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico ou pericial”.
Assim, para a prática do ilícito de contraordenação basta que o exame realizado ao condutor conclua que conduzia sob a influência de substâncias psicotrópicas.
O legislador distingue as situações em que o condutor conduz sob o efeito de estupefacientes (que será, pelo menos, ilícito de contraordenação), daquelas em que o consumo das substâncias leva a que a condução não possa ser realizada em segurança, que configuram a prática de um ilícito criminal.
Assim, cabe ao Juiz, em cada situação, concluir pela existência da falta de segurança, inexistindo, ao contrário do que sucede com a taxa de álcool no sangue, um limite mínimo de consumo a partir do qual se considera que a condução não pode ser exercida em segurança.
Na verdade, a comunidade científica tem demonstrado dificuldade em encontrar um valor mínimo de concentração de estupefacientes no sangue, a partir do qual se possa considerar que não é possível conduzir com segurança para efeitos penais, na medida em que tal depende de variantes, nomeadamente do grau de tolerância a substâncias estupefacientes e psicotrópicas de cada organismo.
A intensidade dos efeitos, não depende só da dose consumida, mas ainda da tolerância do organismo, inclusive os efeitos são diferentes consoante se trate de um consumidor habitual ou ocasional e daí a dificuldade em estabelecer um limite mínimo a partir do qual se considere a existência de crime, como acontece na condução sob o efeito do álcool ( não obstante várias legislações estrangeiras já terem definido tais limites).
Logo, a conclusão a que chega a Ex.ma PGA no seu parecer quando refere que : é efeito natural imediato do consumo desta substância estupefaciente, a euforia aumentada, a sensação de bem-estar, a autoconfiança intensificada, o aumento da frequência cardíaca, da pressão arterial e analgesia e que “estes efeitos, de per si, colocam o condutor numa situação de não estar em condições de efectuar a actividade de condução em segurança, em virtude de, nomeadamente, estar num estado que não lhe permite uma leitura realista das circunstâncias que o rodeiam”, com todo o respeito, não é exata, não dependendo a prática do crime, ao contrário da contraordenação, apenas do tipo de drogas ingeridas.
Cumpre ainda referir que não obstante a criação do grupo de trabalho, o artigo 292, nº2 do CPP continua inalterado, tal é o grau de dificuldade em chegar a uma conclusão.
Assim, e voltando ao caso em análise, concluímos que inexiste qualquer erro notório na apreciação da prova, não violando a conclusão extraída pelo Tribunal a quo as regras da experiência.
Na verdade, consta da sentença recorrida que:
No que respeita aos factos b. e c., cumpre referir que o Tribunal não se convenceu, além da dúvida razoável, ante a prova produzida, da veracidade dos mesmos. Os elementos probatórios produzidos em audiência não permitiram ao Tribunal concluir que o arguido não se encontrava em condições de conduzir em segurança, em virtude do consumo de estupefacientes e que foi, fruto desta conduta, que o acidente e respetivas consequências tiveram lugar.
Para aferir se um dado condutor sob o efeito de estupefacientes está em condições de o fazer em segurança, não basta comprovar a presença deste produto no sangue.
(…)
Ora, no presente caso, nada do exposto ficou demonstrado e, conforme acima salientamos, as testemunhas inquiridas referiram que as condições climatéricas e de visibilidade eram adversas a um exercício seguro da condução, tendo, inclusivamente, o arguido dado uma justificação plausível (vd. o supra vertido, versão que foi acompanhada pela testemunha DD), para ter perdido o controlo da viatura.
Razão pela qual, não ficou demonstrada tal circunstância”.
A conclusão pela falta de segurança cabe ao juiz, depois de valorada a prova e, se a prova do consumo resulta da perícia realizada, já a prova de que tal consumo impede o agente de conduzir em segurança, resulta da totalidade da prova, nomeadamente da prova testemunhal.
Na situação concreta o Mº Juiz quo expressou a sua dúvida sobre se (tendo em conta a prova produzida, nomeadamente testemunhal), o consumo de estupefacientes impediu o arguido de conduzir em segurança, dúvida essa que decidiu a favor do arguido, como se impunha.
Refere o MP nas suas motivações que: “Não obstante concordarmos que não resultou provado, de forma inequívoca, que foi a condução do arguido que deu origem ao seu próprio despiste, que teve gravíssimas consequências para terceiros - daí que não nos insurjamos quanto à sua absolvição da prática do crime de condução perigosa, entendemos que esta circunstância não equivale a sustentar, em segurança”.
Ora, e com todo o respeito, não concluiu o Mº Juiz na sentença recorrida que o arguido podia conduzir em segurança, mas sim, que “os elementos probatórios produzidos em audiência não permitiram ao Tribunal concluir que o arguido não se encontrava em condições de conduzir em segurança”, resultando ainda da fundamentação que a dúvida não seria sanada com a produção de outros meios de prova, nomeadamente esclarecimentos periciais, pois a falta de segurança não se extrai, só por si, da verificação de estupefaciente no organismo.

C)- Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes que compõem a 9º secção penal do Tribunal da Relação de Lisboa em:
- Negar total provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se na integra a sentença recorrida.
Sem custas.
Notifique.

Lisboa, 6 de março, de 2025,
Ana Paula Guedes
Paula Cristina Bizarro
Eduardo de Sousa Paiva